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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES
TERRA NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Sara Cardoso Inácio
Dissertação
Mestrado em Escultura
Especialização em Estudos de Escultura
Dissertação orientada pela Profª. Doutorª Virgínia Fróis
2016
DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu, Sara Cardoso Inácio, declaro que a presente dissertação de mestrado intitulada “Terra
na Arte Contemporânea”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O
conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na
bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou
indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.
O Candidato
Lisboa,
1
Agradecimentos
À Professora Doutora Virgínia Fróis por me ter guiado nesta travessia, pela
disponibilidade, por todo o apoio e pela documentação cedida.
À Universidade de Lisboa pela bolsa atribuída, graças à qual foi possível realizar o
presente Mestrado.
À minha família - núcleo dourado sempre presente e nutridor.
Aos meus professores e aos meus alunos que, ao longo de vários anos, têm sido uma
fonte de crescimento e de expansão.
Às amizades que trazem a inspiração, a alegria e o prazer da partilha!
2
Terra na Arte Contemporânea
Autora: Sara Cardoso Inácio
Resumo
A presente dissertação centra-se na relevância da matéria, nomeadamente a terra/
barro/ paisagem, na arte contemporânea.
De que modo é que esta matéria pode despoletar um sentimento de conexão com as
origens (da vida e da arte)?
Em que medida é que as obras cuja presença da terra é significativa podem evocar
complementaridades intemporais como céu/terra; matéria/espírito; visível/invisível;
permanente/efémero; particular/universal?
Qual o impulso que move os artistas que procuram um contato sensorial e essencial
com esta matéria e com a paisagem? Estas são questões que sintetizam e norteiam
todo o processo de pesquisa e de reflexão.
A terra, enquanto elemento físico e simbólico, também ligada ao feminino, é abordada
como matéria capaz de evocar um sentimento de interioridade, de unidade com a vida,
com a natureza e com o cosmos.
Palavras Chave: Terra, Barro, Escultura, Natureza, Paisagem.
3
Earth in Contemporary Art
Author: Sara Cardoso Inácio
Abstract
This work is about the relevance of the matter, namely earth, clay or landscape, in
contemporary art.
How can this matter trigger a feeling of connection with the origins (of life and art)?
How can the art works, in which the presence of earth is significant, evoke timeless
polarities such as: sky/earth; spirit/matter; invisible/visible; permanent/ephemeral;
particular/universal?
What is the motivation of the artists that look for a sensory and essential contact with
this matter and with the landscape? These are central questions that guide the
process of search and reflection.
The earth, as a physical and symbolic element, also connected with the feminine, is
refered to as a matter that can evoke a feeling of gathering, of unity with life, with
nature and with the cosmos.
Key words: Earth, Clay, Sculpture, Landscape, Nature
4
Índice
Apresentação .................................................................................................................5
Introdução……………..…...…………………………………….........................................9
Parte I – Enquadramento teórico
Capítulo I- A Matéria e a Paisagem
Terra-elemento simbólico..............................................................................................11
A importância da matéria na arte moderna e contemporânea......................................13
A paisagem como matéria ............................................................................................20
Capítulo II- Estudo de duas artistas
Ana Mendieta- Conexão com a Terra Mãe ..................................................................30
Celeida Tostes- Processo de transformação interior....................................................37
Parte II – Apresentação e reflexão acerca do desenvolvimento
prático do Mestrado- as séries Movimento Maior e Alvorada.
Introdução......................................................................................................................43
Série Movimento Maior...............................................................................................,..45
Série Alvorada...............................................................................................................63
Alvorada- Exposição na Capela da Faculdade de Beçlas Artes – UL..........................73
Conclusão......................................................................................................................78
Bibliografia…………………………………………....................................................80
Anexos
Textos do folheto da exposição Alvorada .....................................................................85
Folheto da Exposição Alvorada.....................................................................................88
C.V.................................................................................................................................89
5
Apresentação
A terra e o barro, na sua fisicalidade e na sua carga simbólica, têm
constituído uma das matérias fulcrais no desenvolvimento plástico de obras e
projetos anteriores, quer de escultura cerâmica, quer em intervenções na
paisagem e obras em espaços públicos. A terra, sendo uma das polaridades do
binómio céu-terra, evoca o mundo material, o mundo sensorial, o plano físico e
concreto da realidade. Complementarmente, o céu está associado ao subtil, à
consciência, ao mundo espiritual, etéreo, à dimensão subjetiva e imaterial da
criação. Cada ser humano contém em si estas duas dimensões – somos corpo,
substância física e somos, simultaneamente, sopro (anima), alma, habitados
por uma dimensão espiritual. Trabalhar com a terra (terra crua, barro ou a
natureza/paisagem) é convocar e acionar este binómio e permitir que os dois
pólos se harmonizem e se fundam.1 Alguns exemplos de trabalhos que realizei
em anos anteriores neste sentido são:
Conexão [Fig.1] instalação composta por uma escultura, feita com uma
mistura de barro e pasta de papel, que dialoga com o espaço e com o
espetador. O chão, que foi coberto de terra, contrasta com o teto translúcido de
vidro. As duas partes ocas da escultura- uma assente no chão e a outra
suspensa – permitem que se veja a terra e o céu.
1 A propósito desta questão das polaridades Sara Antónia Matos escreve: “ Esta “descida” ao
mais singelo, ao lugar «anterior», talvez nos faça reconsiderar que a elevação a que
comummente se chama transcendência não esteja acima ou fora de nós, mas penetrante,
entre a inteireza dos sentidos e uma consciência mais funda do que a inteligência pode
controlar. Numa altura em que o mito ainda não estava definitivamente separado da ciência e
da filosofia, Platão apresenta o universo como génese dos princípios metafísicos, distinguindo
as oposições binárias que marcaram o pensamento ocidental.
As distinções entre ser e devir, inteligível e sensível, ideal e material, eram pensadas como
mundo perfeito da razão e mundo material imperfeito. Platão problematiza essa oposição,
introduzindo uma categoria intermediária — Khora — como possibilidade de mediação ou
transição entre a polaridade.” In MATOS, Sara Antónia - Khora – Rui Chafes e Alberto
Carneiro. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
6
Até Aqui [Fig.2] surge de um diálogo com a terra, uma procura de
estabelecer ligação com este elemento. Foram escavados uma série de
buracos na terra, numa procura de alcançar uma profundidade física e
metafórica. Os buracos evocam os buracos oraculares que, em tempos,
antigos eram feitos em rochas. Propõem uma escuta atenta e silenciosa.
Fig.1
Conexão, Escultura/Instalação, Paperclay, cabo de aço e terra, dimensões variáveis. Cisterna da Fábrica da Pólvora, Oeiras. Exposição Algures Lugares, 2002. Fotografia de Sara Inácio
Fig.2
Até Aqui, Intervenção efémera na paisagem. Residência artística no C.E.N.T.A., Vila Velha de Rodão, 2003. Fotografias de Sara Inácio
7
Em Comunicação [Fig.3] duas formas, feitas de cimento refratário,
propõem um diálogo com o espaço e com o espectador e remetem-nos para
polaridades como claro/escuro, interior/exterior, masculino/feminino.
Fig.3
Comunicação, 2003. Quinta do Saldanha, Montijo. Cimento Refratário, pigmentos. Fotografias de Sara Inácio
Nem só de Pão vive o Homem [Fig.4] propõe uma reflexão acerca do
que nos nutre, a complementaridade entre alimento físico e alimento espiritual.
Trata-se de uma série de formas cilíndricas, feitas de taipa, colocadas ao longo
de um antigo caminho por onde eram transportadas as mós até ao moinho. As
superfícies das formas apresentam pinturas de retratos de habitantes da vila
realizando ações contemplativas como fazer renda, descansar em grupo,
caminhar, etc.
A Caminho da Luz [Fig.5] é um convite ao espetador para um percurso
ao longo de caminhos coloridos serpenteantes pelo meio da floresta, uma
viagem simbólica ao interior de si próprio. O ser humano, tal como as árvores e
a vegetação, numa demanda em busca do sol- o astro sol mas também o sol
enquanto símbolo de luz, de consciência. Na
componente prática deste mestrado procuramos o contato com a terra, a
ligação com este elemento primordial, de dois modos: através da criação de
esculturas com as matérias primas - terra crua e o barro; e através da
realização de obras que resultam duma imersão em espaços na natureza. Na
componente teórica há uma investigação em torno de artistas que utilizam a
8
terra, o barro ou a paisagem/natureza como matéria prima e cuja obra pode
evocar os aspetos acima referidos.
Fig. 4
Nem só de Pão vive o Homem, 2005. Amendoeira da Serra, Mértola. Taipa, tinta. Fotografias de Sara Inácio
Fig.5
A Caminho da Luz, 2008. Parque natural de Sintra. Ferro, cimento, pigmentos. Fotografias de Sara Inácio
9
Introdução
A presente dissertação é de caráter teórico prático. Centra-se no estudo
de artistas em que a matéria – barro, terra, paisagem/natureza assumem uma
importância fundamental no processo de criação. Visa refletir sobre o modo
como as interações com a matéria, com a paisagem/ natureza evocam um
sentimento de unidade, de pertença, uma ligação ao cosmos. A teoria e a
prática, ou seja, a recolha e o estudo de material teórico e visual e a
investigação plástica acontecem em simultâneo: a concretização plástica dos
trabalhos suscita o ímpeto para a pesquisa teórica. Esta, por sua vez, expande
as possibilidades da prática artística. A componente teórica baseia-se,
sobretudo, no estudo e análise de obras artistas, do séc. XX e XXI, que
refletem as questões acima enunciadas. Há uma recolha e análise de
informação (teórica e visual) proveniente de teóricos, historiadores, críticos e
curadores de arte, bem como de textos e depoimentos dos artistas,
constituindo-se como uma base reflexiva para a nossa prática o modo como o
seu pensamento se desenvolve na prática artística. Na componente prática
desenvolvemos esculturas em barro cru e em cerâmica, bem como
intervenções efémeras na paisagem. Ao longo da realização dos trabalhos há
uma reflexão acerca de todo o processo de criação.
Em suma, esta dissertação está dividida em duas partes: na primeira há
um enquadramento teórico acerca dos movimentos artísticos e de artistas com
os quais se encontram afinidades com o trabalho prático desenvolvido. A
segunda parte consiste na reflexão acerca do corpo de trabalho prático
realizado no âmbito deste Mestrado.
No capítulo I da primeira parte analisamos a simbologia do elemento
terra- associada à figura da Grande Mãe, à fertilidade, ao feminino, aos ciclos
(vida e morte), à natureza em todas as suas manifestações (pedras,
montanhas, rios, etc.) e elemento capaz de convocar um sentimento de
familiaridade, afeição e reverência. Em seguida abordamos a relevância que a
matéria assume na arte moderna e contemporânea, referindo artistas cuja obra
evidencia uma vontade de estabelecer uma ligação com a matéria, um
regresso à terra e ao corpo, uma conexão a algo de essencial e elementar.
Finalmente fazemos uma análise de artistas da Landart cujas obras expressam
10
uma fusão com a paisagem, propondo uma unidade entre o ser humano, a
natureza e o cosmos.
No Capítulo II da Parte I estudamos detalhadamente algumas obras de
duas artistas : Ana Mendieta e Celeida Tostes. As duas artistas expressam o
seu desejo de fusão com a matéria e uma ligação às origens, às raízes. Ana
Mendieta ora seleciona espaços na natureza onde esculpe figuras que nos
remetem para tempos ancestrais e para as origens da arte, ora realiza e
fotografa ações com o seu corpo que evocam uma ligação com a terra. Celeida
Tostes recolhe-se dentro de um espaço/recipiente escuro feito de barro,
viajando metaforicamente a um espaço uterino de onde, após uma
transmutação interior, emerge renascida para a vida.
Na Parte II descrevemos e refletimos acerca da investigação plástica
realizada no âmbito deste mestrado. Mencionamos o processo de criação das
duas séries de trabalhos (Movimento Maior e Alvorada) realizadas,
respetivamente, em Montemor o Novo e na Sertã, ambas resultantes de uma
imersão meditativa em espaços na natureza e com a matéria (a terra e o
barro), numa procura de materializar a ideia de complementaridade entre uma
vertente material, manifesta e visível e uma vertente imaterial e etérea da
realidade. Descrevemos e documentamos também a exposição Alvorada,
realizada na Capela da Fba-Ul, que é o culminar do processo que decorrido ao
longo do ano letivo.
11
Parte I- Enquadramento Teórico
Capítulo I – A Matéria e a Paisagem
Terra-elemento simbólico
Muitas são as tradições e crenças religiosas que incluem a Terra como
elemento fundamental do cosmos2. O Céu e a Terra são referidos como o par
primordial da mitologia universal. O casamento destes dois elementos seria a
primeira hierogamia3 que os deuses e os homens deveriam imitar com a
mesma sacralidade de que a união original estava imbuída. A Terra como mãe,
o Céu como pai. A Terra sendo fertilizada pelo Céu (através da chuva) e
gerando alimento. Na mitologia grega, a Terra Mãe (Gaia) deu à luz um filho
semelhante a si própria (O Céu estrelado - Urano), para que a cobrisse
completamente e oferecesse aos deuses uma morada eficaz. Este par original
criou assim a família dos numerosos deuses, dos Ciclopes e de outros seres
míticos. Em muitas mitologias em que o Céu assume o papel de divindade
suprema, a Terra é representada como sua consorte. Muitos são os povos que
consideram a Terra como útero materno de onde surgem todos os homens-
Tellus Mater, dando especial relevância simbólica a elementos como a gruta, a
montanha, a fenda ou a nascente. Com os cultos agrícolas a Terra surge como
figura de uma grande deusa da fertilidade, da vegetação e da colheita. Ela é
fértil: tudo o que dela provém está imbuído de vida e tudo o que a ela regressa
é de novo dotado de vida. Neste sentido é considerada também uma fonte de
regeneração.
A terra tem como atributos a solidez, a estabilidade a recetividade - é um
“cosmos-recetáculo das forças sagradas difusas”4. Na sua extensão engloba
uma série de elementos que rodeiam o homem: a terra, as montanhas, as
pedras, as árvores, as águas e a vegetação. A terra é considerada como sendo
todo o lugar.5 Neste hino homérico, citado por Eliade, encontramos a
2 ELIADE, Mircea - Tratado de História das Religiões. Lisboa: Edições Cosmos, 1970,p. 293-
318.
3 [do grego Hieros gamos- casamento sagrado; ritual de união entre um deus e uma deusa ou
entre um ser divino e um ser mortal] 4ELIADE, Mircea, Op.Cit.p. 297
5 “Tudo o que está sobre a Terra está em conjunto e constitui uma grande unidade.” Ibid, p.299
12
associação da terra com o feminino- a mãe, a avó- e constatamos que atributos
como abundância e bondade lhe são inerentes:
“É a Terra que eu cantarei, mãe universal com profundas raízes, avó venerável que nutre no seu solo tudo o que existe…És tu quem dá a vida aos mortais, como és tu quem lhes tira a vida…Bem aventurado aquele a quem tu honras com a tua benevolência! Para ele a vida é uma gleba de boa colheita, nos campos os seus rebanhos prosperam e a sua casa enche- se de riquezas.” 6
Observamos em Índios de várias tribos uma profunda reverência para
com a Terra Mãe. Consideram que o solo é sagrado e o contato com natureza
é visto como um modo estar em comunhão com as forças da própria vida.
“O Lakota era um verdadeiro amante da natureza. Amava a terra e todas
as coisas da terra, e esse afecto crescia com ele com a idade. Os idosos
chegavam literalmente a amar o solo; sentavam-se ou repousavam na terra
com o sentimento de se aproximarem das forças maternais. Era bom para a
pele o contacto com a terra, e as pessoas idosas gostavam de tirar as
mocassinas e andar de pés descalços sobre a terra sagrada. Os seus tipis
erguiam-se nesta terra de que eram feitos os seus altares. Os pássaros que
voavam nos ares vinham repousar-se nela e a terra era o lugar permanente de
todas as coisas que viviam e cresciam. O solo suavizava, fortificava, lavava e
curava. É por isso que o velho índio se afica ao solo, em vez de se separar das
forças da vida. Para ele, sentar-se ou deitar-se assim consiste em poder
pensar mais profundamente e em sentir mais vivamente; contempla assim mais
claramente os mistérios da vida e sente-se mais próximo das forças vivas que
o envolvem... [...] O velho lakota era sábio. Sabia que o coração do homem
afastado da natureza se torna duro; sabia que a falta de respeito para com o
que cresce e vive depressa conduz também à falta de respeito para com os
humanos. Por isso mantinha ele os jovens sob a mansa influência da
natureza.” 7
Um pedaço de terra, por mais pequeno que seja remete sempre para
algo maior. Esta terra é a terra do planeta, que existe num cosmos, num
espaço imenso de estrelas, constelações galáxias. Simultaneamente é matéria
6 ELIADE, Mircea - Tratado de História das Religiões. Lisboa: Edições Cosmos, 1970, p.293
7 MCLUHAN, Teri C. – A Fala do Índio. Lisboa: Fenda Edições, Lda, 1992, p.13.
13
cujos constituintes existem também no corpo humano. Em termos simbólicos a
terra está também presente em cada ser humano nas suas características de
recetividade, capacidade de gerar, de nutrir, na sua capacidade de permanecer
sólido e estável, na sua capacidade de materializar e concretizar ideias,
projetos. Por isso a terra é um elemento que facilmente desencadeia uma
empatia e uma reverência.
Em suma, Terra designa um dos elementos do binómio Céu- Terra. Está
associada à origem e ao fim de todas as formas de vida. Engloba os vários
aspetos da natureza- pedras, montanhas, vegetação, etc. A ela são associadas
também atributos do feminino: a fertilidade, a nutrição e a regeneração.
A Importância da Matéria na Arte Moderna e Contemporânea
Desde o início do séc. XX, época dos movimentos de vanguarda, tem
havido, no meio da arte, uma acentuada procura de novos meios e formas de
expressão e uma necessidade de questionar atitudes e procedimentos do fazer
artístico. O barro, matéria estruturante ao longo da história da escultura e
também material muitas vezes associado a uma tradição académica em que a
representação do real era privilegiada, continuou a ser utilizado por diversos
artistas, que enfatizaram não a questão da representação mimética mas a
fisicalidade e a presença da matéria, bem como questões simbólicas a ela
associadas.
O Modernismo, embora tenha sido um tempo de questionamento de
códigos já esgotados trouxe também, ao mundo da arte ocidental, uma
abertura às tradições como nunca tinha acontecido. Começou a dar-se mais
atenção a todos os tipos de arte- ocidental e não ocidental. Neste período
houve uma abertura a novas formas de expressão, incluindo a cerâmica.8
Encontramos em Gauguin, Picasso, Lucio Fontana, Miró, bem como em
artistas do Expressionismo Alemão, nos Fauves e nos Suprematistas Russos
8 GREENBERG, Clement – The Status of Clay (Conferência no The Ceramics Symposium,
1979, Siracusa), p.7. In Ceramic Millenium: Critical Writings on Ceramic History, Theory and Art. Halifax Nova Scotia: The Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 2006, p.2-9.
14
obras em que o barro é explorado de forma significativa e inovadora.9 É
conhecido o grande entusiasmo com que Lucio Fontana criou esculturas em
barro [Fig. 6 e 7]- figuras inspiradas em porcelanas da Commedia dell Arte- em
que a gestualidade e o movimento, visíveis nas esculturas, evidenciam a
paixão e o vigor com que Fontana modela a matéria. Edmund de Wall escreve
acerca destas esculturas:
“Fontana´s transgressive vigour, his vast consumption of materials, his speed of working and his use of colour reflect above all the drama, the staging of his approach to clay. High Unseriousness is triumphaly reclaimed.”10
Fig.6
Battle, Lucio Fontana, 1947. Porcelana, 18x30x12.
Fotografia do catálogo A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley. Catálogo publicado por ocasião da exposição A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley, na Tate Liverpool, de 28 de Maio a 30 de Agosto de 2004. London: Tate Liverpool, 2004.
Fig.7
Colombine, Lucio Fontana, 1949. Porcelana, 52x30x20.
Fotografia do catálogo A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley. Catálogo publicado por ocasião da exposição A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley, na Tate Liverpool, de 28 de Maio a 30 de Agosto de 2004. London: Tate Liverpool, 2004.
9 WALL, Edmund – High Unseriousness: artists and clay, 2004. In A Secret History of Clay:
from Gauguin to Gormley. Catálogo publicado por ocasião da exposição A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley, na Tate Liverpool, de 28 de Maio a 30 de Agosto de 2004. London: Tate Liverpool, 2004. 10
“O vigor transgressor de Fontana, o seu vasto consumo de materiais, a sua rapidez de trabalho e o uso da cor refletem, acima de tudo o drama, a encenação da sua aproximação ao
barro. Uma alta falta de seriedade é triunfalmente alcançada.”. Ibid,p.54. [Tradução livre].
15
Desde o modernismo até à contemporaneidade assistimos a uma “fidelidade
aos materiais”11, a matéria passa a ser autónoma, não estando apenas ao
serviço da representação, inclusive os próprios processos ficam muitas vezes
visíveis.12 Umberto Eco afirma:
“A arte contemporânea descobriu o valor e a fecundidade da matéria. [...] A cultura contemporânea não podia deixar de regressar a uma tomada de consciência positiva dos direitos da matéria; para compreender que não há valor cultural que não nasça de uma vicissitude histórica, terrestre, que não há espiritualidade que não se manifeste através de situações corporais, concretas. Não pensamos apesar do corpo, mas com o corpo. A Beleza não é um pálido reflexo de um universo celeste que entrevemos com esforço e realizamos imperfeitamente nas nossas obras: a Beleza é esse quê de organização formal que sabemos extrair das realidades que nos tocam dia a dia.”13
O autor considera que a relevância dada à matéria pelos artistas é tanto maior
quanto a tendência ao abandono dos modelos figurativos. A matéria torna-se
corpo/presença imponente e autónoma. Umberto Eco cita ainda Luigi
Pareyson:
“O artista estuda a sua matéria com amor, perscuta-a até ao fundo, observa o seu comportamento e as suas reacções; interroga-a para poder dirigi-la [...] aprofunda-a para que ela revele possibilidades latentes e adaptadas às suas intenções; escava-a para que ela própria sugira possibilidades novas e inéditas [...] Não se trata de dizer que a humanidade e a espiritualidade do artista se configuram numa matéria [...] porque a arte não é figuração e formação da vida da pessoa. A arte não é figuração e formação de uma matéria, mas a matéria é formada segundo um modo de formar irrepetível que é a própria espiritualidade do artista feita totalmente estilo”.14
Podemos encontrar estas ideias referidas por Umberto Eco em várias obras
que estiveram presentes na exposição A Secret History of Clay: From Gauguin
to Gormley. Foi a primeira exposição, realizada na Tate Liverpool em 2004, em
que foram apresentadas obras em barro de artistas do período desde o ínicio
do séc.XX até ao início do séc. XXI. Esta exposição incluía obras desde vasos
cerâmicos até instalações e performances, mostrando o vasto uso que o barro
tem tido por alguns dos mais inovadores artistas do séc.XX. Esta matéria prima
havia sido largamente excluída das tradicionais histórias da arte e das
11
GRANDE, John K. – Fiel a la naturaleza, p.15-28. In GRANDE, John K. – Diálogos Arte-Naturaleza. Teguise: Fundación César Manrique, 2005. 12
KRAUSS, Rosalind – Sculpture in the Expanded Field, 1979. In FOSTER, Hall (ed.) – The Anti Aesthetic, Essays on Post Modern Culture. Seattle, Washington: Bay Press, 1983, p.31-42. 13
ECO, Umberto – A Definição da Arte. Lisboa: Edições 70, 1972, p.199. 14
ECO, Umberto, Op.Cit., p 201.
16
investigações de períodos como o Modernismo. Hilton Kramer (Gloucester,
Massachusetts1928-2012), chegou a associar a estes artistas uma “falta de
seriedade”, referindo-se às suas obras como “não arte” ou artesanato. Ainda
assim, o regresso, por parte de muitos artistas contemporâneos, à utilização do
barro denota uma valorização visceral da materialidade da experiência num
tempo em que, culturalmente, se privilegia o mundo virtual em relação aos
objetos. Anthony Gormley, a propósito das diferenças entre arte e artesanato
refere:
“É muito simples para mim qual é a diferença entre arte e artesanato. A arte questiona o mundo e, por isso, torna a vida mais complicada; o artesanato existe para tornar a vida mais fácil, mais habitável. O artesanato é uma reconciliação entre as necessidades da vida humana e o seu meio envolvente. Tem um papel de apoio. Está relacionado com conforto, abrigo e apoio do corpo. A arte ´complica as coisas e providencia à mente avenidas alternativas de pensamento e sentimento e pode, muitas vezes, ser contraditória. Os dois não podem ser confundidos.”15
Em muitos artistas contemporâneos há uma utilização do barro (ou da
terra) no seu estado cru. A presença física da matéria é destacada. Anthony
Gormley escreve acerca do modo como utiliza a matéria:
“Eu sempre usei barro diretamente do chão. Quando a marga surge à superfície deparas-te com esta camada sedimentar composta pelas mais antigas rochas ígneas que se desfizeram em finas partículas e se acumularam a ali, amalgamando-se por milhões de anos. Eu gosto disso, é como se estivesse a tocar na carne do planeta.” 16
O artista estabelece também uma ligação entre o barro, o corpo e o planeta e
deixa clara a forma visceral com que encara a matéria:
“Eu quero que o barro seja terra. Sou muito atento à cor - a vermelhidão do barro sendo algo que tem a ver com o ferro na terra, que é também o ferro no nosso sangue, o que de alguma forma faz uma ligação entre a carne e o planeta.”17
Algumas obras, de vários autores, acontecem em espaços expositivos, outros
decorrem na paisagem. Em alguns casos assistimos a obras de caráter
15
GROOM, Simon – Terra Incognita, 2004. In A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley. Catálogo publicado por ocasião da exposição A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley, na Tate Liverpool, de 28 de Maio a 30 de Agosto de 2004. London: Tate Liverpool, 2004, p.84. [Tradução livre]. 16
Ibid. p.82. 17
Ibid, p.82.
17
performático. Alguns exemplos de obras em que a presença da matéria
assume uma importância fulcral:
Em Wall of the Noguchi/Yamaguchi House [Fig.8], de 1952, Isamu
Noguchi (1904-1988) construiu, ao longo de vários dias, na sua casa em Kama
Kura (Japão), uma parede feita de barro compactado. A matéria criando um
espaço acolhedor, protegido, evocando a ideia de abrigo, de casa ancestral, de
gruta, numa referência às origens da arte. Noguchi procurava uma imersão na
própria terra.
Fig.8
The Wall of the Noguchi/Yamaguchi House,1952, Isamu Noguchi
[Em linha], consultado em Junho 2016
https://www.pinterest.com/verawestergaard/isamu-noguchi/
Kazuo Shiraga (1924-2008), artista e monge budista do Grupo Gutai, na
sua performance de 1955 - Challenging Mud [Fig.9] - contorcia-se numa
porção de barro no chão. O artista acreditava que a lama possuía o seu próprio
espírito contra o qual ele lutava até ficar exausto e ser “vencido pela terra” O
barro permitia um retorno ao self, um regresso ao corpo e à terra. Nestes tipos
de obra os artistas utilizam o seu corpo em diálogo com o ambiente. A escala
dos trabalhos está relacionada com a do corpo humano. Trata-se de ações que
funcionam como formas contemporâneas de ritual em que é enfatizada a
ligação essencial e simbólica com a terra.18
18
KASTNER, Jeffrey; WALLIS, Brian - Land and Environmental Art. London: Phaidon, 1998.
18
Fig.9
Challenging Mud, 1955, Kazuo Shiraga
[Em linha], consultado em Junho 2016
https://www.google.pt/search?q=kazuo+shiraga+challenging+mud&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi926H5nrvNAhXIKcAKHRseBlgQ_AUIBigB#imgrc=Bh4BnnJ5jc75NM%3A
Trata-se de um diálogo- o corpo do artista com o corpo do barro, num
movimento de dissolução do eu na própria matéria. Este movimento é descrito
por Merleau Ponty:
“ Every perception is a communion and a coition of our body with things”.19 Esta interação do corpo com a materia é um dos aspetos mais relevantes nas obras com barro dos artistas do séc. XX. Pode ser considerada “uma aproximação fenomenológica ao barro”.20
Na obra Phase of Nothingness- Oil Clay, de 1969, de Nobuo Sekine, o
que é apresentado é o próprio barro no seu estado bruto. Duas toneladas de
barro colocado no chão, amontoado em volumes de diferentes dimensões-
alguns do tamanho de rochedos, outros do tamanho de pedras. Edmund de
Wall21 salienta a tensão subjacente a esta obra- a tensão entre a nossa
consciência da fisicalidade e presença pujante do material e o nosso desejo de
lhe dar forma. O espetador pode imaginar miríades de formas sugeridas pela
superfície da matéria ou sentir o impulso de a manusear, inspirado pela sua
natureza tátil.
19
“Toda a perceção é uma comunhão e um coito entre o nosso corpo e as coisas.” Merleau Ponty citado em WALL, Edmund – High Unseriousness: artists and clay, 2004. In A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley. Catálogo publicado por ocasião da exposição A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley, na Tate Liverpool, de 28 de Maio a 30 de Agosto de 2004. London: Tate Liverpool, 2004, p.43. [Tradução livre]. 20
Ibid.,p.43. [Tradução livre]. 21
Ibid.
19
Jim Melchert, apresenta, em 1972, a performance Changes [Fig.10]. O
artista, e outros participantes, mergulham as sua cabeças em engobe (barro
líquido) e são filmados enquanto esperam que este seque. O artista refere:
“It encases your head so that the sounds you hear are interior, your breathing, your heartbeat, your nervous system. (It is surprising how vast we are inside).”22
Fig.10
Changes, 1972, Jim Melchert
[Em linha], consultado em Junho 2016
http://ceramicreader.com/tag/jim-melchert
Recentemente, em 2014, Anish Kapoor criou Gabriel, the Angel, stops
and listens to the silence of the cave [Fig.11], uma escultura de grandes
dimensões, feita de terra, com a forma de uma gruta. Nesta obra o artista
explora a materialidade e a sua relação com o corpo, através de uma forma
crua e orgânica. A polaridade céu/terra, tantas vezes presente na sua obra,
também aqui surge manifesta: Anish Kapoor salienta o facto de a parte superior
da escultura se assemelhar a asas e faz uma alusão a uma montanha sagrada
perto de Meca.23
Fig.11
Gabriel the angel stops and listens to the silence of the cave, 2014. Terra e resina
[Em linha], consultado em Junho 2016
http://anishkapoor.com/1020/gabriel-the-angel-stops-and-listens-to-the-silence-of-the-cave
22
“ [o engobe] envolve a tua cabeça de tal modo que os sons que escutas são interiores, a tua respiração, o bater do teu coração e o teu sistema nervoso. (É surpreendente o quão vastos somos por dentro). Carta do artista a Simon Groom. In GROOM, Simon – Terra Incognita, 2004. In A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley. Catálogo publicado por ocasião da exposição A Secret History of Clay: from Gauguin to Gormley, na Tate Liverpool, de 28 de Maio a 30 de Agosto de 2004. London: Tate Liverpool, 2004, p.18. [Tradução livre]
23 Consultar http://artillerymag.com/earth-sky-anish-kapoor/
20
Sumariamente pudémos constatar que desde o início do séc. XX
passou a haver uma necessidade de assumir a matéria como um aspeto
relevante para a leitura da obra. A presença da terra (terra crua, ou barro),
muitas vezes em bruto e sem ser moldada, pode convocar no espectador o
desejo e a imaginação para dar forma ao informe. Muitos artistas encaram o
trabalho com a terra como um regresso a algo primordial, ao corpo, ao abrigo
e a uma interioridade.
Landart- a paisagem como matéria
Também na Land Art a Terra, enquanto planeta, natureza, lugar e
matéria é um elemento claramente presente. É um tipo de manifestação
artística em que a relação com a paisagem é claramente privilegiada.24 O
termo Land Art, longe de ser um movimento artístico com os seus manifestos,
engloba uma série de artistas com diferentes atitudes e procedimentos
artísticos variados. Notamos em muitos deles o interesse pela experiência dos
lugares, a inclusão na obra dos próprios processos de criação e a relevância
que atribuem ao processo de perceção vivenciado pelo espetador (processo
este que faz parte da obra). Muitas das obras da Land Art consistem em
construções duradouras na paisagem, outras são intervenções efémeras que,
com o tempo, acabam por desaparecer. Nestes últimos casos podemos
verificar a influência de filosofias orientais, como o budismo zen, em que a
impermanência das coisas - e da própria vida - é enfatizada. Por vezes é
questionada a atitude comercial associada à arte e é dado especial ênfase à
sua vertente ecológica, bem como social e política.25
Muitas das artistas que desenvolveram projetos de Land Art nos anos 70
evocam uma identificação ancestral entre a natureza e o feminino.26 A artista
Agnes Denes (1938,-) criou, em 1982, a obra Wheatfield – A Confrontation
[Fig.12]. Trata-se de um site specific em que a artista planta um campo de trigo
24
KRAUSS, Rosalind – Sculpture in the Expanded Field, 1979. In FOSTER, Hall (ed.) – The Anti Aesthetic, Essays on Post Modern Culture. Seattle, Washington: Bay Press, 1983 25
DRAGUET, Michel – Chronologie de l´art du XXe siècle. Paris: Ed. Flammarion, 1997.
26 BOETTGER, Suzan – Looking at, and Overlooking, Women working in Land Art in the 1970s,
2008, p.31-34. In KASTNER, Jeffrey – Nature: Documents of Contemporary Art. London: White Chapel Gallery/The Mit Press, 2012.
21
num ambiente urbano (em Manhattan), mesmo junto ao World Trade Center e
à Estátua da Liberdade.
Fig.12
Wheatfield- A Confrontation, 1982, Agnes Denes
[Em linha], consultado em Junho 2016
https://www.google.pt/search?q=wheat+field+a+confrontation&espv=2&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQu5rNqsDNAhXmA5oKHSzHASUQ_AUICCgB&biw=1280&bih=887#imgrc=4NVddqErKQg0gM%3A
Denes questiona os valores e as prioridades humanas e chama a atenção para
questões ecológicas. Sobre esta obra a artista escreve:
“Wheatfield was a symbol, a universal concept. It represented food, energy, commerce, world trade, economics. […] The idea of a wheatfield is quite simple. One penetrates the soil, places one´s seed of concept and allows it to grow, expand and bear fruit. That is what creation and life is about. It´s so simple, yet we tend to forget basic processes.”27
Denes celebra a força da vida, a fertilidade da terra, a abundância da natureza
e a sua capacidade de nutrir, de fornecer alimento e energia.
Em algumas obras de Nancy Holt (1938-2014) podemos reconhecer
ecos de tempos antigos. Em Sun Tunnels (1973-76) [Fig.13] a artista colocou
quatro formas cilíndricas de cimento no chão do deserto (em Utah), numa
configuração em X, com vinte e seis metros de diagonal. Vários buracos
circulares na parte superior dos cilindros (com medidas entre os 18 e 25 cm de
diâmetro) estão configurados de modo a corresponderem a diferentes
constelações de estrelas. Holt alinhou os túneis de modo a coincidirem com o
27
“Wheatfield era um símbolo, um conceito universal. Representava comida, energia, comércio, vendas mundiais, economia. […] A ideia de Wheatfield é bastante simples. Alguém penetra o solo, coloca a sua semente de um conceito e permite que ela cresça, expanda e dê fruto. A criação e a vida são sobre isto. É tão simples, ainda assim tendemos a esquecer processos básicos.” DENES, Agnes – Wheatfield-A Confrontation: The Philosophy, 1982, p.261. In KASTNER, Jeffrey – Land and Environmental Art. London: Phaidon Press Limited, 1998. [Tradução livre].
22
nascer e o pôr do sol nos dias dos solstícios. A entrada da luz do sol ou da lua
através dos buracos circulares cria um padrão de elipses e círculos que se vai
movendo e alterando ao longo do dia. A artista introduz, assim, uma dimensão
cósmica na obra. “[Nesta obra] Holt encoraja uma conexão entre os
espetadores e o cosmos.”28
Fig. 13
Sun Tunnels,1973-76, Nancy Holt
[Em linha], consultado em Junho 2016
http://www.atlasobscura.com/places/sun-tunnels
Observamos uma situação semelhante em Hydra´s Head (1974). Nesta
instalação, criada ao longo do rio Niagara, Holt coloca no terreno pequenos
contentores, de cimento, cheios de água, numa disposição semelhante à da
constelação estelar Hidra. Também nesta obra a artista explora a ligação entre
o Homem e o Universo, e não apenas o meio envolvente mais imediato.29
Estas obras podem lembrar-nos da célebre frase de Hermes Trimegista “o que
está em cima é como o que está em baixo”30 e desta ideia ancestral da ligação
entre o macro e o microcosmos.
Em muitos artistas da Land Art, como Hamish Fulton, Alfio Bonanno,
Chris Drury, entre outros31, observamos influências do Romantismo – o
sublime, a transcendência e a ideia de natureza como fonte espiritual. O
28
BOETTGER, Suzan – Looking at, and Overlooking, Women working in Land Art in the 1970s, 2008, p.31-34. In KASTNER, Jeffrey – Nature: Documents of Contemporary Art. London: White Chapel Gallery/The Mit Press, 2012, p.33. 29
KASTNER, Jeffrey – Land and Environmental Art. London: Phaidon Press Limited, 1998, p 86-88. 30
In NEGREIROS, Almada – A Invenção do Dia Claro.Sintra: Colares Editora, 1993, p.14. 31
SMITH, Edward Lucie – El arte ecológico, entonces y ahora. In GRANDE, John K. – Diálogos Arte-Naturaleza. Teguise: Fundación César Manrique, 2005, p. 7-14.
23
axioma de Novalis “Todas as forças da Natureza são Uma força, apenas”
expressa a ideia de unidade subjacente a toda a criação. Essa força única é a
origem de todo o movimento criador – quer na arte, quer na vida”32.
Para Andy Goldsworthy (1956,-) a natureza e a paisagem assumem
também um papel fundamental na sua obra. O artista refere: ” Arte para mim é
uma forma de nutrição. Preciso da terra. Quero compreender este estado e
esta energia que tenho em mim e que também sinto nas plantas e na terra.
Esta energia e esta vida que fluem através da paisagem”.33 O artista
estabelece com a terra e com a paisagem uma relação afetiva:
“Era como se tocasse o coração deste sítio”34 e reconhece a
importância e o contributo da paisagem na criação da obra, quase como se de
uma co criação se tratasse. Referindo-se a uma obra que consiste numa forma
oval feita de pedras, que fica submersa pelo mar durante a maré cheia [Fig.14],
o artista refere:
“Eu não criei a obra simplesmente para que esta fosse destruída pelo
mar. O trabalho foi dado ao mar como um presente e o mar tomou o trabalho e
fez dele mais do que eu alguma vez poderia esperar”.35
Fig.14
Série Rivers and Tides, 2001, Andy Goldsworthy
[Em linha], consultado em Outubro 2016
https://www.youtube.com/watch?v=njbYDlIguDw
32
GABNER, Herbertus – Rui Chafes: Harmonia. Porto: Canvas & Companhia, 1998, p. 5-10. 33
Depoimento do artista no vídeo em linha: https://www.youtube.com/watch?v=64DJ_Zz5c9A [Tradução livre] 34
Depoimento do artista no vídeo em linha: https://www.youtube.com/watch?v=64DJ_Zz5c9A [Tradução livre]. 35
Depoimento do artista no vídeo em linha: https://www.youtube.com/watch?v=64DJ_Zz5c9A [Tradução livre].
24
Alexandra Engelfriet36, para além de esculturas em cerâmica, realiza
performances em que procura o contacto primordial com a terra. Trabalhando
diretamente na paisagem, amassando e modelando lama e areia com todo o
seu corpo, as formas e ondulações que surgem resultam deste diálogo do seu
corpo com a matéria e a paisagem. Algumas destas intervenções são sujeitas a
cozedura do barro, alterando assim o tom da terra e transformando-o em
cerâmica [Fig.15].
Fig.15
The Tranchée, 2013, (Lorraine, França), Alexandra Engelfriet
[Em linha], consultado em Outubro 2016
https://plus.google.com/107433931370440668274/posts/QfzdpXAaBZE
Em Portugal, um dos artistas que mais tem explorado a relação entre o
Homem e a Terra tem sido Alberto Carneiro (1937,-). Notamos na sua obra
plástica, bem como nos seus textos, uma identificação com os materiais da
terra. Alberto Carneiro não trabalha os materiais, antes os habita e se move
com eles, numa dinâmica em uníssono entre o corpo e a mente. João
Fernandes afirma:
“O trabalho do escultor manifesta-se pelo exercício do corpo e da mente em ações como reunir, prender, atar, distribuir, desbastar, descascar, suspender, pousar, instalar, combinar, compor, ocupar, mostrar. Todas estas dinâmicas corporais nos ensinam que o corpo passou a habitar por dentro
36
Consultar https://synkroniciti.com/2013/06/27/mud-and-consciousness-the-works-of-alexandra-engelfriet/
25
estes materiais por ele trabalhados. Como o escultor por vezes refere, “o corpo não é o lado de fora, é o lado de dentro”.”37
O artista tem uma perceção sensorial da matéria, a obra é a própria vivência
estética da natureza. Muitas das suas obras foram realizadas em campos de
Portugal e o artista experimenta, com o seu corpo, as sensações provocadas
pelas pedras e por vários elementos da natureza [Fig.16].38
Fig.16
Arte Corpo/Corpo Arte, 1976-78, Alberto Carneiro
[Em linha], consultado em Outubro 2016
https://www.google.pt/search?q=arte+corpo/corpo+arte+alberto+carneiro&espv=2&biw=1366&bih=613&site=webhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi_otKL8vDPAhVBsRQKHcqJCZMQ_AUIBigB#imgrc=mX4UxEa7fNS21M%3A
Para Alberto Carneiro a importância das matérias advém não do seu carácter
formal, da sua forma exterior, mas das suas qualidades intrínsecas, que as
relacionam com o universo:
“Uma nuvem, uma árvore, uma flor, um punhado de terra situam-se no mesmo plano estético em que nós nos movemos, são parte integrante do nosso mundo, são um manancial de sensações vindas de todos os tempos, através de uma memória que tem a idade do homem. Não as pedras pelo seu lado externo, pela conversão dos seus valores formais, mas pelas qualidades do seu íntimo, pelo cosmos que está nela e o qual nos é dado possuir na simplicidade em que a coisa vive.”39
37
FERNANDES, João – As Metamorfoses de Alberto Caneiro: Outros Envolvimentos, 2013, p.31. In CARNEIRO, Alberto – Arte Vida/ Vida Arte. Porto; Fundação de Serralves, 2013. 38
Maderuelo, Javier – Sucinta historia del Arte Contemporáneo europeo. Heras: Ediciones la Bahía, 2012. 39
CARNEIRO, Alberto – Notas para um manifesto de uma arte ecológica (originalmente publicado em Revista das Artes Plásticas [Porto] nº1, outubro de 1973, p.6. In CARNEIRO, Alberto – Arte Vida/ Vida Arte. Porto; Fundação de Serralves, 2013, p.103.
26
Gaston Bachelard, autor de referência para o artista, escreve acerca do fascínio que os objetos da natureza podem exercer sobre o Homem:
“ É facilmente compreensível que os homens adorem as pedras. Não é a pedra. É o mistério da terra, poderosa e pré-humana, que mostra a sua força.”40
Alberto Carneiro considera que os próprios materiais fazem parte do seu “ser”,
e que formam com ele uma “unidade sensível”. O artista estudou e aprofundou
várias doutrinas orientais. Uma delas foi o Tantra. Neste texto, sobre as origens
do Tantra, encontramos a ideia de unidade entre o ser humano e a natureza:
“The mountains are the mountains, the rivers are the rivers, the earth, the mountains, the rivers, the ocean, the stars, are nothing other than your own heart.”41
Algumas artistas portuguesas desenvolveram obras que evocam
aspetos relacionados com o feminino, ou com a matéria e com a paisagem.
Clara Menéres (1943,-), na sua obra Mulher-Terra-Vida, de 1977 [Fig.17],
apresentada na exposição “Alternativa Zero”, em Belém, deixa transparecer
influências da Landart. Os mitos fundadores, os cultos solares e aquáticos e de
fecundidade são temas recorrentes na sua obra. Em Mulher-Terra-Vida
observamos esta relação da terra com o feminino, com a fertilidade e com os
ciclos da vida.
Fig.17
Mulher-terra-vida, 1977
Clara Menéres. Acrílico, terra e relva, 80x270x160 cm. Vista da instalação na exposição Alternativa Zero, Galeria de Belém.
[Em linha], consultado em Setembro 2016
http://cvc.instituto-camoes.pt/decadas-en/the-70s.html#.V-0lx_krLIU
40
BACHELARD, Gaston – A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 41
ODIER, Daniel – Yoga Spandakarika: The Sacred Texts at the Origins of Tantra. Vermont: INNERTRADITONS, 2004, p.105.
27
Virgínia Fróis (1954,-) tem integrado frequentemente esculturas em cerâmica
na paisagem, quer em projetos permanentes, quer em exposições. Na sua
exposição Espelhos, na Casa da Cerca, em 2000, apresentou uma série de
contentores, modelados com barro e pasto, [Fig.18] que evocam o corpo
feminino em diálogo com os elementos da natureza- com a água do rio, com o
céu (acolhendo a chuva). A importância que a paisagem/natureza adquire na
sua obra, bem como a relação desta com o corpo pode ser notada nas suas
palavras:
“À volta da casa, nos caminhos do vento, o Jardim com oliveiras de braços inclinados no sentido do rio, permite a descoberta da cerca. [...] O corredor com a envergadura dos braços humanos define a curvatura da falésia e abre-se ao rio [...] Do plano do jardim as janelas mostram-se cheias de água: Horizontal, densa.”42
Fig.18
Espelho II, Virgínia Fróis, 1999. Terracota e cal, 80x50x60
Fotografia do catálogo Espelhos, Virgínia Fróis. Casa da Cerca Centro de arte Contemporânea, 2000.
A artista portuense Carla Filipe (1973) apresenta na 32ª Bienal de
S.Paulo, a decorrer entre Setembro a Dezembro de 2016, uma instalação que
consiste numa horta situada num espaço exterior- a Praça das Bandeiras.
[Fig.19] Nesta a artista plantou produtos alimentares não convencionais, entre
eles o cato (piteira). Apesar de ter crescido junto a uma paisagem povoada por
42 Virgínia Fróis in FERREIRA, Emília; MARTINS, Ana Margarida; ROSENDO, Catarina – Virgínia Fróis: Espelhos. Almada: Casa da Cerca- Centro de Arte Contemporânea [Catálogo de Exposição Junho/Agosto 2000], 2000, p. 13.
28
estas plantas só recentemente soube que eles são comestíveis. Esta obra é
um modo de refletir sobre a paisagem.43
“Em Migração, exclusão e resistencia (2016), a artista questiona a ideia de propriedade e amplia a noção de sobrevivencia. Essa obra nos conta sobre espécies em vias de extinção, vegetais comestíveis pouco conhecidos e sobre plantas que surgem em locais inesperados. Nessa proposta, Filipe cria condiçoes para se pensar sobre forças espontaneas de resistencia que funcionam como células autogeridas, e que representam reaçoes aos ditames capitalistas da vida urbana, derivados de iniciativas de caráter hierárquico e privado.”44
Fig.19
Migracao, exclusao e resistencia, 2016, Carla Filipe
[Em linha], consultado em Outubro 2016
https://www.google.pt/search?q=carla+filipe+bienal+de+s.+paulo+2016&espv=2&biw=1366&bih=662&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjo7vPPmv3PAhWD8RQKHWYTB8EQ_AUIBigB#imgrc=yZ42_ehpWndMfM%3A
Ainda nesta Bienal a artista sul africana Dineo Seshe Bopape (1981)
apresenta a instalação site-specific :indeed it may very well be the___itself (: de
facto isso pode bem ser ___em si) (2016) [Fig.20]. A obra é composta por
estruturas de terra comprimida de diferentes tamanhos, distribuídas de modo
irregular. Sobre a terra estão colocados objetos com uma forte carga
emocional- moldes de úteros, minerais, ervas medicinais (restauradoras e de
fertilidade), peças de cerâmica moldadas com a forma de punhos cerrados
43
Consultar https://www.youtube.com/watch?v=InBO3rtJdRw 44
http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2537
29
(gesto evocativo de luta). A obra pode ser considerada uma contestação íntima
que aborda a questão da ocupação, da hospedagem, bem como questões
histórico-sociais relacionadas com os excluídos da terra que não têm voz.45
[Fig.20]
:indeed it may very well be the___itself, 2016, Dineo Seshe Bopape.
[Em linha], consultado em outubro 2016
http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2544
Em suma, notamos em muitos artistas associados à Landart (ou artistas
cuja obra pode remeter para aspetos relevantes na Landart) um ímpeto para
estabelecer com a paisagem dinâmicas que reforçam a ligação do ser humano
com a natureza. São exploradas as matérias dos locais, bem como a relação
do corpo com o espaço. O sentimento de pertença, identificação com a terra e
a ligação com o cosmos são também fatores relevantes presentes em algumas
obras.
45
Consultar http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2544
30
Capítulo II- Estudo de duas artistas
Ana Mendieta e a Conexão com a Terra Mãe
Ana Mendieta nasceu em Havana, Cuba, em 1948 e morreu em Nova
Yorque, em 1985. Aos treze anos, para fugir ao regime de Fidel Castro, foi
viver para os Estados Unidos com a sua irmã. Aí, em simultâneo com a sua
prática artística, foi militante ativa em grupos de apoio a emigrantes cubanos
em Nova Iorque e manteve contacto com um grupo feminista. As suas obras
abrangem áreas como vídeo, performance, earth art, desenho, escultura e
instalação e têm sido relacionadas, por muitos autores, com temas como
identidade, exílio, território, género, etc. Interessou-se por arte primitiva e
chegou mesmo a trabalhar em escavações arqueológicas, procurando
investigar as suas raízes ancestrais.
Este texto centra- se na relação da artista com a natureza e com as culturas
primitivas e em algumas obras que manifestam a sua busca pela religação
coma terra, com a unidade original.
Podemos considerar que para Ana Mendieta a prática artística é uma
forma da artista restabelecer a sua ligação com a terra, a origem e a fonte da
vida, e com o universo. Através de um contacto direto, criativo e regenerador
com a natureza, Mendieta evoca gestos e rituais intemporais que ressoam na
consciência coletiva da humanidade. As suas obras atuam no espectador como
despoletadores de emoções que podem conduzir a uma transformação interior
e reativar o sentimento de unidade primordial.
A série Esculturas Rupestres
Em 1980 Ana Mendieta regressou ao seu país natal, Cuba, e visitou o parque
nacional de Jaruco. Esta zona de planícies e grutas foi habitada anteriormente
por várias civilizações pré-hispânicas, serviu de refúgio a piratas durante a era
colonial e, no final do séc. XIX, foi um esconderijo para os combatentes pela
independência de Cuba.46
46
VISO, Olga M. – Mendieta: Earth Body. Washington: Hirshhorn Museum and Sculpture
Garden, Smithsonian Instituiton, 2004, p.81.
31
A artista realizou neste local uma série de trabalhos que intitulou de
Esculturas Rupestres [Fig. 21,22]: esculpiu formas na terra e nas paredes de
calcário de algumas grutas quase inacessíveis - espaços recatados, pequenos
abrigos. Apropriando- se da ideia ancestral da gruta como o útero, a artista
regressa simbolicamente ao ventre da terra mãe, regenerando- se ao tomar
contacto com a sua força.
“My art is a return to the maternal source. Through my earth/body sculptures I become one with the earth…I become an extension of nature and nature becomes an extension of my body. This obcessive act of reasserting my ties with the earth is really the reactivation of primeval beliefs…in an omnipresent female force, the after-image of being encompassed within the womb, in a manifestation of my thirst for being”47
Fig. 21,22
Série Esculturas Rupestres, Ana Mendieta, Parque Jaruco, Cuba,1981
[Em linha], consultado em Janeiro de 2016
http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/artwork/5220
47
“ A minha arte é um regresso à fonte maternal. Através das minhas esculturas de terra/corpo
eu torno- me una com a terra…eu torno-me uma extensão da natureza e a natureza torna- se
uma extensão do meu corpo. Este ato obsessivo de reafirmar os meus laços com a terra é
realmente a reativação de crenças primevas... numa força feminina omnipresente, a imagem
remanescente de ser englobada dentro de um útero, numa manifestação da minha sede de
ser.” Ana Mendieta in Inside the Visible: an elyptical traverse of 20th
century art in of and
from the feminine. Institute of Contemporary Art (Boston, Estados Unidos). Cambridge: The
MIT Press, 1996. [Obra publicada por ocasião da exposição organizada e patente no Institute
of Contemporary Art, Boston, Estados Unidos, de 30 de Jan. a 12 de Maio de 1996. [Tradução
livre].
32
A caverna/gruta é um tema recorrente na iconografia de alguns povos da
Mesoamérica, nomeadamente no caso dos Olmecas. Num dos mitos da
criação deste povo os humanos nascem da gruta da terra. Nos achados
arqueológicos do Monumento 5 da Laguna de los Cerros (1200-800 a.C.) é
possível observar uma representação deste mito num fragmento de uma
escultura que representa uma figura humana a sair duma gruta. Fuente
defende que se trata da “matriz terrestre e ancestral” dando à luz o Homem.48
As formas esculpidas por Ana Mendieta assemelham-se a figuras ou partes de
figuras femininas, lembrando as pequenas estatuetas pré históricas que
evocavam a deusa mãe [Fig.23]. Em muitos povos ou tribos pré históricas
essas figuras funcionavam como ídolos. Vários autores, nomeadamente Eliade,
consideram possível que representassem a sacralidade feminina e os poderes
mágico religiosos associados às deusas.
Fig.23
Venus de Laussel, baixo relevo rupestre,encontrada no sítio arqueológico de Laussel. 12,54 cm de altura, 15000 a 10000 a.C.
[Em linha], consultado em Janeiro de 2016
https://www.google.pt/search?q=venus+rupestres+pre+historia&espv=2&biw=1366&bih=662&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi2367O7b7PAhWBPz4KHY2mBZEQ_AUIBigB#imgrc=NZGssWwxz0s7WM%3A
Nestas obras a intenção de Ana Mendieta não era a de dominar a terra
nem a de criar grandes monumentos que manifestassem a ideia de poder e de
48
FUENTE, Beatriz de la - Olmec sculpture: The First Mesoamerican Art. In Olmec Art and
Archaeology in Mesoamerica. Washington: National Gallery of Art, 2000, p. 253-263.
33
autoridade. A artista interagiu diretamente com o espaço natural, com a matéria
em estado bruto, deixando marcas efémeras na terra, inscrições que acabarão
por se desmoronar ou por se apagar com o tempo. Neste tipo de obras o mais
importante não é a duração ou a permanência dos objetos realizados, mas algo
que está para além da sua componente material e que pode ser manifestada
através processo artístico.49
“Creo que en el arte, a pesar de ser una parte material de la cultura, su mayor valor es su papel espiritual y la influencia que ejerce en la sociedad, porque el arte es el resultado de una actividad espiritual del hombre y su mayor contribución al desarrollo intelectual y moral del hombre”.50
Performance como Ritual: a série Árvore da Vida
Muitas das obras de Ana Mendieta são performances: ações efémeras das
quais muitas vezes resultam apenas fotografias ou vídeos que as documentam.
Na performance há uma valorização da presença, do contacto com o público
(caso exista) ou com o próprio espaço. Não há representação, há uma intenção
que, no caso da artista, era a de se conectar com a força feminina intemporal,
com o sagrado, a de sentir- se como parte intrínseca da natureza e da terra, tal
como acontece nos rituais de inúmeras culturas primitivas.51
Segundo Lucy Lippard muitos artistas contemporâneos inspiram- se em
obras de arte primitiva para se religarem ao alento que animava o Homem
49 Numa reflexão acerca da espiritualidade na arte contemporânea [VALE, Paulo Pires do –
Uma Fenda no Mundo: Do espiritual na arte contemporânea. COMMUNIO: Revista
Internacional Católica. Revista n.3 (2008) p.329-342] Paulo Pires do Vale (Bragança, 1973)
refere a importância do pensamento de Wassily Kandinky expresso numa das obras
fundamentais do início do séc.XX – Do espiritual na arte. Paulo Pires do Vale escreve: “Para
Kandinsky […]a obra de arte manifesta uma dimensão espiritual na medida em que,
necessitando absolutamente da sensibilidade-corpo, não existe apenas na sua materialidade
mas para um conhecimento supra-sensível da realidade. Espiritual, porque a obra de arte não
representa tanto o mundo exterior quanto o interior da Vida: o objectivo do artista é reconduzir
a realidade invisível, espiritual, o que é comum ao mundo e ao homem, a alma do universo, à
experimentação sensível através da obra de arte.
50 “Creio que a arte, apesar de ser uma parte material da cultura, tem como principal valor o
seu papel espiritual e a influência que exerce na sociedade, porque a arte é o resultado de uma
atividade espiritual do homem e é a principal contribuição para o seu desenvolvimento
intelectual e moral.” Ana Mendieta in RUIDO, María (2002). Arte Hoy: Ana Mendieta.
Hondarribia: Editorial Nerea, S.A., p.85. [Traduçãi livre].
51 ELIADE, Mircea - Tratado de História das Religiões. Lisboa: Edições Cosmos, 1970.
34
nesse tempo e para o incorporarem atualizando-o com a sua expressão
própria. A realização de performances como se fossem rituais surgiu como
resposta a uma necessidade de rever e questionar a história da arte e de
expandir o campo de possibilidades da prática artística. A autora refere:
“Os rituais dos artistas modernos evocam os rituais primitivos,
especialmente aqueles das culturas agrárias, com os ciclos de nascimento,
crescimento, sacrifício e renascimento, a dança do círculo que anima o sol e a
lua e faz com que girem, as danças da vida e da morte […]. […] Na arte
contemporânea, o ritual não é só uma repetição passiva, é a realização de
necessidades coletivas […].”52
Durante uma performance/ ritual são despoletadas emoções que podem
operar uma transformação interior quer no artista que os executa quer em
quem os presencia. Mary Beth Edelson, artista contemporânea de Ana
Mendieta e com quem esta manteve contacto, escreveu sobre a função do
ritual:
“Esta atividade que fazemos agora é especial. Espero que este tempo e estes gestos vos causem uma impressão duradoura. […] Vamos ritualizar o nosso comportamento e documentá- lo com fotografias. As fotografias servirão como um registo da unidade e do assombro que sentimos”.53
Entre 1976 e 1979 Ana Mendieta realizou uma série de performances no
parque Old Man´s Creek (Iowa) que intitulou de série Árvore da Vida
[Fig.24,25]. A artista cobriu o corpo com barro e folhas e colocou- se junto a
troncos e raízes de árvores. A textura da sua pele assemelha- se à destes
elementos vegetais e o seu corpo parece perder os limites e fundir- se com
eles. O seu corpo deixa de representar um corpo individual e passa a evocar
todos os corpos, de todas as mulheres ou talvez de todos os seres vivos.
52
LIPPARD, Lucy – Superposición: Arte Contemporáneo y arte prehistórico, 1983. In RUIDO, María - Arte Hoy: Ana Mendieta. Hondarribia: Editorial Nerea, S.A., 2002. [Tradução livre]. 53
Mary Beth Edelson in RUIDO, María - Arte Hoy: Ana Mendieta. Hondarribia: Editorial Nerea, S.A., 2002, p.91.
35
Fig. 24,25
Série Árvore da Vida, Ana Mendieta, Parque Old Man´s Creek (Iowa), 1976
[Em linha], consultado em Janeiro de 2016
http://blogs.uoregon.edu/anamendieta/2015/02/20/siluetas-series-1973-78/
O corpo surge como uma extensão da árvore. Ana Mendieta escolheu por
vezes árvores robustas, fortes, plenas de vitalidade, com raízes bem visíveis
revelando a sua base sólida e a sua ligação pujante com a terra. Tal como
acontece com o seu próprio corpo, em que o individual rapidamente nos remete
para o universal, também no caso da árvore temos uma espécie particular mas
facilmente somos remetidos para a árvore enquanto conceito arquetípico.
Árvore é um símbolo de vida em permanente transformação. As mutações que
vai sofrendo ao longo do seu crescimento são a expressão do carácter cíclico
da vida. É um elemento de união entre a terra e o céu - as suas raízes
expandem- se para dentro do solo e o seu tronco e ramos ascendem em
direção ao céu. Assim, é considerada também como centro ou eixo do mundo,
elemento axial que pode ser também associado à coluna vertebral do corpo
humano. É também um símbolo associado à fertilidade da terra.54 Mary
Sabatino refere inúmeras interpretações para esta série de trabalhos em que a
mulher se metamorfoseia em árvore, crescendo a partir do solo e elevando- se
em direção ao céu, sendo meio mulher, meio planta, meio deusa. A autora
menciona, inclusive, imagens de deusas encontradas em fragmentos
cerâmicos de Creta em que observamos a mesma posição dos braços
54
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema, 1982, 88-92.
36
levantados que vemos na artista.55 Facilmente podemos encontrar
semelhanças com estatuetas femininas de várias tradições, como a da Deusa
Ishtar [Fig.26].
Ana Mendieta incorpora nestas obras os ciclos da existência a que tudo
está sujeito, incluindo o próprio corpo que faz parte da natureza. O corpo, tal
como a vida existe num fluxo de contínua transformação. Nasce, cresce, vive,
reproduz- se e morre. Um processo de contínua criação e recriação. A morte
não como um fim mas como um novo início de um novo ciclo. A morte
simbólica como uma metáfora para a transformação, algo que termina para que
algo novo seja criado. Uma viagem contínua que engloba uma sucessão infinita
de nascimentos e mortes.56
Fig.26
Deusa Ishtar, relevo babilónio. Iraque, 1800-1750 a. C.
Consultado em linha em Setembro 2016
http://analogicalplanet.com/Pages/ContentPages/Sidebars/BurneyRelief.html
55
SABATTINO, Mary – Ana Mendieta; serie Siluetas: Orígenes e influencias, 1996. In RUIDO, María - Arte Hoy: Ana Mendieta. Hondarribia: Editorial Nerea, S.A., 2002 56
“Mendieta incorpora a transformação, o renascimento, o contínuo fluxo entre a vida e a
morte” RUIDO, María - Arte Hoy: Ana Mendieta. Hondarribia: Editorial Nerea, S.A., 2002,p.81.
37
Celeida Tostes: Processo de transformação interior
Celeida Tostes nasceu em 1929, no Rio de Janeiro- Brasil e aí faleceu,
em 1995. Foi criada pelas tias e avó maternas (devido à morte prematura da
sua mãe quando tinha um ano de idade), na Fazenda de Campo Alegre, em
Macuco, onde permaneceu até á juventude. As suas brincadeiras de infância,
junto ao rio, com barro molhado, são destacadas na sua biografia. Estudou
gravura, educação artística para professores, cerâmica, antropologia cultural,
não só no Brasil mas também na California, Novo México, País de Gales, etc.
Foi professora e esteve envolvida em diversos projetos educativos, em escolas
e comunidades. Em 1975 foi convidada para lecionar na Escola de Artes
Visuais do Parque Laje. Aí Celeida fez confluir a sua vertente artística e
pedagógica, desenvolvendo com os alunos um trabalho sensorial e
experimental- proporcionava um espaço de exploração da criatividade, das
relações sensoriais com os materiais, com os elementos da natureza. Tratava-
se de uma espécie de laboratório em que a artista defendia a liberdade e o
prazer da descoberta e a criação de linguagens próprias.57 Celeida enfatiza a
importância da sensorialidade, quer na vida, quer nos processos de
aprendizagem: “sentir a água, observar o chão, as árvores ou seu corpo”.58
Em 1979 realizou Passagem [Fig.27] - uma performance em que
expressa a sua profunda comunhão com a matéria prima- o barro. Celeida
Tostes realizou esta performance no seu apartamento em Botafogo. Foi
presenciada apenas pelo fotógrafo que a registou – Henri Stahl. A divisão na
qual decorreu o evento tinha as paredes cobertas com panos brancos. O chão
estava coberto com terra Sobre esta havia uma esteira com um pote de barro
crú em cima, bem como algumas lastras de barro. Também sobre a esteira
estavam um recipiente com argila líquida, um recipiente com água e um pano
branco rendilhado dobrado.
57
FERREIRA, Izabel; SILVA, Raquel – Biografia (p.220-259). In SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de Lontra - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2014. 58
SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de Lontra - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2014, p.222.
38
Fig.27
Passagem, 1979, Celeida Tostes
[Em linha], consultado em Setembro 2016
https://www.google.pt/search?q=passagem+celeida+tostes&espv=2&biw=1366&bih=662&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjV2YzN15vPAhWB0RQKHSi8BrQQ_AUIBygC#imgdii=JBqWgxVRzXFruM%3A%3BJBqWgxVRzXFruM%3A%3BwYUp87zEiuHfUM%3A&imgrc=JBqWgxVRzXFruM%3A
A artista teve a ajuda de duas assistentes vestidas de branco, quais
sacerdotisas que assistem a uma cerimónia. Celeida cobriu o seu corpo com
argila líquida e entrou dentro do pote. As duas assistentes selaram então, por
completo, o pote com as lastras de barro. Durante algum tempo a artista
permaneceu ali fechada, dentro daquela espécie de útero, sem luz e apenas
com os seus próprios sons. Projetou então o seu corpo para a frente para que
o pote caísse e ela rasgasse a sua parede, saindo para o exterior. A artista
revela a sua experiência:
“ Despojei-me.
Cobri meu corpo de barro e fui.
Entrei no bojo do escuro, ventre da terra.
O tempo perdeu o sentido de tempo.
Cheguei ao amorfo.
Posso ter sido mineral, animal, vegetal.
Não sei o que fui.
Não sei onde estava. Espaço.
A história não existia mais.
Sons ressoavam. Saíam de mim.
Dor.
Não sei por onde andei.
O escuro, os sons, a dor se confundiam.
39
Transmutação.
O espaço encolheu.
Saí. Voltei. “59
Segundo Daniela Name esta obra contém e revela aspetos de extrema
importância na obra de Celeida Tostes: a fusão entre a escultura e a
performance, o conceito de instalação, o foco no processo (mais do que no
resultado) e na experiência- estabelecendo uma ligação entre arte e vida, a
colaboração com outros intervenientes (noção de “coletividade”) e a escultura
entendida como um “campo ampliado”- uma referência direta ao termo criado
por Rosalind Krauss.60
Há uma interação entre o corpo da artista e um objeto de barro. À
semelhança de Ana Menieta, Celeida cobre todo o seu corpo com barro,
intensificando a presença do corpo. O contacto da artista com a matéria é real
em todos os poros, em toda a extensão da pele. O seu corpo adulto, contentor
de experiências e de memórias, é então acolhido no interior de uma escultura,
estabelecendo-se deste modo uma ligação entre a ação e o objeto
escultórico.61 A escultura, que evoca símbolos e arquétipos ancestrais como a
gruta, o casulo, o útero, torna-se espaço propício a um mergulho no interior de
si própria, a uma metamorfose, a uma transformação simbólica, alquímica,
como se de um ritual se tratasse 62.
59
SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de Lontra - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2014, p. 52. 60
NAME, Daniela – Da lama ao caos, do caos à lama, p.53-81. In SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de Lontra - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2014. 61 Esta escultura pode remeter-nos para recipientes pré históricos, tribais. Na verdade Celeida
Tostes estudou com a índia Navajo Maria Martinez. Com ela aprendeu o manusear o barro, o adobe e a cerâmica indígena. Segundo a artista esta convivência foi fundamental para a eleição do barro como matéria prima do seu trabalho. Ver Fig.28
62 Já anteriormente, no texto acerca de Ana Mendieta, foi referida a importância da performance na arte contemporânea, bem como a relação entre performance e ritual (ver pág.34).
40
Fig.28
Índia Navajo com pote de cerâmica.
[Em linha], consultado em Setembro de 2016
http://nativeamerican-art.com/navajo-pottery.html
Daniela Name salienta a relação entre esta obra e a própria vida – ambas são
“devir, fluxo, movimento”63 e contêm em si momentos de caos. Este caos
permite uma reorganização do cosmos, um novo nascimento, uma nova ordem.
Celeida agachou-se dentro do recipiente de barro. Recolheu-se sobre o centro
do seu corpo. Esta postura corporal remete-nos para a posição fetal, um estado
embrionário do ser que se prepara para eclodir no mundo. No final da
performance a casca do ovo é quebrada, rasgada. Esta casca pode ser a
“casca da ignorancia”64, a casca que separa o conhecido do desconhecido, o
mundo exterior do mundo interior, o eu dos outros. Houve uma fusão com a
matéria, uma viagem a um espaço recôndito e silencioso, onde o tempo
cartesiano não teve lugar. Um momento silencioso de transformação, dentro
daquela espécie de casulo, onde qualidades latentes foram acolhidas e
puderam, finalmente, eclodir.
“Passagem foi, para mim, a oportunidade onde mais pertenci à minha matéria-prima de trabalho- ao barro, à terra. A terra como um grande ventre, como um cosmos. Preenchi o vazio do pote com meu corpo coberto de barro. Com os sons que saíam de mim, mas não correspondiam a palavras, encontrei
63
NAME, Daniela – Da lama ao caos, do caos à lama, p.53-81. In SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de Lontra - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2014, p.64. 64
ELIADE, Mircea – Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.74.
41
o silêncio. Foi uma viagem ao barro, o contato com alguma coisa muito subterrânea. O meu próprio processo de vida, o processo de vida muito para trás e o processo de vida mais próximo. Quando eu digo para trás, estou dizendo para trás mesmo, no espaço, alguma coisa que não sei explicar e não conheço. Mas eu tive contato com alguma coisa que era como um útero.”65 Algumas autoras escrevem sobre esta obra:
“Passagem foi um ritual que selou definitivamente a sua relação visceral com o barro.”66
Daniela Name afirma: “Passagem é uma experiencia em que a artista é ela própria uma Vénus virgem que de repente se descobre grávida de si mesma. Para esse outro eu renascer, Celeida vive o luto de se despedir de outro- a vida dentro da concha. Morta e renascida começa a erguer novas moradas para si mesma e suas relaçoes com o mundo.”67
A autora refere que Passagem marcou um momento de mudança na
vida de Celeida Tostes – o seu trabalho torna-se cada vez mais desenvolvido
em contato com os seus alunos no Parque Laje e a sua atividade como
professora assume o caráter de obra.
“Se, em anos anteriores, no mundo artístico, foi dado especial destaque
aos meios industriais, à ausência das marcas da mão nas obras, a obra de
Celeida celebra uma linhagem diferente, que se destaca da construtiva e
conceptual- a artista enfatiza a carga manual, a importância do gesto, dos
afetos, da expressividade, do contacto visceral com as matérias primas”68
Em suma, neste capítulo facilmente encontramos aspetos comuns entre
as obras de Ana Mendieta e Celeida Tostes. As duas artistas expressam o seu
ímpeto por uma fusão com a matéria e uma ligação às origens, às raízes. Ana
Mendieta elege espaços na natureza para aí intervir, quer esculpindo figuras
que nos remetem para tempos ancestrais e para as origens da arte, quer
realizando e fotografando ações com o seu corpo que evocam uma ligação
com a terra. A artista cobre-se de barro e abre os braços expondo-se á luz do
dia, erguendo-se, afirmando a sua verticalidade e a expansão dos seus
membros. Celeida, por sua vez, recolhe-se em sua própria casa, dentro de um
espaço/recipiente escuro, enrolando-se sobre si própria, invocando uma noite
65
NAME, Daniela – Da lama ao caos, do caos à lama, p.53-81. In SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de Lontra - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2014, p.225 66
Ibid., p225 67
Ibid.,p.225 68
Ibid.,p.225
42
escura após a qual emerge renascida na vida. Viaja metaforicamente a um
espaço uterino, a um tempo de ligação com a força feminina. Em ambas
notamos uma apropriação ou uma referência a objetos dos primórdios da
escultura e da cerâmica: em Mendieta há a referência direta às estatuetas
femininas, utilizadas em cultos e rituais de fertilidade; Celeida Tostes apropria-
se da ideia de recipiente, que nos remete para esta importante tipologia de
objetos também de tempos remotos. Nas duas artistas o contacto da argila
líquida sobre o corpo nú evoca a empatia com a matéria. Revelam um
entendimento da obra de arte como algo visceral, uma total imersão com a
matéria, a procura da unidade entre a arte e a vida. O registo fotográfico,
também comum às duas artistas, oferece ao espectador a possibilidade de
testemunhar a experiência das artistas mas pode ir mais além- como imagens
tornam presente a intensidade da experiência que, de alguma forma pode
ressoar naquele que as contempla, abrindo sentidos e leituras múltiplas e
subjetivas.
43
Parte II- Apresentação e reflexão acerca do desenvolvimento
prático do Mestrado- as séries Movimento Maior e Alvorada.
“[A poesia] pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que
a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me
uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta,
corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me
que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e
compacta.69
“Arde no incêndio de todas as estrelas, marulha no silêncio de todo o mar, dança nas
volutas de todo o vento, enraíza-te na fundura de toda a terra, funde-te no abismo de todo o
espaço.”70
Introdução
Ao longo do ano letivo foram desenvolvidas duas séries de trabalhos:
Movimento Maior e Alvorada. A primeira realizou-se numa residência artística
nas Oficinas da Cerâmica e da Terra, no espaço do Telheiro da Encosta do
Castelo [Fig.29,30], em Montemor-o-Novo71, em Dezembro de 2015 e Março
de 2016 e a segunda decorreu na Sertã (Beira Baixa), na aldeia dos meus
familiares maternos, em Julho e Agosto de 2016. Ambos os locais são em meio
rural, fato este que permitiu um contato aprofundado com a natureza, bem
como um espaço e tempo de recolhimento interior, propícios à criação e
investigação.
69
BREYNER, Sophia de Mello – Obra Poética (edição de Carlos Mendes de Sousa). Lisboa:
Caminho, 2010, p.839. 70
BORGES, Paulo – A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido. Sintra: Zéfiro, 2008, p.81. 71
Trata-se de um espaço de fabrico de cerâmica artesanal. Promove e salvaguarda a formação e a investigação nas áreas da arquitetura vernacular, escultura e design. O projeto é norteado por valores ambientais, sustentabilidade e recurso às matérias e tecnologias locais.
71 Consultar http://www.oficinasdoconvento.com/?page_id=5185
44
Fig.27
Telheiro da Encosta do Castelo (vista geral), Montemor o Novo, Dezembro de 2015
Fotografia de Sara Inácio
Fig.28
Telheiro da Encosta do Castelo (vista de um dos espaços interiores), Dezembro de 2015
Fotografia de Sara Inácio
Movimento Maior evoca a ordem do universo, quer na sua dimensão
invisível e etérea, quer na sua vertente material e manifesta. Evoca também a
força motriz subjacente a toda a criação, quer na vida, quer na arte, e que, no
dizer de Sophia de Mello de Breyner, Dante designa como “aquele amor que
move o sol e os outros astros”. Movimento Maior é a Unidade que engloba
complementaridades intemporais: peso/leveza; espírito/matéria; céu/terra;
permanente/efémero; particular/universal.
Alvorada consiste numa sequência de esculturas que decorreram de um
processo meditativo cuja intenção foi a de criar um sentimento de unidade com
a terra. Trabalhando a terra, elemento físico e simbólico, cria-se uma ligação
com o local, com o planeta, com o cosmos.
Neste capítulo há uma descrição do processo de trabalho relativo às
duas séries, bem como uma reflexão acerca das obras criadas.
45
Série Movimento Maior
Trata-se de um conjunto de trabalhos que inclui fotografia, escultura em
terra e em cerâmica e intervenções efémeras na paisagem. Em seguida são
descritos os vários trabalhos que constituem a série:
Movimento Maior -série de fotografias do vestido [Fig.29 (a, b)]
Nesta série de trabalhos decidi, pela primeira vez, utilizar um objeto
pessoal como um dos referentes ou fator de inspiração no processo criativo de
um projeto. Até agora experiências e memórias demasiado pessoais e
biográficas nunca constituíram para mim motivo de interesse direto para a
criação plástica. Mas desta vez, na bagagem para a residência em Montemor o
Novo, levei um vestido meu. Um vestido branco- objeto carregado de vivências
intensas e memórias. De que modo este objeto poderia potenciar a interação
com o espaço natural, em Montemor o Novo? Como é que este vestido poderia
estar integrado no processo criativo? Que ações despoletaria? De que modo
influenciaria a criação escultórica? De que modo um objeto pessoal, particular,
imbuído de memórias, pode transformar-se num símbolo e convocar no
espetador sensações arquetípicas?
Outro referente importante para o desenvolvimento da série Movimento
Maior foi o estudo dos selos cilindros da Mesopotâmia. Estes objetos
interessaram-nos por conterem uma série de referências simbólicas à natureza
e à terra, bem como pelo fato de se tratarem de uma manifestação artística
ancestral associada à utilização do barro crú (este tema será desenvolvido
ainda neste capítulo).
46
Fig.29 (a)
Fotografias, série Movimento Maior, 2016. Dimensões variáveis.
Sara Inácio
Num dos dias da residência nas Oficinas da Cerâmica e da Terra, junto
a um dos barreiros, peguei no vestido com o intuito de o colocar sobre o
terreno, numa ação simbólica de união deste objeto com a terra, procurando
que o vestido fosse por ela acolhido e ali pudesse repousar. Lancei o vestido
para que ele caísse na terra e ficasse numa posição natural, sem ser encenada
por mim. Tirei várias fotografias assim com este procedimento: lançava
ligeiramente o vestido ao ar e depois deixava-o cair e fotografava-o. Mas numa
destas vezes aconteceu levantar o vestido mais alto... e reparei no efeito
dovestido contra o azul do céu. Seguiram-se então uma série de gestos destes
em que lançava o vestido cada vez mais alto. Foram mais de uma centena de
lançamentos. A cada lançamento um deslumbramento de ver aquele vôo a
acontecer e uma fotografia. Lancei o vestido nas quatro direções. Norte, sul,
este, oeste.
47
Fig.29 (b)
Fotografias, série Movimento Maior, 2016. Dimensões variáveis.
Sara Inácio
Para cada direção um tipo diferente de reflexo no vestido, diferentes nuvens de
fundo, diferentes azuis do céu. A dança do vestido evocava um movimento
etéreo, uma presença alada, qual anjo ou deusa. Projetei-me naquele vestido e
eu própria me movi e voei nele. Deste processo resultou uma série de
sensações, reflexões e fotografias. Vestido solto, vestido liberto, vestido ao
vento, vestido nas nuvens, vestido com luz, vestido branco, vestido dançante,
vestido insuflado, vestido etéreo, vestido na terra, deitado, repousado na terra,
vestido sobre a terra, vestido sobre o chão, sobre o solo. Reflexos no vestido.
Vestido suspenso sobre fundo de nuvens, leveza. Com uma das mãos
48
colocava o vestido a girar rumo ao céu. Com a outra mão fotografava. A beleza
da luz refletida no vestido naquele fim de tarde fez-me pensar em liberdade, em
leveza, em voo, em presença espiritual- algo que não está sujeito ao peso da
matéria, eternidade. Uma das funções da arte pode ser precisamente o
materializar, manifestar, ancorar essa componente etérea.
Wassily Kandinsky (1866-1944), no seu livro “Do Espiritual na
Arte” desenvolve esta ideia de obra de arte habitada por uma força espiritual. O
autor considera que a obra de arte provém de uma dimensão espiritual e
equipara-a a um ser imbuído de forças capazes de agir no mundo. A obra é
uma entidade, habitada e movida por uma energia transcendente.72
Neste sentido podemos considerar que a arte pode trazer o espírito à matéria.
A arte pode colocar em ligação essas duas componentes e, nesse sentido,
potenciar essa ligação dentro do espectador. A obra torna-se um
prolongamento da vida interior do artista e pode convocar a vida interior do
espetador.
Também Rui Chafes estabelece uma relação entre a arte, a natureza e a
dimensão sagrada da existência.
[...]a nossa cultura tem de passar, obrigatoriamente, pela consciência do nosso local de nascimento, do nosso espaço de vida, da Natureza que nos envolve. Ainda, no que diz respeito à Natureza, há um espaço que me interessa, relacionado com os antigos, para os quais tudo na Natureza era sagrado: para eles, onde o nosso olhar pousava escondia-se um Deus, cada nuvem era um Deus, cada erva era um deus, cada criança que nascia era um deus. Não existia nenhum pedaço na Natureza que não estivesse possuído por Deus. Cada nuvem, cada mar, cada árvore...tudo era visão e voz, outra voz: a Natureza falava. As folhas percorridas pelo sopro do vento, a espuma das vagas do mar, o silêncio e o aroma da erva, os ramos das árvores oscilando, tudo era rasto da presença sagrada, tudo era a sua voz. Era um tempo em que os rituais e os mitos eram tão naturais e concretos que integravam a sua vida quotidiana, o seu significado diário. Para o Homem Antigo, a emoção que sentia diante do silêncio do céu era a prova de que a realidade era perfeita. [...] Acredito que a Arte pode ter a capacidade de se instituir para convocar a elevação”.73
72 KANDINSKY, Wassily – Do Espiritual na Arte . Lisboa: Publicações Dom Quixote, Lda,
1991. ISBN 972-20-0277-5.
73
CHAFES, Rui – Involução, pp. 91-97. In MATOS, Sara Antónia (edição e coordenação) - Espaço. Montemor – o – Novo: Oficinas do convento, p.93.
49
Movimento Maior - Escultura efémera no barreiro [Fig.30]
Num outro dia da residência, enquanto fazia um pequeno estudo em barro,
tinha o sol à minha direita, a anunciar o fim do dia. Olhei para o lado esquerdo
do meu campo visual e vi o monte de barro do barreiro (barro que deverá ser
misturado com outras matérias primas para então ser moldado).
Fig.30
Série Movimento Maior, Intervenção efémera na Paisagem (terra esculpida), Telheiro da Encosta do Castelo, Montemor o Novo, 2016. Fotografia de Sara Inácio
Aquele monte de terra em bruto chamou-me a atenção. Instantaneamente
gerou-se dentro de mim um impulso para ir trabalhar diretamente com aquele
monte de terra, para ir tocar, esculpir diretamente ali. Levantei-me, com um
teque na mão, e fui de encontro ao que me chamava.
Quando se trabalha diretamente na natureza há uma interação contínua
50
que está em movimento e há que estar atento aos sinais, aos impulsos. Penso
que isto também pode acontecer quando se está a trabalhar dentro de um
ateliê, o próprio processo de trabalho é sempre um encadeamento de ações
que geram obras, trabalhos. Mas quando se está num espaço natural há esta
sensação de se estar perante forças vivas, forças em movimento que
constantemente interagem connosco, ou pelo menos convidam, apelam a uma
interação. Estar na natureza é estar disponível para ver, para brincar, para agir
e deixar que o próprio espaço responda, é acolher e expandir uma certa
sensação de magia 74 e de unidade entre o corpo e o próprio espaço.
No barreiro, acima referido, modelei uma série de pregas, como um
grande panejamento, pregas que podiam ser as do vestido mas que também
podiam ser as pregas do grande manto terrestre. A forma surge do próprio
contato com a terra, os veios que escavo são os possíveis naquela porção de
terra. Alguns desfizeram-se pois não havia consistência suficiente naquela
terra, naquele momento. Talvez se tivesse chovido há pouco tempo a matéria
estivesse mais agregada. Mas naqueles dias, apesar da humidade noturna,
estivera sol e vento e, por isso, a terra estava seca. Houve um diálogo com a
matéria, com o espaço. Eu imprimia uma ação, um gesto na matéria e obtinha
uma resposta. O processo continuou nesta sucessão de gestos e de respostas.
O sol estava prestes a pôr-se, o frio do fim do dia a chegar, o frio da terra a
entranhar-se nos meus joelhos, o vento a gelar-me as mãos fizeram com que o
processo terminasse. 75
74 “A ideia comum de magia é a de poder dominar os elementos, de modo que se possa transformar a terra em fogo ou o fogo em água, ou ignorar a lei da gravidade e voar. Mas a verdadeira magia é a magia da realidade, tal como ela é: a terra da terra, a água da água – a comunicação com os elementos de um modo que, em certo sentido, eles e nós nos tornamos um só.” In TRUNGPA, Chogyam – A Trilha Sagrada do Guerreiro. São Paulo: Editora Cultrix, 1984, p.113.
75 “ Ao transformarmos as matérias, agimos, fazemos. São experiencias existenciais –
processos de criação- que nos envolvem na globalidade, no nosso ser sensível, no ser pensante, no ser actuante. Formar é mesmo fazer. É experimentar. É lidar com alguma materialidade e, ao experimentá-la, é configurá-la. […]. No trabalho o Homem intui. Age, forma, configura, intuindo. O caminho em toda a tarefa será novo e necessariamente diferente. Ao criar, ao receber sugestões da matéria que está sendo ordenada e se altera sob as suas mãos, neste processo configurador o indivíduo vê-se diante de encruzilhadas. A todo o instante ele terá de se perguntar: sim ou não, falta algo, sigo, paro... […]. Sobretudo ele decidirá baseando-se numa empatia com a matéria em vias de articulação...procurando conhecer a especificidade do material.” In OSTROWER, Fayga - Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro:
Imago Editora Lda, 1977, p.39.
51
Numa vertente poética e simbólica trabalhar com a terra é estar unida a todos
os antepassados. É reconhecer a sacralidade do solo. Trabalhar com a terra e
na natureza (enquanto espaço e enquanto conjunto de processos dinâmicos) é
tomar consciência da abundância, dos ciclos da vida. Quando modelo a terra o
meu corpo torna-se uno com o corpo celeste que é a Terra. Terra em
movimento constante no espaço. Terra em movimento contínuo no seu interior.
Ao trabalhar com a terra o céu torna-se mais presente.
Movimento Maior- Esculturas em cerâmica [Fig.31,32]
Foram realizadas várias esculturas em barro. Esta matéria interessa-me quer
pela sua fisicalidade e materialidade - enquanto matéria viva, elemento da
natureza com a qual interajo, quer na sua vertente poética - a matéria primeira,
ancestral, associada ao fazer escultórico mais primário, barro enquanto terra
(símbolo de fertilidade, de abundância, da vida terrena, do mundo sensorial).
Quando utilizo a expressão matéria viva para designar o barro faço-o porque o
barro, ou argila resulta de dinâmicas do próprio planeta, dos ciclos e
movimentos das rochas. As argilas são rochas. São materiais que resultam da
decomposição, durante milhões de anos, das rochas feldspáticas como o
granito e o gnaisse, muito abundantes na superfície da terra – constituem cerca
de 75% das rochas sedimentares do planeta. Argilas são um silicato de
alumínio hidratado, composto por alumínio (óxido de alumínio), sílica (óxido de
silício) e água. Classificam-se em duas categorias: argilas primárias e residuais
e argilas secundárias ou sedimentares. As primeiras são formadas junto à
rocha mãe e são pouco sujeitas à ação de agentes atmosféricos. Possuem
partículas mais grossas, têm pouca plasticidade e um alto grau de fusão. As
argilas secundárias ou sedimentares são transportadas para longe da rocha
mãe pela água, pelo vento ou pelo degelo. A água dissolve a argila em
partículas de diferentes tamanhos, fazendo com que as mais pesadas fiquem
depositadas a uma maior profundidade. As outras partículas vão-se
depositando, conforme o seu peso, ao longo do caminho, enquanto são
transportadas e as mais leves são depositadas onde a água pára. As argilas
52
secundárias são mais finas e plásticas do que as primárias e contêm matéria
orgânica e metais que se vão misturando durante o processo de transporte.76
Fig. 31
Escultura da série Movimento Maior (fase de realização), Terracota, 23 (diam.) x 33cm, 2016.
Fotografia de Sara Inácio
Fig.32
Esculturas da série Movimento Maior, Terracota,cada 23 (diam.)x33cm (aprox.), 2016
Fotografia de Sara Inácio
Algumas das esculturas em terracota foram concebidas para rolar na
terra, na paisagem. Construí paredes grossas, robustas para que o movimento
e a pressão exercida sobre elas pudessem acontecer sem que se quebrassem.
Comecei por criar, sobre um tampo de ardósia, com a técnica dos rolos, dois
cilindros com cerca de 30 cm de altura e 20 cm de diâmetro. À volta de um dos
76
GOMES, Celso Figueiredo – Argilas: O que são e para que servem. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1988.
53
cilindros enrolei o vestido branco- este seria o modelo a partir do qual iria criar
o panejamento em barro no outro cilindro. Observei as pregas, as ondulações,
as diferentes profundidades do tecido. Modelei, com barro, o panejamento
sobre o outro cilindro. É um trabalho de observação, de concentração, de
meditação. Foco-me no que vejo, torno-me no que vejo. Há um estado
intensificado de presença que sinto quando me predisponho a fazer este tipo
de exercício. A concentração em algo concreto e a materialização escultórica
do que vejo conduz-me a um silêncio interior, a perceção sensorial das formas
e do espaço que me rodeia torna-se mais viva, mais aguçada. Durante o
exercício as mãos sintonizam-se com o olhar. Os olhos ora se fixam em
detalhes ínfimos ora abarcam uma área maior, saltam do tecido para o barro,
para o tecido. As mãos tomam as rédeas e movem-se com a matéria. Numa
das leituras de Alejandro Jodorowsky (1929,-) descubro que o autor salienta a
importancia do trabalho com as mãos. Segundo o autor “as mãos, tanto como
as palavras, tem muito para exprimir”77. Jodorowsky defende que as mãos
podem transmitir consciência: “fez das suas mãos a continuação do seu
espírito; através do contacto físico, transmitiu consciencia” 78. As mãos, neste
sentido podem funcionar como elementos de ligação entre a consciência e o
mundo da matéria. No final as esculturas foram cobertas com caulino em pó.
Escolhi o caulino pela sua brancura, que me lembrava o branco do vestido.79 O
branco intenso, a maciez do pó agarrado aos punhados e esfregado contra as
superfícies. Esta sensação de agarrar a matéria nos seus vários estados (o
barro fresco áspero, o pó seco e macio, o contraste das cores (o barro cru era
bastante escuro e o caulino de um branco quase incandescente) trazem-me
sensações de puro deleite, há uma alegria gerada pela manipulação destes
materiais!
77
JODOROWSKY, Alexandro – A Dança da Realidade. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2006, p.92. 78
Ibid, p. 214. 79
O caulino é uma argila primária branca, de grande pureza. O termo caulino deriva de Kao Ling – nome dado a uma colina da China, junto à qual se extraía essa matéria para o fabrico da porcelana.
54
Ainda a partir da ideia de panejamento e de formas complementares
(positivo/negativo) criei uma série pequenas esculturas [Fig.33] As pregas
podem ser as de um vestido mas evocam também sulcos e relevos que
lembram dobras geológicas- as camadas rochosas que se curvam quando
submetidas a forças do interior da terra [Fig.34].
Sobre o tempo do Fazer
O fazer escultórico é impulsionado por uma intensidade interior que urge ser
manifesta através da materialização de formas na matéria. Como um caudal
que desemboca na matéria e com ela dialoga. É desse diálogo que surgem as
formas. O tempo do fazer é um tempo de reconhecimento e assunção de uma
interioridade. É um tempo do prazer de manifestar a vida interior. As mãos
assumem as rédeas. É um tempo de introspeção e de entusiasmo. Num texto
sobre Jorge Vieira, Rui Chafes escreve sobre este tempo da criação e sobre o
entusiasmo a ele associado:
“O tempo manual é único, é o tempo do Artista. O resto é o vazio oficial,
a mesa vazia dos burocratas, a informatização e a mediatização das limitações
que o social forçosamente impõe ao individual. [...] É necessário acreditar ser
ainda possível, hoje, numa civilização pós industrial, informatizada e mediática,
realizar algo com as nossas mãos. A escultura possível terá o nosso tempo
manual, único e insubstituível. [...] Jorge Vieira ensina-nos o prazer em
construir uma forma com as mãos. Ele oferece-nos o seu entusiasmo.”80
80
CHAFES, Rui – O Silêncio de .... Liboa: Assírio e Alvim, 2005, p-43-44.
55
Fig.33
Série Movimento Maior, 2016. Terracota e caulino. Dimensões variadas. Fotografias de Sara Inácio
56
Fig.34
Dobra geológica
[Em linha], consultado em Maio de 2016
https://www.google.pt/search?q=dobras+geologicas&espv=2&biw=1366&bih=662&tbm=isch&imgil=zxdGk6b37nrACM%253A%253B1v9Z4tHnz_-QBM%253Bhttps%25253A%25252F%25252Fbr.pinterest.com%25252Fpin%25252F302796774926339671%25252F&source=iu&pf=m&fir=zxdGk6b37nrACM%253A%252C1v9Z4tHnz_-QBM%252C_&usg=__OFfC5vHf6UALsdIMaVjylrm9qq4%3D&ved=0ahUKEwjb1o2e7L7PAhVEbj4KHUlSDYIQyjcINA&ei=K2vyV5uVCsTc-QHJpLWQCA#imgrc=zxdGk6b37nrACM%3A
Sara Matos, numa entrevista ao Coletivo de Curadores (Alda Galsterer e
Verónica de Mello), aborda esta questão do fazer manual, da experiência do
sensível, e a sua importância na contemporaneidade:
“[...] Num mundo informatizado, virtualizado, numérico: o sensível, o saber fazer, o modo como construímos e representamos o espaço que habitamos, não serão questões internas ao campo da arte extremamente políticas, extremamente oportunas?”81
O tempo do fazer é uma viagem com dois sentidos simultâneos: viaja-se
para dentro, para o interior e dialoga-se com o exterior- com o espaço, com a
matéria e com as condições circundantes.
81 ProjetoMAP: http://www.projectomap.net entrevista do Coletivo de Curadores (Alda Galsterer e Verónica de Mello) a Sara Antónia Matos.
57
Rolando as esculturas pela paisagem- ações simbólicas [Fig.35]
Fig.35
Série Movimento Maior (rolamento das esculturas na paisagem), 2016. Intervenção efémera na paisagem, Praia Grande, Sintra. Fotografias de Sara Inácio
Poucas semanas antes de ir para a residência em Montemor-o-Novo
assisti, no Museu da Fundação Calouste Gulbenkian a um ciclo de encontros
sobre os cilindros selo da Mesopotâmia, orientado pelo Prof. Dr. António
Freitas (consultor de arte da Mesopotâmia no Museu Calouste Gulbenkian).
Numa das sessões pude ver de perto três selos (pertencentes à coleção do
Museu Gulbenkian) a serem rolados sobre placas de plasticina (por questões
58
de conservação este material é mais viável para estas experiências do que a
argila). Ao pegar nestas placas foi grande o fascínio que senti. Vários aspetos
cativaram a minha atenção: A minúcia e a delicadeza dos objetos e o evento
quase mágico de ver aparecer os relevos sobre a superfície da matéria mole. E
também a carga simbólica de que estavam imbuídos- representações do
cosmos em que o mundo dos deuses estava fundido com o dos homens e com
a natureza- deuses desempenhando tarefas humanas, a árvore da vida, as
águas primordiais e representações de Ishtar- a deusa do amor, da terra e da
fertilidade. Interessaram-me estes objetos também pelos aspetos escultóricos a
eles associados (quer na sua manufatura, quer na sua utilização) - escavar,
rolar, pressionar, gravar.
Os cilindros- selo da Mesopotâmia [Fig.36] (área que corresponde
atualmente ao Iraque, à parte oriental da Síria e ao Kuwait) surgiram,
aproximadamente, em 3500 a.C. e foram usados até cerca de 300 a.C..
Segundo Collon82 foram criados pelos sumérios, na cidade de Uruk, ou pelos
elamitas (seus contemporâneos que habitavam o sudoeste do Irão), na cidade
de Susa, que mantinha ligações comerciais com Uruk. Surgiram em simultâneo
com a invenção do sistema de escrita cuneiforme em placas de barro crú. Por
toda a parte onde este tipo de escrita proliferou os cilindros- selo estiveram
também presentes.
Fig.36
Cilindro selo neo assírio, finais séc. VIII a.C.
[Em linha], consultado em Janeiro 2016.
https://www.google.pt/search?q=selos+cilindro+da+mesopotamia+ishtar&espv=2&biw=1366&bih=613&site=webhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQuuqyp_HPAhUJWxQKHVhLASoQ_AUIBigB#tbm=isch&q=selos+cilindro+mesopotamia&imgrc=d9jicYQSNSwllM%3A
82
COLLON, Dominique - First Impressions: Cylinder Seals in the Ancient Near East.
London: British Museum Publications, 1987.
59
Os cilindros- selo eram rolados sobre superfícies de barro cru, deixando
impressos baixos relevos que continham informação que podia ser pessoal, do
seu proprietário (desenhada ou escrita ou uma combinação entre ambas), ou
cenas do quotidiano e motivos mitológicos como a criação do mundo em que
abundam referências a divindades e às suas histórias. Uma das funções
iniciais dos cilindros- selo era a de selar pequenas esferas ocas de barro que
continham no seu interior fichas de barro relativas a transações administrativas.
Posteriormente começaram a ser utilizados para selar e autenticar
documentos: contratos, tratados, inventários de objetos pertencentes a
templos, recibos, cartas e envelopes também feitos de barro que envolviam as
placas de barro. Já anteriormente à invenção dos cilindros- selo havia a prática
de selar documentos utilizando carimbos. Neste caso os documentos podiam
ser rolos de papiro ou de pergaminho que eram enrolados com cordas atadas
com um nó. Este era envolto com uma porção de barro crú que era então
selado com o carimbo. Os selos mais antigos de que há conhecimento são do
período do calcolítico (6500 a. C.) e surgiram no norte da Síria, na cidade de
Unug. Muitos eram amuletos de fertilidade (masculina ou feminina consoante a
sua forma mais arredondada ou mais fálica) e eram usados em colares e como
carimbos (a gravação era feita pressionando o relevo que existia na parte de
baixo da pedra). Outra das suas utilizações era na selagem de cidades- eram
colocadas cordas nas entradas das cidades, atadas e cobertas por pedaços de
argila crua selada com os cilindros- selo. Caso o selo fosse destruído ficava a
saber-se que algum intruso tinha entrado na cidade. Os cilindros podiam ainda
tornar visível que uma mulher era casada com determinado homem- nestes
casos as mulheres penduravam os cilindros- selo dos maridos num colar que
colocavam ao pescoço83. Nestes casos tinham a função de jóias e de símbolos
de status. Outras utilizações lhes são também atribuídas como amuletos
(objetos na altura considerados portadores de propriedades mágicas e que
tinham como função proteger ou abençoar os seus portadores) e como objetos
83
FREITAS, António de – “Um Motivo Cosmogónico no Cilindro-Selo 2321” in Atas do
Colóquio de Arte da Mesopotâmia, Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2015, p. 64-65.
60
de uso ritualístico em comemorações sociais84. Neste casos são denominados
de selos votivos e eram dedicados a determinadas divindades e por vezes
pendurados ao pescoço de estátuas de culto. Havia outros ainda de caráter
mais pessoal, com inscrições de orações e encantamentos. Num cilindro- selo
encontrado no Kuwait podemos ler uma inscrição que revela essa intenção de
proteção e benção: “May the one furnished with (this) seal be vigorous, be well,
be prosperous, beam with joy, be young, be in good wealth.”85 Estes objetos
revelam a necessidade do Homem de imprimir a sua marca, delimitar o seu
território e as suas posses, assumir a sua autoridade, ligar-se a forças divinas.
Através da utilização destes pequenos objetos o Homem rodeou- se de
imagens e de histórias que lhe relembravam a sua génese e a sua identidade,
e que reavivavam as relações que estabelecia, quer com o mundo material,
quer com o mundo mítico, para ele indissociáveis.
Inspirada pela vertente simbólica dos cilindros e pelas ações escultóricas
a eles associadas fiz alguns ensaios [Fig.37] em que rolei esculturas em
cerâmica sobre barro crú e, posteriormente, rolei-as diretamente na paisagem
(Montemor o Novo e Praia Grande) [Fig.35]. Ao rolar as esculturas na
paisagem faço-o com a intenção semelhante à do lançar o vestido ao ar e à
terra. É para mim uma ação simbólica, um ato poético fundir o universo
pessoal, biográfico, com o espaço envolvente, em última instância, com os
cosmos. O rolar das esculturas cria percursos, abre caminhos no espaço.
Deixa marcas que após algum tempo são apagadas com a chuva, com o vento
ou com o mar.
84
PENEDO, Tiago de Brito (2015). “Os Motivos Mitológicos dos Cilindros- Selo da Coleção
Gulbenkian, in Atas do Colóquio de Arte da Mesopotâmia, Museu Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 2015, p. 90-109
85 “Possa aquele que é proprietário deste selo ser vigoroso, estar bem, ser prospero, irradiar
alegria, ser jovem, estar de boa saúde”. [Tradução livre].
61
Fig.37
Ensaios (rolando as eculturas sobre barro crú), 2016. Fotografias de Sara Inácio
Intervenção na paisagem - Formas de caulino em pó ao longo de um
caminho [Fig.38]
Fig.38
Série Movimento Maior, intervenção na paisagem (caulino em pó sobre a terra), 2016. Telheiro da
Encosta do Castelo, Montemor o Novo. Fotografia de Sara Inácio
62
Manchas brancas com formas de vestido ao longo de um caminho que
liga o Telheiro com o Castelo. Formas brancas, quase bidimensionais, feitas de
caulino em pó. Caminho estreito, sinuoso, por entre árvores e ervas altas.
Superfícies brancas que criam um percurso visual, apelando a um movimento.
Formas que revelam uma vontade de habitar o espaço, de acentuar a
horizontalidade, intensificar a presença do solo, do chão, do caminho. O branco
do caulino a ressoar com as nuvens e a contrastar e realçar os verdes e
castanhos da paisagem. A paisagem torna-se mais presente por ali serem
introduzidas estas formas contrastantes.
Em suma, na série Movimento Maior, realizada durante a residência
artística nas Oficinas da Cerâmica e da Terra, foram criados diferentes tipos de
trabalhos: um grupo de fotografias a partir dos movimentos de um vestido no
céu e na terra; um conjunto de esculturas em cerâmica, algumas das quais
foram posteriormente roladas na paisagem deixando inscritas marcas na
paisagem e uma intervenção efémera ao longo de um caminho. Houve uma
curiosidade e uma abertura para explorar e interagir com o local, explorando
quer a sua componente espacial (céu, terra, caminho, espaço oficinal) quer as
matérias primas - o monte de barro em bruto, os barros preparados para
escultura cerâmica, o caulino- usado diretamente ao longo do solo ou aplicado
nas esculturas.
Na série realizada em seguida- Alvorada – existiu um aprofundamento
do que foi iniciado em Movimento Maior. Houve uma maior restrição e
contenção em termos de exploração de espaço e matérias: foi selecionada
uma pequena área de terra na qual foi criado um conjunto de esculturas.
Alvorada
Na Sertã, na Beira Baixa, na aldeia da minha família materna, criei uma
série de esculturas em terra. [Fig.39a,b,c,d]. Selecionei um pedaço de terra
num lugar recolhido e intimista e aí decorreu este diálogo entre mim, o espaço
e a matéria. As esculturas foram realizadas maioritariamente pelo nascer do
sol. Um processo ritual em que havia uma intenção. A minha intenção era a de
reconhecer e sentir os elos que me ligam à terra, aos meus antepassados,
àquele espaço, à natureza, à vida, ao cosmos. Podemos considerar que a arte
63
é ritual na medida em que coloca em movimento forças interiores, e isto
influencia o modo como nos relacionamos com o mundo e com os outros.
Fig.38a
Série Alvorada (Esculturas de terra na paisagem), Sertã, 2016.
Fotografias de Sara Inácio e Ana Pedro
64
Fig.38b
Série Alvorada (Esculturas de terra na paisagem), Sertã, 2016.
Fotografias de Sara Inácio e Ana Pedro
65
Fig.38c
Série Alvorada (Esculturas de terra na paisagem), Sertã, 2016.
Fotografias de Sara Inácio e Ana Pedro
66
Fig.38d
Série Alvorada (Esculturas de terra na paisagem), Sertã, 2016.
Fotografias de Sara Inácio e Ana Pedro
67
Se num trabalho há uma intenção então este torna-se processo e
produto dessa intenção. Começava por colocar as minhas mãos sobre a terra
fria. Contemplava a cor do solo, absorvia o seu cheiro. Respirava o ar fresco da
manhã. Criava um estado de recetividade e de atenção, um estado de
meditação ou prece que impulsionava uma espécie de dança silenciosa entre o
corpo e a matéria86. Sobretudo sentia a matéria, a sua presença quase
majestosa e imponente- a textura da terra, os pedaços de raízes e de pedras,
as dezenas de vermes.
Ao longo das semanas em que realizei as esculturas li excertos do livro
Moradas de Santa Teresa de Ávila87. A autora escreve acerca da existência,
em cada ser humano, de um espaço interior (castelo interior é a expressão que
utiliza para o definir) uma vida interior que pode ser cultivada, uma
espiritualidade que pode ser vivida através de uma escuta profunda dos planos
internos do ser. Este livro foi uma referência/inspiração para a realização
destes trabalhos. Também Rui Chafes refere, em muitos dos seus textos, a
importancia desta ideia de interior, de uma “arte secreta e silenciosa,
construída como uma espaço de recolhimento e pensamento”88.
O artista russo Wassily Kandinsky, na sua obra Do Espiritual na Arte,
reforça esta mesma ideia: “ [O artista] deve debruçar-se sobre si próprio,
aprofundar-se, cultivar a sua alma.”89
Eugen Herrigel (1884-1955), filósofo alemão, no seu livro Zen e a Arte
do Tiro com Arco, exprime o modo como os japoneses, na arte do tiro com arco
mas também em outros tipos de arte (Ikebana, pintura, caligrafia, etc.), têm
como foco a autoconsciência, são encaradas como práticas espirituais. O autor
86 Reconheço esta atitude quando leio certos textos sobre índios: “ Na vida de um índio só havia um dever inevitável – o dever da prece, o reconhecimento quotidiano do Invisível e do Eterno. As suas devoções diárias eram-lhe mais necessárias do que o alimento de cada dia. Levanta-se de madrugada, calça os mocassins e desce até ao rio. [...] Depois do banho fica de pé perante a aurora que avança, frente ao sol que dança no horizonte, e faz dom da sua muda oração. [...] Cada qual deve encontrar sozinho, em sua alma, o sol da manhã, a mansa terra nova e o grande silencio!” In
MCLUHAN, Teri C. – A Fala do Índio. Lisboa: Fenda Edições, Lda, 1992, p. 34.
87 ÁVILA, Santa Teresa de – Moradas. Lisboa: Assírio e Alvim, 1988.
88 – CHAFES, Rui – Sob a Pele, conversas com Sara Antónia Matos. Lisboa: Cadernos do
Atelier Júlio Pomar, 2015, p.40-41. 89
KANDINSKY, Wassily – Do Espiritual Na Arte.Lisboa: Publicações Dom Quixote, Lda, 1991,
p.115.
68
escreve sobre este tipo de artes:
“Não se trata de um exercício corporal destinado a treinar faculdades
desportivas, mas sim uma capacidade que encontra as suas raízes em
exercícios espirituais e cujo objectivo consiste num encontro espiritual: o
arqueiro aponta para si mesmo, e daí pode resultar um encontro consigo.”90
Com esta atitude de uma procura interior, ao longo dos dias em que
realizei as esculturas em terra fui também escrevendo o texto que se segue:
Escolho um recanto de terra, à sombra da laranjeira, entre os morangueiros e o
hipericão. Desde há décadas este solo tem sido de cultivo- estrumado,
semeado, plantado, regado. Terra solta, não argilosa, carregada de matéria
orgânica. No chão modelo curvas, ondulações, escavo sulcos com as mãos.
Na parede a terra é pressionada em pequenas quantidades para se manter
colada e firme. As formas, iniciadas no chão, prolongam-se para o plano
vertical. A terra calcada com um pouco de água ganha reflexos, textura mais
fina e polida. Cheiro intenso. Exploro o movimento, a simetria, a organicidade.
É a primeira vez que esta terra é cavada sem ser para fins agrícolas. É a
primeira vez que, neste lugar, a terra é erguida sem ser para construir uma
parede. Formas feitas ao nascer do sol. Formações na terra. Formas que vou
transformando- uma dá origem à seguinte. Sequência, encadeamento, fluxo de
formas. Ligação com a terra, viagem a espaços internos, sensação extática,
circular, movimentos em espiral. Linhas, quadrantes, divisões – algo celular,
montanhoso, vulcânico. Aliso, espalho, escavo, aplano, arredondo, pressiono,
furo, aperto, calco, agarro, vejo, componho, formo, transformo, edifico,
compacto, contorço, curvo. Detenho-me nos detalhes. Tenho tempo. Renovo-
me a cada forma. Solto a pele antiga como a serpente aqui presente. Escuto o
som da terra. O silêncio do interior da terra - a linguagem do início do tempo.
Em suma, neste capítulo descrevemos e refletimos sobre o processo de
criação e sobre os trabalhos que dele resultaram, nos dois espaços rurais. No
espaço das Oficinas da Cerâmica e da Terra houve um objeto pessoal que
funcionou como dispositivo para estabelecer uma interação e intervenções na
90
HERRIGEL, Eugen – Zen e a Arte do Tiro com Arco. Lisboa: Assírio e Alvim, 2007, p.12.
69
paisagem, bem como para a modelação de esculturas em barro. Através de
ações simbólicas, como lançar um vestido no ar e no solo, rolar os cilindros
pela paisagem, houve a intenção de fusão de algo que era particular, pessoal e
biográfico com a paisagem, com a Terra. Nos trabalhos realizados na Sertã
desenrolou-se um processo em que a criação de esculturas aconteceu a partir
da intenção de nutrir o sentimento de unidade com a Terra. Tratou-se de um
trabalho interior, ritual, ao nascer do sol, em que foram explorados gestos
escultóricos em diálogo com as potencialidades plásticas da matéria/terra do
local.
Nota: Em simultâneo com as duas séries aqui apresentadas foram ainda
desenvolvidos outros trabalhos: um vídeo [Fig.40] que explora a ideia de
leveza, de algo etéreo e cuja forma está em constante mutação e uma série de
desenhos (estudos de esculturas para serem roladas na paisagem). [Fig.41
a,b]
70
Fig. 40
Imagens do vídeo Escultura de Fumo, 2016
Fotografias de Sara Inácio
71
Fig.41a
Estudos pa
Fig.41a
Estudos para esculturas (formas para rolar na paisagem), 2016
Fotografias de Ana Pedro
72
Fig.41b
Estudos para esculturas (formas para rolar na paisagem), 2016
Fotografias de Ana Pedro
73
Alvorada – Exposição na Capela da Faculdade de Belas Artes-UL [Fig42]
Data de Inauguração: 25 de Outubro
Data de Encerramento: 25 de Novembro
A Capela - local associado à interioridade, à contemplação, à meditação,
constitui-se como espaço símbolo privilegiado para um diálogo com as obras a
expor. É explorado o contraste e a complementaridade entre um espaço
associado ao imaterial e o fato de estarmos perante matéria em bruto. A forte
presença de terra, disposta no chão de modo informe, apela a uma viagem
sensorial. Nesta terra crescem ervas, manifestações de vida contrastando com
o facto de no local existir uma cripta.
Fig.42
Vista geral da exposição Alvorada na Capela da Faculdade de belas Artes, Outubro 2016. Fotografia de
Ana Pedro
74
A exposição é constituída por três obras:
1. Série Movimento Maior (parte I) [Fig.43]
Fig.43
Série Movimento Maior (parte I), 2016
Materiais: Barro crú do Freixo do Meio, caulino, escultura em terracota vidrada
Dimensões aproximadas: 1x2m. Fotografias de Ana Pedro
Nesta obra é explorada a forte presença das matérias em crú, bem como o
seu contraste cromático. Sobre a camada branca, formada pelo caulino em pó,
podem ser observadas marcas subtis resultantes do rolamento da escultura em
terracota sobre esta matéria. A horizontalidade potencia a relação do
espectador com o solo. A faixa comprida de matéria incita ao movimento, à
deslocação no espaço, ao caminhar que pode tornar mais consciente a relação
com o chão.
75
2. Série Alvorada [Fig.44]
Fig.44
Série Alvorad, 2016
Materiais: Série de 24 fotografias impressa a cores, terra
Dimensões: variáveis. Fotografias de Ana Pedro
Sequência de fotografias que documentam o processo de criação e as
próprias esculturas realizadas na terra. O movimento que se pressente na
sequência de imagens testemunha o processo dinâmico da criação das formas.
Sobre as pedras do chão da capela situa-se um monte de terra não moldada,
apelando ao desejo do espectador de lhe dar forma.
76
3. Série Movimento Maior (parte II) [Fig.42]
Fig.42
Série Movimento Maior (parte II)
Materiais: Barro crú do Freixo do Meio, esculturas de terracota com caulino, impressão fotográfica sobre tela.
Dimensões: variáveis. Fotografia de Ana Pedro
Nesta obra há um diálogo entre conceitos e complementares - o peso da
matéria e a leveza evocada quer pela tela quase sem peso, quer pelo vestido
em movimento e o céu de fundo; as formas modeladas e cozidas e o informe
da matéria disposta no chão; a vida presente nos rebentos de ervas que
crescem na terra e a morte presente na cripta debaixo do chão.
As três obras foram dispostas de modo a criar no espaço expositivo uma
continuidade sensível e envolvente para o espetador, propícia à contemplação,
quer do que é apresentado, quer das ressonâncias que se geram no interior de
cada um.
77
Conclusão
“O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivencia, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação de uma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.”
91
Pudémos constatar que a Terra é mencionada por autores como Mircea
Eliade como elemento fundamental do Cosmos. É um símbolo do útero
materno que gera todos os homens- Tellus Mater, associada a elementos como
a montanha, a fenda ou a nascente. Engloba ainda um conjunto de elementos
que rodeiam o Homem- a terra, as montanhas, as pedras, as árvores, etc. É
também um dos pólos do binómio Céu-Terra- o par primordial da mitologia
universal. A Terra mãe sendo fertilizada pelo pai Céu. É, portanto, associada
ao feminino e a atributos como a recetividade, abundância, bondade,
regeneração, solidez, estabilidade. Tem sido um elemento capaz de despertar
um sentimento de sacralidade, afeição e reverência, quer por povos e
civilizações ao longo do tempo, quer por artistas contemporâneos mencionados
nesta dissertação. Considerada como um conjunto de forças vivas que
envolvem o Homem, o contacto com este elemento tem sido considerado como
regenerador e nutridor.
Observámos como a presença e a fisicalidade do elemento terra tem
sido enfatizada por vários artistas contemporâneos. Desde o modernismo até á
contemporaneidade temos assistido a uma valorização da verdade dos
materiais e dos processos de criação. O regresso, por parte de muitos artistas,
à utilização do barro enfatiza a relevância da materialidade e da experiência, o
desejo de um regresso ao corpo e às origens, uma procura de dissolução do eu
na própria matéria. Constatámos ainda a associação da terra com a gruta,
convocando uma interioridade, um espaço íntimo de escuta interna.
Na Landart a terra- enquanto planeta, lugar e matéria é um elemento
91
BREYNER, Sophia de Mello – Obra Poética (edição de Carlos Mendes de Sousa). Lisboa:
Caminho, 2010, p.843.
78
marcante e fundamental. O termo Landart engloba uma grande diversidade de
atitudes por parte dos artistas (quer aqueles cuja obra é realizada diretamente
na paisagem, quer aqueles cuja obra evoca aspetos ligados a este conceito)- o
estabelecimento de ligações entre a natureza e o feminino (Clara Menéres e
Virgínia Fróis), ou entre o micro e o macro cosmos (Nancy Holt); a influência do
conceito do sublime- a natureza como fonte de transcendência, de nutrição e
afetividade (Andy Goldsworthy); a importância da terra da paisagem ou das
pastas cerâmicas no diálogo com o corpo (Alexandra Engelfriet); a relevância
da experiência sensorial das matérias e da paisagem e a procura de uma
unidade com estas (Alberto Carneiro).
Ana Mendieta encara a prática artística como uma forma de
restabelecimento da sua ligação com a terra - a origem e a fonte de toda a vida
- e com o universo. Através das suas esculturas de terra a artista torna-se
extensão da natureza e a natureza uma extensão do seu corpo. A artista refere
a sua intenção de reativar a sensação de estar envolvida por uma força
feminina omnipresente, como dentro de um útero. Na série Esculturas
Rupestres, a artista esculpiu diretamente em paredes de grutas, imprimindo
marcas efémeras na terra. Deste modo reforça a sua convicção de que o valor
e o papel da arte vão para além da sua permanência e da sua manifestação
física pois esta é resultado de uma atividade espiritual do artista. Na série
Árvore da Vida a artista realizou ações de caráter performativo cobrindo o seu
corpo com barro e folhas e colocando-se junto a troncos e raízes de árvores. O
seu corpo parece perder os limites e fundir-se com as árvores e com a
paisagem. O corpo individual transforma-se num corpo universal. As suas
posturas corporais lembram as estatuetas femininas ancestrais. Mendieta
incorpora nas suas obras a ideia de um fluxo contínuo na existência (que inclui
a vida e a morte) em perpétua transformação.
Celeida Tostes, na sua obra Passagem, realiza uma performance em
que se recolhe dentro de um recipiente de barro, um espaço escuro, viajando
simbolicamente a um espaço uterino do qual emerge, rasgando as paredes do
pote, renascida. A argila líquida com que cobre o seu corpo despido contribui
também para realçar o seu entendimento da obra de arte como uma imersão
total na matéria e com a origem da vida. A fusão entre a escultura e a
79
performance, o conceito de instalação, bem como o foco no processo de
criação e de transformação interior (mais do que no resultado visível)
evidenciam a ligação entre arte e vida. As referências às origens da arte estão
presentes, quer no caráter ritual da obra, quer na utilização do barro numa
forma que remete para os utensílios de civilizações indígenas, e que foram
uma inspiração para a artista. Observámos a relevância, quer para Mendieta
quer para Celeida Tostes, da função ritual, da ligação às origens, da relação
com as origens da arte (os potes e as estatuetas femininas), da presença do
efémero, da procura de sensações arquetípicas, que vão além do aspeto
pessoal.
A investigação plástica realizada no âmbito do presente Mestrado é a
expressão dos aspetos acima mencionados. Trata-se de trabalhos criados na
natureza, diretamente com as matérias primas dos locais ( Montemor-o –Novo
e Sertã), criados numa atitude ritual que conjuga uma escuta interna, uma
consciência de que temos um mundo interior que se expressa, e um diálogo
com o espaço e a matéria. Ações simbólicas que visaram fundir o universo
pessoal, biográfico com a natureza e, em última análise, com o cosmos. O
interesse por culturas ancestrais em que a utilização do barro era relevante
conduziu ao estudo dos selos cilindros, fato este que influenciou também a
realização das esculturas. A utilização da matéria no seu estado bruto, informe,
irradiando a sua energia, apelando à participação ativa do espetador e
invocando complementaridades intemporais: o peso e a leveza, a forma e o
informe, o pessoal e o universal, o permanente e o efémero, a matéria e o
espírito. A exposição Alvorada sintetiza todos estes aspetos: propõe uma
viagem sensorial, um mergulho na matéria horizontal e aspira à criação de um
local de escuta interna, de liberdade e transcendência.
80
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https://www.youtube.com/watch?v=64DJ_Zz5c9A [consultado em Agosto de
2016].
85
Anexos
Textos do folheto da exposição:
Texto de Virgínia Fróis:
No horto, uma escada ...
Uma laranja intercepta a distancia da terra ao céu. É um corpo de terra a
laranja e o jardim um pedaço do sagrado no decorrer dos dias.
O trabalho da Sara Inácio coexiste em dois terrenos: o do profano, o da
cadencia dos dias (colher, comer, respirar, observar) e do sagrado sinalizando
as epifanias, os encontros subtis que a transcendem e a incendeiam.
O regresso à Faculdade de Belas Artes para continuar os seus estudos
superiores no 2º ciclo de Escultura, vem adensar os pressupostos do seu
percurso. Do estudo das obras de Celeida Tostes e Ana Mendieta, foca-se na
origem, no feminino e no ciclo: vida, morte, vida. E deste estudo, interioriza o
gesto da arte, que é em si também a repetição e a metamorfose daquele que
cria. Observa o renascimento constante, espelhado nos earth art de Ana
Mendieta , e aqui apresenta a sua sequência de fotografias da série Alvorada.
Dessas ações na casa materna, permanece o cone de terra vegetal sobre a
pedra da capela do convento, e é como um rasto desses gestos arcaicos
inscritos na sua paisagem intima e propostos agora à imaginação de cada um,
como sopros vitais e imateriais.
A propósito citamos Alberto Carneiro no seu Manifesto de uma arte ecológica :
A Arte não está na presença física do bisonte de Altamira, mas sim na posse
do que ele significa.92
A exposição Alvorada, tenta a conjunção das coisas simples a unidade
renovada, ao que parece na companhia da poetisa93, e assim se torna em
poesia...
92
Das notas para um diário entre dezembro .1968e fevereiro de 1972 , Revista de Artes Plásticas 1, outubro de 1973 93
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul Subirás devagar como os ressuscitados Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
86
Texto de Sara Inácio
Nesta exposição estão presentes obras de duas séries: Movimento Maior e
Alvorada. A primeira realizou-se numa residência artística nas Oficinas da
Cerâmica e da Terra, no espaço do Telheiro da Encosta do Castelo, em
Montemor-o-Novo, entre Dezembro de 2015 e Março de 2016 e a segunda
decorreu na Sertã (Beira Baixa), numa aldeia de familiares maternos, entre
Julho e Agosto de 2016. Ambos os locais são em meio rural, fato este que
permitiu um contato aprofundado com a natureza, bem como um espaço e
tempo de meditação, propícios à criação e investigação.
“Arde no incendio de todas as estrelas,
marulha no silêncio de todo o mar,
dança nas volutas de todo o vento,
enraíza-te na fundura de toda a terra,
funde-te no abismo de todo o espaço.”94
Movimento Maior evoca a ordem do universo, quer na sua dimensão invisível e etérea, quer na sua vertente material e manifesta. Evoca também a força motriz subjacente a toda a criação, quer na vida, quer na arte, e que, no dizer de Sophia de Mello de Breyner, Dante designa como “aquele amor que move o sol e os outros astros”. Movimento Maior é a Unidade, a Ordem que engloba complementaridades intemporais: peso/leveza; espírito/matéria; céu/terra; permanente/efémero; particular/universal.
Lanço ao ar o vestido branco. Movimento etéreo, presença alada... Projeto-me
naquele vestido, movo-me, voo com ele. Liberdade, leveza, presença espiritual,
Emergirás confirmada e reunida Espantada e jovem como as estátuas arcaicas Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto Sophia de Mello Breyner
94
BORGES, Paulo – A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido. Sintra: Zéfiro, 2008, p.81.
87
eternidade. No barro, no peso e na densidade da matéria, modelo pregas,
dobras relevos, ancoro o voo.
Alvorada
Esta série resulta de um processo meditativo cuja intenção foi a de criar um
sentimento de unidade com a terra. Trabalhando a terra, elemento físico e
simbólico, cria-se uma ligação com o local, com o planeta, com o cosmos.
Escolho um recanto de terra, à sombra da laranjeira, entre os morangueiros e o
hipericão. Desde há décadas este solo tem sido de cultivo- estrumado,
semeado, plantado, regado. Terra solta, não argilosa, carregada de matéria
orgânica. No chão modelo curvas, ondulações, escavo sulcos com as mãos. É
a primeira vez que esta terra é cavada sem ser para fins agrícolas. É a primeira
vez que, neste lugar, a terra é erguida sem ser para construir uma parede.
Formas feitas ao nascer do sol. Formações na terra. Formas que vou
transformando- uma dá origem à seguinte. Sequência, encadeamento, fluxo de
formas. Ligação com a terra, viagem a espaços internos, sensação extática,
circular, movimentos em espiral. Linhas, quadrantes, divisões – algo celular,
montanhoso, vulcânico. Aliso, espalho, escavo, aplano, arredondo, pressiono,
furo, aperto, calco, agarro, vejo, componho, formo, transformo, edifico,
compacto, contorço, curvo. Detenho-me nos detalhes. Tenho tempo. Renovo-
me a cada forma. Solto a pele antiga como a serpente aqui presente. Escuto o
som da terra. O silêncio do interior da terra - a linguagem do início do tempo.
88
89
C.V.
Sara Inácio
Curriculum Vitae
Nome: Sara Cardoso Inácio
Data de Nascimento: 30/05/1977
Cartão Cidadão: 11036519
Morada: Praceta Gervásio Lobato, nº1, 5ºD, Massamá, 2745-837 QUELUZ
Tm: 960 236 881
Email: [email protected]
Exposições Individuais
2016- Alvorada (curadoria de Virgínia Fróis)- Capela da Faculdade de Belas
Artes, Lisboa
2008- Rumo ao Essencial- Galeria Municipal de Montemor-o-Novo
2004- Constelação- Galeria Vaca no Teto, Montemor-o-Novo
2003- Ciclo Equador (curadoria de Maria do Mar Fazenda)- Galeria Ler
Devagar, Lisboa
2001- No Ponto onde te encontras surge um Lugar- Cisterna do Convento
de S. Francisco, Lisboa
Exposições Coletivas
2016- Bienal Internacional de Cerâmica, Faenza, Itália
2015- FRAGMENTOS, ISEG, Lisboa
2012- ARTE PÚBLICA- um percurso pela Zona Ribeirinha do Montijo,
Montijo
2007- Colectiva de Artes Plásticas, Casa Mantero, Sintra
90
2005- Prémio D. Fernando II, Galeria Casal de S. Domingos, Sintra
2005- Alquimia- Quinta da Regaleira, Sintra
2004- Voar Alto- C.Y.M. Sintra , S. Pedro Sintra
2003- Colectiva de Artes Plásticas- Casa Museo Alfonso Ariza, La Rambla,
Espanha
2002- Algures Lugares, Fábrica da Pólvora, Oeiras
2001- Colectiva de Artes Plásticas, Galeria Municipal de Moura
2001- Colectiva de Artes Plásticas, Galeria Municipal de Mourão
1999- Colectiva de Artes Plásticas, Galeria Municipal de Montemor-o-Novo
1995- Colectiva de Artes Plásticas, Estufa Fria, Lisboa
Obras em Espaços Públicos
2008- A Caminho da Luz- Parque Natural de Sintra (Câmara Municipal de
Sintra), Sintra
2005- Nem só de Pão vive o Homem- Amendoeira da Serra, (Ass. de Defesa
do Património de Mértola e Câmara Municipal de Mértola), Mértola
2003- Comunicação- Quinta do Saldanha, (Câmara Municipal do Montijo),
Montijo
Intervenções Efémeras na Paisagem
2016- Série Alvorada, Sertã, Beira Baixa
2015-Série Movimento Maior- Telheiro da Encosta do Castelo, Montemor o
Novo
2006- Largo por Dentro- Jardim da Casa Mantero, Sintra
2003- Até Aqui- C.E.N.T.A., Vila Velha de Ródão
Residências Artísticas
2015/16- Oficinas da Cerâmica e da Terra, Montemor o Novo
2004- ARTE E NATUREZA- C.E.N.T.A, Vila Velha de Rodão
2003-Beca Alfonso Ariza- La Rambla, Espanha
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Formas de Abril- Monumentos Comemorativos do Distrito de Setúbal (p. 258)
Educação Artística e Mediação Cultural em Museus
2003 até à presente data- Educadora Artística e Mediadora Cultural, Serviço
Educativo do Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
2002 até à presente data- Formadora na área de Escultura Cerâmica,
Nextart- Centro de Formação Artística
2012 a 2013- Professora de Expressão Plástica, EB1 Ribeiro Carvalho,
Cacém
2006 a 2008- Educadora Artística e Mediadora Cultural, Serviço Educativo
do Museu do Oriente, Lisboa
2004 a 2006- Educadora Artística e Mediadora Cultural, Serviço Educativo
do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
2002 a 2004-Formadora na área de Desenho, Nextart- Centro de Formação
Artística
2002 a 2004- Co criadora e dinamizadora dos Workshops de Landart, na
Associaçãode Defesa do Património de Mértola, Mértola e no C.E.N.T.A., Vila
Velha de Rodão
2002 a 2004- Orientadora das Oficinas de Escultura para os utentes da
Unidade de Dia do Dep. Psiquiatria do Hospital S. Francisco Xavier, Lisboa
2004- Orientadora das Oficinas de Escultura para os Sem-Abrigo, Projecto da
Revista Cais, Lisboa
2002- Co-fundadora da Associação Cultural Nextart- Centro de Experiências
Artísticas (actualmente Nextart- Centro de Formação Artística)
Habilitações Académicas
2016/17-Frequenta o Doutoramento em Belas Artes, Faculdade de Belas Artes
da Universidade de Lisboa
2015/16- Frequenta o Mestrado em Estudos de Escultura - Faculdade de Belas
Artes da Universidade de Lisboa
92
2002- Licenciatura em Artes Plásticas- Escultura- Faculdade de Belas Artes-
Univ. Lisboa
2000- Programa Erasmus- Faculdade Belas Artes Atenas, Grécia
Formação Artística Complementar
2013- Oficina de Olaria, pelas escultoras Flávia Santoro e Virgínia Fróis,
Oficinas do Convento, Montemor o Novo
2007-Curso Desenho de Autor , pelos professores convidados: João Queiroz,
Pedro Proença, Gaetan, Jorge Martins, Pedro Souza Vieira, Rui Sanches,
Francisco Tropa; Ar.Co, Lisboa
2007-Curso Vidros e Vidragens na Cerâmica - Ar.Co., Almada
2001- Habitar: Simpósio de Escultura em Terracota- colaboração na
assistência ao escultor peruano César Cornejo
2000- Workshop Técnicas de Fundição em Escultura, pelo escultor Antonio
Sorroche (prof. da Faculdade de Belas Artes de Granada)- Faculdade de Belas
Artes Univ. Lisboa
1999- Workshop Escultura em Terracota, pelo escultor Arnnie Zimmerman-
Oficinas do Convento, Montemor-o-Novo
1998- Aulas de Desenho, pelo escultor Quintino Sebastião, Sociedade
Nacional de Belas Artes de Lisboa (1998)
Formação em Educação e Comunicação
2014-Workshop Speaking for Science (Comunicação em Ciência) , pelo prof.
Malcolm Love, promovido pelo Descobrir-Programa Gulbenkian Educação para
a Cultura e Ciência, Fundação Calouste Gulbenkian
2014- Workshop de Análise Transacional (Communication and Teaching
Strategies with Models of Transactional Analysis), pela Dr Sylvia Schachner
2012- Curso Formação Inicial de Formadores, pela Eforgest
2009- Curso Livre Educação e Museus: Desenhar Espaços Criativos para o
Diálogo e a Aprendizagem, por Rita Navarro e Sara Barriga, promovido pelo
Descobrir-Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência, Fundação
Calouste Gulbenkian