63

Terra sen mal helen clastres

  • Upload
    yazmud

  • View
    281

  • Download
    5

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Gente sem fe" - disseram dos tupis os seus primeiros obser- vadores. "Teologos da America do Sui", escrevia-se recentemente a respeito dos guaranis. Quatro seculos de historia separam esses dois juizos opostos: a conquista e, para os guaranis, cento e cinqiienta anos de vida nas "redu~oes" dos jesuitas. Nao existe nenhuma medl- da comum, aparentemente, entre os povos rao despreocupados com 0 sagrado que os cronistas nos descreveram e os misticos que saohoje os guaranis. Se corrsiderassemos isoladamente esses dois momentos da sua hisroria, pareceria rao marcado 0 contraste que quase poderia- mos perguntar se se trata da mesma cultura.

Citation preview

Page 1: Terra sen mal helen clastres
Page 2: Terra sen mal helen clastres

, ,

r

TERRA SEM MAL

!

Page 3: Terra sen mal helen clastres

Ensaios de Almanaque

,

1

helene clastres

TERRA SEM MALTradul'ao: Renato Janine Ribeiro

Deeillora brasillense

1978, ~: .'

,'. " "

I

Page 4: Terra sen mal helen clastres

Revisao:Maria Alayde Carvalho

Capa,desenho guarani. represenlando dourado. pacucom borbolela. ema e martim·pescador; diagramacaode Ci<;a Fitlipaldi.

Titulo do original em frances:"LA TERRE SANS MAL"(c) Editions du Seuill975

Qeditora .rasillense soc. an.

COLt:'CA.o1042 - ru~ bario de ita~tininga. 93- U sao paulo - brasil

O,;,CAil AC:}]10

,

, .SUmarlO

Nota sobre a grafta dos termos guaranisIntrodu<;ao

I - Povos sem superstil'oesII - Paj.s e Caralbas

III - 0 discurso dos profetas e seus efeitosIV - "Kandire"V - Iuslil'a do Homem

VI - As ultimas geral'0esConcluslio: 0 ProfelismoPalavras relativas ao esqueleto do bastao insigniaPalavras dos ultimos dentre os eleitos

78

1434548592

109113117120

I

Page 5: Terra sen mal helen clastres

NOTA SaBRE A GRAFIA DOSTERMOS GUARANIS

Mantivemos, na tradu,iio brasileira, a gratia dos termos guara­nis seguida por Helene Clastres e que e adotada por muitos estudiososdo idioma. 0 leitor estranhani que certos nomes com os quais esUi fa­miliarizado venham grafados de outra maneira: e 0 caso, por exem­plo, de Ana, que melhor conbecemos como Anhanga. Duas observa­,oes, portanto, impoem-se:

1- A gratia utilizada vem-nos do Espanhol, ou melhor, do Para­guai; e portanto compreensivel que procure reduzir os sons guaranisaos da lingua castelhana. Assim, emprega fi onde utilizariamos 0 .lOS­

so nh: Nanderu, Nandesy, por. exemplo.2- Estamos mais familiarizados com os nomes tupis (e devemos

acrescentar: dos seculos da colonia), enquanto a autora - ao abordaros fenomenos da lingua - examina principalmente os guaranis. Ocor­rem, portanto, divergencias de pronimcia, representa,iio e lexica:como, por exemplo, a freqiiente queda da silaba tinal, transformandoo tupi poranga no guarani porii, ou 0 Anhangd tupi no Afiii guarani.

Assinalamos, para certas ·palavras, 0 equivalente usual em Portu­gues: taia,u e caititu, por exemplo, para os termos guaranis tajasu etaytetu. E s6 num caso nos permitimos recorrer a forma vernaculacorrente, em vez da gratia recomendada pela autora: escrevemos Tu­pii, ja que outra escrita discordaria demais dos nossos usos.

Para um estudo mais pormenorizado de lingiiistica comparada doTupi e do Guarani, seria conveniente 0 leitor refeTir-se ao livro deFrederico G. Edelweiss, Tupis e Guaranis, estudos de Etnonimia eLingiifstica, Publica,oes do Museu da Bahia n~ 7, Secretaria da Edu­ca,iio e Saude, Salvador, 1947.

o Tradutor

I

j

Page 6: Terra sen mal helen clastres

TERRA SEM MAL 9

INTRODU<;Ao

"Gente sem fe" - disseram dos tupis os seus primeiros obser­vadores. "Teologos da America do Sui", escrevia-se recentemente arespeito dos guaranis. Quatro seculos de historia separam esses doisjuizos opostos: a conquista e, para os guaranis, cento e cinqiientaanos de vida nas "redu~oes" dos jesuitas. Nao existe nenhuma medl­da comum, aparentemente, entre os povos rao despreocupados com 0

sagrado que os cronistas nos descreveram e os misticos que saohojeos guaranis. Se corrsiderassemos isoladamente esses dois momentosda sua hisroria, pareceria rao marcado 0 contraste que quase poderia­mos perguntar se se trata da mesma cultura. Sera 0 caso de dizer quea conquista e a coloniza~ao subseqiiente introduziram uma rupturadefinitiva, a ponto de tornar impossivel - para entender 0 que os gua­ranis dizem hoje - que se recomponham os fios da sua tradi¢o?

No sOculo XVI, os tupis-guaranis distribuiam-se por uma area geo­grafica muito vasta. Os tupis ocupavam a parte media e inferior dabacia do Amazonas e dos principais afluentes da margem direita. Do­rninavam uma grande extensao do litoral atlantico, da embocadura doAmazonas are Cananeia. as guaranis ocupavam a por~ao do litoralcompreendida entre Cananeia e 0 Rio Grande do SuI; a partir dai, es­tendiam-se para 0 interior are aos rios Parana, Uruguai e Paraguai.Da confluencia entre 0 Paraguai e 0 Parana, as aldeias indigenas dis­tribuiam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelasduas margens do Parana. Seu territorio era limitado ao norte pelo rioTiere, a oeste pelo rio Paraguai. Mais adiante, separado deste blocopelo Chaco, vivia outro povo guarani, os chiriguanos, junto as fron­teiras do Imperio Inca.

De todas estas sociedades, as do litoral sao de longe as mais conhe­cidas. Do seculo XVI, viajantes e missionarios, testemurrhas de urnacultura enrao intata, deixaram-nos descri~oes - algumas delas no­taveis. Como a de Jean de LOry: e em 1555 que 0 discipulo de Calvi­no empreende a viagem ao Brasil. Nessa data, urn cavaleiro de Malta,

Villegaignon, havia fundado uma modesta colonia na baia do Rio deJaneiro: atraira a "Fran~a Antartica" pastores huguenotes e 0 proprioLOry (enrao estudante de Teologia), mediante a prome"a de ~ue 0

culto reformado poderia ser praticado livremenie. Sabe-se " que acon­teceu·. E um ano antes de LOry que 0 cosmogra:fo do rei, Andre The­vet, antigo frade franciscano, visita os tupinambis. Tambem ele Jedel¢m na regiao do Rio de Janeiro e depois - talvez na mesma via­gem, ou quem sabe numa segunda vez - visita igualmente tribos tupissituadas muito mais ao norte. Dez anos antes, em 1545, tambem foientre os tupinambas da regiao do Rio que um aventureiro alemao,Hans Staden, residiu varios meses, mas contra a sua vontade, ja queera prisioneiro dos indios. A Verfdica Hisl6ria I da sua aventura, re­pleta de observa~oes ingenuas sobre os costumes dos tupinambas, e

(um documento precioso. Aos relatos de todos esseS viajantes, juntam­-se os dos missionarios. as primeiros jesuitas chegam ao Brasil em

, 1549. Como evangelizar e seu obj~tivo, deslocam-se sem parar: por, isso, seus testemunhos referem-se a todos os grupos enrao acessiveis

do litoral.As socledades do litaral, primeiras a entrar em cantata com os eu­

ropeus, tambem sao as primeiras a desaparecer: bem no come~o doseculo XVIII, ja nao subsiste uma imica tribo tupi em toda a .faixacosteira.

a destine dos guaranis ja e diferente. A penetra~ao europeia na suaregiao come~a no primeiro te~o do seculo XVI, muito local e incertadurante as primeiras decadas. Assun~ao, fundada em 1537, e apenasum pequeno fortim. as primeiros jesuitas chegam a Assun~ao emI588 e visitam a provincia do Guaira: nessa epoca, a evangeliza~ao

est! reduzida a sua mais simples expressao. Os missiomirios nao sepreocupam em residir entre os indios: basta-Ihes atravessar as aldeias,batizando .is pressas milhares de pessoas. E somente no com~o doseculo XVII que as missoes come~am a implantar-se. Em 1609,0 reide Espanha, a pedido de Hernandarias de Saavedra, enrao governadordo Paraguai, concede a Companhia de Jesus 0 direito de empreendera conquista espiritual dos cento e cinqiienta mil guaranis do Guaira.No ano seguinte, dois jesuitas, padres Jose Cataldino e Simon Mace­ta, conseguem reunir algumas centenas de "selvagens" na primeira"redu~ao". a padre Antonio Ruiz de !\1ontoya, 0 mais ilustre evange­lista dos guaranis, fundara onze redu~oes entre 1622 e 1629.

Foi assim que se inaugurou uma realizac;ao surpreendente: 0 queviria a ser chamado o "reino de Deus na Terra", a "republica cornu­nista catolica" ou, mais simplesmente, 0 "Estado jesuitico do Para­guai". Durante mais de um seculo e meio (are 1768, data da expulsaodos jesuitas), as trinta cidades desse Estado prospero e praticamenteauronomo (sornente 0 papae 0 rei de Espanha tinham autoridade so-

Page 7: Terra sen mal helen clastres

10 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL II

bre ele) iriam isolar os guaranis - mais de duzentos mil indios - domundo colonial espanhol. Com a partida dos jesuitas, a dire,ao dasmissaes foi conliada aos franciscanos, controlados por administrado­res: as antigas redu,aes logo foram invadidas pelos colonos e niio tar­dOll para que 0 sistema econamico coletivista estabelecido pelos jesu­itas se transformasse Dum impiedoso sistema de explorac;ao. A os mi­lhares. as guaranis abandonaram as missoes, indo 0 rnais das vezesinstalar-se nas aldeias espanholas. Trinta anos apos a expulsao. me­nos da metade dos indios vivia ainda nas redu,aes. Mais tarde, vanasguerras acabaram de arruinar 0 que restara das cidades. as guaranisque escaparam de tais massacres se estabeleceram em pequenas al­deias, no Guaini. nao longe do sitio das antigas redu,aes. Mas. em1848, 0 ditador Carlos Antonio Lopez obrigou esses indios (cerca deseis mil) a abandonar as suas aldeias para irem viver nas dos para­guaio.s. Foi esta. resumida em suas linhas gerais, a historia pos-co­lomblana dos guaranis: protegidos durante mais de cento e cinqiientaanos da domina,ao dos colonos. posteriormente eles se fundirampouco a pouco, na popula,ao paraguaia. '

Contudo. certo ntimero de tribos guaranis tinham escapado dos je­SUltas e dos colaDas e conservaram a sua autonomia, porque se esta­beleceram num territorio que durante muito tempo permaneceu ina­cessiveL dai a denomina,ao de caaiguas ou cainguas (= gente da flo­resta) que Ihes foiatribuida. Por volta de 1800, os cainguas viviamnas nascentes do rio Iguatemi, estendendo-se para 0 norte are a cordi­Iheira de San Jose, perto das nascentes do Ypane. Descendem dosca~nguas, provavelmente, os tres grupos guaranis - rubia, chiripa epalm - que vivem no Paraguai de hoje. Seu ntimero total certamentenao e superior a tres mil. as mbias vivem, dispersos em pequenas al­deias, no atual departamento do Guaira, entre Yuty ao suI e San Joa­quin ao norte. as chiripas estabeleceram suas aldeias ao norte de SanJoaqui.;; os mais afastados sao os pains, ainda mais ao norte. pertodo rio Parana. No comeco deste seculo, eles ocupavam uma regiaomais vasta~ e tambeffi se encontravam varios grupos de cainguas noBrasil, entre eles os apapocuvas, estudados por Nimuendaju. Se Ni­muendaju estimava - em 1912 - 0 conjunto dos cainguas brasileirospor volta de tres mil, hoje estes praticamente desapareceram.

De maneiras diferentes, mas todas inexoravelmente, as Ires comu­nidades guaranis do Paraguai se desagregaram: perderam sua autono~

mia politica (alem do "dirigente religioso", sao cheliadas por urncapitan, que geralmente e imposto pelas autoridades paraguaiasJ eecon6mica (e verdade que os guaranis ainda cultivam suas propriasterras "queimadas", perto das aldeias, mas ja sao numerosos os quetrabalham para os paraguaios). Enquanto os mbias conservam sualingua, os chiripas hoje falam apenas 0 guarani paraguaio. Em suma,

,"

1

as ~omunidades guaranis estio condenadas a curto prazo: ate hoje,porem, todas elas conservaram uma tradi~ao religiosa original com 0

maior empenho, porque nela, e so nela, entraram ao mesmo tempo arazao e 0 meio de resistirem ao mundo dos brancos. Todos os etn610­gos que, desde Nimuendaju. estudaram os guaranis saO unanimes emressaltar a impormncia conferida pelos indios a vida religiosa. Veja­-~e: por exemp~o. 0 que diz a esse respeito Egon Schaden: "Na super­flcle da terra nao ha, por certo. povo ou tribo a qtre melhor se apliquedo que ao guarani a palavra evangelica: 0 meu reino mio e des/emundo. Toda a vida mental do guarani converge para 0 Alem. "2 SaOteologos, portanto. Ai esUi 0 problema. Como conciliar essas observa­caes recentes - e. sem a menor dtivida, indiscutiveis - com 0 quadroque os .cronistas nos deixaram dos guaranis e dos tupis?

Parece impor-se uma explicac;ao: a intluencia do cristianismo esta­ria na origem desse desabrochamento da vida religiosa, pouco impor­tando que tal intluencia date do tempo das "reducaes" ou seja poste­rior a elas. Dessa forma, J. Vellard, ao comentar algumas rezasmbias. efetua uma discriminac;ao entre as que. a seu veT, sao evicten­temente indigenas - por serem pobres e estereotipadas - e as que con­sidera belas e de espiritualidade elevada, que por essa razao atribuiaos jesuitas, e teriam sido conservadas pela tradicao oral dos mbias.3Deixemos 0 pressuposto de lado, para so considerar a hipotese queentra em jogo: os mbias seriam, portanto, os descendentes dos guara­nis que viveram. antigamente, nas redu,aes. Nada e menos certo do'lue isso. Tal nao e. por exemplo, a opiniao de Leon Cadogan: depois lde longas pesquisas, este autor descobriu que os mbias descendem dos !"selvagens" do Mba'e Vera de que fala Dobrizhotfer na sua His/oriade Abiponibus e que, segundo 0 testemunho deste padre. viti mas das­perseguicaes dos espanhois, acabavam justamente de pedir ajuda eprote,ao aos jesuitas, quando estes foram expulsos;4 de modo que osmbia~ mal tiveram a possibilidade de' viver nas missOes. Sabe-se,alias, mais ou menos que lim levou a maior parte dos guaranis queviviam nas redu,aes: acabaram se misturando com a popula¢o decolonos, que so esperava a partida dos jesuitas para tomar conta doGuaira. A rigor, seria possivel admitir que alguns grupos tenham re­tornado seu antigo modo de vida - mas, ainda ilssim, sob a condi¢ode pressupor que tais grupos problematicos tivessem mudado para asmissaes, por sua propria iniciativa. pouco tempo antes da destrui,aodestas. Com efeito, esquece~se com demasiada freqiiencia a transfor­macao radical da sociedade tradicional, provocada pela nova ordemque os jesuitas impuseram: a forma da aldeia e das casas, as ativida­des cotidianas, a economia, 0 sistema de parentesco, as rela,aes inter­tribais... tudo isso foi transformado. Sobre as ruinas da sociedade an­tiga, edilicou-se uma sociedade de tipo inteiramente diferente e que ja

Page 8: Terra sen mal helen clastres

12 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 13

estava praticamente instalada por volta de 1660. Torna-se secundariaa questio. tantas vezes discutida. de saber se os padres fizeram dosguaranis cristlos autenticos, au so obtiveram uma conversao secun­daria, haviam-Ihes imposto condic;aes tais de existencia. que e berndificil acreditar que as guaranis fossem capazes, ap6s urn seculo. deregressar simplesmente a floresta. Econtudo 0 que afirma Egon Scha­den. cuja principal preocupac;ao e decifrar. no discurso dos guaranisde hoje. a marca do cristianismo, "1a em virtude de diferenciac;aesanteriores a chegacta do europeu, a cultura guarani, peto isolamentodos diferentes subgrupos da tribo. possuia apenas relativa uniform i­dade no tocame a lingua. a religiao. a tradic;ao mitica e a outros seto­res da cultura. A diferenciac;ao se foi acentuando muito nos temposcoloniais. quando parle da populac;ao foi submetida. durante rnais deurn seculo. a tutela jesuitica, retornando, algum tempo apos a expul­sao dos 'missiomi.rio~. a suas primitivas condi~6es de existencia. "5

A segunda parte dessa asserc;ao nao pode deixar de colocar algunsproblemas. Mas. 0 que pensar da primeir.' E por que Schaden preci­sa alegar. contra todos as antigos testemunhos. diferenciac;aes ante­riores a conquista" Talvez para fundamentar melhor (fazendo da apti­dao a mudanc;a uma dimensao da cultura guarani) as explicac;aes queprop6e da religiao atual. atraves do sincretismo; au para dar conta dadistinc;ao que estabelece entre os mbias do Paraguai que. diz ele. "pa­recem haver conservado suas lradi90es na sua pureza original" e to­des as demais grupos guaranis. cujo "mais superficial exame mostraque assimilaram uma serie de elementos cristios".6 Contudo. nao pa­recem tio grandes as diferenc;as culturais entre os subgrupos guara­nis estudados desde 0 comec;o do secuh basta comparar. por exem­plo. as danc;as. os ritos de atribuic;ao de nome. 0 grande mito dosgemeos... entre as chiripas, os mbias e os apapocuvas. Ao contrario:silo notavelmente homogeneos. A diferenc;a alegada reside. entio. namaior ou menor assimilal;ao de elementos cristaos? Mas nem sempree facil identificar tais elementos e em todo caso e necessaria uma a­nalisemenos superficial para avaliar a sua impormncia e significado:Nimuendaju observava. por exemplo. que 0 "cristianismo" dos apa­pocuvas era so de fachada. Como decidir') Siilcretismo. ou "purezaoriginal"'! A priori, nem urn nem outro parece-nos convincente. de­vido aos pressupostos teoricos que introduzem: 0 prirneiro, porquepressupae que 0 pensamento religioso dos indios apresenta tao poucacoerencia que pode admitir quaisquer elementos estrangeiros: 0 se­gundo. porque pressupae que 0 discurso religioso (discurso sobre 0

homem e 0 mundo - e tambem discurso de uma sociedade sobre simesma) pode permanecer imutrivel ao mudar a sociedade . Finalmen­teo ambos procedem do mesmo enfoque da historia dessas culturas,pelo avesso. reconstruindo 0 passado dos tupis-guaranis a partir do

I

que hoje se sabe, ou se acredita saber, acerca da sua religiao.Propor 0 problema nesses termos acaba por esquiva-Io. porque

consiste em ja pressupor a sua soluc;ao. Por isso, devemos mudar deotica, assumimos a postura inversa e optamos por retomar a historiaa partir dos seus primordios. Para isso. dispunhamos de urn fio con­dutor os guaranis falam hoje da "Terra sem Mal" - ora. trata-se deum tema muito antigo. cuja presenC;a ja era atestada no seculo XVIentre todos os tupis-guaranis. Nossa primeira tarefa e, portanto. ten­tar compreender que significac;ao ele tinha naquele momento, inseri­do num contexto historico e cultural que nao era 0 de hoje. Naqueletempo. as sociedades tupis-guaranis eram fortes e livres: hoje. elasestio morrendo, nos 0 sabemos: mas tambem os indios 0 sabem e di­zem. Mas. antes disso. qual podia ser 0 seu discurso? E 0 que deve­mos tentar descobrir, talvez seja possivel entender de outra maneiraas belas palavras que hoje dizem os guaranis e saber se 0 discurso queproferem e seu ou nao. se mudou e de que maneira. Nada nos obriga.afinal de contas. a endossar as .afirmac;6es dos antigos cronistas e aconferir as suas opinioes 0 mesrno credito que as suas afirmal;oes: re­lendo-os, veremos que nos disseram, sem 0 querer. 0 essencial sobrea religiao indigena.

Notas

(I) Para as citae6es do texto de Hans Staden, recorremos, das varias tradw;oes daWahrhaf/ige His/oria existentes em Portugues, a de Guiomar de Carvalho Franco(1941), sob 0 titulo Duas Viagens ao Brasil. Segunda edil;3o em 1974, pelas Edito­ras Itatiaia e da Universidade de Sao Paulo, Belo Horizonte e Sao Paulo. (N. do T.)

(2) Egon Schaden, "0 Estudo do indio Brasileiro ontem e hoje," in America In-d/gella, vol. XIV, n? 3, 1954, Cidade do Mexico, pags. 233-252.

(3) "Texles Mbiwha recueillis en Paraguay," JSAP, 1937.(4) L. Cadogan, "Ywyra fie'ery," in Supp/emen/o An/rop%gieo de /a Revis/a del

Ateneo Paraguayo.(5) Egon Schaden, AspeclOs FUfldamellfais da CIt/fura Guaral/i, 3~ edil;3o. Editora

Pedagogica e Universiui.ria, Editora da Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 1974,pag. I I.(6) Egon Schaden. prefacio ao livro de Cadogan, AYI'II Rapyra.

J

Page 9: Terra sen mal helen clastres

TERRA SEM MAL 15

capitulo I

POVOS SEM SUPERSTI<;OES

Quem se refere ao testemunho dos cronistas sobre as crencasdos antigos tupis-guaranis fica impressionado com a convergencia dosseus dizeres, uminiJ1les num ponto preciso, os gentios de "alem" niiotinham "supersticoes . as primeiros relatos a nos fornecerem umadocumentaciio algo pormenorizada sobre estas nac6es ilmerindias, osrelatos dos jesuitas, que cedo vieram a terra brasileira estabelecer assuas missoes, dizem-nos que eram os tupis gente ignorante de tadadivindade, sem adorar nenhum idolo, sem em nada reconhecer a di­mensiio do sagrado, agindo em tudo segundo 0 seu bel-prazer, semque nenhuma obrigaciio ritual viesse ordenar a sua atividade cotidia­na nem ritmar 0 seu tempo. "E gente (os tupis do norte) que nenhumconhecimento tern de Deus, nem idolos." 1 a minimo que certamentese pode dizer sobre' esta apreciaciio do padre Manuel da Nobrega e serapressada, niio fazia mais de quinze dias que 0 missionario chegaraentre os tupis quando a escreveu. Mas,quatro meses mais tarde, bernpouco modificou sua opiniiio: "Esta gentilidade a nenhuma coisa 000­ra (trata-se agora dos tupinambas), nem conhecem a Deus; somenteaos trovoes chamam de Tupii, que e como dizer coisa divina."2 Eminima a diferenca: quando muito, ele concede-Ihes agora uma vaganociio do sagrado. Entre os tupis, por conseguinte, nem ha crenca,nem praticas religiosas; nem fe, nem lei, estritamente.

Depois do padre Manuel da Nobrega e dos primeiros missionarios,todos os viajantes que visitaram as indios corroboraram esta afrrma­ciio: niio somente eles niio tinham conhecimento algum do deus ver­dadeiro - 0 que, tratando-se de selvagens, a ninguem surpreendia ­mas tampouco tinham falsas crencas. Esse traco notavel das nacoestupis-guaranis espanta - ainda que anime. pelo menos, os missio­narios: sua tarefa de evangelizaciio ve-se simplificada, por niio teremde combater crencas ja estabelecidas. Rebeldes a ideia corrente sobre 0

que deviam ser os pagiios - adoradores de divindades multiplas e pra-

ticantes de cultos idolatras - esses indios em nada acreditavam, naoadoravam astros, nem animais, nem plantas. oem contando com' pa­dres ou lugares sac~os. Sao. precisamente, sem "supersti<;oes": semnada em que se mamfestasse uma preocupaciio qualquer com 0 sobre­natur~l. Em suma, estavam ate mesmo aquem do paganismo e a di­mens."o rehglOsa pareclll faltarcompletamente a sua cultura. Esse fa­to. nao resta a menor duvida, tinha que surpreender. Alias, motivosde espanto para os cristaos era 0 que niio faltava entre os guaranis:como podenam aqueles compreender, com efeito, que gente, dona deuma hngua cUja nqueza, harmonia e complexidade todos admiravamsem reserva, dotada de suficiente raziio natural para estabelecer Umaordem social que distinguia cuidadosamente os nobres dos plebeus ]pudesse, ao mesmo tempo, viver sem fe nenhuma, praticar a polig~­fila,. guerrear s~m descanso e, 0 cumulo, comerem-se lins aos outros?

Cltemos aqUl alguns textos sobre os tupinambas: "Por mais quee~sa ~ente.nca de Cicero, a saber, que niio hii povo tao bruto, nem na­cao tao barbara e selvagem, que niio tenha 0 sentimento da existenciade. alguma divindade, seja aceita por todos como maxima indubitavel:contudo, quando eu considero de perto os nossos tupinambas4 da A­menca, vejo:me absolutamente impedido de aplicii-la a seu respeito.POlS, em pnmerro lugar, alem de nenhum conhecimento terem doverdadetro Deus, estao aquem de todos os antigos pagiios, que tive­ram a pluraMade dos deuses, e dos idolatras de hoje, e ate mesmodos mdlos do Peru... eles nao confessam, nem adoram nenhum deus'celeste ou terrestre: e, por conseguinte, niio tendo nenhum ritual oulugar_determinado de reuniiio para a pratica de algum servico religio­so, na? oram em forma de religiiio. quer em publico, quer em priva­d,:" COlsa nenhuma que seja."S E 0 autor vai lamentar, dai a algumaspagmas, a sorte .dessa "pobre gente" que vive "como besta bruta"sem a me~or fe. Se preferimos comecar citando - tao longamente :Jean de Lery, e por ele exprimir de maneira admiravel a opiniiio ge­ral. Lery. contudo, dlficdmente poderia ser suspeito de etnocentris­mo. Seu relata e cabal, niio ha vestigio algum, entre os tupinambas,de crencas em dlvmdades quaisquer, nenhum indicio concreto, gesto,objeto ou ntu:,l, que permIta supor a existencia de preocupacoes reli­glOsas, por mlmmas que sejam. Mais ainda. pelo que parece sugerir 0

autor, tais quest6es eram tao profundamente estranhas aos indiosque.. quando ouviam_ os brancos expondo a teologia destes, nada maissablllm expnmlr a nao ser uma profundissima estupefaciio: atitude re­veladora, sugere-se, de que nada existia na sua propria cultura quepudesse corresponder a urn tal discurso. as cronistas encontravamllf~~o boas. raz~es para se mostrarem surpresos: que cultura pode sertao pou5Xl mqUleta ~ respeito de simesma, a ponto de niio incluir estadlmensao de negativldade que uma religiiio traduz?

Page 10: Terra sen mal helen clastres

'6 HELENE CLASTRESTERRA SEM MAL 17

Mas prossigamos na leitura: Claude d'Abbeville: "Embora os in­dionupinambas tenham urn juizo natural bastante bela, nunca s~ v~u

na<;ao mais rebelde ao servi<;o de Deus do que eles. Que ~ovo ha taoselvagem sob 0 ceu e que na<;ao existe tao barbara, que nao tenha lI­do se nao a verdadeira religiao, pelo menos, a sombra daquela, umava'superslI9!io? ... Nao creio que haja penhumana<;ao no mund,:, semalguma especie de religiao, exceto os IndioS tupInambas, que ate hOJenao adoraram a Deus algum, nem celeste, nem terrestre, nem de ou­ro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhumaoutra coisa que seja."6 Mesma observa<;ao e mesmo espanto que 0 deLery: gente que nem sequer e paga. Egipcios, caldeus, persas, gregos,romanos, etc., todos tiveram os seus falsos deuses: em vao se percor­reria toda a Hist6ria, a procura de uma unica na<;ao completamentefalta de religiao. Unica exc~ao a esta regra geral: os tupis que, peloque nos dizem, ignoravam 0 que pudesse ser uma prece ou urn OflCIOdivino e para quem se equivaliam todos os dias; tao pouco solenesuns quanto os outros.

Contudo - acrescenta 0 autor - eles tern algum conhecimento deurn deus verdadeiro, a quem chamam Tupa. Observemos aqui urnprimeiro desacordo: pois, quanta a esta ultima afirma<;ao, e bern dife­rente 0 testemunho de Lery, a nos declarar que foram os brancos, eleproprio e seus companheiros, que, pretextando 0 medo manifestadopelos tupinambas ao ouvirem 0 trovao - tupa - pretender~ fosseeste 0 deus de quem Ihes falavam. " ... Quando ouvem 0 trovao, quechamam de Tupa, ficam muito aterrorizados: se, valendo-nos do seuestado rude, aproveicivamos esta ocasiao particular para Ihes dlzerque era este 0 Deus de quem lhes falavamos, 0 qual, para mostrar asua grandeza e poderio. assim [azia _tremer Cell e te~ra: a _sua r~olu~<;ao e resposta era que, se os aterrorizava desta manelra, nao valIa na­da.") Que os habitantes da "Ilha dos Franceses" tenham sido os pn­meiros a promover esta acepc;ao do terma indigen,a tupa e~erta~ente

inexato: textos anteriores a viagem dos companhelros de Vlllegaignonja a mencionam. E 0 caso da carta, ja citada, do padre Manuel daNobrega: ..... aos trov6es chamam de Tupa, que e como dlzer COlsadivina. E assim nos nao temos Dutro vocabulo malS convemente. paratraze-Ios ao conhecimento de Deus, do que chamar-lhe Pai Tupa."X

Tal foi a sorte que coube a Tupa: sabe-se como os missionarios 0

empregaram em seus catecismos para designar 0 deus cristao e ~on:o,

a longo prazo, acabou tomando este ultimo sentido para os propnosindios. Na mesma epoca de Lery, urn texto de Thevet parece confir­mar que Tupa foj uma invenc;ao crista e que as tupis n,ao 0, conf~n­diam com sua propria no<;ao de I upd (= trovao): "por lSSO e preCISOsaber que eles confessam que ha urn Deus do ceu ... Nao rezam a ele.nem 0 veneram de forma alguma e dizem que e 0 Deu~ dos (rtq~\{)S

e faz 0 bern para os cristaos e nao para eles. Eles chamam Deus deTupa e nao acreditam em absoluto que ele tenha 0 poder de fazerchover, trovoar ou vir 0 born tempo, nem sequer de lhes trazer frutoalgum."9 Contudo, alguns autores, seguindo Nobrega - e contra­riando Lery - dao a entender que Tupa ja era uma divindade dos in­dios e are mesmo 0 seu unico deus: os tupis teriam portanto algumaluz natural dele, embora nao the prestassem culto algum.

Yves d'Evreux fala, assim, da "cren<;a natural que eles sempre tive­ram em Deus, nos Espiritos e na Imortalidade da Alma.", 0 Esclare­<;amos, porem, que sua afirma<;ao funda-se mais na prova cosmologi­ca da exisrencia de Deus enos escritos dos gregos e dos latinos 1I doque na observa<;ao dos selvagens. Esclare<;amos ainda que as viagensdos capuchinhos Claude d'Abbeville e Yves d'Evreux sao de urn secu­10 posteriores a de Lery, de mais de sessenta anos a de Nobrega e dosprimeiros jesuitas: 0 ensinamento dos brancos tivera tempo para va­rar 0 seu caminho. Para convencer-se disso, basta leT certa discussaosobre a natureza de Deus, 12 em que a argumenta<;ao atribuida. porYves d'Evreux ao seu interlocutor indigena e a de urn homem que sediria quase treinado em debates teologicos: Tupa nao poderia ser ho­mem, por estar em toda parte ao mesmo tempo: Tupa nao poderiaser homem, ja que criou tudo; se fosse homem, seria necessaria queoutro homem 0 tivesse gerado: Tupa e invisivel, etc. Isto basta paranos deixar perplexos quanto a origem "natural" - india - detal cren<;a, Voltaremos a questio de Tupa que, de CLlmum acordo, osetnologos (como Metraux) relegaram, talvez dcpressa demais, a urnpapel secundario, cedendo sem duvida a impressao deixada por teste­munhos tao contraditorios como os que acabamos de citar. Yvesd'Evreux, por sua vez, conclui da maneira seguinte: "Esta e a cren<;aem Deus que esses selvagens sempre tiveram naturalmente impressaem seu espirito, sem 0 reconhecerem atraves de nenhuma especie dereza ou sacrificio." 1.1 Tambem ele, portanto, nota a ausencia de todapratica religiosa entre os indios, a sua despreocupa<;ao acerca da di­vindade. Finalmente, para concluirmos a respeito dos tupinambas, ci­temos urn ultimo texto, agora do missionario jesuita Fernao Cardim:"Este gentio nao tern conhecimento algum de seu Criador, nem decousa do Ceu, nem se ha pena nem gloria depois da vida, e portantonao tern adora<;ao nenhuma nem cerimonias, ou culto divino, mas sa­bern que tern alma e que esta nao morre ... e tern grande medo do de­monio, ao qual chamam Curupira ... [mas] nao 0 adoram, nem a al­guma outra criatura, nem rem idolos de nenhuma sorte." 14

Seria possivel multiplicar ainda mais as cita<;6es: todas concordam.As mais radicais tornam os indios perfeitos ateus. As outras, queconsentem em creditar-Ihes algum conhecimento do sagrado, veemneles a imagem da inocencia: e 0 born selvagem, de juizo reto, ainda

Page 11: Terra sen mal helen clastres

18 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 19

mio pervertido peto monturo de supersti'Yoes obscuras: em suma, asmissionarios chegavam no momento exato para fecundar estas almasvirgens. Mas, de relig iao autoctone, nenhum indicio.

Nessa perspectiva, dois relatos talvez mere<;am lugar it parte. Pri­meiro. 0 de Thevet. tantas vezes ir6nico; [oi ele 0 unico a nos retrans­mitir pelo menos uma parte da mitologia dos tupinambas, emboranao hesite em zombar dos indios em cada ocasiao. Pois para ele e cla­ossimo que nada, nesses contos extravagantes, pode assemelhar-se acren<;as religiosas. Seu juizo sobre 0 livro de Lery permite avaliarbern a medida do seu pensamento: "E aqui que eu devo zombar 00­quele que foi tao temerario, a ponto de vangloriar-se de haver escritourn livro sobre a religiao desses selvagens. Fosse ele 0 unico a haverestado naqueles paises, facilmente me faria acreditar no que quisesse;mas sei, por certo, que este povo e sem religiao, sem livros, sem exer­cicio de adora<;ao e conhecimento das coisas divinas." 15 Aprecia<;aoainda mais injusta, porquanto Lery, dessa vez pelo menos, concordacom a opiniao dele. A despeito desse pressuposto etnocentrista, ficaque a Thevet se deve 0 nosso conhecimento da mitologia tupinamba:teremos de nos referir cons'tantemente a esse autor.

Outro relato, 0 de Hans Staden, tern pelo menos 0 merito, relativa­mente aos demais, de designar como religioso 0 que efetivamente 0

era: "Os selvagens creem numa cousa que cresce como uma abObo­ra." 16 Pouco comprometido com a escolastica - Staden, ao con­tnirio dos Qutros cronistas, naD era praticamente urn hornem cultiva­do - nao procura a religiao onde os demais se empenham em desco­bri-Ia e aponta, com sua ingenua observa<;ao, para seu verdadeiro lu­gar, sem contudo suspeitar da profundidade real do contexto religiosoque sustentava 0 "culto" dos maracds. Nao eque Staden tenha sido 0unico a perceber este fenomeno; todos os cronistas 0 conheceram edeixaram- numerosas descriyoes suas; reCllsaram-se, todavia. avernisso fatos de ordem religiosa. Ao mesmo tempo, sendo impensavelque os indios nao tivessem pelo menos algumas cren<;as (ja que naotinham cultos), so restava aos cronistas 0 recurso de apresentar a cul­tura tupi como urn conjunto em que estivesse marcado, em baixo-re­levo, 0 lugar de uma religiao monoteista. Dai as l1utua<;oes de cadatestemunho e as dificuldades que surgem para quem pretende estudara religiao tupi-guarani: elas obrigam a uma leitura critica dos textos,analoga a que pode fazer 0 historiador.

[sso basta quanto aos tupis da costa brasileira. No que diz respeitoaos guaranis do Paraguai. nossas referencias senio menos numerosas.Com efeito, a documenta<;ao sobre essa parte da America e muitomenos rica do que a relativa ao Brasil. Limita-se praticamente aos je­suitas - del Techo, Montoya, Charlevoix, Lozano. para citar apenasos mais impor~ntes, cujos escritos se repetem, literalmente as vezes,

e que, no conjunto, mostram-se menos preocupados em descrever oscostumes dos indigenas do que em narrar com pormenores os pro­gressos da evangeliza<;ao. Nada· ha, aqui, de comparavel aos grande"cronistas do BrasiL de modo que nosso conhecimento dos guaranisdos primeiros tempos da conquista nao equivale, de forma alguma,"00 que _temos dos tupis. 0 que se sabe dos tupis permitira suprir, emcerta medida, essa ignanincia: mesma assim, parem, e necessaria aglrcom prudencia, pois e evidente que a homogeneidade - verificadaquanta aos tra<;os essenciais - da cultura tupi-guarani mio autoriza·atribuir automaticamente aos segundos 0 que everdade inconteste pa­ra os pnmelros.

Voltando aos jesuitas, citaremos, primeiro. Loiano: seu texto esem duvida 0 rnais completo.. pois, como historiador da Companhia,ele acrescenta ao conhecimento direto (ainda que tardio) das missoesa familiaridade com todos os testemunhos deixados por seus prede­ceSSores. Veja-se - segundo ele - 0 que eram os guaranis antes deserem reducl; _. reduzidos a fe crista e a vida civilizada: "Tinhamcerto conhecimento de Deus e are mesmo haviam chegado a C01l1­

preender. embora confusamente. que ele era uno. como se pode dedu­zir do nome que !he deram, Tupd, que significa excelencia superior.·.Atribuiam-Ihe 0 poder de mandar 0 relampago e de emitir tempesta­des aterrorizadoras, de que tinham grande temor, pois as tomavamcomo 0 efeito da calera dessa excelencia superior; contudo, nunca ten­tavam acalma-la. nem torna-Ia propicia, par sacrificios ou pniticas deadora<;ao." J 7 Cren<;a num deus Linico. cujo poderio manifestam 0 tro­vao e os relampagos.- mas a quem nenhum rito propiciatorio se con­sagra: os observadores dos guaranis concordam com Nobrega, Yvesd'Evreux e os demais. confirmando _. ate mesmo nesse plano negati­vo - a homogeneidade da cultura tupi-guarani. Observa<;ao a respei­to do texto de Lozano: a tradu<;ao do termo lupa, em que ele se ba­seia para afirmar a cren<;a indigena num deus linico. repousa numaetimologia pouco convincente (lu = admira<;ao, pa = interroga<;ao);embora Montoya, de quem Lozano a toma de emprestimo, fosse urnadmiravel conhecedor da lingua guarani, parece sem duvida have-Iainventado para as necessidades da causa. Seja como for, acreditando­-se em todas as testemunhas. os guaranis. da mesma maneira que ostupis. nao tinham religiao: quando muito. urn conhecimento confusoe apenas teorico - porque sem nenhum impacto sobre a vida _. deurn unico deus.

Morhoya. porem, por consagrar sua vida inteira a conversao dosguaranis, descobrira entre eles fato revelador de uma tradi<;ao religio­sa original: 0 culto volado aos ossos dos grandes xamas.1 XA certadistancia de uma redu<;ao recem-fundada e onde a catequese enfrenta­va grandes dificuldades, Montoya descobriu, isolados em plena 110re'-

Page 12: Terra sen mal helen clastres

20 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 21

tao especies de templos em que eram conservados. dentro de redes en­feitadas com penas, esqueletos engalanados. Cestas suspensas nas pa­redes do templo continham alimentos como oferenda. 0 padre proce­deu imediatamente a urn inquerito, averiguando enta~ que as esquele­tos pertenciam a xamas recem-falecidos, que numerosos indios os ve­neravam em segredo e que os xamas vinham a esse lugar para comu­nicar-se com seus espiritos e revelar suas predil;oes.

Foi gra,as as revela,aes de um jovem indio que os padres foraminteirados do que acontecia. mio hesitando em pressionar os adullospara que os levassem ate 0 ponto da floresta em que se erguiam astemplos, ponto distante da redu,ao. ja que dois dias de marcha foramnecessarios para atingi-Io. 0 primeiro templo ja estava vazio quandoeles 0 descobriram: informados do procedimento dos missionarios, asindios haviam rcmovido 0 esqueleto. Prosseguiu a marcha -" penosa,em floresta Oluito densa, no dizer da testemunha _. ate urn segundotemplo,oode foram enconlrados dais esqueletos: ..... descobrimos al­gumas ossadas mal-cheirosas que, embora ornadas com penas de co­res vivas. nao haviam perdido nada de sua suja fealdade. Um dos cor­pos perte:lcera a urn grande mago, muito velho..... 19

Quanto ao segundo esqueleto. era de um poi'; morto havia algumtempo e enterrado pelos cuidados dos missionarios. Os indios 0 ha­viam desenterrado e removido para esse lugar, pais -- diziam _. eleso ouviam [alar e lamentar-se todas as noites: "Tirem-me daqui, estoua,fixiado..... Assim fizeram. Mais adiante. dois outros esqueletostambem foram descobertos. E claro que os padres trataram logo depor urn termo a essas praticas diab6licas, mio sem violencia. Todos oscadaveres foram queimados em publico. a despeito da hostilidade e dainquieta,ao manifestas dos indios.

Esse fato nao impede. em absoluto. Montoya de reiterar. no mes­rno capitulo em que narra a sua descoberta, que os guaranis sempreforam isentos. gra<;as ao ceu. de idolatria e adora,ao va. E, sem maisse interrogar. ele atribui a pnitica india a malevolencia de Satamis,que teria sugerido tal ideia aos indios, a fim de desfazer a obra peno­samente empreendida pelos padres. "Nunca tiveram idolos, embora 0

diabo come,asse a rmpor-Ihes a ideia de venerar as ossadas de certosindios que, durante a vida, [oram magos renomados..."20 Assim, nes­se culto, ele so quer ver urn paganismo embrionario, em vez da ex­pressao de uma tradi,ao ha muito estabelecida.

o culto dos ossos propae um problema delicado. Com efeito. Mon­toya [oi 0 tinieo a testemunha-lo21 e mesmo assim so 0 observou nu­rna unica reduyao. Alern do seu testem4nho, nao se e~contra alusaoalguma a esse fenameno (tambem nada de comparavel, pelo que sabe­mos. e atestado quanto aos !upis). 0 fato de que nenhuma outra ob­serva,ao venha corroborar a de Montoya impede-nos de considerar.

com inteira certeza, 0 culto dos ossos como urn rito inteiramente ori­ginal. Ja assinalamos a reticencia dos jesuitas em se alongarem nadescri,ao dos costumes indigenas; mas, se templos semelhantes aosque Montoya descreve tivessem sido descobertos em outro lugar, OU

por outros padres, e pouco provavel que a coisa fosse passada sob si­lencio. Talvez 0 desejo de manter em segredo s'uas praticas religiosastivesse conduzido os indios it constrUlr seus teIilplos mUlto longe dasaldeias. a partir do momento em que come,aram a implantar-se asmissaes. 0 que explicaria, a rigor, 0 silencio de nossas outras fontes aesse respeito, culto e lugares de culto teriam sido envoltos no maiorsigilo, cuidadosamente ocultos aos brancos. Para apoiar essa hipOtese.convem recordar que Montoya so deveu sua descoberta a denuncia deum neofito. Mas uma segunda hipotese deve ser examinada, a ideiade construir templos talvez tenha sido sugerida aos indios pelas prMi­cascristas; 0 templo seria uma adapta,ao das igrejas. Explica-se me­Ihor. assim, que tal inova,ao so tenha ocorrido num ponto isolado.Seja como for. mesmo na segundahipotese. h<i pelo menos uma coisaque podemos considerar como certa, 0 Olllto, enquanto tal, nao podiaresultar de nenhuma inf1uencia externa e, se um elemento estranho- 0 templo - pade introduzir-se. foi necessaria antes a existencia deum conjunto em que ele pudesse encontrar lugar. 0 cullo dos ossoS.em todo caso, perdurou, nos 0 veremos - embora de forma modi­ficada - are rnesmo entre os guaranis de nossos dias.

Basta essa leitura rapida dos cronistas para convencer-nos de queviram 0 mundo guarani, e quiseram traduzi-Io, como sendo urn mun­do radicalmente a-religioso. Para eles, e lugar-comum afirmar que ostupis-guaranis nao tem religiao, 0 que apenas melhor os capacita a re­ceber a religiiio dos conquistadores. Seus testemunhos podem parecerdecisivos, ainda mais porque emanam.as vezes, de viajantes que sabi­damente foram observadores notaveis. Nessas condi,6es, nao pode­namos contentar-nos em menciona-Ios sem procurar compreende-los.

Impae-se por si mesma uma primeira explica,ao, negligenciou-se,simplesmente, de prestar alguma aten,ao as cren,as e a mitologia in­digenas. Quando muito, sao referidas como curiosidades ou anedotasdivertidas (Thevet), ou entao contenta-se (Montoya) em adivinhar ne­las a obra do demanio, ou ainda em perceber. mais ou menos defor­mada. a ideia de Deus, e necessario que a prega,ao encontre um pon­to para ancorar. A primeira razao prende-se, pois, - como era de seesperar - a _uma atitude etnocentrista: a recusa de le,var a serio ascren~as indigenas. Mas isso nao e tudo, uma outra explica~ao acres­centa-se a esta: 0 proprio carater da religiao tupi-guarani, apropriadoa dissimula-la para um olhar ocidental.

Uma religiao e um conjunto de cren,as que podem exprimir-se demultinlas maneiras, expressao verbal (mitos, rezas, etd, expressao

Page 13: Terra sen mal helen clastres

22 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 23

;J

i;

gestual (ritos, atitudes.. .), expressao material (templos, objetos de cul­to, representa<;oes figuradas das divindades). POde-se observar que 0

que impressionou as primeiros viajantes - levando-os a dizer que osindios nao rem religiao, mesmo que possuam uma vaga ideia de Deus- e a ausencia de todos esses sinais tangiveis da vida religiosa; e semduvida esta nao transcorria, entre os tupis-guaranis, nos quadros ­ti~ diversos - cnde eles podiam esperar encontni-la. Pais os cristiosnao careciam de referencias; conheciam os politeismos antigos com<uas complicadas genealogias de deuses e semideuses; estavam' acos­tumados aos relatos do Oriente e as descobertas de templos grandio­sos, povoados de ricos idolos; conheciam 0 mundo africano, mais pri­mitivo, menos suntuoso, mas em que multiplas cren<;as - supersti­<;oes- podiam manifestar-se nas modalidades concretas dos fetiches,amuletos, etc. Diferentes disso tudo, os guaranis nao adoravam visi­velmente nada, e sua prdtica religiosa nao se inscrevia em nenhumquadro conhecido; concluir dai que ela era inexistente exigia apenasurn passo, que foi dado sem maior hesita<;ao.

Os indios nao eram desprovidos, porem, de "supersti<;Oes" ou "fal­sas cren<;as" e todos os autores 0 exemplificam com largueza. Vamosrecorda-las sumariamente: 0 que elas revelam e, mais do que as cren­<;as indigenas, 0 "teocentrismo" dos conquistadores. Da rica mitolo­gia indfgena - tal como nos foi transmitida, parcialmente, por The­vet - eles so retiveram os temas que lhes eram familiares e que po­diam interpretar nos termos da sua propria religiao, da verdadeira re­ligiao, pois nao se deve esquecer que, para os viajantes do seculoXVI, fossem ou nao missionarios, a verdade das Escrituras nao erapalavra va. E, ja que os indios nao eram idolatras ou fetichistas, res­tava neles ver cristiios balbuciantes, que so teriam retido de uma anti­ga reveIa9a"o fragmentos mais ou menos corretamente retransmitidosde gera<;ao em gera<;ao - por falta de escrita, como sugerem alguns;fragmentos esses dispersos demais, em todo caso, para poderem gerara pratica que normalmente lhes deveria corresponder. As freqiientesalusoes a "inocencia primitiva" dos indios, a "retidao natural" do seujuizo mostram que esta foi efetivamente a concep<;ao que predomi­nou; nao sao pagaos, mas cristiios que se ignoram. Tal concep<;ao foi,alias, expressa por alguns (Montoya, d'Abbeville) de maneira total­mente explicita.

Vamos agora enumerar os principais artigos de fe dos tupis-guara­nis. como os cronistas os guardaram e mterpretaram: a comparac;aocom a versao de Thevet permite, em alguns casos, restabelecer seusignificado, ao recoloca-Ios no seu contexto.

A lenda de Sao Tome

Sabemos como se propagou entre os brancos a lenda segundo aqual 0 apostolo Sao Tome teria vindo evangelizar as Indias Ociden­tais. Os guaranis - diz Montoya - sabem por tradi<;ao ancestralque Sao Tome, a quem eles chamam Zume, viveu outrora em suasterras. A mesma cren<;a e atribuida aos tupis. Reportemo-nos ao mitotupinamba recolhido por Thevet; Sommay22 (= Sume nas fontesportuguesas), "grande paje e caraiba", e 0 pai dos dois irmaos Ta­mendonare e Ariconte que, entre outras coisas, provocaram 0 diltivio.Na ordem do relato, ele e a terceira personagem, depois de Monan eMaira-Monan. Se seguirmos a analise de Metraux, para quem Mo­nan, Maira-Monan e Sume seriam os dup.los da mesma persona­gem2J, Sume e 0 heroi civilizador - a quem as tupis atribuem, emespecial. 0 conhecimento que tern da agricultura e sua organiza<;aosocial. Sume, por conseguinte. ensinou outrora aos homens as artesda civiiizac;ao: certas pegadas impressas em rochedos constituiam, pa­ra os tupis, a prova ainda visivel da sua passagem. Perto da baia doRio de Janeiro, existia "uma pedra comprida e da largura de uns cin­co pes, na qual apareciam algumas marcas de vara. ou vareta, e pega­das de homem, que ele dizia serem do grande Caraiba, que !hes deu 0

conhecimento e 0 usa do fogo ... e juntamente com esse 0 de plantaras raizes..." 24 Essa historia de pegadas miraculosas viria a conhecerurn sucesso inesperado entre os cristiios, contribuindo sem dtivida emgrande parte para a forma<;ao da lenda. Para eles, finalmente, 0 mitopodia ser compreendido assim: a essas terras recentemente descober­tas vIera, outrora, uma personagem, a quem os indios deviam tudo 0

que de civiliza<;ao possuiam. Acrescentemos a isso a semelhan<;a dosdais nomes - Sume e Tome -- e a fe nas Sagradas Escrituras queafirmavam que a palavra dos apostolos correria toda a terra; ja basta­va isso para que a lenda ganhasse consisrencia. Gra<;as a isso, a per­Cep93.0 do mundo indio se tornani coerente: sera possivel atribuir aprega<;ao do apostolo as parcelas de verdade que se ere identificar, cae la: no discurso indigena. Curiosamente, Metraux ve nessa interpre­ta<;ao de Sume uma inven<;ao tardia: "A inopinada identifica<;ao sosurgiu assaz tardiamente. Thevet considera Sommay urn caraiba pu­ramente indigena; do mesmo modo, Yves d'Evreux e Claude d'Ab-

Page 14: Terra sen mal helen clastres

24 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 25

~ i

beville",25 enquanto ele proprio cita essa passagem mais do que ex­plicita de Manuel da Nobrega, "Dizem eles que Sao Tome, a quemchamam Zome, passou par aqui. Isto Ihes ficou dito de seus antepas­sadt>s",26 extraida da InJormar:iio das Terras do Brasil, pag. 154.27Isso pode demonstrar como, desde os primeiros tempos da conquista,os brancos apreenderam e relataram as cren~as tupis-guaranis, delasretendo apenas os motivos que, nos termos da sua propria religiao,eles podiam reinterpretar.

a Diluvio

Todas as fantes atribuem aos tupis e aos gu~ranis 0 ",conhecimentodo diluvio universal". Quanto aos .guaranis, Montoya apenas mencio­na a exisrencia do mito, "Gra~as a sua tradi~ao, estao a par do diluviouniversaL que chamam de iporun. 0 que signifiea inundac;8.o muitogrande." 2g Isso e tudo; nem ele nem as demais fontes antigas rela­tam 0 cataclisma.

Quanto aos tupis, os autores do seculo XVI sao urn pouco mais ex­plicitos. Staden, "Alias, nada sabem de particular do inicio do mun­do. apenas narram que houve uma vez uma vastidao de aguas na qualtodos os seus antepassados morreram afogados. Somente alguns daiescaparam numa embarca<;:ao e outros sabre altas arvores. Penso quedeve ter sido a diluvio."2Y Cardim e Lery dizem que os tupinamba~

ouviram falar do diluvio mas. por nao disporem de escrita, conserva­ram dele uma lembran~a confusa e algo deformada, "Este gentio pa­rece que nao tern conhecimento do principio do mundo. do diluvioparece que tern alguma Doticia. mas como mia tern escrituras, oemcaracteres, a tal noticia e escura e confusa; porque dizem que as aguasafogaram e mataram todos os homens e que somente urn escapou emriba de urn janipaba, com uma sua irma que estava prenhe, e que des­tes dois rem seu principio e que dali come~ou sua multiplica~ao."30Quanto as fontes do seculo XVII, sao igualmente laconicas e fazempensar que a partir dessa epoca os indios so contavam, sobre seus mi­tos, 0 que sabiam viria a interessar aos brancos. Assim testemunha 0

informante de Yves d'Evreux, "Eu sei por meus ancestrais a historiade Noe, que fez uma barca e meteu a sua gente dentro dela... que a

terra foi coberta d'agua, que cavou as terras, fez as montanhas, os va­les e 0 mar, e que de vas nos separou."31 Texto em que urn motivoindigena e expressamente referido aQ mito cristao,

Ainda ai, e preciso recorrer a Thevet: ele relata nao urn. mas doismitos do diluvio. No primeiro, 0 tema do diluvto faz parte de urn mi­to muito mais amplo: a destrui¢o da primeira terra e da primeirahumanidade que a habitava. 0 criador, Monan, "vendo a ingratidiiodos homens, a sua maldade e 0 desdem que manifestavam por ele,que os fizera assim felizes, retirou-se deles: e depois fez deseer tatla,que e 0 fogo do ceu, 0 qual queimou e consumiu tudo 0 que havia naface da Terra, "32 A terra, que originariamente era plana de maneirauniforme entao se teria coberto de dobras e ravinas, tomando suaconform;~ilO atua!. So foi salvo do incendio um homem, Irin Mage,que suplicou a Monan que apagasse 0 fogo, Este ultimo fez entilOchover em tal abundiincia que, "nilo podendo as aguas voltar para 0

alto" acumularam-se sobre a terra, formando rios e oceanos. De IrinMagJ descenderam os que iriam provocar 0 segundo dihivio.

A outra versilo do diluvio e um pouco diferente: nela, 0 cataclismae atribuido a uma briga entre os herois Tamendonare e Ariconte, fi­Ibos de Sume (por sua vez filho de Maira-Monan, primeiro descen­dente de Irin Mage, de acordo com 0 texto de Thevet). Os dois irmaos"eram de diversa complei~ao e natureza e por isso se odiavam mor­talmente," 33 Depois de uma violenta discussao, "Tamendonare ... ba­teu com tamanha rudeza na terra que desta jorrou uma grande fonted'agua, tao alta que em pouco tempo se elevava acima das nuve~ eassim perseverou are cobrir a terra toda. Vendo isso, os dOlS rrmaos,preocupados em se salvar, escaIaram as montanhas mais altas de todaa regiao: e tratavam de se salvar subindo nas irvores com suas mu­Iberes. E fIzeram assim, isto e, Tamendonare subiu numa irvore cha­rnada pindo, trazendo consigo uma de suas mulheres; e Ariconte su­biu com sua mulber numa outra arvore, de nome jenipapeiro ..... 34Por ocasiiio desse cataclisma, pereceram todos os homens e todos OSanimais, com exce~ao dos dois casais, de quem nasceram dois povosinimigos: os tupinambas e os tamoios.

Como se pode ver a partir das cita~6es acima, apenas 0 segundomito foi mantido. E dificil concordar com Metraux quando sugereque essas duas versOes do diluvio se repetem.35 Com efeito, 0 pri­meiro diluvio deve-se a uma agua celeste, 0 segundo a uma agua tec­tOnica; 0 primeiro articula-se com uma diversidade natural, geografi­ca: de uniforme que era, achatada e sem agua, a terra adquire relevo eos elementos se misturam nela; 0 segundo articula-se com a diversi­dade das sociedades humanas. E a ordem dos mitos sugere que a di­versidade das culturas s6 podia surgir como conseqiiencia da diversi­dade dos meios naturais, A primeira humanidade, tao acha~da euni-

"' .:.

Page 15: Terra sen mal helen clastres

Tupa, AiUi, Jurupari.

for~e. quanto a propria terra, so comparece como penhor do adventoda umca humamdade real, que se define pela multiplieidade das soeie­dades.

Seja como for, esses dois mitos Gncendio e diluvio) silo encontra­dos na maior .parte das tribos tupis e guaranis de nossos dias.

I

27TERRA SEM MAL

teao ~uarani, alguma outra figura mais capaz de desempenhar tal pa­pel. E exatamente essa a convic9ao de Alfred Metraux, ao tentar des­cobrir as razoes de uma escolha que considera pouco pertinente. Suareticencia justifica-se com respeito a mitologia: Tupa praticamentenao aparece no grande mito tupinamba da origem, do qual ja recorda­mos alguns temas. Nem criador do mundo, nem transformador ouneroi cultural: nenhum feito, gesta ou inven9ao the silo expressamen­te atribuidos. Veja-oo 0 texto de Thevet: "0 primeiro conhecimento,portanto, que esses selvagens rem do que ultrapassa a terra e de urn[ser] a quem chamam Monan, C..) 0 qual criou 0 ceu, a terra e os pas­saros e animais que neles vivem, sem todavia rilencionar 0 mar nemAman Attupave, que sao as nuvens d'agua..."J6 Se "AmanAttupa­ve" pode ser interpretado como uma transcri9ao, um pouco falha, deqmii ha tupiive (= a chuva e 0 trovaol, Tupa so e mencionado aquipor nao ter sido criado.

A segunda passagem do mito em que ele aparece e 0 epis6dio damorte de Maira-Monan, que perece numa fogueira feita pelos ho­mens: " ... a cab"9a !he fendeu" com impeto tao grande e ruido taohorrivel, que.o som subiu ate 0 ceu e are Tupa: e dai dizem que saogerados os trovoes desde 0 come9Q e que 0 relampago que precede 0som do trovao e apenas 0 significado do fogo pelo qual esse Maira foiconsumido." J7 Isso e tudo; em nenhum lugar volta, depois, a tratarde Tupa. Vimos que 0 mito narra a cria.,ao e destrui9ao da terra porMonan; as aventuras dos "gemeos" e como Sume (duplo de Monan,segundo Metraux) ensinoa aos homens as artes da civiiiza.,ao. E certoque, nesse contexto da cria.,ao, e nulo 0 papel de Tupa. Foi 0 que le­voa Metraux a tomar Monan como figara central da religiao tupinam­bii e a responsabilizar a catequese pela import:incia dada a Tupa.Egon Schaden e Loon Cadogan rem a mesma opiniao. E, de fato, nostextos mbias-guaranis, r.ecentemente publicados por Cadogan,J8 apersonagem primeira' e Namandu - aquele que sO aparece em meioas trevas originais, 0 criador. Contudo, nesses textos mbias, 0 papel

, de Tupa longe esm de ser irrisorio, pois e quem criara a "terra imper­feita", apos a destrui9ao da primeira terra.

Voltando aos cronistas e ao nosso problema, gostariamos de fazeralgumas observa90es. Antes de mais nada e limitando-nos estrita­mente ao que se pode saber acerca dos tupis-guaranis gra9as aos auto­res do seculo XVI, nao hii nenhuma razao para se preferir Monan aTupa, ou este aquele, na medida em que os indios nao se preocupa­yam em venerar nem urn nem outro: nao existia culto algum presta­do a divindade nenhuma, e 0 que nos dizem todos os autores. Em se­gundo lugar, se e verdade que Tupa nada e na cria9ao do mundo, poroutro lado esm estreitamente associado aos grandes catac1ismas, queele personifica. Se Monane 0 deus criador, Tupa e 0 deus destruidor.

i

iI

I

lI

I'\

!

I

HELENE CLASTRES26

A essa mesma preocupa.,ao de demarcar entre os indios alguns ras­tros da verdadeira religiao, deve-se atribuir a assimila9aO de Tupa aodeus cristao, de Anii e Jurupari ao demonio. Ana (= Anhii em Por­tugues, Aignan em Frances) para os guaranis e os tupinambas Juru­pari (ou GiropariJ para os tupis do norte, sao efetivamente o~ maisemine~tes desses espiritos perversos que povoam a floresta, cuja uni­ca razao de existir e perseguir os indios e vetar ao fracasso os seusempreendimentos. E a eles que se atribui a responsabilidade tanto doresultado infeliz de uma eXpedi9ao guerreira, ou da insufi~iencia deuma co!heita, como ainda das desventuras individuais. Tao presentese vivos na vida cotidiana dos indios como 0 diabo na dos missio­ruir!os, capazes de enganar ate mesmo os xamas e de indl'zi-Ios a: pre­dl90es falsas, de certa maneira constituem replicas do Maligno - eera facil assimila-Ios a este.E~ ~ompensa9ao, merece exame mais cuidadoso a questao de

, Tupa, nao apenas porque os etnologos (Metraux, Schadenl em ultimaamiiise, nela viram somente uma inven.,ao de missiomlrios comotambem porqu~, para o~ p~oprios indios, for9ados Cloravante a '00 pen­sar em opoS19ao aos cnstaos, Tupa veio a significar Deus; de modoque, mesmo se nada perdeu dos antigos atributos (e situado a oeste eesta ligado ao trovao e as tempestades), nem por isso deixa de serpensado, as. vezes, como urn elemento estranho a cultura guarani.

De fato, e eVldente que, para suas prega90es, os missionarios preei­savam de urn termo capaz de exprimir a ideia de Deus, devendo suapreocupa9ao primeira ser a de procura-Io na lingua indigena. Viu-seComo Nobrega justificava a escolha de Tupa; Vasconcelos e outrosrem a mesma.opiniao. Nada permite conte'star, "a priori", que Tupafosse para os mdios "coisa divina", sagrada, e que Nobrega tenha dadoa verdadeira acep9ao do termo - 0 que a analise da sua fun.,ao vira

• confirmar. Tambem e impossivel negar que, ao se fazer de Tupa urneqU1v~lente d~ Deus, foI-lhe atribuido urn significado que, sem duvi­aacotrOlt>Coloca-se aqui a questao de saber se existia, no pan-

__-",SC,~R AGO;:RO

I"

~ i

IiI

"

iI

I

1iI

I.,1"

Page 16: Terra sen mal helen clastres

28 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 29

Senhor da chuva, do trovao e do raio, e ele a causa direta da .destr~i­cao da terra pelo incendio e pelo d~tivio: 0 texto de Th~vetnaodeIXadtivida algUlna: foi "0 fogo do ceu que consumlU a prunelfa terra euma agua celeste que gerou 0 primeiro diltivio. ~ue nesse eplsodlO domito nao intervenha 0 nome de Tupa e a decisao de destruIT a terraseja atribuida a uma vontade distinta da dele nao. muda nada~ chuva,trovao e raio sao os atributos especificos e excluslvos de Tupa. Bastanos referirmos ao episadio da morte de Maira-Monan, quando trovaoe rellimpagos sao explicitamente vinculados a .Tupa. E, ja que os in­dios viam nas tempestades reais a mamfesta9ao tanglvel desse puderdo alto como nao teriam percebido como efeito do mesmo puder adestrui~ao .mitica da terra pelo fogo e pela a~ua celestes?

Outra razao nos levaria a admitir que Tupa nao ~ra essa flgur!' se­cundaria que se quis tanto ver nele: ela nos e forneclda pe!a referencl~a outra cultura guarani - ados guaiaquis. A compar~ao ?ode aqUlser esclarecedora (embora se funda apenas numa observa~o recentedesses indios), pais as guaiaquis Dunea estiveram em c~ntato, com osbrancos: a tinica tentativa, efetuada no seculo XVII, de mstala-Ios nasredu90es dos jesuitas, redundou em fracasso: de uns vinte guaiaqUlscapturados, a maior parte logo consegulU fuglr e ganhar a flor~sta:morrendo os demais. Ora, nas crenc;as gualaqulS, Chona, 0 trovao, ea persQ11'1gem mais irnportante, a_ que depois da morte tem 0 enca~go

das almas. A associacao do trovao e das almas dos mortos tambemnao era estranha aos tupinambas. Citemos, mais uma vez, Thevet:"Se, quando esses selvagens estiio na agua, produz-se (como tan~vezes acontecel alguma tempestade ou borrasca, eles pensam que s!'oas almas dos seus parentes e amigos que dessa manelra os mqUle­tam... Porem, nao sao grosseiros a ponto de niio lan~rem, para acal­mar essa tormenta, alguma coisa a agua, como para the fazer dom epresente de homenagem, estimando que desse meio possa ser acal-mada a ftiria das tempestades." 39 ., .

Finalmente urn tiltimo argumento para salientar a Importanclll deTupa enquant~ personifica a destrui9a<;>: a cren9a gu~rani na destrui­cao futura da Terra. Essa visao apocahptica esta no amag.o do pensa­mento dos guaranis de hoje: os mesmos catachsmas que Ja ocorreramestiio prometidos a Terra: como a primeira terra, ser~ destrUlda a"terra imperfeita". A essa cren9a' nao se encontra rderencla algumanos cronistas. Urna curta passagem de Thevet, porem, menClOna-a:escreve, a proposito dessas pedras que - supunha-se - conserva­yam as pegadas de Sume: "E tern esses pobres selvagens a 10uca ~en­

9a de que, se a pedra Ihes fosse roubada.ou quebrada, sena aruma eaniquila9ao de todo 0 seu territorio."40 E para eVltar ~ catachsma::­prometido, portanto - que os homens se auto-mstItUlram guardlaesdessas pedras marcadas com pegadas sagradas, penhores da passagem

dos deuses pelo mundo dos homens. Essas metonimias da divindadetern, por isso, urn duplo significado: atestam que nao existe ordemcultural alguma que mio se pense como uma ordem transcendente.Ao passarmos da ordem natural a ordem da cultura, passamos de urntipo de necessidade41 a outro: a primeira necessidade, universal. eimanente: a segunda, porque instaura a particularidade, nao pode dei­xar de ser transcendente. Entre a natureza e a cultura, ha 0 lugar dosobrenatural. A segunda significa9ao das pedras sagradas, cuja guardaincumbe aos homens, fica, dessa maneira, evidente: elas testemu­nham que os deuses ainda estiio entre os homens e que 0 mundo (asociedadel perdurara enquanto assim for.

Sem dtivida, essa informacao de Thevet e de pouca monta compa­rada com a importincia que assumiu, entre os guaranis, a crenc;a nadestrui9ao da Terra. Porem, e preciso assinalar que essa cren9a se tra­duz, nao em mitos (nao existe narrativa alguma do cataclismal, masem profecias - e isso pode explicar que seja tiio curta a anota9ao deThevet. Esta, contudo, nao bastaria para autorizar-nos a afirmar aexistencia da mesma cren~ entre os antigos tupis-guaranis, se naopudessemos relaciona-Ia com seu contexto e, em especial, com a pro­CUfa da Terra sem Mal, que - sabemos - preocupava os indios an­tes da conquista. Ora, a busca da Terra sem Mal esta essencialmentevinculada a convic9ao de que a Terra sera, mais uma vez, destruida.Voltaremos a esse ponto. Acrescentemos apenas, para concluir, quese, como tentaremos demonstrar, a pratica religiosa dos tupis-guara­nis sempre se inscreveu nessa busca da Terra sem Mal, a que eramlevados pela certeza de urn cataclisma iminente, pode-se compreenderque Tupa fosse para eles coisa sagrada dentre todas: enquanto artesaodessas destrui90es, era ele 0 senhor verdadeiro do destino deles.

Sobre a importancia de Tupii, portanto, os missiomi.rios nao se en­gar-aram: a figura do destruidor comanda a religiiio guarani, nao a docriador. Enganaram-se, porem, acerca da sua significa9ao: nada maisoposto do que esse simbolo indigena a ideia crista do criador. A esserespeito, Alfred Metraux comete 0 erro inverso ao fazer de Monan 0deus central da religiiio tupi: Monan e inegavelmente 0 criador, comoseu proprio nome ja indica.42 Metraux niio se engana acerca do signi­ficado, mas da sua importancia. Vern isso dizer que missionarios e et~

nologos foram vitimas do mesmo preconceito - da ideia de que a re­ligiao devia ser definida em fun9ao de uma divindade criadora.Adiantemo-nos e perguntemos se e mesma nesses termos que se devecolocar 0 problema. Em outras palavras, sera que nos basta procurarprioridades noconjunto das figuras miticas guaranis, estabelecer a hie­rarquia dos "deuses" do seu "panteao"? Isso nos autorizani a dizerque existe uma divindade central, Tupa, figurando a destrui9ao, e di­vindades secundarias, entre as quai.s Monan, 0 Criador? Essa explica-

Page 17: Terra sen mal helen clastres

A Terra sem Mal

<;ao seria apenas um pouco mais satisfaroria. Em primeiro lugar, Ii­mitar-se a ela e colocar ainda uma vez 0 mesmo a priori que denun­ciamos: a ideia de que, por essencia, uma religiao se define numa re­la<;ao com divindades; de que ela procede de uma disjun<;ao irredu­tivel, pondo de um lado os deuses, do outro os homens. Mas, princi­palmente, tal atitude negligencia 0 fato, contudo merecedor de aten­<;ao, de que culto algum era prestado a uma "divindade" qualquer,para encerrar-se no paradoxo - que, justamente, deixava tao per­plexos os primeiros observadores - de uma religilio reduzida a umsaber vago e inutil, porque carente de efeitos. Por isso, e ·necessariomudar radicalmente de perspectiva:, sugerimos que 0 que constitui aoriginalidade da religilio tupi-guarani e que ela nao se desenvolve no"elemento" da Teologia, do saber dos deuses. E, se for verdade, co­mo escreve Dumezil, que a religiao e sempre "coisa atual e ativa",perguntemo-nos qual era a pratica religiosa dos indios, Retomandodessa maneira a questao pelo outro lado, talvez venhamos a com­preender melhor suas cren<;as.

Acabamos de aludir a essa cren<;a. A Terra sem Mal e esse Jugarprivilegiado, indestrutivel, em que a terra produz por si mesma osseus frutos e nao ha morte.

Os cronistas so Ihe fazem breves alusoes e ainda a reduzem a pro­por<;oes compreensiveis para eles: um "alem" para onde vao as almasdepoisda morte. Seria de esperar que, como aconteceu com 0 resto,esse tema fosse assimilado ao tema cristao do Paraiso. Curiosamente,nada disso aconteceu. Fernao Cardim garante-nos que os tupis nao ti­nham a menor preocupa<;ao em saber se existia recompensa ou casti­go depois da vida.4.1 Contudo, diz ele, acreditam na imortalidade dasalmas, que supoem que "vao a uns campos onde ha muitas figueirasao longo de um formoso rio e todas juntas nao fazem outra cousa se­nao bailar. "44 Segundo Lery, esse lugar de delicias, longe de ser aces­sivel a todos, era a recompensa reservada aos melhores: ..... acredi­tam na imortalidade das almas, mas tambem creem firmemente que,apos a morte dos corpos, as almas dos que viveram virtuosamente,isto e, segundo eles, que bem se vingaram e comeram muitos dosseus inimigos, vao para tras das montanhas altas e dan<;am em belosjardins com as almas dos avos."45 A mesma informa<;ao nos daoClaude d'Abbeville e Yves d'£'vreux: ascender a terra de :'alem dasmontanhas" era reservado aos mais [erazes desses canibais.46

31TERRA SEM MAL

Para todos esses cronistas, em todo caso, a Terra sem Mal nada in­voca que rtao seja pagao: sao os "campos elisios dos poetas". Por queos cristaos rtao se apossaram tambem dessa cren<;a e por que, maisgeralmente, por ela manifestaram tao pouco interesse? Pode-se supor,em primeiro lugar, que essa concep<;iio dionisiaca de uma vida futurainteiramente composta de dan<;as e bebedeiras devesse parecer impia

" aos brancos. Que tambem os chocasse a ideia de se atribuir ao paraisoI'. uma localiza<;iio geografica precisa: pois os tupis-guaranis situavam a

Terra sem Mal no seu espa<;o real, as vezes a leste, outras a oeste.Com maior freqiiencia a oeste, aparentemente, pelo menos para Ostupis do litoral: as informa<;6es dadas por Yves d'£'vreux e Clauded'Abbeville confirmam Thevet, e "alem das montanhas" (d'£'vreux eate mais preciso: "alem das montanhas dos Andes"), portanto numatal dire<;ao do espa<;o que possa ser preservada a ideia de um Jugaracessivel. Nenhuma informa<;ao disponivel, a esse respeito, sobre osantigos guaranis: mas talvez as migra<;6es que haviam conduzido oschirigua~os aos pes dos Andes ja estivessem, pelo menos em parte,ligadas a procura da Terra sem Mal; sugere-o 0 nome, Candire, quederam ao Imperio Inca.47 Seja como for, talvez exista uma razaomais profunda para 0 curioso desdem por essa cren<;a - e precisonotar que ela foi singularmente banalizada; a ponto de ficar reduzidaa um lugar das almas depois da morte. Morada dos ancestrais, sem

.. duvida, a Terra sem Mal tambem era um lugar acessivel aos vivos,aonde era possivel, "sem passar pela prova da morte", ir de corpo ealma. Se tivessem prestado aten<;iio, os cristaos nao teriam deixado deperceber q'ue eram uma unica coisa a terra de "alem das montanhas",morada das almas, e esse outro lugar em que a terra produz sem se­meadura e nao ha morte, que os profetas prometiam aos indios. Te­riam sido confrontados, entao, com 0 que nao poderia deixar de Ihesaparecer como escandalo ou incompreensivel loucura: uma religiao• em que os proprios homens se esfor<;am por se tornar semelhantesaos deuses, imortais como eles.

Pois que significam a inquieta<;ao que levava os tupis-guaranis auma tal procura, a esperanc;a afrrmada de ascender a imortalidadesem passar pela morte, senao enunciar a questao da possibilidade (ouda impossibilidade) de serem os homens seus proprios deuses? A quepensamento remete tal pratica, senao a recusa da Teologia: ho­mens e deuses vem a ser dois polos que se pretende pensar fora dascategorias da disjun<;ao? Ver nessa religilio um discurso sobre os deu­ses e nao apenas reduzi-Ia a sua expressao menos significativa, mastambell] distorce-Ia pela imposi<;ao de uma logica que talvez nao sejaa sua. E por isso que se pode afrrmar que discutir acerca dos deusese, nesse caso, de importancia secundaria.

Atraves dessa rapida leitura dos antigos testemunhos, tentamos

Ir

'. '

HELENE CLASTRES30

Page 18: Terra sen mal helen clastres

32 HELENE CLASTRESTERRA SEM MAL 33

ilI

compreender porque os tupis-guaranis puderam aparecer aos primei­r.o~ observadores como gente "sem supersti~6es", isto e, sem ritos re­IIgIOSOS, e esb~amos a perspectiva na qual prosseguiremos: dedica­~os como estavam a busca de uma perfei~o impossivel - e pressen·tida c?m? tal - os guaranis puderam forjar uma religilio ateia. Dai,a a~sencla de culto ou de sacrificio, mas rnio de pratica; dai, a origi­nall~ade de seus "padres", supondo possivel considerar que a religiaoos tivesse, na pessoa dos Carals.

Notas

(I) Carta ao padre Simao Rodriguez. 10 de abril de 1549, in Serafim Leite. Carlosdos Prim~iros Jesultas do Brasil, Comissao do IV Centemirio. Sao Paulo. 1954.volume I. pag. Ill.(2) Informa~do dos terras do Brasil. agosto de 1549. idem. ibidem. volume 1. pag.

150.(3) Montoya:' "tenian sus caciques. en quieo todos reeonocen nobleza beredada de

sus antepa.~dos. fundada en que habian tenido vasallo y gobernado pueblo", in Con­qu;sta Espirituol..., pcig. 49.(4) No original: Toiiopinambaoults. (N. do TJ(5) Jean de Ury. His/oire d 'un voyage laic/ en 10 terre du Bresil, tomo II. capitu­

lo XVI. pags. 59·60.(6) Claude d'Abbeville, His/oire de 10 Mission des peres copucins en f'lsle de

Morognan el tures circonvoisines. pags. 321. 322 (capitulo LID.(7) Lory. op. cif .• tomo II. capitulo XVI. pag. 61.(8) /njarmorao. in Leite, op. cit .. pag. 150.(9) A. Thevet, "Histoire de deux Voyages," Les Fronroi!t en Amerique. Paris, PUF.

1953. pag. 264.(10) Yves d'Evreux. Yoyoge dons Ie nord du Bresil, pag. 278.(I I) Ibidem. pOas. 279-280.(I2) Ibidem. pogo 280.(13) Ibidem. pag. 280.(14) Fernao Cardim. Trotados da Terra e Gente do Brasil, Companhia Editora Na·clonal. col~ Brasiliana. volume 168. segunda edicao, 1939, pags. 142-143.<IS) Andre Thevet, "Cosmographie," in Le-s Franrais en Amerique...• p:igs. 21-22.(16) Hans Staden. Duas Yiog(;{ns ao Brosil. pag. 173.(17) P. Lozano. Historia de 10 Conquisla del Paraguay. Rio de la Plata)' Tucu­man, volume I, pag. 386.(18) Montoya, Conquista EspirUuol.... pags. 118·120.(I9) Ibidem. pags. 119·120.(20) Montoya. op. ci.t., pag. 50.(21) Jarque e Lozano, que tambem a citam, nio 0 observaram pessoalmente. masbaseiam-se no relato de Montoya.

I,

ij

(22) E 0 nome dado por Thevet (N. do T.).l( (23! Alf~ed Met~ux, A Religitlo dos tupillambds e .'illa,~ r('/ap)('.'i ('/Iln a Ja,~ J(,.

matS tnbus t~pts-guoron;s, tradUl;:ao de Estevao Pinto, Col~ao Brasiliana.volume 267. Sao Paulo, 1950, Companhia Editora Nacional.(24) Thevet. op. cit .. pag. 58.(25) Metraux, op. cit .. pag, 57.(27) Metraux, op. ci/.. pag. 5,1.(27) A esse respeito, Serafim Leite as.."inala que tal identifica<;ao e bem anterior avind? dos jesuitas. Cita um texto de 1515 (portanto. poueo posterior a des.:obel1a doBrasil). A Nom Go;:eta da Terra do Brasil. onde se diz que: "Eles (os tupis) temtambem record~ao de S. Tome. Quiseram mostrar aos portugueses as pegadas de S.Tome no interior do pais" (S. Leite. Cartas. ... volume I. pag. 19).(28) Montoya. op.. dr .. pag. 53.(29) Staden. op. cif .. pag. 174.(0) Cardim, op. Cif .. pag. 142.(31) Yves cfEvreux.op. cit .. pags. 327·328.(2) Thevet. op. cit .. pag. 39.(33) Ibidem. pogo 43.(34) Ibidem, pag. 44.(35) Metraux. op. cit., pag. 93.(6) Thevet. op. cit .. pag. 38.(37) Ibidem. pag. 43.(38) A)'I'u Ropyta. rextos m/ticos de los Mbyd-(iuaralli del (il/aird. Boletim da .:a­deira de Antropologia da Faculdade de Filosofia. Ciencias e Letras da Universidadede Sao Paulo. n? 227. Sao Paulo, 1959.(9) Thevet. up. cit., p. 96.(40) Ibidem, p. 60.(40 Em frances. mfcessiu!. que designa mais precisamente um imperativo. ou umaordem nece."saria das coisas, em oposi~ao a beso;/I. utilizado para indicar uma neces­sidade a ser suprida ou satisfeita. isto e, uma careneia. (N. do TJ(42) De mona, que significa gerar. Se nos ativermos a terminologia, devemos recusara afirmal;ao de Metraux, segundo a qual 0 deus tupi nao e urn criador ex-nihilo. masantes urn transformador.(43) F. Cardim. op. ci/ .• pag. 142.(44) Ibidem. pogo 142.(45) Lery. op. cU., tomo II. pag. 62.(46) D'Abbeville fomece uma precisao suplementar; em tupi este lugar echamado de"ouaioupia". Seria €Ste 0 nome que designava a Terra sem Mar! Dos cronistas queconsultamos. nenburn outro da 0 termo tupi para a Terra sem Mal. Em compensa­cao. encontra-se a palavra ouiiioupia, grafada div.ersamente. em varios autores. masrecebendo acepc;ao algo diferente. Assim. 0 T('som de Montoya ensina que os xamaseram chamados de guaJ'upia ou g/iaY/lp;a yara (= senhores - yara - do guayu­pia). 0 Vocabuldrio da Lt"lIglia Brus{/ica diz. no verbele F<'itic<'iro: "0 espirito des­te (0 feiticeiro born) se chama goajl/pia."· 0 "Ho/l;olw'ra" de Thevet. que e "0 es­pirito pelo qual eles - os xamas - adivinham 0 que esti par vir". e provavelmenteuma ma transcricao do Olesmo termo. E$.<;3s tres illtimas fontes concordam. portan­to. e, na impossibilidade de estabelecermos a etimologia de guaY/lp;a. devemos con­c1uir que d'Abbevilie se enganou. Seu erro e revelador; reduz, ate mesmo no planolinguistico, a Terra sem Mal a uma morada dos espiritos.(47) A respeito da significa~ao da palavra kandire. cf. cap. IV.

Page 19: Terra sen mal helen clastres

TERRA SEM MAL 35

capitulo II

PAlES E CARAfBAS

o xamanismo parece oferecer, em toda a America, uma notavelhomogeneidade. Como tantas outras popula~oes amerindias, os tupis­guaranis dispunham dessas personagens prestigiosas, mediadoras en­tre 0 mundo sobrenatural e os humanos, capacitadas por seus donsparticulares a desempenhar as mais diversas funQoes: curar os doen­tes, predizer 0 futuro, mandar na chuva ou no born tempo...

Com os guaranis, contudo, 0 xamanismo e mais e outra coisa doque isso, ao mesmo tempo: acresce-se de uma dimensao nova e ad­quire significado e alcance particulares - de ordem religiosa e naomais, apenas, magica - que 0 diferenciam sensivelmente do que eem outros povos.

Entre os apapocuvas-guaranis com quem viveu no come~o desteseculo, Nimuendaju 1 observou que existia uma especie de hierarquiavinculada ao xamanismo: os indios repartem-se em quatro categorias,em fun~ao dos seus dons xamanisticos. A primeira, negativa, reuneos que nao rem nenhum cantico, isto e, os que nao receberam, ou ain­da nao receberam, inspir~ao; pertencem a essa categoria a maiorparte dos adolescentes e alguns raros adultos decididamente refra­tarios ao comercio com os espiritos: esses nunca poderao dirigir asdan~as. A segunda categoria compreende todos, homens e mulheres,os que possuem urn ou varios canticos - prova de que rem urn es­pirito auxiliar - sem contudo serem dotados de urn poder suscetivelde ser utilizado para fins coletivos. Alguns destes (os que se aproxi­mam da terceira categoria) podem dirigir certas dan~as. Faz partedesse grupo 0 maior numero dos adultos de ambos os sexos.

A terceira categoria e ados xamas propriamente ditos, os pajlis:capazes de curar, de prever, de descobrir 0 nome dos recem-nascidos,etc. A ela chegam homens e mulheres, que rem direito ao titulo de"Nanderu" ou "Nandesy" (nosso pai, nossa mae). So homens podemascender it quarta categoria, ados grandes xamas, cujo prestigio va;

muito alem dos limites da comunidade. Estes se tornam lrequente­mente os dirigentes politicos do grupo. So eles podem conduzir agrande dan~a do Nimongarai, a mais importante festa apapocuva. Es­sa festa era celebrada todo ano, entre janeiro e ma~o, na epoca emque 0 milho come~ava a amadurecer e destinava-se, entre outras coi­sas, a proteger homens, animais e plantas das mas influencias susce·tiveis de ocorrer durante 0 ano. Como toda grande cerim6nia, 0 Ni­mongarai exigia longos preparativos, ja que se devia dar de comer eheber a participantes muito numerosos: com efeito, nessa ocasiao (eso nela) toda a tribo se reunia, pois nao somente todas as aldeias vizi­nhas eram convidadas, mas tambem regressavam por alguns dias itcomunidade individuos ou familias, que de ha muito tinham renun­ciado ao modo de vida tradicional para ir trabalhar nas fazendas bra­sileiras. Festa de primicias, 0 Nimongarai'tambem tinha urn signifi­cado ao mesmo tempo politico e religioso, como esclarece 0 ritual deencerramento, em que os dois aspectos se misturavam estreitamente.Depois de quatro noites de dan~as ininterruptas, na aurora do quintodia desenrolava-se uma cerimonia que reproduzia 0 ritual do batismo,apenas com a exce~ao de que nela nao se dava nome: urn apos outro,todos os assistentes se apresentavam diante do pajl!, cada urn acompa·nhado por urn "padrinho" e uma "madrinha".2 A finalidade desse ul­timo rito era a de selar a alian~a politica, simbolizada pela rela¢o deIyvasa, ou compadrio, assim estahelecida entre todos os membros datribo." J

A breve evoca~ao dessas festas, hoje desaparecidas (Nimuendajuassistiu its derradeiras), permite trazer it luz 0 papel verdadeiro dessesgrandes xamas - os cara{s - sem a menor duvida curandeiros,mas antes de mais nada lideres religiosos, e muitas vezes politicos,das aldeias.

o imenso prestigio desfrutado pelos xamas havia impressionado osprimeiros viajantes e todos foram fascinados por tais personagens,que suscitaram sentimentos bern diversos, muitas vezes ambiguos,mas nao os deixaram indiferentes. Donde, sem duvida, as excelentesdescri~6es que eles nos deixaram. Quanto aos missionarios, eram osmenos capazes de se desinteressar ja que, confessam, foi nos xamasque encontraram os mais serios obstaculos it cristianiza~ao: "Essespajlis ou barbeiros, que ocupam entre os selvagens a posi~ao de me­diadores entre os espiritos e 0 resto do povo, sao os que rem maiorautoridade, obtida pelas suas fraudes, sutilezas e abusos e com maisfor~a detiveram essa gente sob 0 reino do Inimigo da Salva~ao ..." 4Talvez impostores, mas de genio - de genio maligno - e com quemera preciso contar - Nobrega, Montoya, Lozano,Yves d'Evreux... to­dos, com bela unanimidade, denunciaram os xamas como os seuspiores inimigos; e inimigos ainda mais formidaveis porque neles reco-

Page 20: Terra sen mal helen clastres

""'"-.'"

36 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 37

I

nheciam - da mesma forma que os indios - urn poder obscuro,mas muito real: em suma, eram eles os aurenticos sequazes de Sata­mis. Toda a narrativa da "Conquista Espiritual" de Montoya e a deuma constant:e luta de Deus contra Satanas, inspiradores respectivosdos padres e dos xamas. Pois zornbar da credulidade dos selvagensnao impede, em absoluto, os brancos de tambem incorrerem nela: pa­ra eles, nao faz a menor duvida de que os xamas manrem c~mercio

com 0 diabo e de que, se rem poder, devem-no a ele. Yves d'Evreux,apesar de atribuir ao acaso de uma predi,ao realizada a notoriedadealcan,ada por tal ou qual xama, consagra varias paginas (apos urn de­les haver-lhe feito, sobre acontecimentos de Fran,a, uma predi,aoque se revelou exata) a esse ponto especifico de Teologia: Satanas po­de conhecer o. futuro? E, concluindo sua argumenta,ao pela afrrmati­va, explica simultaneamente 0 saber e 0 poder dos "barbeiros". Pode­riam ser citados muitos outros exemplos. Cpntudo, por tras da indig­na,ao provocada pelos que se desejaria considerar como meros im­postores, desponta uma secreta admira,ao: e certo que sao censura­dos, e com violencia, seus "abusos" e "astucias", mas ao mesma tem­po se reconhece e salienta sua habilidade e eloq!iencia, seu espantosopoder de sedu"'o. "0 Diabo, - explica Yves d'Evreux - esplflto so­berbo, nao se comunica indiferent:ement:e com todos os barbeiros:mas escolhe os mais belos espiritos dentre eles e entao mistura suasinven,Oes com as sutilezas desteS."5 Lozano recorre a mesma explica­,ao para compreender 0 fato de que os xamas sempre sejam recruta­dos entre os espiritos mais sutis..

Assim apareceram as xamas aos eUfopeus. Falta veT, varando ascren,as destes ultimos, 0 que eles representavam para os indios. Asnarrativas das suas gestas, feitos e ditos sao numerosas e, muitas ve­zes, preeisas; e sem duvida a Yves d'Evreux que devemos as melho­res: tendo-se convencido rapidament:e da profunda influencia dos xa­mas sabre as outros indios, este missiomirio se dedicara quase exclu­sivamente a sua conversao, chegando a ligar-se com alguns dentreeles.

A hierarquia dos xamas

As aldeias tupis e guaranis eram compostas de varias casas coleti­vas (geralmente quatro, as vezes oito), dispostas a volta de urn espa,ocentral. De acordo com Yves d'Evreux, duas pessoas detinham 0 po­der em cada aldeia: urn mburuvicha (= morubixaba, chefe) e urn pa-

gy ua,u (= grande xami). Estes grandes xamas eram o.s que r~ce­biam 0 titUlo de cara{ (pronunciar cara{; grafa-se tambem. caralva,ou caraiba). Com efeito, nem todos os pajes desfrutavam de igualprestigio e Y. d'Evreux por sua vez os distingue em tres categorias."Vos os encontrais que sao muito pequenos, e pouco prestiglO pos­suem, e pouco e 0 temor que inspiram, e de muito nao lhes vale 0 seuoficio. Ha outros, algo mais sabios e medios, a cammho entre os pe­quenos e os grandes: e esses habitualmente abrem a sua botica em ca­da aldeia que se atribuem C.') cuidando das dan,as e outras COlSas quedependem do seu oficio." Vern, finalmente, os gr~nd~s; ."sao os maisprezados apos os Principais e ate mesmo os PrmclpalS Ihes falamcom reverencia." 6 Sua fama ia muito alem da aIdeia: "Se esses peque­nos 'e ~diocres (= medios) barbeiros rem autoridade entre os seus,muito maior e a que possuem os que propriamente sao chamados Pa­gy Ua,u, grandes barbeiros: pois estes sao como os soberanos de umaprovincia, grandemente temidos e arreceados, e chegaram a tal auto­ridade atraves de muitas sutilezas." J

U rna outra triparti,ao era corrente entre os guaranis, a acreditarem Lozan08 que, alem disso, trata de esclarecer 0 papel que cabia acada categoria: "A prirneira era a arte de chupar (.. J aquele que sedizia chupador, para ganhar a vida e adquirir renome entre os seus,fingia possuir 0 poder de curar as doen,as chupando as partes doen­tes"." Trata-se, portanto, de curandeiros propnamente dltOS; 0 autorexplica a seguir como se desenrola 0 tratamento, que principia, na ca­sa do doente, atraves de danyas - uma serie de "gesticula,Oes ridicu­las", diz Montoya. Em seguida, 0 xama chupa a parte afetada, paraextrair dela 0 objeto patogeno, "espinho, fragmento de osso ou vermeque trazia escondido debaixo da lingua", e mostra-Io a assisre?cia. E,como se ve, a tecnica de cura mais corrente em toda a Amenca doSuI. A segunda especie de feiti,aria - continua ele - e mais perni,ciosa, pois os que a exercem sao familiares do dem6nio, que Ihes apa­reee cornu mente sob a forma de urn "negrinho", acompanhado deurn barulho aterrorizador e na maior confusao. Consultam essa apari­"'0 cada vez que querem enfeiti,ar alguem; para faze-lo, p~ocur~m

diversos objetos suscetiveis de provocar 0 mal, talS como carvoesmuito secos, para suscitar a febre ou it tosse; ossos, espinhos, objetos.pontudos, para trespassar 0 corpo de dores..." Sao lan,adores de sortee Lozano deixa muito claro que so empregam seus talenlos para tra­zer as doen,as e a morte.

Antes de passarmos a terceira categoria, detenhamo-nos por urnmomento na primeira distin,ao que efetuam os dois autores a quemacabamos de nos referir. Ela nao tern 0 mesmo conteudo nos dois ca­sos. Segundo Yves d'Evreux, pode-se dizer que a diferenya entrequem ele chama de pequenos e medios xamas e apenas de grau: e so-

Page 21: Terra sen mal helen clastres

38 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 39

mente atraves da desigual extensao do seu renome que eles se distin­guem. Em outras palavras, nao tern cabimento Conservar a triparti­,ao que ele sugere e a verdadeira distin,ao esm entre paN e pagy ua­ru. Em compensa,ao, a distin,ao efetuada por Lozano pode parecermais pertinente: curandeiros e lan~dores de sorte sao radicalmenteopostos. Mas ela nao deixa de propor urn problema. Entre todos ostupis. com efeito, (como acontece em numerosas outras culturas ame­rindias) se uma das fun,aes essenciais dos xamas e a de curandeiros,os homens-medicina sao sempre ambivalentes. Alfred Metraux9 0

mostrou: senhores da doen~, os xamas podem conjuni-Ia ou infligi­-la a seu bel-prazer. 0 poder sobrenatural que carregam - gr~ asua faculdade de entrar em comunica,ao com os espiritos - provemde terem acesso a urn saber fechado aos outros homens: conhecem adimensiio oculta das coisas. Por sua propria essencia, 0 poder nascidode tal saber e indeterminado, nao orientado para fins especificos.Oai, a multiplicidade das fun,aes xamanisticas, que geralmente naosao encontradas em separado, distribuidas por individuos diferentes.

Ter-se-a notado que as tecnicas descritas por Lozano, utilizadas porcurandeiros e feiticeiros, sao exatamente as mesmas, parem inverti­das, como invertida e sua fmalidade: 0 que tende a indicar que, narealidade, so lidamos com verso e reverso da mesma pratica. Oai sepoderia concluir que existia, entre os guaranis, no interior da catego­ria paN, uma reparti,ao das atividades correspondente a uma especiede divisao do trabalho.1 0 Por conseguinte, tambem ai nao cabe acei­tar a distin,ao (pelo menos na perspectiva que e a nossa. Pois, paraurn estudo do xamanismo, ela certamente nao seria desprovida de in­teresse). 0 que desejariamos estabelecer melhor aqui e 0 que diferen­ciava os paNs, os xamas propriamente ditos Osto e, as duas primeirascategorias de Lozano e Yves d'Evreux) da terceira categoria, os ca­ra/s, que alguns cronistas, com muita pertinencia, chamaram de"profetas".

Observemos, para come~r, que alguns autores antigos estabelecemexplicitamente a distin,ao entre paN e carai. Lery: "E preciso saberque eles acolhem certos falsos profetas a quem chamam Cara/bas,que andam e vern de aldeia em aldeia, como os tiradores de ladai­nha 11 no papado, e assim fazem crer que, por se comunicarem comos espiritos, podem nao apenas dar for,a a quem desejarem para ven­eer e suplantar os inimigos na guerra, mas ainda que sao eles que fa­zem crescer as grossas raizes e os frutos que, como eu disse em outrolugar, essa terra do Brasil produz." E toma a precau,ao de expli~arque nao se deve confundir os caraibas com "... uma especie de em­busteiros que tern entre si, chamados Pajes, 0 que quer dizer barbeiro·ou medico. que lhes fazem crer nao apenas que tiram a dor. mas tam­bern que lhes prolongam a vida." I2

t

o termo paje, por conseguinte, refere-se ao que comumente se en­tende por xamii: 0 encarregado de curar 0 mal ou, se for 0 caso, deinfligi-Io e que, pela simples ambigiiidade dos seus dons, e urn ho­mem sempre temido e respeitado, sabendo muito bern, alias, fazer re­munerar seus prestimos. Cardim faz a mesma distin,ao e acrescentaque os indios nao acreditam especialmente nos xamas; simplesmente,julgam-nos capazes de curar. Quer dizer que nao sao considerados se­res sobrenaturais, que seriam venerados como tais; isto so acontececom alguns deles: os que merecem 0 titulo de cara/ba, isto e, segun­do Cardim, de santo ou santidade. A respeito dessa tradu,ao, pode­mos fazer varias observa,aes. "Santo", "santidade" sao os termos queos primeiros jesuitas empregam com mais freqiiencia (Nobrega, Cor­reia, etc.). Thevet, que por outro lado sempre emprega indistintamen­te os termos de paje e caraiba, nunca deixa de atribuir 0 'titulo de ca­raiba aos heM;s culturals dos mitos. 0 Tesoro de Montoya recordaque cara/ era 0 titulo atribuido aos grandes xamas e 0 nome que foidado aos espanhois, propondo a etimologia seguinte: a palavra seriaformada pela aglutina,ao de cara (= habilidade, destreza) e y, queindica perseveran,a. Incapazes de propor outra melhor, aceitemos es­tao Tudo indica, em todD caso, que os carals eram muito mais do quexamas; apenas uns raros pajes conseguiram chegar a carafs e desdeesse momento nao era mais sua fun,ao cuidar dos doentes.

Voltemos ao texto de Lozano: "A terceira especie de feiti,aria deti­nha autoridade muito maior do que todas as outras, pois se tratava deuma arte particular que bern poucos possuiam. Estes, os mais corajo­sos e mais audazes, tentavam persuadir a popula,a de que eram filhosda virtude suprema, sem pai terrestre, embora admitissem haver nas­cido de mulher... Passavam por autenticos profetas aos olhos da po­pula,a, que via as vezes realizarem-se algumas das suas predi,6es.Eram considerados como santos, obedecidos e venerados como deu­ses." 13 Seu renome estendia-se por toda a regiao e podiam dirigir-se avontade para onde bern entendessem, certos de serem temidos e res­peitados em toda parte. Os proprios jesuitas lhes atribuiam urn poderexorbitante; nao somente garantem haver testemunhado, muitas ve­zes, a veracidade das suas predi,6es, mas ainda acreditam-nos capazesde efetuar milagres demoniacos: secar subitamente urn rio ou Urntanque, ou, ao contrario, fazer as aguas encherem de repente e provo­carem inunda,aes catastroficas... Oa natureza das suas profecias, doque se dizia nos seus discursos (pois a eloqiiencia era sua grande qua­lidade), infelizmente Lozano nao conta palavra. Acrescenta duas pre­cis6es acerca do seu modo de vida: afetavam amar a solidao e infli­giam-se freqiientemente jejuns rigorosos, ate perderem 0 conhecimen-to. .

I

Page 22: Terra sen mal helen clastres

40 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 41.

o estatuto dos carais.

Sabe-se, com efeito, que os carals viviam retirados, afastados dasa1delas, e nunca residiam com os demais (Inclusive com os chefes) nasgrandes casas coletivas, no que diferiam dos. xamas. "Vos os vedesd~monstrando uma gravidade exterior; e falam pouco, amando a soli­dao, e eVltam 0 mais que podem as companhias... E, para conserva­rem-~e em tal honra, ergu~m suas moradas a parte, afastadas de viZi­nhos ,14 escreve Yves d'Evreux que, quando da primeira entrevistaque teve com Pacamonte, "Grande Barbeiro e Principal" de Comaouviu dizer isso: "Ha varias luas que tenho 0 desejo de vir ver-te ~aos outros Pais ('" padres), mas sabes. tu que falas a Deus, que na~ eborn nem convemente que nos, de quem dizem que conversamos comos Espiritos, sejamos levianos au faceis e as primeiras novas nos mo­vamos e ponhamos em caminho: porque somos olhados por nossossemelhantes e eles seguem 0 que nos fazemos. 0 poder que obtivemossobre nossa gente conserva-se gra<;as a uma gravidade, que Ihes de­monstramo~ em nossos gestos e palavras. Os voluveis e os que, aoprlI1~elrO ruldo, aprestam suas canoas, enfeitam-se com penas e vaover as pressas 0 que aconteceu de novo, sao pouco estimados e nao setornam grandes principais." 15 Essa bela li<;ao de tecnica de vida dosgra~des desse mundo dispensa comenmrios e merecia ser citada.Asslm, seu comportamento, seu modo de vida, tudo os designa comopersonagens excepcionais.

Mais ainda do que uma atitude apenas destinada a ressaltar sua irn­portlincia, .esse isolamento d~Iiberado era uma maneira de marcar queeles pOSSUIam urn estatuto a parte, que, de fato, nao pertenciam ver­dadelra~ente a u~a ~omunidade, que nao eram de lugar algum.Com efelto, eles nao so V1VIam afastados numa morada feita para seuuso excluslVO, como amda permaneciam pouco tempo na mesma al­dela. Deslocavam-se constantemente, percorrendo provincias inteiras.Todos os a~~ores insiste~ na sua vida errante e Thevet, por exemplo,trata-os de vagabundos. Mals urn tra90 que os op6e aos xamas, senos recordarmos do que dizia Yves d'Evreux a respeito desses ulti­mos. EVltavam mlsturar·se com os outros, participar das conversas esobretudo dos varios trabalhos, jejuavam, recusando as vezes ostensi­vamente a comida que Ihes era oferecida e pretextando que nao ti­nham necessidade alguma de alimentos. Mas, em certos momentosdo dia, dirigiam-se a aldeia reunida, atraves de discursos muitas vezesbastante compridos.

Trataren:'0s daq?i a p~uco do objeto das suas peregrina90es; porenquanto, e necessano sahentar que, dessa forma, nao so podiam per­correr todas as aldeJas de uma "provincia", 16 mas. tambem dirigir-se

a aldeias inimigas. E isto so eles podiam fazer: qualquer outra pessoaque 0 tentasse seria aprisionada e executada. Em varias das suas car­tas, os Jesuitas assinalam esta liberdade desfrutada apenas pelos profe­tas e que Ihes permitia circular, como melhor entendessem, entre asprovincias inimigas. E Soares de Sousa da uma curiosa informa<;aoque talvez se possa interpretar no mesmo sentido: "Entre este gentiosao os musicos fiui estimados e. por oode quer que vaa. sao bernagasalhados, e muitos atravessaram ja 0 sertio por entre seus con­trarios, sem Ihes fazerem mal. "17 0 mesmo autor diz ainda que ostupis desistiam, as vezes, de comer urn prisioneiro de guerra, se estefosse urn born cantor. Ja observarnos a irnportancia do canto no xa­manismo e teremos a oportunidade de voltar a este assunto. Mas serurn otimo cantor mio significava apenas, para os indios, ser capaz demodular agradaveis melodias (embora sua sensibilidade musical tenhasido ressaltada por numerosos observadores); significava, sobretudo,poder cantar muito tempo e enunciando palavras. 0 canto era urndiscurso, pontu, 10, entrecortado de melodias nao faladas (e razoavela descri<;ao de Lery). Se, portanto, os tupis poupavam esses cantoresexcepcionais, e porque deviam reconhece-los como caraibas. E sabidoque estes ultimos podiam acompanhar expedi<;6es guerreiras; por is­so, podiam, mesmo DaD combatendo, ser feitos prisioneiros.

Essa dupla liberdade dos carai., quanto ao espa<;o - exteriores aaldeia e exteriores a "provincia" - e 0 sinal de urn estatuto dupla­mente marginal. Pelo menos idea/mente. seu estatuto tornava-os ex­teriores as aliam;as politicas e exteriores ao parentesco. Pois estar forada comunidade mio significa apenas morar afastado; ou melhor. esseproprio afastamento so comparece para manifestar uma exterioridademais profunda: a que situa 0 profeta fora, do ponto de vista socia; (emio apenas espaciaI), do que precisamente eonstitui uma comunidade:da rede de parentesco.

A impressao que nos fica da leitura de lodos esses lestcmunhos ede que nunea se sabe de onde vern os ("(fro(... : nem de qual lugar doespa<;o, nem - por conseguinte ~ de que ponto da genealogia. Indoe vindo constantemente, portanto sem residencia, estao em toda partee por isso mesmo em nenhum lugar. Recordemos 0 que Lozano diz aseu respeito: que as vezes eles afirmavam mio serern nascidos de paLmas somente de mae. Seria possivel ver nessa afirmal;aO _. como defata se viu - urn sineretismo, uma reminiscencia da Virgem Maria:eles se teriam apropriado desse tema para justificar sua propria divin­dade. A explica<;ao talvez seja verdadeira quanto aos profetas do secu­10 XVlll, que eram freqtientemente mesti<;os. Mas. antes disso'> Va'mos sugerir uma. explica<;ao mais simples do que a que recorre aosincretismo: nao ter pai significa, para os tupis-guaranis, patrilinea­res, nao ter parentes. Nascer de mulher pode. em compensa<;ao, ser

Page 23: Terra sen mal helen clastres

42 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 43

aceito sem maiores dificuldades: mia. como afirma Lozano, porquehouve testemunhas do nascimento e tal evidencia mio pade seT nega­da, mas porque a mae tern pouca importincia, tanto "naturalmente"(nao e geradora: mas mero receptaculo) como socialmente (nao e porseu intermedio que a pessoa se, insere no parentesco). De modo que,enunciando tal "pretensao" os carals DaD faziam mais do que ex­primir ou reivindicar 0 estatuto ideal que, efetivamente, era 0 seu.

A esse respeito. os carat'.s terrestres representam 0 inverso si­metrico dos carais miticos, que, no decorrer da narrativa de Thevet,sucedem-se de pai a filho e aparentam nunca ter mae. Se excetuarmoso mito do dihivio, que menciona dois casais - 0 que se explica no ca­so, ja que se trata de dar conta da origem da humanidade sob as es­pecies concretas das sociedades diversificadas - so uma vez mais sealude a uma mae, a des "gemeos", e ainda assim essa heroina so ternuma importancia secundaria. Por essa TaZaa, ao se descer do Cell aterra, ocorre uma inversao das coisas, isto e: a transforma¢o do he­roi mitico em heroi terrestre acompanha-se da transforma¢o de "ori­ginado de pai" em "nascido de mae". 0 que pode significar que, se oscara{s nao rem pai terrestre, e porque a unica genealogia que possaconvir-lhes e a que os ligaria aos grandes herois celestes. Em todocaso, os cara is llaD teriam desmentido essa interpreta<;ao, eles que po­diam afirmar que "eram Deus e que nasceram deuses"! 18

lsso posto, antes de prosseguirmos na questio do estatuto particu­lar dos carals, na verdade rpuito mais complexo do que parece nessaanalise, encerremos 0 problema da imagem que os indios linnam de­les. Tal imagem conforma-se aque os carals tinham de si mesmos ee coerente com 0 que acabamos de expor. Para os tupis-guaranis, comefeito, essas personagens aparentavam-se com os herois culturais dosseus mitos e por vezes ;:lconteceu de verem neles esses proprios heroisreencarnados. Os poderes que Ihes atribuiam evocavam os dos cara­ibas miticos; assim como esses ultimos, passavam por transfarmada­res: capazes, por exemplo, COmo narra Thevet, de mudar os hom'ensem passaros ou animais, ou de metamorfosear a si proprios (de prefe­n\ncia em jaguar, entre os chiriguanos): 0 que nao deixa de evocaruma personagem precisa do mito, 0 segundo Maira-Monan, cujo pas­satempo predileto era exatamente transformar "algumas coisas emoutras", a tal ponto que acabou fazendo os homens perderem a pa-

"- ciencia e resolverem queima-lo vivo. Tambem sabiam fazer 0 milho eas plantas crescerem sozinhos (cf. Fernao Cardim): como, no mito, 0

pai dos gemeos. Como 0 primeiro dos gemeos, podiam ressuscitar osmortos (Cardim, Nobrega, etc.), ou transformar as velhas em mo­~as... Em suma, os poderes que Ihes eram atribuidos nao os faziaminvejar os seus modelos. Quanto ao modo de vida, conta-se que urndos "Malras" miticos vivia na solidao, falando pouco e praticando

grande abstinencia. A concordancia parece estabelecer·se em todos· ospontos. Essa visao desdobrada das coisas, apresentada aqui na suaforma mais concreta, permite compreender 0 fascinio que os cara{spodiam exercer. Esbo~ada em suas linhas mais gerais, tal era, entio,a imagem que os indios tinham daqueles que devemos, portanto, cha­mar mio de xamas mas de prqfetas (no que nao se enganaram os pri­mciros viajantes), ou (para retomar 0 termo tio justo de Metraux) dehomens-deuses. Acrescentemos que seu imenso poder sobre os in­dios merecia uma contrapartida: bastava que fossem suspeitos de ha­ver desejado enganar os outros. para serem abandonados ou mortos(Cf. Cardim e Thevet) sem piedade - no que, como vimos, continua­yam seguindo os seus homologos miticos. Isso mio afetava em nada acren~a dos indios; muitos viajantes, por sinal, constataram que, aotentarem convencer os indios de que seus profetas eram meros im­postores, enfrentavam a mais viva hostilidade (isto e coisa tio grave,diz Lery, que entendia do assunto, como criticar 0 Papa nos paises daEuropa).

A ambigiiidade dos homens-deuses

Ate aqui tentamos definir 0 profeta principalmente em oposi~iio

aos xamas, mas tambem, como veremos, aos chefes. Para isso, so uti­lizamos uma parte das informa~oes - as que, como salpicadas pelosvelhos textos, convergiam 0 bastante para evidenciar a posi~ao demarginalidade que nos permitia apreender 0 profeta na sua diferen~a.

A essa defini~ao que - repitamos - pretendia apenas ser logica ouideal, superpunha-se uma imagem, correspondendo ern termos geraisIi representa~ao india. Para 0 leitor, as informa~iies dadas ate agoraacerca da vida dos carals comportam ° risco de induzir a uma visaopor demais sumaria de tais personagens: poderosos, sem duvida, masantes de mais nada ascetas, impondo-se constantes restri~oes alimen­tares, evitando a sociedade dos outros homens, preocupados em so fa­lar para dizer alguma coisa... (e isso era certamente verdadeiro: nu­merosos testemunhos, e So citamos alguns deles, repetem-se e reco­brem-se). Devemos acrescentar as outras informa,oes (tambem elas.e pelas mesmas razoes, a salvo de qualquer duvida): algumas nos per­mitirao aclarar e enriquecer esse quadro, pois, mesmo que ao primei­ro olhar pare,am contraditorias, elas sao pertinentes. Ou tras, emcompensa<;ao, sao irredutiveis e, somadas todas, ver-se-a que as per­sonagens dos carals nao deixavam de conter algumas contradi<;Oes.Ja 0 discurso, acima referido, de Pacamonte nao deixa de suscitar

Page 24: Terra sen mal helen clastres

uma impressao ambigua: hesitamos se e cinico OU ingenuQ e semduvida DaD e uma coisa nem Dutra. Mas sejamos precisos.

Destes personagens. errantes e solitarios. tambem se conta que sose deslocavam bern acompanhados: nenhuma narrativa, ao evocar achegada de urn deles a uma aldeia. deixa de descrever com mimiciasa numerosa comitiva que os seguia: tambem nao faltam precisoes so­bre 0 fausto de tais deslocamentos: era a ocasiao de adornar os rna ra­cds, de todes se enfeitarem com os -mais belos ornamentos de penas;uma embaixada da aldeia partia ao encontro dos visitantes. dan,andoe cantando. Varria-se 0 chao que 0 caraiba ia pisar. as vezes chegava­-se ate mesmoa tomar precauyoes para que ele oem 0 tocasse: assime que se conta que urn deles gostava de ser carregado em cima deduas espadas cruzadas e seguras por guerreiros; que urn outro chegoua uma aldeia encarapitado nas costas de uma das suas esposas... Emsuma. recebiam todas as marcas de honra e venera,ao que pudessemencontrar. Esses pormenores, contudo. nao refutarn nossa analise e efacil compreender 0 que acontecia: quando era anunciada a chegadade urn caraiba a uma aldeia. esta se preparava para acolhe-Io (vere­mos, adiante, como): os que formavam seu "sequito" erarn, provavel­mente. os habitantes da aldeia que ele acabava de deixar e que. aposurn au dais dias passados na segunda aldeia. regressavam a suapropria. 0 caraiba podia. por conseguinte. continuar sempre errante.sem que seu seqUito 0 fosse, e ao mesma tempo estar sempre acom~

panhado. Tais marcas de honra nao impediam. tampouco. que ele[osse urn solitario: sua solidao. como se viu. deve entender-se em re­la,ao it aldeia. a comunidade; a esse respeito. dentre os diversos pre­parativos para sua acolhida. a primeira preocupa,ao era edificar umacasa separada.

Outros trac;os do seu comportamento ja sao menos faceis de conci­liar com ~ertas exigencias que, no entanto, eram afirmadas. Assim eque praticas asceticas (jejuar e absorver fuma,a de tabaco; alimentar­-se essencialmente de vegetais. por exemplo. sob forma de bebidas fer­mentadas, mas recusar os alimentos a base de carne, etc,) casam-semal com os verdadeiros tributos emalimenta.ao ou objetos de valor.que muitas vezes eram exigidos pelos caraibas, ao que se conta. nasaldeias em que passavam. Tao grande era 0 medo que inspiravam.que ninguem ousava recusar-lhes nada: e nao faltam testemunhaspara afrrmar que mio mostravam muitos escrupulos em aproveitar~se

dessa vantagem. Alguns autores referem-5O a eles como tiranos. Po­diam mesmo - e nao faziam cerimonia nisso - exigir mulheres: variosdeles eram poligamos. a exemplo dos chefes. e urn possuia cerca dequarenta mulheres - nlimero nunca atingido. sequeL pelos chefesmais· nimosos.

Sua riqueza, sua poligamia ja os assimilam aos chefes. Eis 0 quenos leva ao ponto em que eclode a contradi,ao: alguns caraibas fo-

Discursos e cerimoniasAgora. falta-nos estabelecer que a Terra sem Mal era. efetivamen­

~. a preocupa,ao fundamental dos profetas. Jii vimos que a [un,aodos carats mio era mais, ou era acessoriamente apenas, a de curan­deiros. Se iam de aldeia em aldeia, era para anunciar urn certo mlme~

ro de coisas, para falar a todos; pais. se buscavam a solidao e preza­yam 0 silencio. tambem sablam mostrar-se muito eloquentes. E bas­tante provavel que esses discursos fossem proferidos de manha. ao

ram. efelivamente. chefes de uma provincia. Ora. 0 estatuto de chefee incompativel com 0 de carai. Sem duvida. eram bern raros os queacumulavam as duas func;6es, sobretudo no seculo XVI; talvez issonunca livesse ocorrido antes da conquista. No seculo XVII. contudo.encontram-se alguns (entre eles. Pac~monte). Sua fOf\'a devia l'rova­velmente aumentar, ao reunirem os dois poderes, mas estes nao po­diam mais permanecer no mesmo plano: 0 poder religioso acabavanecessariamenre subordinado ao politico. Tornar-se chefe implicavadeixar de ser completamente profeta: mais exatamente. conservando­-se Seu prestigio e for,a. perdia-se contudo seu estatuto. Urn chefe naotern. nem pode ter. 0 privilegio de "livre-transito" em meio a provin­cias inimigas. pois e ele quem decide sobre as expedi,oes guerreiras. eatraves dele que as comunidades se delinem como aliadas ou inimi­gas. Com toda a evidencia. ele nao poderia ser exterior as alian,as po­Iilicas. ja que e precisamente ele quem as encarna. Da mesma forma.nao pode ser exterior acomunidade cujos afazeres ele rege, nem Ii re­de de parentesco. Urn chefe 50mpre ocupa uma' posi,ao localizavel notempo e no espa,o. pois ser chefe e. antes de mais nada. pertencer auma Iinhagem privilegiada (a chelia e hereditiirial. e governar uma al­deia e residir nela. Por conseguinte. a ambiguidade coextensiva it per­sonagem dos carat's, enquanto homens~deuses, era levada ao extre~

mo. isto e. are a contradi,ao. quando estes ascendiam it chelia.Para explicar este fenomeno. gostariamos de propor Uma hipotese:

a contradi,ao que representa em si mesmo 0 profeta-chefe poderia 50ro signo e. ja ao mesmo tempo. a solu,ao de uma contradi,ao maisprofunda da sociedade guarani - entre 0 politico e 0 religioso. Sabe-5Oque exisliam. com certeza. no plano politico. fortes tendencias cen­tripetas nas sociedades tupis-guaranis: elas sao atestadas em especialpelo aparecimento de grandes chefes cuja autoridade era reconhecidanas escalas da provincia (havia varios na epoca da descoberta. comopor exemplo 0 celebre Cunhambebe retratado por Thevetl e par tenta­ti'Vas (episodicas e muitas vezes fracassadas. e verdadel de confedera­,ao. lnversamente. a religiiio exprime sobretudo fOf\'as centrifugas.negadoras do social. como vamos ver: pois e este. interpretado noplano sociologico. 0 signilicado da Terra sem Mal.

45TERRA SEM MALHELENE CLASTRES44r

Page 25: Terra sen mal helen clastres

46 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 47

nascer do sol; em todo caso, urn texto 0 sugere: uma carta do irmiiojesuita Pero Correia, de 8 de junho de 1551. Este narra, com efeito,que, durante uma viagem que fez pela na,iio tupi, 0 padre que 0

acompanhava !he recomendara que pregasse pelo menos duas horas.por ocasiiio da aurora, em cada aldeia por onde passassem: "manda­va-me pregar-lhes nas madrugadas, duas hOTas ou mais; e era na ma­drugada porque entiio era costume de !hes pregarem seus principais epajes, a que eles muito creem."20 Infeliz mente, nada diz do conteudodesses longos discursos repetidos com tanta freqtiencia. E os jesuitasniio devem ter feito muitos esfor,os para ouvi-los: sem duvida, ja Ihesbastava ouvir repetir por loda parte que os carars eram os iguais dosdeuses, capazes de dar vida ou morte a seu bel-prazer, e outras here­sias tais. Apesar de tudo, e interessante a precisiio fornecida por essaobserva,iio: que os discursos ocorriam ao alvorecer. Ainda hoje, e dese notar que os "lideres" mbias-guaranis falam todas as manhas, de­fronte ao sol nascente: e 0 sentido das suas palavras talvez nao estejamuito afastado das que eram ditas quatro seculos atras. Para sabe-Io,devemos recorrer ao testemunho capital de Jean de Lery: ele foi urndos raros a presenciar uma dessas grandes cerimonias que, periodica­mente, reuniam Dum mesma lugar varios grandes carais: ..... tendoesse costume de, cada tres ou quatro anos, eles (os caraibas) se reuni­rem em grande solenidade..." 21 A informa,ao de Lery quanta a pe­riodicidade dessas reunioes (como ele so vivera durante urn ano entreos tupinamb:is, obtivera-a de "inrerpretes") e confirmada por Nobre­ga. Esses dois autores sao as nossas melhores fontes sobre 0 que sepassava e se dizia nessas cerimonias excepcionais. Citaremos integral­mente a descri,ao de Nobrega, pois ela engloba a de Lery e ambas secompletam.

"De certos em certos anos, vern uns feiticeiros de longinquas ter­ras, fingindo trazer santidade; e, ao tempo da sua chegada, mandam­-Ihes limpar os caminhos e vao recebe-los com dan,as e festas, segun­do seu costume, e antes que cheguem ao lugar, andam as mulheresduas a duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que comete­ram contra. seus maridos, e umas contra as outras, e pedindo perdaopor elas. Chegando 0 feiticeiro, com muita festa, ao lugar, entranuma casa escura, e poe uma caba,a de figura humana que leva naparte mais conveniente para seus enganos, e mudando a sua propriavoz como de menino, e junto da caba,a lhes diz, que nao cuidem detrabalhar, nem vao ii ro,a, que 0 mantimento por si crescerii, e quenunca Ihes faltara de comer, e que por si vira a casa; e que C.J as fie­chas irao ao malo cayar para seu senhor, e hao de matar muitos dosseu contnirios. e cativanio muitos para as seus comeres. E promete­-Ihes longa vida, e que as velhas hao de se tornar mo,as, e que deemas filhas a quem quiserem, e outras coisas semelhantes Ihes diz e pro-

mete, com as quais os engana; de maneira que creem haver dentro dacaba~a alguma coisa santa e divina, que Ihes diz aquelas coisas, nasquais creem." 22

Texto capital porque, como se ve, evoca os temas essenciais dosdiscursos dos profetas. Confirma tambem 0 que acima diziamos so­bre 0 prestigio dos corGi'S, sabre os poderes que lhes eram atribuidos.E, sobretudo, nao deixa duvida alguma acerca do teor desses discur­sos: e da Terra sem Mal ue eles tratam. terra em que tudo e pro­duto a a undancia sem que seja necessario trabalhar, onde se gozade perpetua juventude, etc. - e 0 advento dela que prometem. Sao elesos fiadores de que ela e possivel aqui e agora, pois podem comprome­ter-se a conduzir os outros are la. Sem duvida, esse texto nao trata demigrac;ao: naD se incitam as pessoas a abandonar as aldeias e pC)f-sea caminho da Terra sem Mal. Mas e dessa propria terra que os ca­raibas sao ·senhores. e sua realizac;ao passivel oeste mundo que elesanunciam: para isso. apenas cabe aos outros conformar-se a regras devida especificas. submeter-se aDS exercicios necessarios do espirito audo corpo. 0 saber dos profetas consiste em possuir a chave desse no­vo lugar: eles conhecem 0 caminho da Terra sem Mal. 0 que naoquer dizer propriamente sua localizac;ao geogratica. mas sim as regraseticas. (micas a propiciarem 0 acesso a ela. Dessa otica. e passivelcompreender 0 sentido das "confissoes" publicas das mulheres(Metraux dizia que nos era desconhecido 0 objetivo destasl: poderiamconstituir simplesmente urn preludio para os diversos exercicios quesempre acompanhavam a procura da Terra sem Mal e condicionavamseu sucesso.

Ressalta com evidencia 0 carater negador dos discursos profeticos:para ascender a essa terra prometida, mio se recomenda apenas aosindios que parem de ca,ar e cultivar (que renunciem, portanto, ao queconstitui a trama da sua existencia cotidiana), mas ainda aconselha-seque desrespeitem as regras de matrimonio. Que deem .was Ii/has aquem quiserem: ea inteira ordem .social que se ve posta em questio.E nao e por acaso que os unicos elementos da ordem social a nao se­rem negados sao a guerra de vinganyas e 0 canibalismo: representam- sob a forma institucionalizada, e por conseguinte controlada, do ri­tual - a nega,ao das regras de alian,a.!.1

Antes de completar essas informa,oes com as fornecidas por Lery,devemos dizer algumas palavras acerca dos maraca:" A existencia decaba,as talhadas em forma de rosto humano e atestada por numero­sos observadores: vimos que Staden considerava-as como as unicasdivindades indigenas. Os maracas eram. utilizados pelos profetas

. quando iam fazer suas predi,oes e nunca se empreendia uma expedi­yiio guerreira sem antesconsulta-los, "Usam alguns (feiticeiros) de'1m caba,o a modo de cabe,a de homem fingida, com cabelos, ore-

Page 26: Terra sen mal helen clastres

48 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 49

Ihas, narizes, olhos, e boca: estriba esta sobre uma frecha, como so­bre pesco,o, e quando querem dar seus oniculos, fazem fumo dentrodeste caba,o com folhas secas de tabaco queimadas; e do fumo quesai pelos olhos, ouvidos e boca da fingida cab~a, recebem pelos nar!­zes tanto, are que com ele ficam perturbados, e como tornados do vi­nho." 24 Nessas ocasioes. eram cllnsiderados como que os recep­uiculos dos espiritos e quando 0 profeta "muda a sua voz em voz decrianc;a" e sinal de que, desde esse momento, urn espirito fala, ou me·Ihor, urn deus fala por ele. Devemos considerar os maracas com~

idolos? Seu aspecto antropomorfico poderia levar a esSa compr<>­ensao, mas, alem de nem sempre serem modelados dessa maneira,25tambem outros elementos impedem, ao que nos parece, tal interpreta­,ao. Antes de mais nada, 0 maraca nao era atributo especifico dospajes ou dos caraibas; naa havia quem mio 0 tivesse, fazendo ele par­te do mobiliario das familias tupinambas (of. Thevetl e sendo conser­vado, portanto, junto com os demais bens, na casa coletiva. E urninstrumento musical destinado primordialmente a acompanhar e aritmar as dancyas e canticos. 0 maraca. como observa Metraux,naoera assim coisa sagrada em si mesma. nem objeto de culto algum.Em raras ocasi6es - que. precisamente, coincidiam COm as visitasdos carat's - os espiritos manifestavam·se nele: quando, gra<;as afu­ma<;a de tabaca que expiravam. os grandes paies impregnavam-no dopoder cujos unicos detentores eram eles. "Perambulam (os pajesl umavez por ana atraves da terra, vao a todas as cho,as e relatam que urnespirito, vindo de longe, do estranho, os visitara, investindo-os da fa­culdade de fazer falar e dar poder a todas as matracas (os maracas), seo quisessem ... "26 Cada indio aproveitava a ocasiao para pintar seumaraca de vermelho, para enfeita-Io com penas novas e apresenui-Ioao carai que. depois de reuni-Ios todos. soprava fuma,a de tabaco pa­ra infundir-Ihes um pouco do seu poder e fazer os espiritos falarem(segundo uma informa,ao de Thevet. seriam os espiritos dos ances­trais). Aqui nao se trata de idolos: 0 maraca e 0 acessorio principal doprofeta. 0 mediador tangivel pelo qual deve necessariamente passartoda comunicacyao com 0 sobrenatural.

Voltemos agora a essas grandes cerimonias das quais participavamvarios grandes carais. 0 ritual presenciado por Lery reunia "dez oudoze dos melhores caraibas". Nao nos estenderemos acerca da recep­,ao faustosa que Ihes foi tributada: nesse ponto, Lery nao nos contanada de novo, semio que todas as aldeias da regiao vieram assistir acerimonia, reunindo assim uns quinhentos ou seiscentos homensadultos. Assim que chegaram a aldeia, os indios se dividiram em tresgrupos: os homens numa casa separada, as mulheres em outra, ascrianc;as numa terceira. Mulheres e crian,as foram proibidas de sair.Reunidos a volta dos caraibas, os homens se puseram a cantar, en-

quanta as mulheres, por sua vez, respondiam-Ihes COm gritos ritma­dos, de maneira intermitente. Inicialmente foi um eantieo aterroriza­dor e dissonante, refere 0 autor, que gelava de medo e durou mais oumenos um quarto de hora. Em seguida, os homens voltaram a can­tar, dessa vez em perfeita harmonia, 0 que incitou Lery (que estavaconfinado na casa das mulheres) a ir olhar mais de perto. Dirigiu-se,portanto, passado 0 medo, a casa dos homens, onde estes cantavam edanc;avam. "Bern perto urn do outro, sem se darem a mao nemsairem do lugar, mas dispostos em circulo, curvados para a frente, er­guendo 0 corpo urn pouco, mexendo apenas a perna e 0 pe direitos,mantendo tambem a mao direita nas nadegas, 0 brac;o e a mao es­querdos pendentes: assim cantavam e dan,avam. Ademais, como de­vido a grande multidao eram tres os circulos, nO meio de cada umhavia tres ou quatro desses caraibas, ricamente enfeitados com tan­gas, boinas e braceletes feitos com belas penas naturais C'): seguran­do alem disso, em cada mao, um maraca C.. ) tocavam-nos sem pa­rar C.). Alem do que, esses cara(bas, que avan,avam e saltavam pa­ra a frente e depois recuavam, niio se mantinham 0 tempo todo numtinieo lugar, como· fa:ziam os outros: observei mesmo que pegavammuitas vezes um bastao de pau, de quatro a cinco pes de comprimen­to, em euja ponta havia erva de pelun seea e ardente; virando-o, e so­prando de todas as partes sua fuma,a para cima dos outros selvagens,diziam a estes: para que 'voces triunfem dos seus inimigos, recebamtodos 0 espirito de for,a... "27

A descriC;ao de Lery e longa demais para podermos cita-Ia na inte­gra; mas Ii belissima e de grande precisao: para constaui-Io, bastacomparar sua descric;ao da danc;a com a que muito tempo mais tardefara Nimuendaju da dan,a apapocuva; sao, are em muitos pormeno­res, os mesmos gestos. A dan,a prosseguiu - sem interrup,ao ­durante cerca de duas horas, a que se seguiram canticos entremeadosde discursos. Quatro grandes temas foram invocados em tais discur­sos, segundo 0 inrerprete de Lery: 0 primeiro foi consagrado aosmortos e aos ancestrais; em seguida, falou-se da certeza de encontra­-los "por tras das grandes montanhas", para dan,ar e rejubilar-se comeles; 0 terceiro ponto tratou das ameac;as feitas aos inimigos; final­mente, contou-se 0 mito do diluvio. E claro que dai nao se poderiamtirar eonclusoes definitivas sobre os diseursos dos carafs; e muitopossivel que 0 "inrerprete" de Lery nao tenha resumido, longe disso,tudpo que havia sido dito e so tenha guardado alguns dos temas evo­cados.. Contudo, uma vez feita essa ressalva, e interessante salientarque 0 tinieo mito narrado em tal eireunsmncia seja precisamente 0 dodiluvio e que portanto 0 tema da destrui,ao da Terra venha articular­-se com a promessa da Terra sem Mal. Tudo transcorre como se a re­corda,ao desse cataclisma passado somente se desse para conflrmar a

Page 27: Terra sen mal helen clastres

50 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 51

iminencia de uma catastrofe por vir, da qual e impossivel escapar anito ser ascendendo a Terra sem Mal. E este, como veremos, 0 te~acentral das retlexoes dos gu~ranis modemos; e as parcelas de infor­ma,ito que desejamos reunir aqui fazem pensar que tambem nito eraestranho aos seus remotes ancestrais.

Os cr~mistas nito dizem que significa,ito tinham, para os tupis-gua­rams, cantIcos, dan,as e a fuma,a de tabaco. Contam-nos, pelo me­nos, que sempre estavam associados as cerimonias dirigidas pelos ca­rals e are mesmo constituiam sua parte mais importante: pode-se, porconsegumte, atnbUlr-se a eles uma fun,ito eminentemente religiosa.Em suma, citnticos, dan,as, absor,ito de tabaco eram seus gestos dedevo,ito, os elementos da sua pnitica religiosa. Se Ibes acrescentamosas conlissoes de mulheres, os jejuns, percebemos todo urn conjuntode pniticas que indicam que, quando se recebia urn caral, procedia-sea uma prepara,ito, de corpo e alma, para realizar 0 advento dessestempos novos cujo mensageiro (isto se sabia) era ele.

A fun,ito da fuma,a de tabaco como meio de comunica,ito com 0

sob~enatural e por demais conhecida para insistirmos nela aqui.Ahas, nao e excluslva dos tupls-guaranis: 0 tabaco, embora preparadoe consumido de diversas formas, desempenha papel equivalente namaioria das tribos que 0 cultivam.

Os citnticos, entremeados de frases nito cantadas, eram a ocasiito dedizer as narrativas miticas, a ordem do mundo e a promessa da novaterra. Quanto a dan,a, para os guaranis de hoje, e Ul'la das tecnicasque permitem tornar 0 corpo leve e, dessa maneira, facilitar sua as­censito a Terra sem Mal. E claro 0 vinculo entre canto e dan,a entreos chiripas, que atribuem a direyito das dan,as aos oporalvas, ou osque cantam (poral = canto), isto e: os que sabem dizer as .palavrassagradas. Tambem ai, pode-se estabelecer a continuidade atraves dosseculos. Alias, os jesuitas que fundaram as primeiras redu,oes para­guaias viram tao bern 0 valor sagrado dos canticos e dan,as para osguaranis que nito hesitaram em conferir-lhes uma grande importinciano culto novo que tentavam impor-Ihes.

o capitulo anterior pretendia explicar a visito europOia do mundoindio e mostrava como a maior parte das cren,as fora isolada do seucontexto e transposta num outro, com exce,ito - diziamos - daTerra sem Mal. Ja que deve ser possivel a leitura em dois sentidosdas rela,oes entre duas culturas, podemos tentar fazer 0 inverso: ima­ginar como os indios foram capazes, nos termos da sua propria cultu­ra, de interpretar por sua vez a religiito dos recem-chegados. A ideiade Deus que estes Ihes tentavam inculcar so podia deixitrlos indife­rentes. Podemos adivinhar, acompanhando os testemunhos dos pa­dres, que inicialmente tentaram assimiIa-Io aos seus carais au entaaaos proprios missionarios. E 0 que atestam suas .pergunta;: Tupit ti-

nha muitas mulheres, para ser tao poderoso; ousera que tinha feito(como os padres) voto de castidade?; trajava uma batina?, etc. Se aideia de ressurrei,ito nito Ihes propunha diliculdade alguma - alinal,os seus corals eram .capazes disso - em compensa~ao penavam UrnpOlleD para compreender os misterios da Paixao: se Tupa era, comolhes ensinavam, 0 mais poderoso de todos, como e que se deixaracrucilicar e vencer pelos seus inimigos?; e por que punir a si mesmo,em vez de castigar os homens, pelas faltas que cometeram estes ulti­mos? Perguntas essas muito adequadas para irritar os padres e dimi­nuir, as vezes, sua conlianya na possibilidade de fazer os selvagensentenderem verdades tao grandes. Lendo-se as inurneras e enfadonhasnarrativas de "conversoes", pelo menos uma coisa ressalta: dentre ostemas de pregar;ao dos missiomirios, apenas urn encontrou eco ime­diato junto aos indios - a promessa de uma vida sem fim depois damorte. Ao inverso do que acontecera com os europeus, acreditaramreconhecer nesse ponto seu proprio mito da Terra sem Mal. Dessamaneira compreende-se que tenham visto nos missiomirios autenticoscarals <Iembremos que foi com esse titulo que os honraram), maispoderosos ainda do que os seus - gra,as a superioridade recnica dosbrancos - e que alem disso nito corriam quase nenhum risco de de­cepciona-Ios, ja que a Terra sem Mal que lhes prometiam nito deviaser procurada neste mundo. Talvez esteja ai a chave do extraordinarioexito dos jesuitas entre os guaranis.

Tupis e guaranis mio eram, portanto. essa gente sem fe que oscronistas nos descreveram com tanta seguran~a: seus proprios tes­temunhos vern ensinar-nos 0 contnirio. Todo 0 pensamento e apratica religiosos dos indios gravitam em torno da Terra sem Mal.Uma religiito que pode ser dita profetica. Desde 0 come,o da conquis­ta (recordemos que Nobrega escreve em 1549), todo 0 contexto. todosos elementos do profetismo ja estao presentes: as personagens dos ca­rals, com sua posi,ito de exterioridade espacial e genealogica; 0 tema'da Terra sem Mal. 0 mito da destrui,ito da primeira terra: e a crenpnum cataclisma futuro. Quer dizer que nito se trata, em absoluto. deurn "messianismo" que se teria produzido em rea~ao acoloniza~ao. Epossivel que, posteriormente, a conquista tenha radicalizado 0 profe­tismo. Mas reduzir, como se pretendeu, essa religiao a uma respostade gente oprimida a uma situa~ao de opressao. e tornar-se incapaz decompreende-Ia. E a partir do proprio interior da cultura india, comouma dil'lensito original da sua sociedade, que devemos tentar explica­-Ia.

Page 28: Terra sen mal helen clastres

fI

I

52 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 53

l

Notas

(I) Nimuendaju, Leyenda de fa creacifill y Juicio final del Mundo, pag. 4\ e se­guintes.

(2) Etimologicamente, nimongarai = razer-se xama (ne = se; 1110 = fazer; k.aran,Nimuendaju.op. cil., pag. 48. Em guarani paraguaio, esta palavra significa "batis­mo"

(3) cr. B. Susnik, in ChiriguQ//os: nada pode substituir "0 sentimento de gropo e aexpressao da homogeneidade tribal que e causada por urn convite a urna chicha demilho". Em 1758. urn chefe chiriguano se declarava disposto a servir ao rei e a fir­mar urn pacta com os espanhois. Mas - dizia ele a urn jesuita - nunca aceitaria 0

estabelecimento de urna mis.o;ao por meio de "azotes y quebraduras de cantaras dechicha".

(4) Yves d'Evreux. op. cil .. pag. 285.(5) Y. d'Evreux. op. cit.(6) Y. d'Evreux, op. cit., pag. 287.(7) Ibidem. pag. 289.(8) Lozano. op. cit., pag. 401 s.(9) Mctraux, Religiol/$ el Magies illdiel/nes d 'Amerique du Sud.

(10) B. Susnik, op. cil .. observou entre os chiriguanos da Bolivia uma divisao seme­Ihante: os pajcs se repartem entre "fazedores de chuva". curandeiros. feiticeiros. etc.(1 I) Alude provavelmente as ordens mendicantes (N. do T.>.(12) Lcry. op. cit., tomo II. pags. 67 (cap. XVI) e I 16 (cap. XIX).(13) Lozano. op. cil.. vol. I.. pag. 403.(14) Ibidem. pags. 287 e 327.(15) Ibidem.([ 6) 0 que os cronistas chamam de "provincia" e0 conjunto de aldeias aliadas. Por­tanto. as alian~s politicas agrupavam as coml'~idades tupis e guaranis em variasprovincias, inimigas entresi.(17) Gabriel Soares de Sousa. Tralado descrili\'O do Brasif em 1587, quarta ediyao.Sao Paulo. 197'1. Companhia Editora Nacional e Editora da Univers'idade de SaoPaulo, pag. ] 16.(18) Resposta feita ao Padre da Nobrega por umxama a quem perguntava de ondeacreditava provir seu poder. Cf. carta de 10 de agosto de 1549, ill leite. op. cit.,pag. 144. (A citacao exata referida por Serafim Leite e: "Respondeu-me, com poucavergonha. que ele era deus e que· havia nascido deus.")

(19) As vezes eimpos..';;ivel nos orientarmos no relato de Thevet e na sua enumerayaodos Mairas sucessivos: ainda mais porque as ay6es que atribui a uns ea outros saopor vezes redundantes. E por essa razao que Metraux pensa Que Thevet os desdo­brou. a seu talante e prop6e ver neles os duplos de uma (mica personagem.(20) Leite. op. cil., vol. I. pag. 220. (0 grifo e nosso).(21) lery, op. cil., tomo II. cap. XVI. pag. 67.(22) Nobrega, Il/lormarGo .... ill Leite, op. cil.. vol. I. pag. 150.(23) Sempre se dava uma esposa aos prisioneiros de guerra: aquele.." que eram mor-

I

tos para serem devoradQs eram, portanto. cunhados.(24) Simao de Vasconcelos (pag. 101 da Cnillica da Compa"hia de JI.:SUS do E,<;/a­

do do Brasil (1'663). Lisboa. 1865), citado por Metraux. A Rdigido dos Tupil1um­has.. pag. 142.(25) Se fosse permitido considerar os desenhos dos croniMas como "informayoes".tio dignas de credito como seus escritos, urn desenho de Staden seria muito sugesti­yo: 0 muruni que representa <a pag. 173) edotado somente de uma "boca", engana­doramente semelhante a uma lua crescente.(26) Staden, op. cit., pag. 173.(27) Lery, op. cil .. tomo II. cap. XVI, pags. 70-71.

Page 29: Terra sen mal helen clastres

TERRA SEMMAL 55

capitulo III

o DISCURSO DOSPROFETAS E SEUS EFEITOS

Ate agora, tentivamos isolar 0 dominio do religioso entre os anti­gos tupis-guaranis, pois era necessario buscar apreende-Io na sua es­pecificidade. Procedimento imposto pela contradi<;ao entre 0 conjuntodos depoimentos antigos, por urn lado, e as observa<;oes feitas a partirdo come<;o do seculo (desde Nimuendaju), por outro, sobre os tupis­guaranis, como se uma incompreensivel muta<;ao se tivesse produzidona historia dessa cultura, tomando mistico urn povo antes desprovidode qualquer preocupa<;ao religiosa. Que nenhuma transforma<;ao des­sa especie ocorreu e 0 que pretendemos estabelecer, a despeito daperturba<;ao trazida pela conquista europeia, decifra-se, justamente,uma continuidade notivel.

A religiao e apenas elemento de urn conjunto mais vasto, a socie­dade. Quer dizer que e sempre possivel aplicar-lhe duas leituras,uma, que se pode chamar filosofica, abstrai-a desse conjunto e toma-acomo um sistema de pensamento capaz de ser estudado em si mesmo.A outra, sociologica, convida-nos a voltar a situa-Ia nesse conjunto ea nos interrogarmos-sobre suas implicayoes. E a isto que vamos dedi­car-nos agora, tentar superpor essas duas leituras para compreenderna sua diferen<;a uma religiao que, com muito erro, foi assimilada aurn xamanismo.

as estudos reahzados sabre os movimentos messianicos em dife­rentes pontos do mundo tendem a ressaltar a existencia de uma causacomum a eclosao desses movimentos, urn estado de crise ou de pro­fundo mal-estar social. Aparecem e se multiplicam em situa<;ao colo­nial, em sociedades que se veem fadadas a desaparecer gra<;as ao im­pacta da civiliza<;ao branca. A Ghost-Dance QU 0 culto do Peyotl dosindios norte-americanos, os cargo-cults da Oceania sao movimentosdesse tipo. Sao, ao mesma tempo, a expressao do desespero de socie-

,

dades que se sabem ameac;adas na sua propria existencia e uma tenta­tiva de interromper 0 processo de desorganiza<;ao, atraves da reafir­ma<;ao dos valores tradicionais, dai os termos de "revivalismo" ou"nativismo" que servem para designa-Ios, dai tambem 0 seu caratersimultaneamente religioso e politico. Representam, por conseguinte,em rea<;ao a uma amea<;a externa: for<;as de coesdo novas. Respostasde oprimidos a situa<;oes de opressao.

Que esse esquema cIassico nao se aplica aos tupis-guaranis, ja foranotado por Alfred Metraux, "0 mito da Terra sem Mal esteve na ori­gem de varias migra<;6es, que se escalonam dos seculos XVI a XX, edas quais as primeiras talvez remontem ao periodopre-europeu. Saoefetivamente movimentos messianicos, mas diferem, pelo seu caraterpuramente indigena, da maior parte dos que conhecemos. Definem-sea partir de mitos tribais e, pelo menos aparentemente, nada devem actiltura europeia." I E tambem a Metraux que devemos os estudosmais precisos sobre essas migra<;6es, tendo ele descoberto que algu­mas delas se produziram em regioes onde os indios viviam livres elonge de qualquer contato com os invasores.2 Concordando COmMetraux a respeito do carater puramente indigena das crenc;as e per­sonagens ligadas ao messianismo, Egon Schaden opoe-se a ele paraafirmar que sao necessarias outras condi<;6es para a eelosao de movi­mentos messianicos. Mais duas, segundo ele, sao essenciais, a primei­ra e 0 desenvolvimento de urn misticismo muito acentuado, ligado amitologia aborigine. !sso implica, escreve ele, "que 0 messianismo ­conquanto se possa desenvolver somente numa atmosfera de inquie­tude social - nao remonta necessariamente a urn estado de desorga­niza<;ilo".3 Ate ai, sua interpreta<;ilo concorda com a de Metraux. Masacrescenta que nao e possivel, contudo, afirmar que 0 messianismo sedeva unicamente a fenomenos intemos, tambem e preciso - e paraele esta e a segunda condi<;ao - uma razao extema. E por isso, diz,"que discordamos de Metraux, quando invoca 0 caratei' anticristilo eantieuropeu dos movimentos misticos provocados pelo messianismocomo argumento a favor da origem puramente indigena destes ulti­mos. A nosso ver, as manifesta<;oes xenofobas - que constituem umaspecto quase geral do messianismo - devem-se principalmente auma situa<;ilo de desequilibrio provocado pelo contato com a civiliza­<;ao ocidental."4

Nao hit duvida de que a argumenta<;ao de Schaden mereceria aten­<;ao, caso 0 "messianismo" tupi se definisse por seu carater "xenMo­00", "anticristilo" e "antieuropeu". Mas era este 0 caso? 0 messia­nismo nao se explicaria por urn "estado de desorganiza<;ao", mas su­poria apesar de tudo urn certo "desequilibrio" e urn "misticismoac,mtuado". Argumenta<;ao que permanece bastante imprecisa e algoconfusa. Para resumir seu ponto de vista, dois fatores dao conta do

Page 30: Terra sen mal helen clastres

messianismo tupi-guarani: urn fator interno. 0 misticismo exacerbadodesses indios, e urn fator externo, 0 estado de desequilibrio causadopela chegada dos europeus. 0 caso tupi-guarani assim se integra per­feitamente no modelo geral acima citado. Antes de propor uma outraobserva93.0, notaremos que haveria muita coisa a dizer sabre essacategoria - afinal de contas bastante vaga - do "misticismo", como qual se qualifica a religiao india. E 0 que significa urn misticismo"exacerbado", ou que dizer de uma soeiedade de misticos? Pelo me­nos se poderia adivinhar ai urn indicio inlerno de.desequilibrio social.Se, globalmente, os tupis-guaranis eram mesmo esses misticos queneles se insiste ver - nao sem razao, talvez - dificilmente podere­mos contentar-nos com a evidencia do fato: temos aqui urn dado in­trinseco que e problemiitico e cujas razoes e preciso compreender. Porisso nao e possivel elidir uma leitura sociologica dos fatos religiosos.Em segundo lugar, 0 que conota exatamente 0 conceito de misticis­mo, quando aplicado aos tupis-guaranis? Ele aponta para a procuraconcreta, hic el nunc, da Terra sem Mal. Ora, essa procura tern urnconteudo sociologico preciso, pois, como vimos, procede de urn ques­tionamento radical da sociedade, cujos principios mais fundamentaisela recusa: atividades economicas, politicas, regras de parentesco.Trata-se, portanto, de compreender a razao de uma religiao cujapnitica inteira opoe-se as leis sociais.

A Terra sem Mal, como vimos, foi 0 nuc1eo a volta do qual gravi­tava 0 pensamento religioso dos tupis-guaranis: a vontade de chegar aela governou suas praticas: esteve na origem de uma diferencia~ao

nova, nascida do xamanismo, que viria a isolar uma categoria espe­cial de xamas: os carais, os homens-deuses cuja razao de ser era es­sencialmente promover 0 advento da Terra sem Mal. Pois a atividadedos homens-deuses mia se limitava a discorrer sabre as maravilhas daterra eterna: propunham-se a conduzir os indios para ela. Sabe-seque, desde a conquista ale 0 come~o deste seculo, numerosas migra­~oes efetuadas pelas tribos tupis e guaranis tinham como imico objeti­vo a procura da Terra sem Mal. Alem disso, e muito proviivel, comosugere Metraux, que migra~oes semelhantes Osto e, provocadas pormotivos exclusivamente religiososJ tenham acontecido antes da chega­da dos europeus: sem duvida, essa hipotese nao podera nunca ser de­monstrada: contudo, a mera exisrencia de carais, atestada jii pelosprimeiros observadores, basta para torna-la muito plausivel. De mo­do que, mesmo na falta de movimentos migratoriP$, a cren~a na exis­rencia de uma morada da imortalidade, acessivel aqui e agora, e urndado incontestiivel da cultura tupi-guarani. Dimensao original, porconseguinte, da sua cultura: nao somente por essa cultura nao devernada aos brancos, isto e, nao poder ser compreendida em fun~ao deuma situa~o "colonial" que ela precede, mas tambem porque se si-

Os tupis-guaranis antes da conquista

tua em sociedades que, longe de serem oprimidas, estavam, ao seremdescobertas. em plena expansao. Sociedades de conquistadores.

57TERRA SEM MAL

Nos tempos pre-colombianos, as migra~oes dos tupis-guaranis de­vern ter sido muito numerosas: e 0 que testemunha a grande disper­sao das suas tribos pelo continente sul-americano. Sabe-se, tambem,que a expansao das suas popula~oes era relativamente recente: atesta­-0 a grande homogeneidade cultural e lingiiislica. Assim e que se podereconstituir, aproximadamente. a historia do estabelecimento dos tu­pinambiis ao longo da costa atlantica: alguns indigenas ainda a conhe­dam e certos cronistas recolheram sua narrativa. Segundo Soares deSousa,S que afirma ter como informantes indios bern idosos. 0 litoral.desde a embocadura do Amazonas are 0 Rio da Prata, foi primeira­mente ocupado pelas tribos tapuias. Uma vaga inicial de invasores tu­pis, os tupinaes, que desceram do sertao "a fama da fartura da terra emar desta provincia", expulsou os tapuias para 0 interior. Durou al­guns anos a luta contra os antigos senhores do litoral, mas finalmenteos tupinaes assentaram sua domina~ao sobre os territorios cobi~ados,

mantendo urn estado de guerra quase permanente contra os tapuias.'l"e desde essa epoca se instalaram no sertao. A supremacia dos tupi­naes durou "muitos anos", depois tambem eles foram expulsos do li­toral. dessa vez pelos tupinambas. Esses ultimos, diz Soares de Sousa,tiveram noticia da "grossura e fertilidade desta terra, se juntaram evieram .de alem do rio de Sao Francisco, descendo sobre a terra daBahia que vinham senhoreando, fazendo guerra aos tupinaes que apossuiam, destruindo-lhes suas aldeias e ro~as C.'). ate que os lan~a­

ram fora das vizinhan~as do mar".6 Repelidos para 0 sertiio, os tupi­naes voltaram a defrontar-se com os tapuias - fix ados nos terri­rorios adjacentes a regiao costeira -, fizeram-lhes guerra uma vezmais e expulsaram-nos para 0 interior ainda mais remoto.

Soares de Sousa da outros exemplos dessas guerras de conquistaque faziam as tribos tupis. Cardim, tambem: conta, por exemplo, co­mo os tupiniquins vieram a ocupar 0 (erritorio que lhes cabia quandoda descoberta, apos expulsarem os aenaguigues. Alfred Metraux notaque. mesmo que nao dispusessemos desses depoimentos, a posi~ao

respectiva dos diferentes grupos etnicos no litoral e regiaes vizinhasno seculo XVI jii basta para demonstrar que a domina~ao tupi era re­cente, ainda the faltando efetivar-se: "Apesar de senhores da costa,

HELENE CLASTRES56

Page 31: Terra sen mal helen clastres

parecem mio ter tido tempo de destruir ou assimilar as popula90esvencidas." 7 Tambem se sabe que era recente 0 estabelecimento dosguaranis nos vastos territerios que ocupavam no seculo XVI e quehaviam implantado neles sua supremacia apes expulsarem ou reduzi­rem a"escravidao,. os ocupantes anteriares; 0 mesma se apliea aoschiriguanos, instalados nas fronteiras do Imperio Inca. .. Durante esses decenios de conquistas de navos territ6rios, de dis­persao das tribos tupis-guaranis, novas rela90es de alian9a ou hostili­dade intertribal tambem iam estabelecer-se. Rela90es de guerra, co­mo vimos, entre tupinambas e tupinaes. A hostilidade entre os gru­pos tupinambas e os grupos tupiniquins, seus vizinhos do sui, e bas­tante conhecida porque perdura por muito tempo ap6s a chegada doseuropeus: tupinambas e tupiniquins travavam guerras ferozes e alia­ram-se, os primeiros aos franceses, os segundos aos portugueses. Demodo que, longe de perceberem como amea9a a chegada desses inva­sores e fazerem causa comum contra eles, acentuaram sua hostilidadereciproca ao integrarem aos seus pr6prios conflitos os conflitos queopunham os recem-chegados. Recordamos as desventuras de HansStaclen que, aprisionado pelos tupinambas, por pouco nao foi executa­do e comido, ja que os indios 0 julgavam portugues e, portanto, alia­do dos tupiniquins. Inversamente, rela90es de alian9a e amizade Iiga­yam os tupinambas aos tamoios: conservavam a lembran9a da suaantiga unidade e cUmprimentavam-se com 0 titulo de parentes. "Sao(os tamoios) valentes homens e mui belicosos, e contrarios de todo 0

gentio senao dos tupinamMs, de quem se fazem parentes, cuja fahi separece muito uma com a outra, e rem as mesmas gentilidades, vida ecostumes. "8 Por conseguinte, a nova distribui9ao das tribos no espa90que acaba de ser conquistado, superpoe-se uma nova reparti9ao politi­ca que vern agrupa-Ias em "provincias" aliadas ou inimigas. Fizemosbreves alusoes a complexidade - unica, devemos salientar, na areacultural da Floresta Tropical - da organiza9ao social e politica dostupis-guaranis. Montoya fala em "nobreza hereditilria:' e em trans­missao hereditilria da chefIa entre os guaranis. Yves d'Evreux, no ca­pitulo intitulado "Da Economia dos Selvagens", do qual infelizmenteperderam-se varias folhas, descreve uma organiza9ao quase "pirami­dal" entre os tupis. Sabe-se que as aldeias eram compostas de variascasas coletivas: cada casa tinha a sua testa duas personagens, urn chefepara os assuntos politicos e urn xama "para as doen9as e encantamen­tos". as chefes de casa submetiam-se a autoridade de urn chefe de al­deia, assistido por urn "conselho de anciaos" (que compreendia, alemdos chefes de casa, os homens mais idosos que se haviam distinguidona guerra e dessa maneira adquiriram prestigio).9 Por sua vez, oschefes das aIdeias aliadas reconheciam a autoridade de urn chefe de"provincia". Por conseguint", uma organiza9ao politica e territorial

bern estruturada, ja em correla9ao com uma expansao recente: tudoindica que mudan9as profundas estavam sendo produzidas nas socie­dades tupis-guaranis. Conheciam uma evolu9ao politica, que logo se­ria cortada pela chegada dos europeus, e cujos possiveis desdobra­mentos talvez se possam preyer. Em todo caso, e nesse contexto deconquistas e transforma~oes politicas que devemos situar 0 profetis­mo da Terra sem Mal, uma vez que esse ja estava presente.

Urn conjunto complexo de fatores explica, sem dlivida, essas gran­des migra90es pre-colombianas dos tupis-guaranis: entre eles fIgura aexplosao demografIca. Se os dados numericos fornecidos pelos diver­sos cronistas nao permitem uma avalia9ao precisa, pelo menos paraos tupis, concordam em todo caso 0 bastante para podermos afIrmarque os tupis-guaranis conheciam urn crescimento demografIco bern·acentuado. D'Abbeville, por exemplo, informa-nos que a natalidadeera muito elevada entre os tupinamMs, a tal ponto - diz - que semas guerras seu pais seria muito povoado. Nao ha duvida de que cres­cimento demografIco e expansao geografIca caminham juntos; masambos implicam transforma90es correlatas na organiza9ao ~ocial. epolitica: elementos estes suscetiveis de darem conta de mlgra90es cUJOobjetivo era a conquista de novos territorios. E, contudo, possivel quefatores de ordem religiosa tambem hajam motivado essas migr~Oes.Pelo que dizem as fontes acima citadas, a razao que atraia os tupis aolitoral era a reputa,iio de jertilidade e abundtincia dessa "provi~­cia". Isso pode ser interpretado de duas manelras dlferentes, que ahasnao se excluem em absoluto: razOes ecolegicas e economicas induzi­ram os indios a procurar novos "habitats" mais apropriados, talvez(mas haveria que demonstra-Io), para atender as suas necessidades.Razoes de ordem mitica tambem puderam associar as ricas terras (ouassim supostas) do litoral a Terra sem Mal. Pois, de onde podia deri­var essa "fama" de fertilidade excepciona!? De urn saber real, talvez;mas (tambem ta!vez) seu eeo fosse apenas mitico. Quaisquer que fos­sem as razoes das antigas migra90es, retenhamos pelo menos que fo­ram sem a menor duvida eomplexas e que a priori nao e possivel des­cartar as de ordem religiosa. Mas acima de tudo, e e por essa razaoque recordamos rapidamente sua historia, devemos te~ pres~nte queas soeiedades tupis-guaranis estavam em plena evolu9ao pohtica, noseculo XVI: e nao eram, de forma alguma, povos oprimidos mas, aocontnirio. conquistadores e opressores. De modo que (exceto se admt­tissemos que esse eonjunto coerente que e a religiao da Terra semMal pudesse ter surgido, bruseamente e ao mesmo tempo, em todasas sociedades tupis-guaranis. eoincidindo com a chegada dos euro­peus) somos levados a formular a hipotese de que 0 profetismo gerou­-se. na medida exata em que as sociedades se transformavam e am­pliavam. como a contrapartida crlrica e negadora das rransjortrUJ-l

58 HELENE CLASTRES

••

TERRA SEM MAL 59

Page 32: Terra sen mal helen clastres

60 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 6/

:I

I

{:'6e~ po[(ticas e sociais que se inauguravam. Talvez 0 "messianis­mo . traduza se~pre. urn estado de desequilibrio social: no caso quenos mteressa, nao ha necessidade alguma de invocar a chegada dosbranco~para encontrar uma causa para 0 desequilibrio que ja a recen­te hlStona d~s tuplS-guaranIs pode explicar muito bern.

Porta~to~ e necess~rio ~nalisar esses "movimentos messianicos"q~e, penodlcamente, Impeham os tupis a realizar vastissimas migra­coes a procura da Terra sem Mal. Tentaremos mostrar que mio remmenor parentesco Com "sublevaciies politico-misticas que se proPiie~a fr:ear a de~organizacao social e cultural", I0 para retomar uma deli­nIl;aO de ~etraux. Por urn lado, com efeito, nao rem estritamente na­da de pohtIco; por outro lado, bern longe de "frear" a desorganizacaosocIal, pelo con/rario, eles a promovem.

Se a religiao dos tupis-guaranis foi mal compreendida, e que sec?nfundtram, a ~osso veT, sob 0 termo tinieD de "messianismo", mo­Vlmentos na reahdade. profundamente diferentes, uns exclusivamenterehglosos e que a partIr de agora denominaremos profeticos (a procu­ra da Terra ,'em MaJ), os outros unicamente politicos (a resisrenciaaos espanhols ou aos portugueses), movimentos cujo linico ponto co­mum era terem carOlS por atores principais.

Ilustraremos sucessivamente esses dois tipos de acao, recorrendoaos tuplS para exemphficar a primeira, aos guaranis, para a segunda.

As migrac6es dostupis para a Terra sem Mal

Nao e impossivel, como sugere Alfred Metraux, que migraciies se­melhantes se tenham produzido antes da chegada dos europeus. De­POlS da conqUIsta, em todo caso, e sabido que varias migraciies efe­tuadas por trlbos tuplS ou guaranis tiveram como lim exclusivo abusca da Terra sem j\1al. Nao caberia relatar todas aqui, ainda mais~orque m~ltas del~s Ja foram objeto de estudos pormenorizados (deorde~sk101d e Metraux, especialmente); so recordaremos algumas

proposltalmente escolhidas dentre as primeiras. 'A malS antiga que conhecemos deu-se por volta de 1539 impel' _

do milhares de. tupis do Br~il ate 0 Peru. Embora aproxim~tiva,e~~apnmelfa data e. a malS provavel, POlS 0 conjunto das fontes que men­clonam essa mlgracao concorda em atribuir-lhe uma duracao de dezanos. E sabe-se que se encerrou em 1549, data em que os indios, che­gados ao Peru, foram capturados peloso habitantes da cidade de Cha-

IJ

chapoyas; estavam reduzidos a trezentos. Talvez nao seja inlitil re­lembrar por que razao este acontecimento foi celebrado em cronicas:nao e que a vinda desses indios desconhecidos e originarios de remotaregiao bastasse para fascinar os espanhOis; mas a narrativa que fIze­ram da sua viagem tinha, em compensacao, do que interessa-Ios nomais alto grau, pois vinha confIrmar uma das suas crencas mais ca­ras. Com efeito, os tupis contaram que haviam atravessado uma re­giao fabulosamente rica em ouro e pedras preciosas: esse pais era pro­vido de "tanta riqueza que afIrmaram haver ruas mui compridas en­tre eles, nas quais se nao fazia outra coisa senao lavar pecas d'ouro epedrarias".11 E os espanhois logo se convenceram de que esses selva­gens nus certamente haviam locahzado 0 Eldorado: varias expedicoesque, no decorrer dos anos seguintes, partiram do Peru para a bacia dorio Amazonas (em especial a de Pedro de Orslia) foram suscitadas poressa esperanya. Ver a que se deve, neste caso preciso. 0 nosso saber.permite medir a extensao do que ignoramos: em suma. e ao encontrofortuito de urn fragmento da historia india com urn mito europeu quedevemos 0 nosso conhecimento atuaI dessa historia.

Conhecimento por sinal muito impreciso. pois mio se sabe exata­mente de que ponlo do Iitoral brasileiro 12 esses tupis partiram. nemque itinenirio seguiram. Em todo caso, realizaram uma'das mais vas­tas migrayoes conhecidas e nao e absolJltamente excessiva a dura<;aode dez anos que the e atribuida. Eram cerca de doze mil (a estimativavaria de doze a catorze mil, segundo os autores) quando abandona­ram seu territorio. Urn cronista, Gandavo. afIrma que 0 objetivo dasua migracao era procurar a Terra sem Mal: "Como nao tenham fa­zendas que as detenham em suas pMrias e seu intento nao seja outrosenao buscar sempre terras novas, a fIm de Ihes parecer que acharaonelas imortalidade e descanso perpetuo."I.1 A esse respeito, Metrauxobserva: "Como nao e possivel que Gandavo tenha inventado essepormenor, acredito que realmente tenha sido esta a razao do seu exo­do. embora os demais cronistas 0 atribuam. quer ao temor da servi­dao, quer ao espirito de conquista. "14 Acrescentemos ao seu argu­metito que a propria amplidao dessa migracao ja militaria. se neces­saria fosse, em favor da sua origem religiosa: se fossem razoes eco­nomicas internas (necessidade de conquistar novas terras) ou raziiesde politica externa (preocupacao de escapar dos colonizadores portu­gueses) que motivaram os indios. nao ha dlivida de que poderiam terenconlrado condiciies satisfatorias. sob esse duplo aspecto. sem preci­sarem afastar-se tanto. Nao e· tudo. A hipolese de uma migracao efe­tuada com urn objetivo de conquistas casa-se mal com 0 fato de queesses tupis haviam deixado de pratic~r a agricultura: durante 0 de­cenio que passaram atravessando afiotesta. nao procuraram estabele­cer-se em lugar algum. A observa,ao de Gandavo, de que os indios

Page 33: Terra sen mal helen clastres

62 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 63

nao possuiam terras cultivadas. e parcialmente err6nea, na medidaem que esse autor ve a causa ocasional das migra<;:oes naquila que emais propriamente a sua conseqiiencia. Voltaremos a tratar desseponto. Notemos, em todo caso, que a ausencia de agricultura provaque Gandavo nao se enganou a respeito da causa final dessa migra­cao. Quanto a outra razao adiantada pelos cronistas espanhois (fugirda servidao) e inaceiUivel, porque nao tem a menor consideracao pelahistoria. Com efeito, devemos recordar que nessa data nao se podepraticamente falar de colonizacao: so existiam duas "capitanias" here­diUirias, de Sao Vicente no suI, de Pernambuco no norte (esta funda­da em primeiro lugar), e sua exisrencia era estritamente juridica. Naverdade, franceses e portugueses disputavam ferozmente alguns pon­tos do litoral brasileiro, aonde vinham antes de mais nada pelo co­mercio de pau-brasil. Eram pouco numerosos diante de indios nume­rosissimos e belicosos, com as quais apenas desejavam, por enquanto.estabelecer pacificas relacoes de troca. Nao se ve que motivo, a naoser a procura da imortalidade, podia incitar uma dezena de milharesde indios (em outras palavras, a populacao de pelo menos dez aldeiasinteiras) a abandonar pura e simplesmente um territorio que domina­Yam. para enfrentar os riscos de um periplo tao longo. Ate mesmo 0

desenlace dessa aventura coletiva vern revelar sua verdadeira finalida­de: ao fixar um termo que talvez ja se adivinhasse impossivel de al­cancar. tal viagem era por essencia interminavel. Bem 0 mostra essamigracao - que so acabou por falta de migrantes.

Temos, portanto, um exemplo de profetismo antigo 0 bastante paranada dever aos europeus. Quando muito, pode-se admitir que a che­gada destes possa ter side interpretada como um preludio do cataclis­ma - e, neste caso, ainda era cedo demais para que os profetas pu­dessem. saber ate que ponto estavam certos. Se, posteriormente, a co­lonizacao desempenha algum papel, e simplesmente 0 de catalisador:a ..atureza e a significacao do profetismo nao sao absolutamente mo­dificadas por ela.

A implantacao, durante a segunda metade do seculo XVI, dos tu­pinamMs no Maranhao fez-se em tres migracoes sucessivas, a ultimadas quais (1609) certamente determinada pela vontade de alcancar aTerra sem Mal. Anteriormente. os tupinamMs haviam feito variastentativas com a mesma finalidade. malogrando quase que de saida."Em 1562, tres mil indios da Bahia se refugiaram no mato para se­guif dois pajes que os haviam -atraido por 'suas mentiras e astuciasdiab6licas'. Os jesuitas conseguiram deter esse exodo, como em variasnutras ocasi6es, recorrendo se preciso a forl;a. "15

Durante uma das suas viagens, provavelmente em 1609, La Ra­vardiere (capitao huguenote que recebera cartas patentes do rei Henri-

que IV concedendo-lhe, em 1605, as terras que iam "desde 0 rio dasAmazonas ate a ilha da Trindade") encontrou um grupo de indios po­tiguares originarios de Pernambuco: haviam abandonado sua terrapara partir a procura da Terra sem Mal. La Ravardiere conduziu-os ailha de Sao Luis do Maranhao, onde 0 padre Yves d'Evreux os encon­trou tres arros mais tarde. Urn cacique, Jacupen, narrOll esta expedi­cao ao padre Yves: "... recorda-me a crueldade de Jurupari contranossa na~ao: pais ele fez marrer a tOd08 nos e convenceu os nossosbarbeiros a nos conduzir ao centro de uma floresta desconhecida, on­de mio panivamos de danc;ar. sem nada termos para nos alimentar anao ser palmito e caca, motive pelo qual muitos morriam de fraquezae debilidade. Quando saimos dali e viemos para os barcos do Morubi­xaba La Ravardiere nessa ilha do Maranhao, Jurupari armou-nos ou­tra emboscada, incitando por intermedio de um frances os tupinam­bas a massacrar e comer muitos dos nossos." 10 Yves d'Evreux expli­ca a seguir 0 sentido desse discurso: como as indios haviam seguidoum grande profeta que Ihes prometia "irem possuir uma bela terra,na qual todas as coisas viriam naturalmente segundo 0 desejo, semque eles sofressem nenhuma pena ou trabalho",1 J Varios milhares deindios abandonaram. nessa ocasiao. suas aldeias para segui-lo: sessen­ta mil, segundo d'Abbeville. que relata a mesma migracao. Durantea viagem, muitos deles morreram, afogando-se ao atravessar algumrio, mortos pelos inimigos encontrad0s a canfinho. enfraquecidos de­mais pela fome para terem condicoes de prosseguir, etc. Os s<,brevi­ventes detiveram-se finalmente "no centro de uma floresta desconhe­cida". a mais de seiscentas leguas do seu ponto de partida. pelo quediz d'Abbeville, quando La Ravardiere deparou com eles e pas termoa sua migraciio. Essa parada na tloresta era apenas provis6ria: foradecidida pelo profeta, que intimara os indios a "permanecer ali dan­cando, ate que seu espirito Ihes ensinasse 0 lugar para onde deviamir".1 ~ Tambem ai nenhum equivoco e possivel: a Terra sem Malconstituia 0 unico objetivo dessa migracao. Os tupis nao tinham che­gada ate ai para conquistar novos territorios; se se imobilizaram natloresta, nao foi por forca de preocupacoes economicas - fazer 0

plantio - mas movidos por obrigacoes rituais: enfraquecidos, ali­mentados excIusivamente dos produtos de sua coleta, ainda por cimatinham que dancar. A procura da Terra sem Mal e uma longa ascese.

GutTa migrac;ao se produzira na mesma floresta. alguns aDOS antes.Claude d'Abbeville situa-a sete anos antes da sua chegada, portantoem 1605: segundo ele, era dirigida por um portugues. Metraux poeem duvida essa afirmac;ao e considera mais provavel que se tratassede'um mestico: "10 pouco provavel que essa personagem fosse portu­guesa, como diz d'Abbeville. pois nenhum europeu teria sido capaz

'de assimilar a cultura indigena a ponto de deixar-se guiar, na sua

Page 34: Terra sen mal helen clastres

64 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 65

a~ao, por tradic;6es miticas. E mais verossimil que se tratasse de urnmesti,o que, como tantos dos seus congeneres, fosse movido pela suapropria marginalidade; nao seria a unico, dentre seus semelhantes, ahaver participado dos movimentos politico-religiosos."I <)

Sabe-se, com efeito, que a partir do seculo XVII varios profetas fo­ram mesti,os; talvez sua propria marginalidade as levasse a escolheresse papel, mas essa posi,ao particular coincidia, como vimos, com aque caracterizava as carals indigenas, sem a que nao poderiam obterexito algum. De outra maneira, e impossivel compreender que aldeiasinteiras pudessem seguir. sem hesitac;ao, essas personagens vindasnao se sabia de onde: a sociedade tupi reconhecia urn lugar para asmarginais. Esse caral, mesti,o au portugues, tinha partido de Per­nambuco, conta-nos d'Abbeville, conduzindo urn sequito de oito adez mil indios. as tupinambas 0 consideravam como urn grandessis·sima profeta e par isso encaravam com alegria a perspectiva de umaviagem longa e dificil. Dava a entender "que nao era homem nascidode pai nem de mae como as outros, porem que tinha saido da boca deDeus Pai".21J Sem duvida tais termos sao de urn mesti,o, mas a dis­curso e mesma de urn carat'; e todos as feitos. gestas e ditos desseprofeta deviam ser completamente familiares aos indios: "Dizia queera ele quem fazia a terra frutificar. que para esse fim Ihes mandava 0

sol e a chuva; em suma, que Ihes dava todos as bens e alimentos quepossuiam ... Quando a convidavam a beber au comer escusava-se, di­zenda que nao tinha necessidade alguma de alimento corporal para sesustentar. como as demais criaturas; mas que se nutria de urn licarque Deus Ihe enviava do ceu. E, de fato, nenhum dos indios nunca aviu beber nem comer, enquanto estiveram com ele." ~ I

Claude d'Abbeville dedica urn capitulo muito interessante a descri­cyao da migrac;ao provocada por esse mestic;o: sua narrativa da algumaideia das dificuldades consideniveis que as indios deviam enfrentardurante essas viagens em busca do iugar da imortalidade. 0 avan,oera sempre bastante vagaroso: e de se imaginar que tamanha massade gente nao devia deslocar-se facilmente; crian,as e velhas atrasa­vam a marcha e era necessaria providenciar com ida durante a andan~

Ga, ca,a e coleta ocupavam uma parte do tempo, de modo que nao sedevia percorrer uma longa distancia numa so jornada, sendo prox i­mas as etapas. Alem disso, a alimenta<;ao logo se tornava insuficien­te: mio ha duvida de que levavarn viveres - farinha de mandioca aude milho - mas que rapidamente se esgotavam. Entao precisavamparar, as vezes desmatar urn espa\-0 na tloresta, plantar e aguardaruma colheita. Mas, salvo a caso de fame muito grave, era sem duvidabastante raro que parassern para cultivar e essa agricultura praticadapor assirn dizer de passagern estava muito lange de atingir. na sua va·riedade e rendimentos. a que se fazia ern tempo normal. As migra-

,6es pressupunham, portanto, uma altera,ao radical da vida econ6mi­ca tradicional: sabe-se que as tupis-guaranis eram excelentes agncul­tares. Podiam produzir, anualmente, quantidades de mandioca e mi­lho muito superiores ao necessaria para satisfazer' suas necessidadesalimentares e gastavam esses "excedentes" nas grandes festas de bebl­das. 22 Ora, a economia dos migrantes reduzia-se praticamente a umaeconomia de coleta: cultivavam muito pouco, e are mesmo nada emabsoluto, a nao ser em caso de absoluta necessidade. Quer isso dizerque sua economia transformava-se, literalmente, em economIa desubsistencia.

';Pelos caminhos essa grande multidao so se alimentava das raizesda terra, dos frutos das arvores, do peixe que pescavam, de passarosque pegavam, e de outras especies de animais, assim como da farinhaque levavam ..... 23 Alias. como vimos em varias ocasioes, os profetaspraticamente nao encorajavam as indios a trabalhar, gabando-se deque obteriam a necessaria para eles. Fornes e doen,as dizimaram-noscom frequencia. Nao era tudo, tambem precisavam combater as ml­migos cujo territorio atravessavam. Nessa migra,ao de 1605, ?S tUplSchocaram-se, entre outros, com franceses, consegumdo - apos com­bates mortiferos - desaloja-Ios sucessivamente de tres fortes em queestes se haviam refugiado. Foi durante a ultimo combate que a profe­ta que as conduzia foi marta, as sobreviventes da aventura regressa­ram, nessa ocasiao, a Pernambuco, de onde haviam partido. Esse fra­casso, porem, nao impediu de forma alguma as mesmos indios, qua:tro anos mais tarde, de seguir outro caral no mesmo ,tmerano; fOlsem duvida porque ja tinham consciencia de que tambem essa segun­da tentativa estava a ponto de malograr que La Ravardiere conseguiuconvence-Ios a desistir.

Contudo se acontecia que depois de longo tempo de va procura asindios perdiam a confian,a no seu profeta (e nesse caso ~ao hesita­yam urn so momenta em abandona-lo, au mesmo em mata-Io), a suafe na possibilidade de alcan~r a lugar da imortalidade, par sua vez,nunca foi abalada. Os fracassos eram sempre atribuidos a causas aCl­dentais: desobediencia as praticas, insuficiente devo,ao, poder insufi­'ciente do guia, erro quanta it locaiiza,ao da Terra sem. MaL.; nuncaas tupis as interpretaram como prova, au sequer mdlclo, da Impossl­bilidade da sua procura, par isso estavam sempre dispastas a tentarnovas aventuras.

Todas as migni,6es religiosas conheceram desenlaces catastroficos.Nao falemos das que, futuramente, viriam a ser reprimidas com VIO­

lencia pelas autoridades locais. Basta analisar as migra,oes que ne­nhum impedimenta exterior veio bloquear, para perceber que esta­yam necessariamente fadadas ao fracasso, pela propria logica da esco­lha que as motivava. Vimos as dificuldades par que passavam as in-

Page 35: Terra sen mal helen clastres

66 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 67

d!os durante seu error provisorio - um provisorio que podia durarmUlto tempo e que, para dizer a verdade, nao tinha fim, pois existia aespera de um termo inacessivel: as fomes inevitaveis (necessarias por­que parar de culbvar, JeJuar, faziam parte das condi<;6es de acesso aTerra sem Mal; lembremos os discursos dos carafs),24 acrescenta­ya~-se os combates OU, quando bater-se mio era necessaria, os diasmtelfos con~~rados a dan<;a. A procura da Terra sem Mal era, semnenhuma duvlda, uma prova ternvel e mortal para muitos. Com­preende-se que, dos doze mil tupis que partiram do Brasil em 1539apen~s trezentos tenham chegado ao Peru dez anos mais tarde. Seri';possl.vel outro resuI~do? Devemos interrogar-nos sobre 0 que estaImphclto na nugra<;ao e compreenderemos que 0 fracasso ja esta ins­cnto de antemao, no proprio projeto.

De onde ve~, com ef~ito, a necessidade da propria viagem? Sabe­-se que os tup~-guarams estavam tao profundamente imbuidos dareahdade geografica do seu paraiso que sempre estavam dispostos aempreender a sua procura. Tao grande era sua certeza que, se nao 0

descobnssem onde supunham ser seu lugar, ou caso sua marcha aca­basse levando-os a algum obstaculo intransponivel que os for<;asse ase deter (como aconteceu com os apapocuvas ao chegarem as mar­gens ~o Atlantico), nao hesitavam em partir novamente, numa outradlre<;ao .. Certamente os carafs interpretaram mal os mitos; se naodescobrlfam a Terra sem Mal a leste, e porque Sfm dlivida ela se en­contrava a .oeste; bastava retomar 0 caminho. Tal perseveran<;a des­perta r~spelto. Como 0 heroi da montanha encantada, cujo cume seafasta a medlda que ele escala seu flanco, talvez espenissem que, acei­tando a prova, acabassem vendo a magia dos seus ritos romper 0 en­canta.mento e desvendar, mas a cada um por sf, a terra desejada.

POlS suas longas peregrina<;6es atraves do espa<;o representavamta~bem 0 tempo necessario para se consumar a lenta muta<;ao dosespmtos e dOs. corpos, sendo apenas ela capaz de tormi-Ios dignos deascender lIO termmo da sua busca. E essa muta<;ao passava peloabandono das normas sociais. Eis ai a prova e 0 sentido da viagem:abandonar uma aldeIa e um territorio e, simultaneamente renunciarao essencial das atividade~ economicas, sociais e politicas ~ue se enIa­<;am ?-esse espa<;o. Ja sUbl~nhamos0 transtorno na economia que a vi_da nomade acarretava e. e apenas sobre esse aspecto que as cronicasnos fornecem mforma<;oes. Mas nao era 0 linico. E nao precisamosde nenhuma informa<;iio para deduzir 0 que se podiam tornar as re­gras de resi~encia, as referencias a grupos locais ou geneaiogicos, nes­te espa<;~ n~o-terr~t?rIaI, destinado exclusivamente a ser percorrido.quanto a vida pohtica, sabe-se que, durante todo 0 tempo da migra­<;ao,o grupo ~ra mte~amente dirigido pelo profeta: so ele decidia quecammho segulf, quais trabalhos e gestas cumprir. Nenhuma alusao,

nas narrativas de migra<;6es, a qualquet papel dos chefes: sem dlivida,estes ja nao tinham voz no capitulo. A esse respeito, a narrativa docacique Jacupen deixa manifestar-se uma segura hostilidade aos "bar­beiros", reveladora do estado de conflito que opunha chefes e profe­tas. Tudo permite supor que a autoridade politica nao era mais reco­nhecida: as normas politicas eram substituidas pelas exigencias do ri­tual; ora, estas procediam da nega<;ao daquelas. Nao e certamente poracaso, nem por falta de observa<;ao, que nunca sao mencionados osehefes nas migra<;6es: que atividade poderia ter um chefe, fora doquadro da aldeia e da provincia em que exercia normalmente suasfun<;6es?

Abandono das atividades econ6micas e politicas tradicionais, dosistema de referencia espa<;o-temporal que liga os grupos entre si e si­tua cada individuo: e a vida social inteira que se ve, deliberadamente,abalada. 0 error vem justamente permitir que se escape dela. Assim,inaugurar a longa marcha rumo a Terra sem Mal nao e apenas p6r-sea percorrer 0 espa<;o ate atingir 0 lugar suposto da terra prometida; emuito mais: querer escapar do peso - demasiado humano - da co­letividade. No capitulo anterior, haviamos sublinhado 0 caniter nega­dor dos discursos dos carafs: 0 que neles se dizia vinha consumar-sena pnitica do nomadismo.

Deve-se ainda perguntar onde esta 0 mal, de que a outra terra estaprecisamente isenta? A Terra sem Mal nos e .descrita inicialmente co­mo um lugar de abundiincia: 0 milho cresce sozinho, as l1echas alcan­<;am espontaneamente a ca<;a... Opulencia e lazeres infinitos. Mais ne­nhum trabalho, portanto: dan<;as e bebedeiras podem ser as ocupa<;6esexclusivas. Nem tampouco regras de casamento: "Deem suas filhas aquem voces quiserem", diziam os carafs. 0 que traduz sem dlivida arecusa das duas prescri<;6es essenciais dos tupis, a do primo cruzadoe a do ti~ materno, mas - mais profundamente - a recusa de todaproibi<;ao: pois, se tudo e permitido, nenhuma uniao e incestuosa.25Quer dizer que 0 mal - trabalho, lei - e a sociedade. A ausenciade mal - a terra sem mal - e a contra-ordem. Nao e por acaso queas linicas atividades sociais destinadas a se manterem na Terra semMal sao as festas de bebidas: essas festas sao tambem, nasociedade, aexpressao da contra-ordem (ao mesmo tempo, sem dlivida, c;ue sao 0

meio de controla-Ia). Finalmente, a Terra sem Mal eo lugar da imor­talidade, enquanto nessa terra os homens nascem e morrem: comosefosse tal a correspondencia entre a ordem social das regras (que im­plica troca matrimonial, trabalho, etc.) e a ordem natural da gera<;ao(que implica nascimento e morte) que bastasse abolir aquela para selibertar desta. 0 homem nasce bom (nasce para ser deus), a sociedadedeprava-o '(abole sua natureza divina): poderia ser este 0 axioma daantropologia dos tupis, ou do que se podefia chamar sua antropodi­ceia.

Page 36: Terra sen mal helen clastres

"., 68 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 69

.. ,ilI:

A procura da Terra sem Mal e, portanto, a recusa ativa da socieda­de. Aurentica a~cese co!etiva que, por ser coletiva, so pode fadar osmdlOs a perdi~o: se as "migraGOes" devem fracassar, e exatamenteporque ja 0 projeto que as anima - a disso!uyao deliberada da socie­dade - e suicida.

o pensamento da Terra sem Mal nao se redui, portanto, ao pensa­mento de urn Alhures estritamente espacial. Trata-se de pensar urnOutro do homem, absolutamente isento de coeryao: homem- Deus.Mas, se e talvez possivel gozar dessa liberdade, isso nao e dado: e ne­cessaria a mediayao, a viagem ascetica que mostra que se'deve aban­donar 0 humano ~ara que, no homem, realize-se 0 deus. Viajar eaceltar a aposta. Ve-se que, na desmedida do seu desejo, os tupis naoeram desprovidos de sabedoria: sabiam que a morte da cultura era 0

preyo a pagar pela exigencia humana de compartilhar da felicidadedos deuses.

Aqui estamos longe do esquema e1assico dos movimentos mes­sianicos, em que 0 religioso e 0 politico convergem na realizayao deurn proJeto comum: a sobrevivencia de uma sociedade, ameayada poroutra na sua propria exisrencia. Porque a sua volta cristalizam-se to­dos ?S valores culturais tradicionais, a religiao vern a ser a forya decoesao que melhor pode responder a urn questionamento que vern defora. 0 profetismo tupi e exatamente 0 inverso de urn messianismo:nasce de Uma cultura que segrega por si mesma seu proprio questio­nam~nto e na qual a religiJio, por ser 0 lugar dessa critica, gera a dis­persao. As "migrayoes" para a Terra sem Mal ilustram dessa maneirauma das possiveis saidas para a crise - manifestada pelas tendenciasinconciliaveis do religioso e do politico - das sociedades tupis,guara­ms: a autodeslrui~tio dessas sociedades.

Os carais e 0 poder politico

A analise da posiyao ambigua dos carais sugeria a outra possibili­dade teonca ha qual poderia resolver-se a crise: 0 advento de urn no­vo tipo de poder, com 0 homem-deus que se tornasse chefe. Talvezfosse este 0 caminho que estavam tomando os guaranis. 0 que sabe­mos da sua hisroria permite supor que, por urn lado, os carais tenta­yam efetivamente conquistar 0 poder politico, mas que, por outro, ti­nham poucas probabilidades de obre-Io.

E nomvel que nao se conhe~m grandes migrayoes guaranis para aTerra sem Mal na mesma epoca em que estas eram realizadas pelos

tupis. As unicas migrayoes religiosas atestadas na hisroria p6s-co­lombiana dos guaranis datam do seculo XIX; sao as das tribos do sui

• de Mato Grosso: oguauiva, taiiigua e apapocuva - trataremos delasmais adiante. No seculo XVI, a atividade dos car<lis e muito diferen­te e nao e profetica em nada: com efeito, foi muitas vezes sob a sua li­deranya que se organizou, desde 0 comeyo, a resisrencia acolonizayaoespanhola. Nao prometiam aos indios imortalidade e juventude per- ,petua - mas propunham libertar da encomienda as aldeias que jahaviam sido submetidas a ela. Seu projeto nao era a procura de umaoutra terra, mas a reconquista da terra de que comeyavam a se ver es­poliados e, se empolgavam numerosas aldeias com sua lideranya, naoera para peregrinayOes interminaveis, mas em expediyoes guerreirascontra as pequenas cidades fortificadas que come~vam a se multi­plicar, ocupando cada vez mais seu territorio.

Nao ha nada em comum entre isso e a procura da Terra sem Mal.Ora, nao foi por acaso que algumas das guerras contra os espanhoisforam provocadas e dirigidas por profetas, em vez de chefes: e queeles tentaram aproveitar a situayao criada pela presen~ dos estrangei­ros para garantir seu poder. Quer dizer que sua ayao foi estritamentepo/itica. Quer dizer, tambem, que, se ela difere da situayao exemplifi­cada pelos tupis, nem por isso teria cabimento assimila-la aos movi­mentos politico-religiosos "revivalistas". Se. os carais tratam de lutarcontra os colonizadores, empenham-se ainda mais em coneluir pelasua vitoria 0 conflito que os opoe aos chefes. As asnicias da Hisroriaviriam anular as suas: se e verdade que durante 0 seculo XVI os es­panhois foram submetidos a severos reveses, tambem foram admira­velmente bern servidos por esta situayao. Devemos reler a hist6ria daconquista do Paraguai: nada esclarece melhor a situayao politica in­terna dos povos guaranis do que a narrayao dessas guerras. Expore­mos dois episOdios diferentes. 0 primeiro e a tentativa de revolta devarias aldeias, algumas das quais jli submetidas a encomienda, as ou­tras ameayadas de logo 0 serem, devido a sua proximidade das pri­meiras: e a hist6ria da insurreiyao conduzida por Obera. 0 outro, quepoe os indios em conflito com os jesuitas e nao com os colonos, e 0

episodio da resisrencia, e fmalmente da "coilquista espiritual", deuma vasta regiao do Guaira em que os espanhois ainda nao haviampenetrado. Urn dos chefes indios foi Guiravera.

Escolhemos de proposito dois episodios ja analisados por AlfredMetraux; interpretando-os como movimentos messianicos, este ulti­mo fornece deles uma imagem curiosamente deformada. Contudo,ninguem conhecia 8.S cronicas melhor do que ele. Mas compare-se seurelato desses dois momentos da hisroria guarani com as fontes emque se inspira e se percebera como ele e parcial: Metraux se interessapelas personagens, nao pelos acontecimentos. lnfluenciado pelas pes-

Page 37: Terra sen mal helen clastres

70 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 71

q~isas recentes sabre os movimt:ntos messianicos, s6 retern dos cro­nIstas as informa90es que se referem a personalidade dos profetas,sem prestar aten9ao a histOria da qual foram os protagonistas. Mas,

• para consld~rar "messianica" uma a9ao, basta que ela seja provocadapor urn profeta? 0 proprio Metraux reconhece que sao necessariasoutras condi90es: "a cren~ num profeta ou homem-deus, 0 desen­volvlmento de uma a¢o tendente a acelerar 0 advento da Idade deOuro, a rea9ao social e cultl/ral contra a civiliz~ao branca e, muitasvezes, tambem a forma9ao de uma nova religiao sincretica."26 0 em_bara90 sentido por Metraux diante dos fatos tupis-guaranis e causadoporq~e continua a pensa-Ios com referencia aos messianismos assimd~fimdos, quando ele ja havia pressentido sua diferen9a. A apresenta-~o da sua ultIma obra nos esclarece 0 seu procedimento: .

"Quando esse estudo foi escrito,27 os messianismos primitivos maleram conhecidos... Minha interpreta9ao dos fatos sul-americanos te­ria sido Iilais matizada, e certamente mais precisa, se eu tivesse podi­do sltua-Ios na sua verdadeira perspectiva."28 Espantosa tomada deposi9ao, pois como e possivel declarar, de antemao, que tal e sua ver­d~delra perspectiva? Tambem se pode ler, na sua apresenta¢o: ..... euJa tratara da a9ao de certos magicos que, no inicio da coloniza9ao e naepoca contemponinea, fizeram reviver antigos mitas entre os indiostupis do litoral e os guaranis do Paraguai e os conduziram a procura

.do Paraiso."29 Reviver antigos mitos no in(cio da coloniza9ao? Ad-mltamos que a mterpreta¢o "revivalista" seja, a rigor, aceitavel, seaphcada a urn passado recente; na aurora da era colonial, quando acultura guaranI estava perfeitamente intata, e gratuita. 0 erro meto­dologico consiste em transpor, sem mais, uma analise feita para umacultura e uma epoca dadas a outras culturas e epocas: porque um ele­mento.- 0 profeta - esta presente em todos os casos, conclui-se queos cOllJuntos sao identicos. Dai se podem confundir fenomenos muitodiferentes que, na mesma ocasiao, se produziram entre os tupis e osguaranIS: a procura da Terra sem Mal e a busca do poder politico; epode-se explicar a histOria remota dos guaranis pelo seu passado re­cente -. ja que esses conjuntos complexos se veem reduzidos ao seutinico denominador comum: a personagem do cara(. Embora naoconseguisse desligar-se de tal procedimento, Metraux percebera suasdlficuldades, ja que cuidava de distinguir os tupis-guaranis: "Nessee~tudo, tratar-se-a antes de mais nada dos messias e dos profetas in­dlgenas. Estudaremos menos as cren~as messianicas num ParaisoTerrestre, de que ja falamos em outro lugar... Trata-se efetivamentede movimentos messianicos, masdiferem da maior parte dos que 00­

nhecemos gra9as ao seu carater puramente indigena." 30 Portanto, elemesmo nos incita a buscar outra explica¢o. Tentamos mostrar a ori­ginalidade do profctismo Oa Terra sem Mal. Gostariamos de mostrar

, -

agora que certos movimentos, tambem qualificados de messianicos,dependem de outra analise.

E Lozano quem nos fornece a narrativa da subleva9ao oomandadapor Obera em 1579.31 Obera - cujo nome, conta Lozano, significa"esplendor" em espanho132 - era um grande mage e chefe de aldeianas cercanias de Assun9ao: numa regiao submetida, portanto, ao re­gime da encomienda. A nova situa9ao ainda nao afetara 0 modo devida tradicional; e Lozano esclarece que, embora todos os indios dolugar t' lessem nomes cristiios, haviam permanecido tiio firmes nagentilidade como antes de receber 0 batismo; floresciam ~articul~r­mente a arte magica e outras "abomina90es". Obera propos aos In­

dios liberta-los da submissao aos espanhois, opera¢o que tinha certe­za de poder realizar, pois, como dizia, tornara-se senhor do cometaque aparecera e sumira no ocidente dias antes. Em suma, ele era ca­ra( - dava-lhes portanto a cau¢o do seu poder de homem-deus.Convenceu nao somente os seus, como obteve sigilosamente a alian9ade tres aldeias vizinhas. Partiu entiio com a gente dessas quatro al­deias, enviando numa dir~ao uma parte do seu exercito e tomandopessoalmente 0 rumo do rio Parana: pretendia obter 0 maximo dealian9as para regressar com refor90s e atacar Assun9ao. 0 resultadoda sua iniciativa mio se fez esperar: em tada parte os guarams toma­yam as armas, de modo que muito rapidamente estava rebelada todaa provincia, com ex~ao dos encomendados de Villarica. "Nao res­tou urn tinieD indio nas demais encomiendas que aceitasse servir aosespanhois; muito ao contrario, come9aram a infestar todo 0 pais comataques repentinos." J 3

o perigo era grande. Para enfrenta-Io, 0 governador da provincia,Garay, decidiu tomar pessoalmente a chefia de uma pequena tropa desoldados bern armados (cento e trinta se tanto, pois nao se podia des­guarnecer Assun9ao), com 0 objetivo de cortar a rota de Obera e im­pedir os guaranis do rio Parana de se juntarem aos revoltosos da re­giao de Assun9ao. 34 Chegando junto as nascentes do Ipane, Garay foiinformado de que urn primeiro grupo de indios se dirigia a marchasfor9adas para este ponto: decidiu entiio estabelecer as pressas urncampo fortificado e aguardli-los nele. Os espanhois mal terminavamde se fortificar quando viram surgir da floresta dois guerreiros guarac

nis. Nus e sem armas, estes avan9aram are alcance de voz e desafia­ram para combate singular dois espanhois munidos de escudo e espa­da ou lan9a. Eram' enviados por seu chefe Tapui-Gua9u, com a mis­sao de veneer sem arco nem flecha e a despeito da desigualdade dasarmas. 0 duplo combate aconteceu, para derrota, como era de se es­perar, dos guaranis. Feridos, voltaram para fazer seu relato a Tapui:-Gua9u que, ao que se diz, irritado com sua covardIa, mandou mata--los imediatamente. Em todo caso, sua derrota pareceu de mau

Page 38: Terra sen mal helen clastres

augurio ao chefe, lev~ndo-o a duvidar do poder e das promessas deObe~a. Encontrou melo, lan,ando mao de urn pretexto qualquer pare~eull1r o.conselho doo guerreiros e abriu-o com urn discurso cUj~ teore 0 segu_mte: 35 os negoclOs publicos que pOem em jogo 0 interesse detodos nao podl~m ser conduzidos em fun,ao da opiniao de uma sopessoa, por malS aVlSada que fosse. 0 gosto que os guaranis sempretiveram pela hberdade, sua reconhecida superioridade sobre os de­malS p~vos eXllllam que nao suportassem por mais tempo 0 jugo dosespanholS. Se Obera ~vesse tanta facilidade para cumprir Suas pro,messas como p~ra faze-las, nao hli duvida de que 0 seguiriamos semhesltar: mas ~a surgIam ?ificuldades, de modo que Tapui-Gua,uconslderava nao ter 0 dlrelto _de decidir, pessoalmente, por todos, 0

come,o de uma_guerra que: nao se anunciava muito favoravelmente.Que cada urn de su~ opmlao: .vamos seguir Obera, ou aliar-nos semtardan,a aos espanhOls? DepolS de assim formular a alternativa, con­vldou 0 malS Idoso do conse!ho a opinar em primeiro Illgar. Nao va­mos. ater-nos ao pormenor dessas delibera,oes: defensores da paz epartidanos da guerra tiveram que se enfrentar. Todos, contudo con­cordaram num ponto: Obera os havia enganado: era apenas um'paj<!,em nada supenor aos outros, e nao 0 homem-deus que pretendiaser.36 Se, portanto, prosseguissem a guerra, nao havia razao algumapar~ se po~em sob as ordens de quem ja !hes aparecia como impostore nao devlam contar co_m ~nhuma ajuda sobrenatural.

Escolheu-se a paz e Tapw-Gua,u enviou sem demora mensageirospara oferecer sua alianl'a a Garay. 0 que Garay aceitou com a maxi­ma pr~teza, amda. malS porque estava muito longe de esperar tal pro­posta. s espanhOls Vleram enta~ instalar-se no acampamento guara­m, sem levar em conta os indios descontentes com esta decisao: Urndestes, Curemo, encontrou urn meio, poucos dias depois, para utilizar~m seu provelto uma ahanl'a que so aceitai"a com muito rna vontade

em nada dlZer aos outros, conseguiu convencer Garay de que era ur:gente ~tacar 0 acampa~:nto do cacique Tapuimirim, a vinte leguasde dlstanCIa: era necessano (argumentou) surpreencte-Io antes que elepudesse Juntar-se a Obera Guiados por alguns indios, os espanhoispartl~am e atacaram, de madrugada, nao so 0 acampamento de Ta­p~unlTlm, mas tambem algumas a1deias vizinhas, massacrando toda ag nte, homens, mulheres, crIanl'as, que na maior parte ainda dor­mlam. De vol~ ao acampamento de Tapui-Gua,u, Garay pOde sermfor~ado -: Ja qu,e a mlclativa de Curemo provocara, enquanto is­so, vlOlenta dls~ussao -:- de que na verdade Tapuimirim nunca tiveraamenor mtenl'ao de ahar-se a Obera, mas que em compensa,ao era 0

plor mlmlgo de Curemo. Em suma, Garay havia side apenas 0 ins­trumento (mas de que eficacia!) de urn ajuste de contas.

Antes de contmuarmos 0 fio dos acontecimentos, detenhamo-nos

urn momento nesse primeiro episOdio, acerca do qual se convira queesm bastante afastado de urn "movimento de Iiberta,ao mistica". 37Nao se trata de fatos passiveis de ser expIicados como resultado deuma rea,ao de "desespero" a ser atribuido a coloniza,ao e que teriaimpelido os guaranis "a escutar os profetas que se levantavam no seuseio e Ihes ofereciam, como solul'8:o, a fuga no rumo da Terra semMal, ou 0 advento de uma proxima Idade de Ouro."38 Nao somenteinexiste qualquer alusao a Terra sem Mal (nem mesmo nos discursosatribuidos a Obera), como ainda haveria algumas reservas a emitirquanto ao entusiasmo alegadamente despertado pelo profeta nas dife­rentes tribos: alias, esquece-se com muito simplismo que os guaranisestavam divididos em tribos hostis, ao tratar-se deles como se consti­tuissem uma unica na,ao. Nao hli duvida de que Obera foi capaz deganhar para sua causa numerosos chefes, por ter conseguido pregaruma guerra particularmente popular: mas, se a guerra era aceita, naodeixava de haver serias reticencias' a respeito do profeta - comomostram 0 episOdio ja citado e 0 fim da historia.

Fal'amos abstral'8:o do que se refere il personagem de Obera (seusgestos, seus discursos, sua maneira de viver, as marcas de respeitoque exigia dos outros... eram de urn caraO para so considerar osacontecimentos: estes sao apenas lutas por prestigio, contlitos politi­cos, rivalldades entre chefes, ou entre chefes e profeta. Nisso tudonao existe sombra de uma preocupa,ao religiosa, nada que evoqueuma rea,ao de desespero. Devemos recordar, com efeito, que, nassuas guerras intertribais, tupis e guaranis atribuiam particular impor­mncia as previs6es dos xamas: nunca partiam em guerra sem a cau­1'8:0 do sobrenatural, a ponto de - uma vez iniciada uma expedi,ao_ tomarem 0 menor sinal de mau agouro como pretexto para arre­piar caminho e aguardar uma conjuntura mais favoravel. "... e taoinconstantes e pusillinimes sao nesta parte", observa Gandavo, "quemuitas _vezes com partirem de suas terras mui determinados, e dese­josos de exercitarem sua crueldade, se acontece encontrar certa ave,ou qualquer outra cousa semelhante, que eles tenham por ruim prog­nostico, nao vao mais por diante com sua determina,ao, e dali con­sultam tornar-se outra vez, sem haver algum da companhia que sejacontra este parecer. Assim que com qualquer abusam destas, a todo 0

tempo se abalam mui facilmente, ainda que estejam mui perto de al­can,ar vitoria..." 39 POI conseguinte, na circunstancia que estudamos,agiram com os espanhois como era seu costume agir entre si: a derro­ta de dois guerreiros era prova suficiente de que 0 Ceu nao estava doseu lado. Infinitamente mais interessante e a decisao do chefe Tapui­Gua,u, porque foge completamente aos habitos: os duelos nao faziamparte dos usos guaranis - pelo menos os duelos entre inimigos.40Por que, enta~, .ole impos urn combate preliminar e por que este

73TERRA SEM MALHELENE CLASTRES72

Page 39: Terra sen mal helen clastres

combate deliberadamente desigual? A seqiiencia dos acontecimentospermlte compreender sua raziio. Para 0 chefe, niio se tratava de ga­rantlr que essa guerra (agora iminente, pois os inimigos estavam aSua frente) G?ntasse mesmo COm 0 agrado dos deuses: so os xamaspodenam dlze-Io.e 0 fato de que esta guerra era dirigida por urn caraiem pessoa devena servlr de penhor suficiente - sob a condi9iio deque se tratasse, efetlvamente, de urn aurentico carai. Ora, e istomesmo que, de repente, se ve questionado. 0 que 0 resultado do due­10 permltma ~enficar seria a autenticidade do proprio Obera: e estaque 0 chefe poe em duvida e quer averiguar antes de entrar em com­b~te. Talvez esteja disposto a reconhecer Obera, mas niio sem antespo-Io a prova. Fosse Obera urn homem-deus, dois guerreiros deve­nam vencer, pouco importando as condi90es do combate; e 0 que seJa ver. Tal procedlmento niio Ii habitual: niio se pede a urn xamii ou aurn carai que demonstre_a todo momento seu poder, para julgar-seen: segulda se suas opmlOes merecem ser ouvidas ou niio. Pelo con­trano: quando se cuida de consulm-Io sobre uma coisa tao importantecomo,. por exemplo, a OPortUl;tidade de uma guerra, e que s!'u poderJa ~sta a salvo d: qualquer d~IVlda. Quanto maior for seu prestigio,~als amplas serao su~ fun90es e sua autoridade efetiva; mas, tam­bern, malS graves serao as penas em que incorre. Pois, se aconteceque se engane sobre 0 resultado de uma batalha, pode ser executado'contudo, antes disso ninguem Ihe pedini que justifique a confJan9;~ele mvestlda pelo grupo: esta seria a mais superllua das precau90es,Ja que todos sab~m mUlto bern (e 0 xamii melhor do que qualquer ou­tro) que as san90es dlspomvels siio suficientes para prevenir tais abu­so~ de confian9a. Por que, entiio, urn chefe guarani quis que urn ca­rOL demonstrasse seu poder? Talvez porque este carai era, ao mesmotempo, 0 chefe de outra aldeia; mais provavelmente, ao que nos pare­ce, porque se outorgara urn dlrelto exorbitante: decidira, sozinhouma guerra na qual queria envolver todas as tribos guaranis - abo:hndo com isso, de direito serrao de fato, as rela90es politicas intertri­bal~, sltuando-se aClma dos demais chefes - e invocava sua naturezadlvma para Justlficar seu born direito. Unir-se a sua guerra significa­va, portanto, reconhecer-Ihe esse direito. Talvez Tapui-Gua9u se dis­pusesse a tanto, mas sob a condi9iio de que Obera manifestasse suanatureza dlvma; em outras palavras, de que comprovasse sua legiti­mldade. Vma vez desmascarada a impostura, todos os meios seriambons para combare-Ia, inclusive a alian9a com os espanhois.

Passemos ao fim da historia. De volta da expedi9iio contra Tapui­mmm, Garay soube de seus novos aliados que Obera e seus fieis ha­Vlam constrUldo urn f?rte, protegido de todos os lados com pali9adase fossos. Cerca de tres mt! guerrelros,41 conduzidos pelos caciquesmals renomados da regiiio, haviam-se concentrado ao seu lado e trei-

navam para a luta, ansiosos de que os espanhois viessem ataca-los. 0assalto era are aguardado' com certo ardor febril, tal era a impacienciapor ver os efeitos do auxilio sobrenatural prometido pelo profeta. Es­te fizera sacrificar e queimar urn bezerro, cujas cinzas dispersava aovento, pressagiando assim a facilidade com que seriam aniquilados osinimigos. Garay, que era mantido a par de todos esses preparativos,decidiu desfechar 0 ataque. Foi violento e os guaranis logo puderamconstatar, as suas custas, que os espanhois eram guerreiros muitomais temiveis, e suas armas mais mortiferas, do que haviam imagi­nado. Logo no priineiro entrevero, Obera fugiu. Assim que os guara­nis constataram seu desaparecimento, deixaram de defender 0 fortepara so pensar em recuar, e isso na mais arrematada desordem; de­samparados pela fuga imprevista do chefe, os caciques eram incapa­zes de dirigir seus homens e foi facil para os espanhois cortar-Ihes a

.retirada; em algumas horas, estes ultimos se tornavam senhores do.campo de batalha: numerosos guaranis haviam sido mortos, os de­mais aprisionados, quase sem resisrencia. Urn unico chefe indio pOdeacreditar, num relance, numa possivel vitoria: para concluir, recorda­remos seu gesto, pois e sintomatico do estado de espirito dos guaranisdurante as guerras e permite, portanto, compreender 0 desenlace des­tao Durante 0 abandono desordenado do forte, esse cacique, sem maiscuidar dos seus, havia-se refugiado no tronco oco de uma irvore.Pouco a pouco recuperou seu controle e, observando os espanhois doseu esconderijo, reconheceu em Garay seu chefe; tentou entiio llecha­-10, convencido de que, morta este, os outros fugiriam; venda Garayperder 0 equilibrio, acreditou - enganado - que 0 atingira mortal­mente, e saiu do esconderijo gritando vitoria: urn tiro de arcabuz ma­tou-o prontamente. Outro chefe, encorajado pelo seu gesto, arremeteusozinho contra os espanhois, ferindo alguns destes antes de tambemser morta. Foram essas praticamente as unicas tentativas de resisten­cia. Todos os demais, no mais completo desamparo, nem sequer pen­savam em se defender: muitos foram mortos, trezentos aprisionados,alguns conseguiram escapar. Entre os prisioneiros, encontrava-se urndos tres caciques que haviam acompanhado Obera desde que este par­lira de sua aldeia. Explicou a Garay 0 plano de Obera e, gra9<Js assuas indica90es, foi possivel prender prontamente tres mesti90s que 0profeta enviara a uma regiiio vizinha, para tentar tambem subleva-Ia.Depois disso, os espanhois puderam regressar a Assun9iio, restabele­cida a ordem na provincia. Quanto a Obera, ninguem mais ouviu fa­lar dele.

Essa e toda a hist6ria. Niio se trata de uma revolta mistica que te­ria sido gerada por urn sonho d_e idade de oura ou por urn desejo deevasiio para a Terra sem Mal. E a historia de uma guerra "supratri­bal", provocada com intuitos politicos pelo profeta-chefe de uma al-

75TERRA SEM MALHELENE CLASTRES74

Ii

I

Page 40: Terra sen mal helen clastres

~I

76 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 77

I ~ ,

I!

I

'\,,

iI

, !

deia, cujas intenfVoes provavelmente DaD eram inocentes, mesmo queele estivesse convencido do seu born direito. Correndo 0 risco de ver­-se chamado a razao pelos que, menos astutos do que Tapui-Gua9u, 0

haviam seguido, preferiu fugir, desmascarando assim a si mesmo.A histOria de Guiravera talvez nos esclar~a ainda melhor 0 estad()

de conflito que opunha chefes e profetas nas sociedades guaranis. Eainda mais interessante porque se desenrola numa regiao perfeita­mente intata do Guaira: os espanhois ainda nao a haviam colonizadoe por isso as aldeias guaranis nao estavam submetidas a "encomien­da". Seguiremos 0 relato do padre Montoya, que foi 0 principal pro­tagonista dessa histOria, do lado espanho1.42 Na epoca em que ela sesitua, os jesuitas ainda haviam fundado apenas cinco redu90es: a qua­se totalidade do Guaira estava povoada apenas por "barbaros", quan­do Montoya empreendeu a conquista espiritual da provincia de Taiao­ba - nome tirado do cacique principal que, no dizer de Montoya, go­vernava varias das suas aldeias. Os jesuitas cobi9avam particularmen­te essa provincia, pois era muito populosa, de modo que, se conse­guissem implantar-se nela, teriam muito maior facilidade em con­quistar 0 restante do Guaira. "Essa provincia era infinitamente po­voada e por gente de costumes pagaos por completo, muito guerreira,muito afeita a comer carne humana." 43 Alem disso, tinha grandemimero de "feiticeiros" que passavam por divindades, varios dosquais eram chefes de aldeias. A primeira tentativa do padre para pe­netraf na regiao fracassou. Guiado por uma quinzena de neofitos,Montoya chegou sem maiores problemas a uma primeira aldeia, pou­co importante (cerca de sessenta pessoas apenas), onde foi bem recebi­do e permaneceu dois meses (0 tempo - diz ele - de informar-se'acerca da provincia inteira e de preparar as demais aldeias para suachegada). Mas, quando se dirigiu a aldeia seguinte, a distancia de umdia·de marcha, oito grandes feiticeiros, chefes das aldeias adjacentes eque aparentemente vinham acolhe-Io, desencadearam os indios contraele: sete dos que acompanhavam Montoya foram flechados e 0

proprio padre so conseguiu salvar a vida gra9as ao devotamento deum neofito que, para facilitar sua fuga, envergara sua batina, enga­nando dessa maneira os perseguidores. Os fugitivos tiveram que seesconder durante varios dias na floresta para escapar aos inimigos,antes de conseguir voltar a primeira aldeia, onde Montoya chegousem os objetos e paramentos do culto, que os "barbaros" Ihe haviamroubado para presentear "a um grande mago que tinham e de quemse diziam vassalos."44

Antes de ousar uma nova expedi9ao, Montoya considerou oportu­no encontrar 0 cacique Taiaoba, que nao era hostil a entrevista, masprimeiro delegou urn outro chefe. Este ultimo examinou longamenteo padre e acabou declarando"lhe que, se 0 encarava dessa maneira,

i

.L

era para verificar 0 que os xamas diziam acerca dos padres: que erammonstros chifrudos, ferozes devoradores de carne humana, etc. Ago­ra que pudera constatar que isso era mentira, preveniria Taiaoba, querno colocaria mais dificuldades para ele vir. 0 grande chefe chegou,efetivamente, alguns dias depois e 0 rumor logo se espalhou por todaa provincia. 0 missiomirio resolveu enta~ empreender uma segundatentativa, considerando as boas disposi90es do chefe suficientes paraassegurar seu sucesso. Partiram e, apos tres dias de marcha atravesde espessa fioresta, chegaram a uma vasta clareira onde decidiram de­ter-se. Montoya erigiu uma cruz onde ja pensava localizar sua futuramissao, enquanto Taiaoba, sem a menor duvida mais bem informadodas rela90es politicas que prevaleciam dentro da sua provincia, envia­va alguns indios a sua aldeia para pedir 0 refof9o de todos os seusguerreiros. Antes que estes chegassem, deu-se 0 ataque, conduzidopelos mesmos "feiticeiros". Taiaoba organizou como pOde a defesa,mas instou com 0 padre para que fugisse, aproveitando a escuridao,ja que sabia que um novo ataque seria desfechado ao alvorecer. Mon­toya teve tempo para batizar Taiaoba e os seus e depois escapuliucom dois ou tres guias.

A noticia desses.insucessos chegara are Villarica e um grupo de es­panhois decidiu conquistar pelas armas a provincia refrataria. Setentahomens bem armados, acompanhados por quinhentos encomenda­dos, puseram-se a caminho. Montoya, que tentara em vao dissuadi­-los de empresa tao arriscada, seguia-os. Nao foram lange: assim quese aproximaram da primeira aldeia inimiga, foram atacados, constru­iram as pressas algumas fortifica90es e, desde esse momenta, defen­der-se foj sua unica preocupa9ao. Depois de varios dias de combate,conseguiram a duras penas regressar a Villarica, de onde haviam par­tido. Esses fracassos, longe de desencorajar 0 missionario, rpenascontribuiram para aumentar seu zelo. Partiu pela quarta vez, acom­panhado de apenas trinta indios, para "que a vitoria sobre bestas taoinfernais so possa ser atribuida a Deus". Fez construir uma enormepali9ada, com 0 objetivo de dissuadir eventuais atacantes, uma igreja,e aguardou. . .

Guiravera, um dos grandes profetas da regiao, tentou em vanasocasioes lan~r um ataque contra 0 forte. "Havia um mago chamadoGuiravera, que ardia de furor e gana de me devorar. Fizera-se cha­mar de Deus e gra9as a todas as suas mentiras dominara essa gen­te." 45 Mas a asmcia do padre produziu 0 efeito desejado: temia-seatacar uma fortaleza que, por suas dimensOes, parecia abrigar grandenumero de guerreiros. Durante varios dias, os inimigos vieram emgrupos: examinavam 0 forte e depois partiam. Era visivel que, apesardas exorta90es do profeta, nao ousavam empreender um ataque pordemais incerto. Ambos os lados se observavam. Depois de certo tem-

Page 41: Terra sen mal helen clastres

78 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 79

po, Montoya adotou 0 hiibito de ficar diante da entrada do forte, parafalar a gente de Guiravera e convence-Ia das suas inten,Des pacificas.Nao vinha - explicava-!hes - a procura de ouro ou riquezas: preocupa­va-se apenas com suas almas, que podia - gra,as a agua do batismo ­restituir a sua candura primeira, garantindo-Ihes assim a imortalida­de... Distribuia em seguida alguns presentes e despedia-se dos seusouvintes, tomando muito cuidado, porem, para que nao vissem 0 in­terior do forte. Pouco a pouco, os antigos rebeldes tomaram gostopor seus,discursos; ja vinham em maior numero e traziam suas mu­!heres e filhos. Finalmente, algumas familias decidiram instalar-secom ele. Quando Montoya, mais tarde, deixou seu campo fortificadopara regressar as redu,oes, mil e quinhentas familias 0 aconjpanha­yam. Posteriormente, 0 proprio Guiravera visitou 0 padre, com 0

maior aparato e, aceitando dividir seu poder com os jesuitas, permitiuo estabelecimento de novas redu,oes em seu territorio.

Tal e, segundo 0 relato da sua unica testemunha, a hiswria da con­quista espiritual da provincia de Taiaoba. Da mesma forma que 0 epi- •sodio anterior, este nao pode ser comparado ao messianismo. Emcompensa,ao, ilumina muito bern as rivalidades politicas que opu­nham morubixabas e carais. NaG apenas Taiaoba naD manifestou aminima veleidade de resistencia a penetra9iio jesuitica como, desde 0

come,o, viu nos padres possiveis aliadQs contra os carm's, ja que es­tava consciente de que sua escolha implicava uma declara,ao de guer­ra contra estes: isto, sem duvida, porque 0 poder do chefe de provin­cia ja andava algo enfraquecido, enquanto 0 dos carals tendia, pelocontrario, a firmar-se. A relativa abundancia de chefes-profetas signi-.ficaria que, nessa regiao, 0 processo de transforma,ao do poder (que,como vimos, era tornado possivel e previsivel pelo estatuto ambiguodos carals) ja estivesse em andamento? Esta e somente uma hipotese:mas permitiria, pelo menos, vislumbrar uma logica por tras dessesacontecimentos.

Os dois episodios que relatamos mostram, cada urn a seu fellio,que as sociedades guaranis 46 conheciam uma crise politica profunda,que ja vimos expressa num outro' plano pelo pensamento da Terrasem Mal. Estaria sua solu,ao no advento de urn poder mais centrali­zado, reunindo nas mesmas maos as fun,Des religiosa e politica? Emteoria, nao hii duvida. Mas nada nos fatos permite ver alguma viabili­dade nessa solu,ao. A historia de Obera e bern instrutiva a esse res­peito e inumeras anedotas mostram que, se os homens-deuses inspira­vam temor e veneracao, raramente os chefes deixavam passar urnaocasiao de manifestar, aos olhos de todos"o carater vao das suas pre­tens6es.

Foi essa, porem, a solu9iio que teve sucesso entre os guaranis, mas •por outra via: 0 Estado jesuilico do Paraguai. Pois os jesuitas substi-

tuiram os profetas no mesmo empreendimento: e linham todos osmeios para obter sucesso nO ponto em que os outros so podiam fra­cassar. Por conseguinte, as razDes de ordem psicologica que podemser invocadas para explicar seu exito, a saber, que 0 poder desses no­vos profetas nao se prestava a contesta,ao (jam efetivamente libertaros guaranis da encomienda; anunciavam-lhes que a Terra sem Malera acessivel, mas apos a morte ... em suma, em qualquer plano quefosse, suas promessas nunca eram vas), deve-se acrescentar uma ra­zao de ordem sociologica: as trinta cidades do Estado jesuitico marca­yam 0 advento de uma forma de poder politico a qual ja tendiam associedades tupis-guaranis, mas que sem duvida nao teriam realizado,por terem desenvolvido, juntamente com 0 profelismo, uma religiaoque recusava tal poder.

Cerca de cento e cinqiienta mil guaranis viviam na3 trinta cidadesjesuiticas quando os padres foram expulsos do Paraguai. Fpi entiioque os guarartis conheceram 0 mesmo abalo que a maior parte dasoutras tribos indigenas ja havia sofrido, mas dois seculos antes: de­ver-se-a a este atraso sua sobrevivencia e sua sorte bern -iiversa, jaque se mesli,aram com a popula,ao espanhola? Nao e impossi·{el.Em todo caso, sua cultura teria desaparecido co os cainguas, os bdiosda floresta, nao a livessem conservado.

Migra¢es guaranis para a Terra sem Mal

Varios grupos guaranis sempre se recusaram a incorporar-se asmissoes: teriam carals por dirigentes? Nao se sabe. Em todo caso,permaneceram bern vivas entre eles as tradi,Qes religiosas - comotestemunham as grandes migra,Des que alguns iriam empreender. A

, partir do come,o do seculo XIX, varias tribos uO suI de Mato Grossopuseram-se a procura da Terra sem Mal. Nessa epoca, varios profetashaviam passado a percorrer as aldeias: anunciavam a iminente des­trui9iio da Terra e proelamavam que a unica maneira de escapar aocataelisma era partir para a Terra sem Mal, situada no centro da Ter­ra, segundo uma trad',ao, a leste, do outro lado dos mares, de acordocom outras. 47

Conduzidos por seu paje,48 Nhanderiquini, os tanhiguas foram osprimeiros a iniciar a marcha para 0 leste (por volta de 1820). Come­,aram subindo lentamente a margem direita do rio Parana, atraves­sando 0 territorio dos apapocuvas e depois 0 dos oguauivas (a quemensinaram as dan,as religiosas, que estes nao conheciam).49 Entiio

Page 42: Terra sen mal helen clastres

80 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 81

I.•

mOffeil seu guia e seu sucessor decidiu prosseguir a migra~ao. Conse­guiu - relata a tradic;ao indigena - fazer sua gente atravessar 0 rioParana sem recorrer a canoas e a lenta marcha para 0 leste prosse­guiu sem ?bstaculos ate os indios chegarem diante da cidade de ltape­tinmga (nao distante de Sao Paulo). Foram capturados pelos seus ha­bitantes e reduzidos a escravidao. Puderam fugir, porem, e, obstina­dos, retomaram a marcha na direc;ao do litoral. Chegando finalmentea serra de Itapetininga, a vista do oceano, decidiram instalar-se nela,para se consagrarem aos exercicios - danc;as, cantos, jejuns, etc. ­que iam capaciti-los a atravessar as aguas ate a Terra sem Mal. Du­rante esse tempo, 0 governo brasileiro, que fora alertado apos sua fu­ga, enviava uma expedic;ao contra eles. Mas os tanhiguas nao estavamdesprevenidos: nao apenas resistiram, como impuseram pesadas per­das aos seus perseguidores, fazendo-os desistir da sua intenc;ao ofensi­va. 0 governo brasileiro teve que negociar e conceder aos indios a es­treita faixa de terra de ltaryry OtarirD. Os tanhiguas, depois dessesacontecimentos, mio ultrapassavam a casa dos duzentos; doenc;as eepidemias viriam. progressivamente, reduzir essa cifra. Nao erammais do que nove os tanhiguas em Itariri quando, em 1912, Nimuen­daju foi comunicar-Ihes a oferta do governo brasileiro para instala-Iosna reserva guarani de Arariba: recusaram a proposta, resolvidos queestavam a morrer no lugar em que foram enterrados as seus pais.

Algum tempo depois da passagem dos tanhiguas, tambem osoguauivas abandonaram seu territorio, em pequenos grupos sucessi­vos, seguindo as pegadas dos seus predecessores. Em 1830, 0 grupomalS avanc;ado conseguira chegar a regiao de Itapetininga, onde tra­You relac;6es amistosas com urn importante fazendeiro, 0 Barao deAnto_nina, que se empenhou junto ao governo pela criac;ao de umamlssao para eles, para tanto, 0 barao cedia aos indios uma parcela dassuas terras, no Rio Verde. A missao foi criada em 1845. Posterior­mente,. os documentos que garantiam 0 direito de propriedade dosguarams desapareceram, disputas e depois abusos se sucederam ate1912, data em que os indios, desencorajados, aceitaram seguir Ni­muenda]u ate a reserva de Arariba: nessa ocashio, ja nao eram maisque cinqiienta. Apenas urn dos grupos oguauivas conseguiria atingiro mar e estabelecer-se com os tanhiguas. Mais tarde, transferiu-se pa­ra urn pouco malS longe, ate Itana'e (Itanhaem), contava quarentapessoas em 1912, algumas familias guaranis ainda viviam em lta­nhaem em 1965.

Em 1870, muito tempo depois dos mitres, os apapocuvas tambemse empenharam na grande migrayao para oriente: como ja aconteceracom os oguauivas. suas partidas se escalonaram no tempo. U~ pri­meiro. grupo, consideraveL partiu sob a direc;ao de dois profetas,Nlmblaraponhl e GUlracambi. Logo estes se separaram, para facilitar

a marcha, Nimbiaraponhi optou por seguir 0 curso do rio Tiere, en­quanto Guiracambi tomava 0 rio Paranapanema, quer dizer, 0

mesmo itinerario das tribos precedentes. Este liltimo fez duas tentati­vas para alcanc;ar 0 litoraL ambas impedidas pelos representantes 10­cais das autoridades brasileiras, exasperados por esses deslocamentos,e que por todos os meios tentaram flxar os indios nas missiles. Imobi­lizado em Yatai (Jatan, Guiracambi lutou contra eles e contra os mis­sionarios. Depois da sua morte, a maior parle do seu grupo con­tinuou a viagem para leste, sob a direc;ao de outro chefe. Chegaramao Rio Verde, no territorio da missao oguauiva, onde passaram al­gum tempo, mas recusaram integrar-se na vida da missao, tiveramfmalmente que partir porque os oguauivas, manobrados pelos missio­narios, acusavam seu chefe de feiticeiro. Dessa vez se dirigiram paranordeste e, em Bauru, foram alcanc;ados por outro bando, que vinhado leste e, apos muitas peripecias, tomava 0 rumo do oeste. E dificilseguir com precisao 0 itinerario de cada urn dos grupos apapocuvas,mas todos conheceram aproximadamente a mesma sorle, maltratadospelas autoridades brasileiras, massacrados pelos colhedores de erva­-mate, dizimados pelas epidemias de rubeola ou pelos ataques de im­paludismo, foram praticamente aniquilados, Nimuendaju conseguiureunir duzentos sobreviventes desses bandos dispersos na reserva deArariM.

Enquanto Guiracambi seguia as margens do Paranapanema, Nim­biaraponhi chegava, pelo vale do Tiere, are 0 oceano. Algum tempodepms, convencendo-se da impossibilidade de atravessa-Io, acreditouhaver localizado erroneamente a Terra sem Mal, que uma tradic;ao di­versa situava 110 centro da Terra, arrepiou caminho. No trajeto, umaepidemia de rubeola matou toda a sua gente, exceto duas pessoas. Eleacabou atravessando sozinho 0 rio Parana e voltando para 0 Iguate­mi. JUntou-se enllio a outro grupo apapocuva e com ele percorreu 0

territorio do Estado do Parana, sempre esperanc;oso de descobrir aTerra sem Mal. Morreu em 1905, no alto Ivai. Seu sucessor, 0 paj<!Tangara, conduziu de novo sua gente para leste, primeiro ate 0 RioVerde, e dai are Piraju, onde Nimuendaju conseguiu, em 1912, queos sobreviventes do grupo (trinta e tres pessoas) se instalassem na re­serva de Araribli. No mesmo ano, Tangara morreu na reserva.

o breve relato dessas "migrac;6es" dos guaranis para a Terra semMal basta para mostrar, tambem ai, a originalidade de uma tradic;aoreligiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer. Ne­nhum sincretismo existe aqui. E, ao contrario do que se da com osmovimentos messianicos, mio deparamos com nenhuma ressominciapolitica, nao se trata de revoltas; nenhuma reivindicac;ao politica outerritorial acompanha ou provoca as migrac;6es. E, ao contrario, ecomo antigamente, 0 abandono do territorio e a passagem a vida

I

j

Page 43: Terra sen mal helen clastres

82 HELENE. CLASTRESTERRA SEM MAL 83

IIi I

I

nomade. as guaranis certamente nao procuravam obter uma indepen­dencia politica e economica que ja possuiam, devemos recordar queos grupos que empreenderam essas migra~6es viviam num territorio(na fronteira entre 0 Paraguai e 0 Brasil) onde podiam desfrutar deuma autonomia real, embora precaria sem duvida, protegidos que es­tavam de todo contato por urn meio natural (a densa floresta tropicalque cobre toda a regiaol muito dWcil de se penetrar e, na epoca, aindavirgem. Njlverdade, a unica liberdade que ainda Ihes era deixada eraa de viver nessa floresta, esquecidos dos outros; e isto se Ihes fez sen­tir quando, acreditando-se sem duvida senhores dos -seus movimen­tos, deixaram suas aldeias, foi entao'que puderam medir todo 0 pesoda opressao. Mas nao pode ter side para fugir de uma opressao,inexistente ainda para eles, que percorreram em todos os sentidos,durante quase urn seculo, 0 espa<;o imenso que os separava do mar.Suas motivayOes eram exclusivamente religiosas: como outrora, era aimpossivel viagem em busca da imortalidade. Sem duvida, sua situa­<;ao se modificara profundamente desde 0 seculo XVI e era enorme adisGincia entre as modestas tribos' cainguas e as arrogantes tribosguerreiras de antanho. Nenhuma duvida existe, tampouco, de que aconscil~ncia dessa transforma~ao traria novas inflexoes ao discurso so­bre a Terra sem Mal, contudo, e referindo-as a sua cultura passadaque podemos compreender, hoje, 0 sentido das suas palavras.

Notas

(I) A. Metraux. Religiolls el MaKin illdielll1eL. pag. 13.(2) A. Metraux. L,'s HOllmJ('.~-Diellx ehe.: "'.~ Chiriguano. pag. 66.

J'.,.. (3) Egon Schaden, Ellsaio elnosocio!dgieo sobrl! a MiloloKia Herlih'a dl! alglllJla,~

fribo.~ illdigella.~ do Bra.~i1. in Sodologiu. vol. VII. n~ 4 (1945), Sao Paulo -- pag.54.(4) Schaden. op. (il .. pags. 54-55.(5) Gabriel Soares de Sousa, Trawdo d,'scrilil'lJ do 8 ra sil em J58 7. cap. ex L v II.

pags. 299·300.(6) Soares de Sousa. ihidem, pag. 300.

'" (7) A. Metraux, Le.~ Mi~mJlill/l.~ Id~f(/riqlle,~ des Tllpi-6'I1ural1i. pag. 3.(8) Soares de Sousa, op cif., cap. LVIII. pags. 109-1 roo(9) Sem duvida trata-se da aristocracia gu~rrelra de Montoya.

(10) Metraux. Religions ef Magies.. pag. 12(II) Pero de Magalhae.<; Gandavo, Hi.~lIiria da 1'I'OI"/fl-ciiJ de Sullla ('ru.:. alp. XIV:rceditado ill Assis Cintra. Nossu Primeira His{liria. Caieiras. Sao Paulo e Rio de Ja-

neire, 1922. Companhia Melhoramentos - pa.g. 144 ..(12) lodos os autores. e>+eetuando Gandavo. dlzem-nos originarios do litoral.

(\3) Gandavo. op. Cif" pag~ 143. .(14) A. Metraux. LC/s Migraliolls histonqu,:s... pig. 21.(15) A. Metraux, Rdigiolls ('1 Magi('.~ ... pag. 19.(16) Y. d'Evreux, Vo.rages ... , pag. 349.(17) Ibidem. pag. 350.(, 8) Ihidem. pag. 350.(19) A. Metraux, R,'ligiom l!1·Magies.... pag. 20. . .' .(20) Claude d'Abbeville. Hi.~/Oire de la mi.~.~i(J11 de5 pere5 eapuwlL . cap. XII. pag.

n(21) Ibidem pags. 77-78. . .(22) cr Clli~igU(J!/(J.~. B. Susnik avaliou estes excedentes junt~ aos chmguanos: auantid~de de ~andioca e milho consagrada ao fabrico das b~bldas fer.mentadas era

~elO menOS equivalente a destinada. a satisfazer as necessldades allmentares.(23) Claude d'Abbeville, op. cil., pag. 7~. . os discur­(24) Ja citamos Nobrega. Fernao Cardim pmta 0 e~tado de extase em qu~ . I' ~_

. Ih yam os indios' ficam - dlz - como encantados. a ta po:s ~~s ,~~:anl~~d~~:I~r ~ela pr6pria s~j,revivencia. 0 autor anonimo d~ 11~/(mlla(;tiodo~ ra.~iI refere as mesmas observal;'-les: os profetas (diz ele) .fazem ~s mdlos dabnl;~rdia e noile, sem deixa-Ios trabalhar ~os seus campos. e po~ ~s~o mUltos .sucum e .Citado por Metraux, in Le.~ HO!11mcs-Dieux ('lie.: ft.'.'> (llIrt~lIa/lO, pag. 68, i

~~b~~tr~ ~~i:~i~~-~:~:'t~~;oO ~;r~;i{~U~i~~~:;mae;~'i~~~~e:v~a ::;:~~:~~£i~a:~:paterna.' Sua falta provocou 0 dihivio. mas ele escapou. sozmho. pOI. r;o

Terra sem Mal. .(26) Metraux Religion.'> el Magies .. " pag. 13. . .

'd fl' de 1931 Les Homme~-Dieux c!ie.: In Oungual/o, pos-(27) Trata-se 0 seu a Igo .' .teriormente rernanejado.(28) Religions l!{ Magies... pag. 12. (0 grifo e nosso),(29) Ibidl!n1, pa~. 12.(0) Ibidem, pag. I J. . ca XOJ) Cf Lozano. Hi.'>rdria dl! la COl/qlll.~/a.:., ~omo III... p. . B Cente­(32) Lo~no reproduz fi~lmente (e ate no erro) a tn~orm~ao da:~ PO~ot~C~e Oberanera em la Argenlina, E evidentemente em Guaram. ~ nao em span ,tern este sentido; 0 termo ~ignifica. exatamente: relampago,(33) Lozano. op. eil .• tomo IlL pag. 213.()4) Ihidem, pag. 214.

(5) Ibidel/:. pag. 217. nciao do Conselho: "Ouvi as promessas de..<;te novo deus,(6) cr. 0 dlscurso de urn a firmadas' e suas al;oe.<; ate mais excepcionais nao ultra­Obera, mas nunca as VI con "".. .,' 218)pas.<;arn em nada as dos nossos 'proprio~ magos (Lozano. op. (II .. pag. .(7) Metraux, Rdigi()I1.~ el Magles .... pag. 23.

(8) Ihid"III. , XI. in Assis Cinlra. Nos·(39) Gandavo, Hi.wiria da prll\'l'lIda de Sail/(} (rll':, cap.

, .~a Pri/1/eira Hisll!ria. pagd· 126. de tacape permitiam regular os connitos in-

(40) Os duelos. a golpe.<; e arc.o. ou ~ . s uestao. urn dueloternos grave.<; demais para admlUr outra solul;ao, Asslm. n~ ta q . 22)

_ Curemo a outro anciiio do Conselho. (Cf. Lozano. tomo III. pag. 2 .ooos . . 223 224(4 J) Cifra avanl;3.da por Lozano. op. ell .• pags. - "(42) Montoya, COllqllista Espirilual, cap. XXX a XXXIV.

: (43) Ihidem, pag. 122.(44) Ibidem, pags. 127-128.

Page 44: Terra sen mal helen clastres

(45) Ibidem. pag. 139.

~~~;e E~:~: pais. com 0 mesmo cabimento." poderiamos escolher nossas exemplos

(47) Curt Nimuendaju, "Die Sagen von dec Erschaffung uDd Vernichtung dec Welt~~~ G4~n~I:f~n d~r Re~i8giOn dec Apap~kuva-Guarani". Z£'ifschrijl fur Ell1I1O{ogie,

. " ,pags. 4-403; trad~o espanhola. por Juan Francisco R ldL~.~le,~a ,de la CreacMn y JUicio Final del Mundo, como fundamiento de I~el~~f~~)0 e os Apapok,u~'a-~u~ralli, San Pablo (sid, Brasil, mimeografado. 1944.

bterma de p'!}e eo umco a sec empregado agOra, carai pa~ando a designar as

rancos.(49) Nimuendaju. op. Cif., pag. 4.

fI

I:

84 HELENE CLASTRES

capitulo. IV"KANDIRE"

Com as migra90es dos apapocuvas, chegaram ao fIm os vastos mo­vimentos coletivos para a Terra sem Mal. A violencia que encontra­ram mostra claramente que fenomenos de amplidiio companivel niil>sao mais possiveis hoje em dia. E certo que alguns se produziramainda no com~o deste seculo, mas ja niio diziam respeito a tao gran­de mimero de pessoas e foram todos de fraca amplidiio: rapidamentedetidos pelas autoridades paraguaias que, resignando-se ja muito acontragosto a indios sedentlirios, ainda menos podiam suportli-los va­gabundos. De resto, 0 fenomeno do nomadismo so podia eclodir nointerior de sociedades capazes de ainda se pensarem livres: doravante,as sociedades guaranis aprenderam que niio eram mais senhoras doseu destinn Objeto outrora de uma procura real, a Terra sem Maltornou-se objeto de especula¢o; de homens de a9iio que eram, os pro-

• fetas se fIzeram pensadores. E por isso que, se a Terra sem Mal per­manece 0 terna essencial dos discursos e ritos guaranis, 0 sentido des­se discurso se deslQcou.

Dos tres subgrupos guaranis que subsistem no Paraguai, os mbiassiio inegavelmente os que afIrmam e tentam com 0 maximo rigorpreservar sua identidade cultural. Como os chiripas e os pains, pos­suem suas proprias aldeias, afastadas das aldeias paraguaias e, no quediferem dos outros dois grupos, atribuem a mais alta importlincia aessa separa9iio: niio admitiriam que urn paraguaio se instalasse numade suas aldeias e sempre recusaram a presen9a de missionarios. Siiogeralmente tidos por fechados, desconfIados, pouco hospitaleiros,quando comparados com os chiripas - mais "civilizados", abertos,acolhedores. E e certo que essa caracterologia sumaria traduz algumarealidade: 0 modo diferente pelo qual dois grupos vivem 0 que se con­vencionou chamar de "acultura¢o", isto e, a ruina da sua cultura; 0

primeiro, que se refugia em si mesmo, vive-a no modo tragico, 0 se­gundo, que procura integrar-se da melhor forma possivel, no modo

Page 45: Terra sen mal helen clastres

86 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 87

I ,

:ji I

,,

I Ii

da resigna,ao.1 Contudo, a despeito da sua vontade de serem e per­manecerem guaranis, os mbias nao sao menos marcados do que osoutros pela socledade paraguala, nao somente porque doravante as re­la,Des com essa sociedade fazem parte do seu mundo (quase todos osmbias sao bilingiies, isto ~, alem da sua propria lingua, falam 0 gua­ram paragualO e, se contmuam a cultivar suas terras, muitos 'delestrabalham durante uma esta,ao nas haciendas paraguaias), mas so­bretudo nesse ponto - eles sabem-se dominados e estao conscientesde que sua cultura nao pode mais subsistir nessa nova rela,ao. Comefelto. presenciaram a modifica,ao de todos os seus antigos modos devida, "habitat", atividades economicas, vida social e politica... Nao eespantoso que, nesse contexto profundamente diferente, tenha-setransformado em parte 0 discurso religioso, nao pode conservar amesma rela,ao. de outrora com 0 conjunto do sistema social e, porconsegumte, nao c~mpre mais a mesma fun,ao. Em outras palavras,Se p~rm~?~ce posslvel a mesma leitura "filosofica'\ ja a leitura "so­clologlca e bern diferente. A mudan,a nao se deve, portanto, a even­tual mlstura de elementos de origem crista junto COm as antigas cren­,as, a religiao ahlal nao e "sincretica"; ou entao, deve-se dizer que to­do pensamento e smcretlco, por pouco que evolua e nao se fa,a coisamorta. Se 0 dlscurso rehgloso dos guaranis se modificou, e que nelereflete-se a consciencia do fim do seu mundo. Assim, vai consagrar­-se a pensar a desgra,a do seu destino historico. E e por recusaremurn destino, que contudo sabem inelutiivel, que os mbias atribuemta~to valor a sua relig iao, ela permanece, assim como sua lingua, 0

velculo pelo qual podem amda afirmar sua diferen,a, e isso explicaque seJa mantida secreta e ocupe urn lugar privilegiado na vida coti-diana. '

Urna aldeia mbia compreende, alem das casinhas individuais maisOU ,?,enos dispostas em circulo ou semicirculo, uma "casa das pre­ces , chama-se opy. E uma constru,ao mais comprida, retangular,sempre onentada de leste para oeste, a porta estii a oeste, uma janeli­nha da para 0 sol nascente. 0 mobiliario e muito simples, dois bancosao longo das paredes cegas, num angulo a rede do xama, flechasapOladas contra as paredes; as vezes, tres bastiies cravados no chao eenfeitados no alto com urn buque de penas, os yvyra 'i, bastoes-insig­mas que os homens utilizam para dan,ar. E nessa casa que se cum­prem todas as atividades religiosas, dan,as, cantos, relatos e comen­tarlOs das tradi,oes sagradas, e ali que 0 xama vern fumar quando lhepedem que descubra 0 nome de uma erian,a ou quando deve curar al­guma pessoa em quem se encarnou a alma malvada do lupichua. Etambem na opy que, ao alvorecer, sao proferidas as fie 'if pora as be-las palavras, diante do sol nascente. '

As belas palavras2 sao as palavras sagradas e verdadeiras que so os

I-

profetas sabem proferir; sao a linguagem comum a homens e deuses;palavras que 0 profeta diz aos deuses ou, 0 que da no mesmo, que osdeuses dirigem a quem sabe ouvi-Ios. Ayvu pora, a bela linguagem (eassim que os mbias designam 0 conjunto das suas tradi,oes sagradasl,e com efeito a que falam os deuses, a unica tambem que apreciam ou­vir. Sua especificidade e marcada por urn vocabulario que the eproprio: certo numero de -termos que encontramos nos ayvu porii eque traduzem no,oes abstratas (saber-poder criador; completude; for­~ espiritual; e outros) nunca sao empregados na linguagem correntee nao possuem equivalente nesta; seu sentido e uso sao exclusivamen­te religiosos. Alem disso, para nomear certo numero de objetos, abela linguagem utiliza sempre metiiforas e nao os termos que desig-

• nam correntemente estes objetos. Assim, a fuma,a do tabaco e a. "bruma mortal"; "esqueleto da bruma" e 0 cachimbo; "florzinha do

arco", a flecha; "0 que os vossos dedos afloram" e a expressao adota­da pelos deuses para 0 trabalho da planta,ao. Diferente do registrocotidiano, que se limita a designar as coisas, so a bela linguagem asnomeia.

Ne 'if porii. Em guarani, 0 adjetivo porii qualifica 0 enfeite, a belezado que e enfeitado;J nao se diz belo urn arranjo natural. As belas pa­lavras, palavras enfeitadas. 0 que sao, efetivamente, de varias manei­ras, a forma poetica da composi,ao; 0 arranjo sonoro das palavras, jaque a voz que as pronuncia redobra as vogais, como para acentuarsua musicalidade; as metiiforas de que se enfeita a linguagem. Ora,assim como 0 adorno e, para os homens que 0 portam, 0 que revelasua condi,ao verdadeira, da mesma forma 0 ornamento da linguageme necessaria se quisermos falar com justeza. Aqui a mernfora mia euma maneira de dizer que mascare 0 sentido das coisas; eia ea unicamaneira de dizer 0 que, em verdade, sao as coisas.

Dadiva dos deuses, as belas palavras nem designam nem comuni­cam, so podem servir para celebrar sua propria divindade. Pelo me­nos e 0 qee 0 "mita" mbia da a entender. Nhamandu, 0 Pai Verda­deiro, 0 Primeiro, concebeu 0 fundamento da linguagem a partir deuma parcela da sua divindade. Depois,Tendo concebido 0 fundamenta da linguagem humana,

a partir do saber contido na sua propria divindade e em virtude doseu saber criador,concebeu - na sua solidao - 0 fundamento de urn iinico canticosacra,antes que existisse a terra,em meio ~s trevas originais,antes que existisse 0 conhecimento das coisas.

A linguagem destina-se ao canto, nao ao conhecimento, e e bela a pa-

Page 46: Terra sen mal helen clastres

jJ,

,'j,88 HELENE CLASTRES

TERRA SEM MAL 89

" I

lav~a ,~uja destina~ao primordial e comemorar 0 sagrado.• Ne e (= palavra, voz, eloqiiencia) significa tambem alma: ao mes­mo tempo 0 que anima e 0 que, no homem, e divino e imorredouro.

• Duas slgmfica~oes que 0 mito acautela-se em nao separar, pois escla­. reee q~eNharnandu ergueu-se e concebeu a Iinguagem. A palavra, a

alma,,. ]ustamente 0 que manrem de pe, ereto, como esUi manifestona Idela de que a palavra circula no esqueleto. A liga~ao entre pala­v!a, ser ammado e verticalidade tambem e visivel em varias expres­soe~ em cu]a composi~ao entre 0 radical e (= dizer). Assim e que osespIrItos mv0.cados pelo xama, quando tenta restituir a vida a urnmon~undo, sao chamados de eepya: os que restituem 0 dizer.4 A ex­pressao e,:ry mo 'Ii a, 5 que no vocabulario religioso designa 0 nome,slgmfica 0 que mantem ereto 0 fluxo do dizer": e e somente quandoa cnan~a consegue ficar de pe e come~a a andar que Ihe e atribuidou.m nome, malS exatamente, 0 nOme que e seu e marca a provenien­cia Oeste, oeste ou zenite) da alma-palavra que se encarnou nela.

• Quando Nhamandu Ru Ete concebeu as demais divindades - CaraiRu Ete (Jeste), lacaira Ru Ete (zenite) e Tupa Ru Ete (oeste)- coufe­nU~lhes 0 encargo das almas-palavras dos futuros homens; sao essasdl"mdades, por essa razao, chamadas de Ne'eng Ru Ete (pais verda­delras das almas-palavras) que 0 xama invoca para saber de onde verna alma da crian~a equal e seu nome. Se acontece que 0 xama naodescobre 0 nome da crian~a, e sinal de que nenhuma palavra se en­carnou nela e d~ que nao ~obrevivera. ~I)l()rte e a perda da pa~;a alma, 0 pnnclplO ~ltal, e e: 0 dlZer. Essa ideia nao deixa de evocarurn costume dosantigos tuplS relatado por Gabriel Soares de Sousa:c~nslderavam urn. doente como ja falecido, e 0 enterravam, quandonao consegula ma~s falar. Alma no sentido de principio vital, soproque amma e mantem ereto, a palavra tambem e aquilo pelo que 0 ho­mem particlpa da dlvmdade, ele .que foi enviado a terra para ser seudeposltano. Por isso e que 0 "Ne'eng Ru Ete" diz, a alma-palavraque :le m~~da encarnar-se numa nova crianc;a:entao, val a terra, meu filho: lembra-te de mim no teu ser ereto. efarel a mmha palavra circular para te lembrares de mim... 6E a reminiscencia da estada entre os divinos que confere apalavra

o pode.r de m.staurar essa comunica¢o privilegiada, e ao homem queela amma da a saudade dos deuses.

Se as belas palavras sao as que se recordam dos deuses, e dupla­mente que devemos ~ntende~ essa relembran~a: gra~s a elas, os ho­mens atestam que amda estao conscientes de viver sob 0 olhar dosdeuses e ~ue nao esqueceram os preceitos destes; gra~as a elas, osdeuses serao obnga~os a cumpnr sua promessa: pois mostram que oshomens tambem nao esqueceram que eles proprios foram ctestinadosa terra eterna. MortalS e imortais olio sao incomensuraveis: a pala-

l

vra, que e precisamente sua medida comum, funda os primeiros aquererem a imortalidade.

A busca da Terra sem Mal: e isso mesmo que continua a preocu­par os mbias. 0 que eles se esfor~am por pensar e que, entre a exis­rencia finita que e ados humanos na yvy mba 'emegua (= a terra rna),imperfeita porque prometida a uma destrui~ao proxima, e a vida semfim desfrutada pelos divinos na yvy mara ey (= a terra sem mall,nao existe ruptura, E possivel passar de uma a outra sem solu~ao decontinuidade; ou, como dizem os proprios mbias, "sem passar pelaprova da morte": oiiemokandire. Essa expressao que, segundo a eti'mologia fornecida por Leon Cadogan, significa literalmente "fazercom que os ossos permane~am frescos",7 e a mesma que os mbiasempregam para significar a chegada a Terra sem Mal sem perder suanatureza, sua forma humana: isto e, ereto, em posturavertica!. Semsofrer, portanto, a prova da morte (integro de corpo e alma, por as­sim dizer), pois a verticalidade define 0 ser animado. Que 0 conceitode kand ire traduza a possibilidade de alguem continuar vivo e - aomesmo tempo - tornar-se imortal nao aparece apenas na etimologiada palavra e na sua explica~ao pelos mbias, mas tambem no uso queos mitos fazem dela' Ikandire, diz 0 mito do diluvio do incestuosoNhande Ru Papari, quando este, por haver cantado e dan~ado semparar, conseguiu tornar leve seu corpo e elevar-se acima das aguas atea Terra sem Mal, alcan~ando a imortalidade.8 Ora, 0 heroi miticonao e 0 unico a haver chegado aTerra sem Mal sem passar pela pro­va da morte: varias personagens historicas tambem rem esse poder.Assim e que a tradi~ao mbia9 conta a histeiria de lideres religiososque, apos se consagrarem a conduzir sua tribo para a Terra sem Mal,conseguiram atravessar "de pe" a "grande agua" que os separava damorada dos imortais. Talvez essa tradi~ao deva ser entendida, comosuspeita Cadogan, enquanto memoria de migra~oes coletivas para les­te, outrora efetuadas pelos mbias. Mas, com ou sem valor histOrico,ela possui para os indios urn incontesmvel valor etico: homens e deu­ses nao estao definitivamente separados: a grande agua que figura asua separac;ao - 0 mar - nao e intransponivel; houve homens quepuderam atravessa-lo nos tempos passados e atingir a Terra sem Mal,"mantendo frescos os ossos"; a morte pode ser abollda.

E possivel ser homem e contudo tornar-se deus, ser mortal e loda­via imorta!. Uma logica que recusa 0 principio de contradi~ao pareeeoperar nesse pensamento que, ao mesmo tempo, opOe os extremos ealmeja torna-los compativeis ou compossiveis. Quando pretendia ex­plicar 0 prestigio dos carals tupinambas, Frazer invocava a cren~a

que tomava tais personagens por herois millcos reencarnados.IOPensamento confuso - dizia ele - e incapaz de ascender a ideia deDeus, pois as "divindades" sao pensadas simullaneamente com atri-

I

Page 47: Terra sen mal helen clastres

butos humanos: a mesma incapacidade de distinguir permite crefimortais os homens e os deuses suscetiveis de morrer. Contudo, 0

pensamento guarani eperfeitamente distinto: entre a terra rna - doshomens e da ordem social - e a Terra sem Mal - universo dosdeuses e da nega~ao da ordem - rnarca a oposi~ao com muita niti­dez; mas, ao mesma tempo que disjunge as duas ordens. estabeleceuma mediac;ao que tornani passivel sua conjun~ao; pertencer a umanaa excluini pertencer aautra: pacem na sucessao, DaD na simultanei­dade. Que as duas ordens devam permanecer separadas, porem per­meaveis. DaD e0 que de certa maneira diz 0 mito do dihivio? A vidana terra implica 0 respeito a regras precisas e os homens DaD pode~

riam transgredir impunemente a ordem estabelecida; por have~lo es­quecido, carat' Jeupie provocou 0 diluvio e 0 cataclisma eranecessario para restaurar a ordem que ele comprometera. Mas naoera menos necessario que carat' Jeupie fosse salvo: tivera a pusadia dese comportar como os deuses; a partir desse momento, estes eramfor~ados a reconhece-lo e a admiti-lo entre si. "Aquele que se erguerade maneira anormal", II a incestuoso, descobriu a caminho da Terrasem Mal e tornou-se 0 primeiro dos homens-deuses, Nhande Ru Pa­pari, 0 pai das divindades menores.12

Pode-se notar como esse mito esUi proximo do que Thevet reco­Iheu entre os tupinambas, a calera de Monan teve por causa, recorde­mas, que os homens "se esqueceram em suas maneiras de agir, vi­vendo desordenadamente", a terra foi destruida porque 0 comporta­mento dos homens era urn desafio aos deuses, do unico sobrevivente,frin Mage. nasceria a linhagem dos caraibas miticos, Conseqiienciada destruicao da primeira terra, a disjuncao do mundo social e domundo sobrenatural (ambos confundidos, mas ja prefigurados em yvylenonde)IJ e, entre os dois, a mediacao (tambem ja prefigurada pelapersonagem de cara{ Jeupie na primeira terra e apresentada apos adisjuncao, em forma desdobrada, pela figura dos Gemeos). Ou talvezfosse mais convenienle dizer que a disjuncao e apenas parcial, poisnao produz relac6es de rigorosa exclusao reciproca entre as duas or­dens. 0 cataclisma vai eliminar apenas a contemporaneidade delas, 0

mito enuncia Que e impossivel viver na terra rna como se ela fosse aTerra sem Mal, isto e, sem respeitar as leis sociais, nao se pode ser,ao mesmo tempo, homem e deus. Mas e passivel seT. sucessivamente,uma coisa e outra. Impensavel segundo 0 eixo da simultaneidade, aconjuncao da ordem humana e do mundo divino e pensavel de acordocom 0 eixo do tempo. Doravante. homens e deuses viverao separados,em suas terras respectivas, mas os primeiros contarao com a possibi~

lidade de reconquistar 0 paraiso perdido, serao os porangue 'i. os elei­tos, aqueles a quem os deuses permitiram ficar eretos na nova terra,os portadores da palavra divina.

(I) As....im e que sao freqiientes os matrimonios entre chiripas e p~ragu~i~s (atemesmo se encontram paraguaias casadas com chiripas). As trocas ma~nm?malS comos paraguaios sao malvistas entre os mbias e permanecem excepclOnals.

(2) 0 frances parole. que por conven<;:ao traduzimos como "palav~". comportatambem 0 sentido de "fala"; e por isso nao cobre apenas os termos,~a hnguagem re­ligiosa. pOJ'em tambem seu modo (fonetico) de proferi-Ios ou e~u:ncl~·!oS. (N. do TJ.

(3) Pdrdng: hermosa. ornato, ayepdrdnga: adornarse. Cf. 0 dlclonano de Montoya.Tesoro de la lengua guaral1l', ...,(4) Eepya: e = dizer; epy = dar; a = aquele que, Cf. Cadogan. La encarnaclon y

'Ia concepcion...... in Revisra do Museu Pauli,slO. vol. IV. 19~O.

(5) E-n' mo 'a a: e = dizer; 1)' = escorrer: mo a = colocar de pe; a = aquele que.Cadoga~. ibidem. pag, 235.

(6) Cadogan. op. cir .. pag, 237. . ..(7) Oflemoka"dire: onemo = fazer com que; ka = os os....os: ndlkuen se man·

tenham frescos. Cf, Cadogan. AYI'u Rapyra. pag. 59,(8) L. Cadogan. Ayl'u .Rapy/a. pag, 58.(9) Cf. Cadogan. op. ci/ .. cap. XVI. . ., ~

(JO) Frazer, Les origines magiques de la royaute. Pans. edl.;a.O Paul Geuthner,1920. .

(II) Tal poderia. pelo menos. ser a significa~ao do seu nome segundo uma das etl-mologias que prop6e Cadogan, , , .(12) As divindades "menoces" incluem notadamente todos os antigos dmgeI:'~s quese tornaram deuses, os que nao sofreram a prova da morte, ~mbo~ os, mblas afir­mem considerar Nhande Ru Papari como urn deus de menor Importa~cl~.pod~r:se­

-ia notar que ele e invocado nas suas ora~6es. enquanto certos deuses malores hstoe, anteriores ao dihivio) nao sao mencionados netas.. .. , ..(13) "Os habitantes de ,V1'y /enol1de atingiram 0 estado de Indestrutlblhdade.:. ,assim com~ 0 mito mbia do diluvio. 0 mito tupinamba esclarec,e que. na .~r.lmelra

terra. os homens viviam a seu bel-prazer. gozando do que ~roduzla a terra aJu~ada

pelo orvalho do ceu". e que nesta epoca Manan "permanecla entre eles e os frequen­tava com muita familiaridade".

91

Notas

TERRA SEM MALHELENE CLASTRES90

Page 48: Terra sen mal helen clastres

para as guaranis de hoje como para as tupis de antigamente, a viada Terra sem Mal e a remincia a vida sociaL Com efeito. se e 0 reco­nhecimento das regras sociais que diferencia os eleitos dos seres quese sujeitam apenas as leis da natureza, tais regras nao deixam deconstituir uma modalidade da existencia imperfeita. do leko achy,Teko achy e. literalmente. a vida (teko) doente (achy); a expressiio co­nota tudo 0 que e imperfeito, mortaL Permite, notadamente, qualifi­car a vida humana"doente" em dupla acep9ao: por estar destinada aurn termino, por ser sujeita as leis sociais, A esse respeito, pode-senotar que, no seculo XVII, teko achy tinha urn emprego bern revela­dor, pois assim eram designados os trabalhos,l Dessa maneira. a vidasocial traduz a ambigiiidade da condi<;ao dos homens: eleitos, nao haduvida, mas apanhados na cilada de urn mundo enganadoL Yvymba 'emeguli, a terra feia, rna, e precisamente a terra enganadora, senos referimos ao antigo sentido da palavra megua:2 sua fealdade esua imperfei<;iio estao em que as coisas ali so rem a aparencia de ver­dade, Que 0 qualificativo de mba 'emeguii, aplicado a nova terra. re­meta a essa acep<;iio antiga, e confrrmado pelo mito mbia que descre-

, ve yvy tenonde (a primeira terra) e nos relata como os seres que a po­voavam encontram-se agora no paraiso de Nhamandu, de modo que.os que vivem na nova terra sao apenas suas imagens au imitaryoes(a 'anga), Mentirosa, a terra em que tudo e provisorio, corruptiveLem oposi<;ao a morada verdadeira, ao marli ey: 0 que e sem mal. semengana<;ao, isto e, 0 integro, 0 incorruptivel. 3

Entre e~ses dois polos, os homens ocupam uma posi<;ao media. queos torna ambivalentes: habitantes da terra imperfeita. estao do ladoda natureza. do leko achy; eleitos. estao do lado do marli el', Pos­suem. portanto. uma dupla natureza, que 0 pensamento mbi~ expri­me em varias oposi<;6es: palavra/ natureza animal; osso/carne e san­gue; alimenta<;ao vegetal! alimenta<;iio de carne", Se os homens saodotados de uma alma-palavra. ligada ao esqueleto. tambem possuemuma "alma" au "natureza" animal. vinculada ao sangue e acarne: le­ko achy kue e 0 produto da existencia rna. aquilo pelo que participamda animalidade. Depois da morte. esta "alma" torna-se "angue" (ii= verticalidade; kue = preterito). urn ser destinado a errar pela flo­resta e que deve ser afastado (pela fuma<;a de tabaco. pela dan<;a) dosvivos. pois faz pesar uma amea<;a precisa sobre estes: a amea<;a do IU­

pichua, 0 que e 0 tupichua'? Vejamos as informa<;6es recolhidas aeste respeito entre as mbias. a tupichua e "choo pyrygua fie'eng": aalma. 0 principia vital da carne crua. "Ch(w tupichua, ftande rlfl1Y

. tupichua: a carne e tupichua, 0 nosso sangue e tupichua." Tupichuaprovem da·carne crua e do sangue em geral. e e alguma coisa que po­de encarnar-se na carne e no sangue humanos: provoca entio urn malmortal. que pode acarretar a transforma<;iio em jaguar de quem for

IilI,i

Il

capitulo V

JUSTICA DO HOMEM

Os ritos religiosos dos guaranis sao, portanto, governados pelacren<;a de que 0 homem pode alcan<;ar 0 kandire, pode ascender aImo,rtahd~de sem passa~ pela prova da morte, Para eles, a gesta dosherOls mlticos, que preclsaram cumprir urn prazo de vida terrena an­tes de obter 0 direito de atingir a Terra sem Mal, vale como antecipa­<;ao do seu destino possiveL

Apenas possivel - e depende de cada urn a boa escolba da sua vi­da, Pois serem as testemunbas dos deuses na terra rna faz que os ho­mens existam na ambigiiidade, Habitantes da terra imperfeita elesmesmos sao imperfeitos, sujeitos as leis da natureza - nasce~, ge­ram, morrem, Por outro lado, separam-se do resto dos seres vivospela cultura, isto e, pelo reconbecimento de uma For<;a necessaria deoutro tipo, sobrenatural, Com efeito, sao eles os eleitos, os poran­gue'i, Esse termo, que pertence ao vocabulario religioso, e a autode­nomma<;iio sagrada dos mbias; significa "os que foram escolhidos",Sao portanto os que se distinguem de todos os demais habitantes daterra imperfeita e e esta diferen<;a que a cultura manifesta: neste caso,a posse dos ornamentos rituais, que conforma os eleitos, Pelo menose 0 que indica a etimologia do termo porangue 'i: composto de porii ekue, significa 0 conjunto (-kue) dos que sao belos, dos enfeitados(pora), Eleitos, ou seja, os que carregam a marca distintiva que e 0

enfelte, Assnn, os homens e as mulberes sao nomeados nas belas pa­lavras por urn termo referente ao seu ornamento respectivo: jeguaka­va siio os que usam 0 jeguaka (0 cocar de penas dos homens) eja­chukava, as que usam 0 jachuka (0 adorno feminino),

A cultu!a e a marca do sobrenatural na terra imperfeita, 0 signo deuma elel<;ao que separa os homens da animalidade (e tambem, vere­mos, que separa os guaranis dos demais homens): a posse dos orna­mentos designa-os como os amados dos deuses, Mas, ao mesmo tem­po, a cultura e tambem 0 que separa os homens dos imortais pois,

TERRA SEM MAL 93

Page 49: Terra sen mal helen clastres

94 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 95

I~,

atingido por ele. Se quisermos evitar 0 mal, duas condutas devem serproscritas: em primeiro lugar, Dunea se deve comer carne Cfua.Quem comer carne crua vera sem tardan,a 0 lupichua encarnar-se eagarra-Io completamente. Com 0 mesmo rigor impoe-se. em segundolugar, a completa absten,ao de cozinhar e comer carne na floresta.Quem assa a sua carne e a come na floresta atrai irresistivelmente 0

tupichua e se deixa enganar por ele. Nesse caso, com efeito, tupichuapode frequentemente tomar a aparencia de uma bela mulher, enfeita­da com pinturas atraentes; ela faz perder a razao;4 diz ela: "vamos fa­zer esta coisa." Se e feita "esta coisa" <isto e, a copula,ao). logo elacome,a a cobrir-se de' manchas e ja aparece diferente de uma mulher,poe-se a unhar a terra5 e a rosnar; e tambem sua vitima se poe aunhar a terra e a rosnar... E passivel a cura do tupichua enquanto apossessao nao se torna completa. 0 tratamento se faz na opy; 0 xamafuma e invoca 0 pai (0 Ne'eng Ru) da alma-palavra do possesso:

... vejamos como 0 pai da sua palavra vai proteger sua palavra evai de novo recompo-Ia para nos...Durante 0 tratamento, 0 possesso deve ficar de pe; se nao 0 consegue,se ele se dobra. e que ja e tarde demais: fie'i/. a sua palavra, ja 0 aban­donall e 0 espirito da carne crua esta no seu sangue; 0 possesso vaicome,ar a rosnar. Entao e preciso mata-Io a flechadas e queima-lo.Resistir ao tratamento constitui, para os mbias, uma prova de irreli­giosidade: e a falta de for,a espiritual (mbaraeteJ e de senso de reci­procidade (mborayul que torna ineficaz 0 tratamento.

Tupichua. a transformayao em jaguar, e portanto 0 castigo dequem mio sabe se conduzir como eleito. i8tO e. segundo as nOTmasculturais. 0 que traduz a equivalencia entre "carne consumidacrua" /"carne consumida cozida. mas na floresta": e 0 jaguar que co­me carne Cfua e nao 0 hornem. mas assar sua cac;a na floresta e Dutramaneira'de consumi-Ia segundo a natureza. pois e querer come-Ia 80­

zinho. e recusar a divisao que precede a tarefa de cozinha-Ia nos fogosda aldeia. E portanto urn comportamento nao-humano, que comotal e castigado pela metempsicose. Quem deixa triunfar em si 0 tekoachy kue em detrimento do fie'i/. a natureza animal em prejuizo daalma-palavra divina. deixa-se apanhar na cilada das aparencias: cedera sedu,ao enganadora da mulher-jaguar - do lupichua - e confundir abeleza com 0 que e apenas uma sua imita,ao bufa (sentido forte demba 'emegua), tomar as manchas do animal por urn ornamento. con­fundir a natureza e 0 sobrenatural,

Compreende-se 0 lugar. aparentemente paradoxal, ocupado pela vi­'da social no pensamento dos guaranis, ao mesmo tempo como signoda sua desgra,a e signo da sua elei,ao: define-se como a media,ao ne­cessaria entre urn aquem (a natureza, que e imediatezl e urn alem (0sobrenatural, que e ultrapassagem). Seu ser duplo situa, desta manei-

fa, os homens entre duas negac;oes possiveis da sociedade: a primeira,por assim dizer para baixo. consiste em ignorar as exigencias da vidasocial. em pretender furtar-se a troca, mas sem se desligar do mundoque a requer. Procede de uma critica rna da sociedade; por isso.resol­ve no mau sentido a ambigiiidade inerente ao homem. ao situar esteultimo do lado da natureza e da animalidade - leko achy kue ani­quila a palavra. A outra consiste, nao em desconhecer a ordem socialque define a condi,ao humana, mas em ultrapassar essa condi,ao, is­to e. em libertar-se da rede das relac;:oes humanas ate abandonar 0 es­pac;o concreto em que elas se tecem: e a renuncia ao bem-estar destemundo, a procura necessariamente solitaria da imortalidade. E atransgressao que procede do verdadeiro saber. isto e, de uma justaavaIia<;:ao da vida social: con.formar-se com as prescri<;oes pelas quais.justamente. se distinguem os eleitas. ea unica maneira de neutralizare. finalmente, abolir 0 leko achy. Poder recusar a ordem estabelecidapressupoe reconhece-Ia: so entia se pade cumprir 0 destino do ho­mem-deus. Essas duas negac;6es da sociedade mio se situam nomesma plano. pais a prime ira recusa as regras sociais. enquanto 0

que a segunda questiona e a dependencia do homem ao mundo defini­do por essas regras.

A essas duas atitudes correspondem. na mitologia mbia. dois inces­tos bern diferentes. Urn. de certa forma "aquem", instilUi a ordem nanatureza; 0 outro. que pressupoe a ordem social. instaura 0 sobrena­tural. que e definido como transgressao. 0 primeiro incesta e 0 queexplica a origem dos jaguares:o em duas ocasi6es. os gemeos Sol eLua tentararil exterminar os mba 'e YP.V (as seres primitivos) para vin­gar 0 assassinio. por estes. da sua mae. Uma primeira cilada permi·tiu-lhes matar todos os mba 'e ypy machos. A segunda deveriamatartodas as femeas. mas urn erra do gemeo,. mais novo fez a tentativafracassar: conseguiu escapar uma femea gravida. que Sol enta~ con­verteu em jaguar. Ela teve urn filho macho, que copulou com a mae,e sua progenitura se espalhou por toda a terra. Deve-se a isto, concluio mito. que hoje existam jaguares.

o ohjetlvo dessa narrativa e fazer-nos passar de uma quantidadeconsideravel de mba 'e ypy miticos (indicada. por exemplo, pelos epi­sodios das duas ciladas sucessivasl a uma quantidade nao menos con­sidenivel de jaguares reais. reduzindo a primeira quantidade ate 0 eIe­mento minimo capaz de explicar a segunda. A imagem da femeagravida, for,ada pela situa,ao inventada pelo mito a urn incesto "porcarencia", marca da melhor forma passivel que a natureza se defineinicialmente como lugar da nao-troca e da imediatez. Em compensa­,ao, 0 outro incesto, 0 de cara( leupie, que desposa sua tia paterna.so e incesto em referencia a uma ordem social bem definida e queproibe 0 casamento de urn homem com a irma do seu pai: implica.

Page 50: Terra sen mal helen clastres

portanto. uma lei de troca. da qual e a transgressao. Situando-oHalem" do universe das regras. 0 ato de caral Jeupie acarreta suatransforma<;ao em deus. Embora perteoc;am a duas narrativas miticasdiferentes7 (aventuras dos gemeos e historia do dih.ivio), os dais inces­tos iluminam-se mutuamente e a significac;ao de cada urn so aparecena rela<;ao diferenciaJ que mamem com a outro. Ao mesmo tempo.cada urn ilustra. mas sob forma condensada e metaforica. as duas ati­tudes negadoras que a nomem pode ter em rela<;ao asociedade (a queprocede da ignonincia das regras de troea e a que pressupoe 0 reco­nhecimento delas), bern como sua consequencia respectiva sabre 0

destino humano.Pode-se dizer. portanto. que a vida na terra rna e urn tempo de

prova. pais a ambivalencia constitutiva da pessoa humana admite duassoluc;oes extremas e depende de cada homem realizar uma ou outra.Por urn lado. a prevalencia do leko achy klie, da "natureza" animalque e manifestada par urn comportamento despido de justi<;a(mboraYII). quer dizer. despreocupado das regras de reciprocidade(quem assa a sua ca~a na floresta. ou seja, 0 ca~ador egoista. ou aindaquem mantern relayoes sexuais na floresta e durante 0 dia. isto e, 0

adtiltero. uma vez que elas apenas sao licitas de noite e em casa... ma­neiras de ser nao-mediatizadas), acarretando a perda definitiva daa!ma-palavra, a morte e a metempsicose: a ungue se encarnara emformas animais sucessivas. Por outro lado, a prevalencia da alrna-pa­lavra. que e traduzida, ao contra.rio, por urn comportamento respeito­so das leis. pela aniquila~ao progressiva de tudo 0 que e leko achy e,Iinalmente. pela possibilidade de ser kandire. Mas ai se situa a trans­gressao: a passagem para fora dos limites. Pois uma vida virtuosa eapenas a condi~ao necessaria e nao suficiente para ascender a Terrasem Mal. Alem disso. e necessario abandonar definitivamente a terrarna. deixar a aldeia e a espa<;o da comunidade. quer dizer. consumar aato kujo equivalente metaforico e a incesto de carui Jeupie) no e peloqual a pessoa ja se situa alem da ordem dos eleitos. as deuses seraoobrigados a enviar as belas palavras para quem ousa este desafio: aspalavras que desvendam a caminho da Terra sem Mal. Num extre­ma. portanto. a vida sem lim. No outro. uma morte tambem semlim. isto e. sem ressurrei<;ao possivel: a que e sublinhado pelo rita fu­nenirio particular que os mbhis efetuavam outrora para os que mor­riam possuidos pelo lupichua; era precise queirna-los integra/menle,enquanto segundo 0 ritual nQrmal os ossos dos mortos eram conser­vados por bastante tempo (muitos anos. ao, que parece) em recipientesde madeira de cedro. guardados na 0P.\'. x E que. entre a bern e a malradicais que resultam da perda de uma das duas "almas". ha espa<;opara uma solu~ao media: a morte e a esperan~a numa reencarna~ao

proxima sao 0 destino comum dos que. demasiado humanos, soube-

ram resignar·se a sua dupla natureza.A concep<;ao guarani da natureza e da condil'ao humanas funda

uma dupla etica. Vma etica coletiva do respeito a ordem social, en­quanta tal ordem define a homem como porangue, eleito; e uma eti­ca da salva<;ao que. por sua vez. so pode ser individualista, porque. seprolonga a primeira (no sentido de !he ser logica e cronologicamenteposterior), tambem constitui a sua negayao: para atingir a Terra semMal e preciso. como vimas, nao pertencer mais a uma comunidade.pOr-se literalmente fora da lei e. par essa via. igualar-se a urn deus, Aterra imperfeita e a Terra sem Mal opaem-se. com efeito. como a or­dem e a contra-ordem: par isso, nao e possivel pertencer simultanea­mente as duas e deve-se renunciar aprimeira para ascender asegun­da. Em suma, uma "antropodiceia". que ja era ados antigos tupis.Em compensayao, e nova a justifical'ao etica da ordem social: e coe­rente com a pensamenta guarani. que faz dessa ordem a que e carac­teristico dos eleitos (aquila pelo que. como vimas. as homens se dis­tinguem dos animais, mas tambem. veremos adiante. pelo que asmbias se distinguem dos demais homens). Para compreender a articu­lal'ao dessas duas eticas. deve-se ter em mente a antropologia na qualse enraizam e que define a homem como lugar da ambigtiidade e avida social como tempo da prova. Com efeito. embora possam pare­cer contraditorias - na medida em que uma justifica a ordem que aoutra questiona - as duas eticas sao iguaimente necessarias e de ne­nhuma maneira se excluem: podem articular-se e conciliar-se, nao s6porque a procura da salvayao deve (enquanta obrigayao moral e ne­cessidade logica. ao m~smo tempo) permanecer negocio individual.030 pcidendo portanta gerar nenhuma desordem. mas tambem pol'quea etica coletiva e pensada como meio. como condi<;ao de possibilidade

l da etica da salva<;ao.Para atingir a Terra sem Mal sem passar pela prova da morte. para

alcan<;ar a kalJdire, e necessaria haver obtido a aguyje: a perfei<;ao. acompletude. Esse termo. que retorna sem parar nas belas palavras. eurn dos conceitos fundamentais da etica guarani. Pode-se dizer. a ri­gor. que as ne 'e' porii sao "preces" - na medida em que urn pedidose formula atraves delas. 0 profeta sempre solicita. par seu inter­media. aos deuses que enviem pa/avras abundantes: particularmenteas que se referem ao aguyje:9 quais sao as normas - rekorailO­do aguyje. de que maneira e preciso comportar-se para se tamaraguyje? Sao essas as questaes que obcecam as mbias. Ser agllyje sig­nifica ter aniquilado dentro de sl a rna natureza. a teko achy klle. ter­-se livrado portanta de tada a imperfeiyao ligada ao sangue e acarne;em suma. e ter apenas uma palavra. a alma de essencia divina quecircula no esqueleta e a manrem ereta: entia e possivel a kandire, po­de-se empreender a viagem para leste e atravessar~ de pe - a "mar

96 HELENE CLASTRES

II.

TERRA SEM MAL 97

Page 51: Terra sen mal helen clastres

horripilante", que isola a morada dos imortais. Essa perfei,ao almeja­dae portanto a que, mediante uma ascese cujas tecnicas examinare­mos mais adiante, reduz 0 corpo a sua tinica dimensao consideradaincorruptivel (urn esqueleto vivo) ou que. em outras palavras, faz 0

homem existir como logos, porque the da acesso a urn saber - queos proprios mbias designam como belo saber ~ cujo simples poderbasta, doravante, para anima-Io. 0 belo saber - arandu poriill - eo inspirado pelas palavras que os deuses enviam e revelam, entre ou­tras, as normas do aguyje: e, portanto, 0 saber que fornece a chaveda Terra sem Mal. Alcan,ar tal completude exige tres qualidades es­senciais: uma perseveran,a obstinada (-mbu ru), coragem (py 'agua­chu), for,a espiritual (mbaraele). A respeito dessas virtudes sao inter­rogados os deuses, para que inspirem suas normas; elas definem todaa etica da salva,ao. -Mburu 12 e termo que so se utiliza composto econota a icteia de esfor,o duravel: onemomburu (onemo = fazerque, mburu). Esfon;ar-se e uma ideia importante, que aparececons­tantemente nas belas palavras: somas as que nos esfor~amos ... , paranos, que nos eslor~amos! Caral Ru Ete dird as palavras abundan­les. Esfon;o necessario para se desviar das paixoes mtiltiplas, as quaiso leko achy kue sempre incita, para se consagrar apenas it salva,ao.Hoje, onemomburu aplica-se a quem consagra tempo aos c{mticos epalavras, a dan,a, ao jejum, a todos os exercicios pios. Mas devemossem duvida recordar as marchas intermimiveis. Qutrora consagradas a

~ procura da impossivel perfei,ao, para medir a extensao do que e aobstina,ao.

Manter-se no esfon;o permite adquirir 0 mbaraele, 0 que e a for,apor excelencia (mbara = for,a; ele = superlativo) eo py'aguachu,urn grande cora,ao (py'a = peito, cora,ao; guachu = grande). For­,a e coragem necessarias para enfrentar sozinho a grande dgua eatravessa-la. 0 esfor,o ainda nao basta; canticos e dan,as sao apenasmeios para a salva,ao. Alem disso, e preciso ter a coragem e a for,apara ir sozinho e longe dos seus, para romper definitivamente todosos la,os com a terra rna, com sua comunidade. Em suma, e precisereproduzir 0 caminhar do incestuoso cara{ Jeupie:

"Estavam para chegar as aguas (do Diltivio); 0 Senhor lncestuoso(cara{ Jeupie) orou, cantou, dan,ou; e chegaram as aguas, sem queo Senhor lncestuoso houvesse alcan,ado a perfei,ao (aguyje). Nadouo Senhor lncestuoso, com a mulher (a sua jaiche, sua tia paterna)nadou; na agua dan,aram, oraram e cantaram. Obstinaram-se (one­momburu). Ao fim de dois meses, adquiriram a for,a (;mbaraele).Obtiveram a perfei,ao (;jaguyje). Criaram uma palmeira eterna comduas folhas; repousaram nos seus ramos, para logo se dirigirem itsua futura Morada, para se converterem em imortais (;kandire). "1.1Cara{ Jeupie teve acesso ao belo saber, conheceu suas proprias nor-

mas. A exemplo do heroi mitico, os homens querem abandonar a ter-ra rna e atingir a "morada"; e por isso que querem conhecer suaspr6prias nOTmas e e' a respeito delas,que inte"rrogam" o~ imortaisquando pronunciam as belas palavras. As vezes, 0 que esta em ques­tio sao simplesmente as normas (do aguyje, do -mburu, etcJ Nou­tras ocasi6es, quem pronuncia as palavras cefere-se as suas nOTmaspessoais (as nOTmas da minha for~a. as nOTmas da minha coragem,etc,). Quer dizer que as normas sao variaveis? Nao e nada disso, ~

nosso ver. Na realidade, 0 que as flutua,oes da linguagem marcam eque, se a Terra sem Mal e acessivel a todos da mesma maneira ­existe apenas uma maneira de ser aguyje, uma unica norma doaguyje - depende de cada individuo, pessoalmente (segundo seu de­sejo, segundo seu esfor,oi. alcan,a-la; da mesma forma, 0 bela sabere sempre identico e nao varia conforme os individuos que 0 detem,mas a aquisi~o deste saber nao ecoletiva: esomente numa comuni­ca,ao singular com as divindades que ele_ pode ser d~svendado. Decerta maneira, as rela,oes com 0 sagrado sao sempre pessoals. Recor­da-se que os apapocuvas, por exemplo, podiam possuir urn ou varioscanticos xamanicos que lhes eram pessoais, inspirados diretamentepor urn espirito. Entre os mbias, ao lado dos canticos religiosos cole- Itivos Oslo e, cantados coletivamente), existem canticos pessoais: pala­vras inspiradas por urn deus a tal ou qual individuo em particular.Contudo 0 contetido destes canticos 14 varia muito pouco e desseponto do'vista nao rem nada de "pessoa]". Mas sua simples existenciabasta para evidenciar 0 carater individuaJista da religiiio guaram.. De­ve-se, porem, insistir no que esse carater aqui apresenta de espectfic~;com efeito, poder-se-ia dizer que 0 !ndividualismo e, em certa medl­da, caracteristico de toda religiao. E muito raro, e muitos autores 0

observaram, que os individuos que participam de urn mesmo sistemade cren,as situem todos no mesmo myel sua fe e sua pratica: do indi­ferente ao mistico, loda uma gama de atitudes e sentimentos, SUb:jacentes it expressao institucionalizada da cren~, traduzem 0 que hade irredutivelmente pessoal - de contingente - na rela,ao com 0

sagrado. E nao ha dtivida de que nem lodos os mbias ma.nif~stam

• igual obstina¢o, nem iguaJ desejo de obter 0 aguyje. Mas nao e ar:­nas nisso que reside seu individualismo e seus canticos pessoalS naoservem para exprimir essa contingencia: ao contrario, servem paramarcar que 0 individualismo assume aqui a forma de necessidade im­periosa, ja que de certa forma se encontra institucionalizado. Longede constituir urn aspeclo secundario, epifeno,menico, 0 individuaJismoinscreve-se no proprio cora¢o da cren~. E a essencia de uma reli­giao cujo projelo e a realiza,ao do homem como deus e que se preten­de reflexao sobre a imortalidade. Ora, a imortalidade so e pensivelcom a contra-ordem, Ja vimos, em varias ocasioes, que acreditar

98 HELENE CLASTRESTERRA SEM MAL 99

I

Page 52: Terra sen mal helen clastres

acessivel a Terra sem Mal implica crer que pode ser abolida a duplalimita9ao que confina 0 homem a morte e 0 vota a dependencia dosoutros. Ser mortal ou (no sentido do sive espinosista, dito de outraforma, pensado de outra forma) ser sociat duas expressOes da mesmarealidade. Quer dizer que so e possivel pensar como nao-necessaria arela9ao do homem com a morte na mesma medida em que se podepensar nao-necessaria ~ sua relac;:ao com os outros. Vimos como aimplanta9ao dessa logica culminava antigamente na dissolu~o da so­ciedade, ja que as migra90es coletivas para a Terra sem Mal visavamabolir para todos - de maneira definitiva, portanto - essas rela­90es. Hoje em dia, se a sociedade nao coloca mais em questao a simesma, e contudo necessario, para chegar a Terra sem Mal, seraguyje, perfeito, isto e, bastar a si mesmo. Tentaremos analisaradiante a diferen9a que separa os mbias dos antigos tupis-guaranis, is-

.. to e, compreender porque os mbias veem a conServa93,O de uma or­dem social como condi9ao de possibilidade para a salva~o - que,porem, vern justamente negar tal ordem.

A filosofia mbia do homem e da sociedade que expusemos acimapermite. pelo menos, compreender como essa etica individual podearticular-se com 0 respeito a uma etica coletiva. Para alcan9ar 0

aguYie, dizem os mbias que epreciso evitar obedecer a regras multi­plas, evitar conduzir-se conforme modos de vida dissemelhantes entresi. Induz it dissemelhanya. como vimos. a coexistencia no homem deuma natureza animal e de uma alma-palavra divina. fontes de paixoescontnirms. ja que uma orienta para a natureza e a Dutra. para 0 80­brenaturaI. Da primeira, ligada acarne e ao sangue, derivam todas asinclina<;oes mas (tudo 0 que e, justamente, teko achy, mau, doentio),da preferencia pelos alimentos a base de carne ao gosto pela violencia,ao egoismo, ao desejo de possuir os bens alheios, etc.... Comporta-

• mentos que procedem da rna nega9ao da sociedade. Na segunda, emcompensayao, enraizam-se todas as tendencias inversas: moderacao.aten<;ao aos outros, senso de justi9a... Em suma, tod'as as qualidadesque se deixam subsumir sob a n09ao de mborayu, que basta soziobapara definir com precisao a etica coletiva. Mborayu, a reciprocidade,e a expressao mais profunda da solidariedade tribal. 0 que leva cadaurn a reconhecer 0 Dutro e, portante. a aceitar as regras que valempara todos. Respeitar a etica social e 0 come90 da sabedoria, 0 come­<;0 do born saber segundo 0 qual a perfei9ao esta "alem" e nao"aquem" das media<;oes. 0 mborayu e portanto a primeira manifesta­<;ao do fie 'ii, e por isso que so ele pode fazer nascer 0 desejo de aguy­.ie. Citamos acima a passagem do mito da cria9ao, segundo 0 qualNhamandu Ru Ete concebeu os fundamentos da linguagem humana;cita<;ao parcial e que ora podemos completar,

... Tendo concebido a origem da linguagem humana

a partir do saber contido na sua propria divindadeem virtude do seu poder criadorconcebeu 0 fundamento da reciprocidade (mborayu rapyla)antes que existisse a terra...

Palavra, reciprocidade, hina sacro: tres termos unidos na mesmacria9ao. 0 reconhecimento da justa reciprocidade possibilita a perfei­9aO, ao fazer os homens existirem como eleitos.

Evitar a dissemelhan9a e, portanto, aniquilar as instintos naturais;seguir uma tinica norma - a do mborayu - em vez de nOTmas filii·tiplas e escutar a palavra e, desta maneira, Iibertar-se da "vida doen­tia". Os mbias justificam varios dos seus rituais pela vontade de evi­tar os comportamentos mtiltiplos. E 0 caso da "chocagem", quandouma mulher chega ao rermino da sua gravidez, recomenda-se ao paida crian9a que "se abstenha de fazer coisas multiplas". Isso significa,neste caso, que deve abster-se de toda atividade (cortar madeira, fabri­car flechas, etc.) - pois ele deve concentrar todo 0 seu pensamento

. na crian~a que vai nascer, sem 0 que a palavra em vias de se encarnarpoderia extraviar-se. Pela mesma razao deve, quando percorre os ca-minhos, fechar os que bifurcam 15 e lan9ar pontes em cima dos cursosd'agua que atravessa. E preciso que a palavra da crian9a so tenha urnunico caminho. Da mesma maneira pode-se compreender, sem dtivi­da, essas palavras que 0 xama pronuncia enquanto procura 0 nomeda crian9a,Que eles (Carai Ru Ete, Jacaira Ru Ete .. .) nos revelem de que ma­neira 0 nomearam. dando-lhe uma norma (mica para a sua vida..

Pode-se supor que essa norma unica seja a do mborayu, do senso dereciprocidade; norma por excelencia do eleito e, como tal, primeiran;)llnifesta9ao da alma-palavra e primeiro passo no rumo da perfei9ao.~peitar a etica coletiva e 0 unico meio para evitar 0 risco do /Upi­chua, da rna critica da sociedade, da regressao para a animalidade.No mborayu se consuma a justi9a da sociedade e com09a a justifica­9ao do homem.

Evitar a multiplicidade, isto e, evitar seguir as tenctencias mas, 0

teko achy kue, ate se realizar na completude de uma alma-palavra­ate alcan9ar 0 estado de aguyje - pressupoe varias tecnicas. Assim eque se pode ler, nas belas palavras,

Se eles (os homens) sen,tirem 0 desejo de todas as coisasSe sentirem 0 desejo de consumir comidas numerosas e diferentesuma das outras...Entao nunca atingirao as normas do aguyje, as normas da for9a..·

A primeira e mais elementar dessas tecnicas e justamente a escolhados alimentos. Estes diferem entre si, porque, ou se vinculam ao tekoachy kue, ao sangue e a carne, ou ao fie'if, ao esqueleto. Grosso mo­do, os vegetais pertencem a segunda categoria, os animais fazem par-

101TERRA SEM MALHELENE CLASTRES100

Page 53: Terra sen mal helen clastres

102 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 103

te da primeira. Contudo, urn animal e exce<;ao: 0 lajasu (port.laiar:u), 0 grande porco selvagem, parece estar incluido na comidados perfeitos. Em todo caso, a carne de kochi (= la iar:u macho) con­tava entre os alimentos escolhidos por urn mbia que obteve 0 aguyjee, M ainda menos de vinte anos, 16 partiu para a Terra sem Mal. 0laiar:u, tambem chamado de mymba porid = 0 belo animal domesti­co), dotado alem disso de urn nome religioso, araryapu miri (= 0 pe­queno trovao), e considerado como 0 animal domestico de Cara{ RuEte.l) Sua carne e tida como a melbor de todas, pois - como dizemos mbias - e a unica que se come sem sal. Ora, 0 sal tern uma fun­,ao bern marcada, pois passa por neutralizar "0 espirito da carnecrua", isto e, 0 lupichua; salga-se a carne exatamente para eliminareste risco. Por conseguinte, uma carne que pode ser consumida semsal ja e, por si mesma, neutra. sem perigo. companivel neste respeitoaos vegetais; 0 que explicaria que 0 porco selvagem esteja classificadojunto com as boas comidas.1 i Seja como for, aescolha dos alimentose essencial: privilegiar os vegetais (e dentre eles 0 milho, isto e. a ali­mentayao tradicional dos guaranis, a que tambem e sempre investidade urn valor ritual. pois as prepara,Oes a base de milho acompanhamtoda grande cerimonia) e pravar-se atencioso ao iie'ii, escolhendo osalimentos que Ihe sao congruentes, e portanto livrar 0 corpo da suaimperfei,ao. E. inversamente. preferir as comidas a base de carne etornar pesado 0 corpo e entravar seu acesso a Terra sem Mal, ja queesta oP9ao privilegia 0 que nele existe de pior (a carne e 0 sangue).Deve-se assinalar aqui 0 lugar particular conferido ao tabaco: pode­mos dizer que ele constitui 0 alimento por excelencia da alma-pala­vra. Seu nome religioso 0 designa como "a bruma mortal" (falachinareko achy), pois a fuma,a do tabaco e, para os habilantes da terra im­

.perfeita. 0 que a brnma e para os imortais: fonte de vida e saber. Ta­lachina. a bruma, simboliza 0 poder eo saber criadores, gera as pala­vras excelentes: Jacaira Ru Ete, senhor da bruma, e 0 senhor das pa­lavras 19 e e ele quem inspira aos profetas 0 belo saber. Deve-se a Ja­caira Ru Ete a cria,ao do cachimbo e do tabaco: quis doa-los aos ho­mens para que estes pudessem compensar as desgrayas a que os desti­nava a vida na nova terra. Equivalente imperfeito da brurila. 0 tabacae 0 meia de comunicacao privilegiado entre os homens e os deuses,indispensavel a·qualquer cerim6nia de alguma importancia; simbolizaa vida e 0 saber humanos, assim como a bruma simboliza a vida e 0saber d.ivinos.

Dentre as principais recnicas que visam sacudir a natureza doen­Ie: a dan," e 0 canto. A dan,a (jeroky) e sempre coletiva e, entre osmbias, parece desenrolar-se sempre no interior da opy. Homens emulberes dan,"m alternadamente e cada sexo acompanha a dan,a dooutro batendo com for,a no chao para marcar 0 fitmo; para isso, os

homens empregam 0 popygua, 0 basmo-insignia, as mulheres 0

lakwa, urn peda,o de bambu ou taquara.20 Os dan,arinos sao dispos­tos em fila, encarando alternadamente 0 leste e 0 oeste e, sem mudarde lugar, batem com 0 pe no chao. 0 gesto e a postura dos corpos saoricos em sugest6es: dir-se-ia que individualizam, que a dan,a so reuneos homens para melbor os isolar - signo de uma nao-rela,ao entreeles. Esmo juntos, mas em fila, isto e, cada urn olhando para as cos­tas do outro: numa rela~ao com os outros que nao e nem positiva.nem negativa. mas simplesmente mioMmarcada; cada um por si. Ecomo se, eslando todos nessa mesma orienta,ao privilegiada que tra­,a 0 curso do Sol, cada. urn quisesse distinguir-se dos demais e reto­mar posse do seu corpo. Dizem os guaranis que a dan,a torna leve 0

corpo. E dizem a mesma coisa do jejum. E que talvez 0 peso mio veM

nha ao corpo somente das comidas que ingere, mas tambem de todoo peso da lei social. Se Ii verdade que na dan9a cada urn volta a ser se­nhor de si mesmo, cOmpreende-se melhor que ela tenba aqui tantaimpoItincia. A solidao deliberada. todo 0 individualismo vinculado aprocura da Terra sem Mal, talvez estejam nesses gestos.

Os canticos, como vimos, podem ser coletivos ou individuais. Mas.mesmo no primeiro caso, se varios cantores podem modular umamelodia juntos, e sucessivaniente que pronunciam as palavras (quenao sao cantadas) que' constituem 0 hino. 0 que se chama cantico e,portanto, nada mais que uma prece. simplesmente entrecortada porbreves melodias: Seus temas sao sempre os mesmos: invoca-se umadivindade (Nhamandu, Carai. etc.) e pede-se que sejam reveladas asnormas da fo"a. da obstina¢o, da perfei,ao, etc. Alias, para desig­nar 0 cantico sacro, os mbias nao empregam 0 termo mborai (que de­sillna 0 canto entre todos os guaranis), mas mba 'e-a 'if,21 que tambemsetlplica as preces. Canticos e preces ocupam, na vida dos mbias, lu­gar privilegiado; e nao ha duvida de que constituem muito mais doque mera recnica, pois sao a linguagem sacra: a bela linguagem pelaqual os homens ja se assemelham aos deuses.

Resta-nos evocar uma ultima tecnica, que tambem merece lugar aparte, porque pode ser (pelo menos foi, antigamente) meio e fim aomesmo tempo: 0 "culto" dos ossos. Outrora, os mbias sempre con­servavam os ossos dos mortos durante bastante tempo.22 0 cadaver,colocado num cesto de bambu, era enterrado are a decomposi,ao dacarne; depois, era exumado para se recorherem os ossos, que erain laMv...... os com esmero e conservados num recipiente de cedro.23 Conser­var os ossos dos mortos nao era apenas urn gesto de piedade, urnmeio para que os vivos obtivessem a perfei¥ao: tambern havia a espe­ran9a de ressuscitar 0 defunto e as belas palavras proferidas em sua.honra deveriam contribuir para fazer a palavra circular nele nova­mente. Um ritual que 'evoca 0 que Montoya observou em sua epoca.

Page 54: Terra sen mal helen clastres

104 HELI':NE CLASTRES TERRA SEM MAL 105

Embora hoje nao seja mais regra. esse rito ainda pade seT cumprido equalquer mbhi, se assim 0 desejar, pade conservar os assos de urn pa­rente (crian,a na maior parte dos casos) morto; menos por acreditar­-secapaz de ressuscita-lo do que na esperan,a de obter dos deuses, porseu intermedio, a revela93.0 das suas nOTmas pessoais. 0 primeirotexto que apresentamos liga-se a essa pnitica, trata-se, com efeito, dayvyra'ikanga. Yvyra'ikanga eO nome religioso do esqueleto masculi­no. Literalmente, significa os oSsos (= kanga) do bastao-insignia ( =yvyra 'f); 0 bastio ritmico que e conservado na opy, simbolo - se­gundo Cadogan - do poder masculino. 0 esqueleto feminino e de­signado pela expressao lakwaryva 'ikanga, isto e, os ossos da taquara,daquela que dirige a dan,a (lakwa = taquara, bastao ritmico das mu­lheres; yva = dirigente). Acrescentemos que essas duas express",,,pertencem ao vocabulario religioso e que nao existem designa<;oes pa­ra 0 esqueleto fora da bela linguagem. 0 que, nao bastassem os ritosque antigamente 0 tomavam (e ainda 0 tomam, em menor medida)par objeto. tambem revela seu caniter sagrado. Hoje, conservar os os­sos ja eseT quase aguyje. comprovar - pelo menos - fon;a e obsti­na<;:3.o. Pais. se tados os mbias dan<;:am e pronunciam as palavras, ra~

TOS saO os que guardam os ossos de urn parente defunto, ou pelo me­nos os que as guardam por bastante tempo, isto e. que cumprem, aomesmo tempo que 0 gesto, tudo 0 que este sup6e. Cadogan narra, porexemplo, 0 caso de urn mbii que, quando da cerim6nia funeriria pelamorte de sua sobrinha, recebeu urna mensagem dos deuses ordenan­do-Ihe que conservasse os ossos; deveria depois abandonar sua aldeiapor urna Dutra, levando-os consigo; assim obteria a revela~ao da Ter­ra sem Mal. Este mbii recolheu, portanto, os ossos da sobrinha, masacabou jogando:-os fora~ nao pudera resolver-se a cumprir a mudan~a

prescrita, porque sua mulher se recusara a acompanha-lo. "Fazercom que os assos permanec;am it. escuta" e mostrar-se atento as belaspalavras e, assim. fon;:ar os deuses a proferi-las. E provar Que mio sedeseja a resigna¢o it vida rna e se recusa 0 engano au a distrayao ­o que exige for,a e perseveran,a: em suma, e provar que se possuiuma unica norma. Talvez seja principalmente provar-se, perpetuandoapenas para si proprio urn rito ji caido em desuso, urn verdadeiro Je­guakava, urn eleito' isto e, urn mbii.

Hi quinze ou vinte anos, urn jeguacava (0 ultimo, talvez) abando­nava definitivamente sua aldeia e os seus: dirigia-se para 0 yvy marliey. Vejamos, segundo nos narrou uma testemunha, como ele obteveo aguyje.

Aquele que obteve 0 aguyje tinha dols filhos e d.as filhas, uma de­las morreu. Colocou-a num takwarapemby24 para que ela prestasse

.aten,ao. Depois de po-la ali dentro, ele a fez prestar atenyiio durantedois anos. Ao cabo de dois anos, ouviu as normas da sua vida, "Nao

i

.l

Notas

(1) Montoya. Tesoro. Teco 0,-'7: trabajos.(2) Montoya, TesonJ. Megua: gracia, chocarreria. bellaqueria. Teco nu?gua: proce­

der mal. Este sentido foi preservado entre os guaiaquis; ka mf'IJWa: contar histOrias,mentiras.

(3) Montoya, Tesoro. Maroney: bueno, entero, incorrupto. Composto de ~ariJ e cy(neg~ao). Mara' tinha, como hoje, 0 sentido de "mal", de "doem;a", e tambem 0 sen­tido de nu:gLia: historia falsa. brincadeira, bufonaria.(4) 0 homem se torna mba'f' nefiandu ey va = aquele que nao tern a percepc;io,

ou 0 conhecimento, das coisas.(5) o.peyja: termo utilizado somente para 0 jaguar.(6) Leon Cadogan. Ayvu Rapy,a, pllgs. 75-76.(7) A comparacao desses dois mitos com as versoe..<; do diluvio recolhidas pelos ero­

nistas entre os tupis permite completar esta analise'(reeorc1E;mos ~ue urn "dil.uvio"esci na origem dos jaguares, entre os mbias. porque a segunda C11ada dos Gemeoseonsiste em fazer as aguas ineharem de..<;med.idamente). Com efeito, os mitos relata­dos pelos cronistas (com exeecao da primeira versao de Thevet) dao conta da apari-.cao das diversas soeiedade..<; e todos excluem 0 incesto, ja que dois.o~ mais e_asa~s d.eoonjuges sao salvos (segunda versao de Thevet. Staden). Urna UOlC3 versao -e dl:ferente: a de Cardim: e da oon13, nao da apariCao das sociedades inimigas entre Sl,mas da humanidade atual. Ora, nesta versao. os sobreviventes ao diluvio sao urn ho­mem e sua irma gravida: 0 que sugere que 0 casamento avuncular se situa na origemda"hvmanidade. Com efeito, as demais solu¢es possiveis nao dariam eonta de todosos .mentos da sitlla(fao descrita pelo mi~: se a irma fosse ~6r no mU~do .um filhoe casar com ele (como a mulher jaguar), nao se compreendena que seu lrmao se sal­vasse;se supomos um casamento do irmao com a irma, Ilio se explica porque.estaprecisa estar gravida.

Estas vers6es podem seT ordenadas assim:Cadogan : origem dos jaguares ----i incesto inevitlivel

"Staden l origem das sociedades -+incesto evitadoThevet (Cardim . origem da humanidade-4casamento avuncular .Cadogan : origem dos imortais """"i incesto deliberado: casamento com a tta paterna.(8) Tudo isto no passado, porque hoje os mbias Ilio celebram mais duplos fuoerais.

Amanam 0 morto em posicao fetal e guardam·no um dia na opy, com 0 rosto volta-do para leste. Depois disso 0 enterram longe na floresta, ao pe de uma arvore, dei­xando na tumba agua e tabaco. Quanta aos "possessos", praticamente nio existemmais e isto, dizem as indios, porque hoje utilium 0 sal, que eontribui para matar 0espirito eta came erua.

(9) No Tesoro, aguyje significl\ a saude, a plenitude, 0 que se basta, a que eacaba­do.(10) Rekorai: as normas. Sentido vizinho em Montoya, rekora: conselho; leko: seT,costume, lei.

Page 55: Terra sen mal helen clastres

106 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 107

Teko-.rQ (indice do futuro) = lei fulura.(II) Os grandes xamas, os que dirigem as dancas. pedern tratar dos possessos, des­cobrir 0 nome dos recem·nascidos. etc.. sao chamados: iflarandu pord i vo'(:' = osque possuem a bela ciencia. Cr. Cadogan. Ayvu Ropy/a. cap. IX.(12) Em Montoya, mburu tern urn sentido bern diferente. porque significa desprezo.Mas, de Dutro lado, Montoya indica que esse lerme, na composi<;ao. marca a exor­fOrdo: amomburu = encorajar. esfor<;ar: aflemomburu = eu me esfo~o.

(13) Cadogan. Ayvu Rapy/a. pag. 57-58.(14) Cf. varies exemplos desses canticos em Ayvu Ropy/a, pags. 95 a toO.(IS) Cravando uma pena na terra para "fechar" 0 caminho que nae lorna. No Que ospais indios reproduzem os ga'Hos do pai dos gemeos rniticos: Quando es~ ultimodeixou a terra, cuidou de fechar, por meio de penas, os maus caminhos (conduzindoa morada dos primeiros jaguares) para que seus filhos pudessem segui-io,quando nascessem. ate a Terra sem Mal.(16) Este livro foi publicado em Frances, em 1975 (N. do T.>.(17) Segundo urn informante, Karai Ru Ete (situado, porem. a leste e, recordemos,oposto a Tupa Ru Ete) seria araryapuja "" senhor do trovao.(18) Entre os chiripas se encontra uma cren~ simetrica: a carne do porco domeSlicopa........-a pela pior das comidas, pois deixa 0 corpo pesado. Para os chiripas, a introdu­~ da came de porco e do sal na alimen~oe responsavel pela dificuldade que hihoje em atingir a Terra sem Mal. .(t 9) Cf. Ayl'u Rapyla. pag. 31.(20) Os mbias nao pos..~uem maracas. e sem duvida se trata de urna perda. Em todocase, sao os unicos guaranis a ignorar seu emprego.(2 t) Mba 'e-a'il ecomposto de mba'e ("" palavra. fala) e a'ii (::;: esfor~r·se) - "es­forr;:o que se realiza (com vistas a obter a for~ espirituaj)", Cadogan, op. cit .• pag.27.(22) S6 eram jogados fora quando uma mensagem dos deuses tizera saDer que naoreviveriam. Cf. Cadogan. op. cil .• pag. 52.(23) Cadogan. op. cit .. pags. 51 e 52.(24) 0 cesto de taquara no qual. antigarnente, eram enterrados os mortos. aguardan­do-se a decornposir;:ao das carnes.(25) Jechaka. literalmente: 0 Que e visivel. 0 que se ve, se manifesta ('echa ::;: osolhos). a palavra designa a luz que provero do saber divino, 0 reflexo deste saber.(26) 0 cedro. ygary, e a arvore de Namandu. Seu nome religioso 0 indica: ylt,'ra (::;:arvore) Na.mandu.(27) Apyka: banco zoomorfo. Na maioria das vezes representa 0 jaguar e nao tern"cab~a": e que nao se deve ver. nem reconhecer 0 jaguar. As..~im como nao se devenoroci-Io (os mbias charnam-no aguara ::;: raposa).

",'

te enjlanavas. meu filho. tu niio viveste segundo modos dissemelhan­tes_ E por isso que nos Vamos dizer- te como obtenis as normas da tuavida. E por isso que nunca te abandonarei nesse lugar; eu te fare! sal­tar por cima do grande mar, E por isso que._ se os teus companheirosse obstinarem como tu, sents tu quem lhes enviani as palavras; envia­nis as palavras aos teus irmiios. as tuas irmiis. se souberem esfon;ar­-se. Sell~o. niio lhes diras nada." Restavam-lhe dois filoos que se es­foryavam, "Aos teus filhos enviaras as palavras e ensinani.s as nor­mas da vida."

o homem pescava peixes mas niio os cornia. dava-os aos outros.Cayava ratos mas mio cornia carne. dava-a aos seus companheiros.Ca<;ava animais de diferentes especies. taytetu (port. caiti/u) e outros.Enchia-se de vontade para pegar tudo isso. Esses alimentos que tra­zia. e niio devia comer. dava aos seus companheiros para deixa-los sa­tisfeitos. Gra<;as a tudo isso. obteve 0 mborayu e conheceu as normasda sua vida. Nao se comportava conforme regras numerosas. Suamulher aconselhou-o a procurar 0 aguyje. pois era impossivel queCara{ Ru Ete niio fizesse caso de quem vivera sempre tao virtuosa­mente: "Aqui estii 0 esqueleto daquela que tu fizeste descer; gra<;as aotakwaryva'ikanga que geraste.obteras 0 muburu e 0 py·aguachu."Ele aceitou: "Pronunciarei palavras a esse respeito (isto e. dos ossosque ele vai conservar) e depois. da minha morada. prestarei aten<;iioaos meus irmaos. Para que eu possa alcan<;ar esse objetivo. tu. minhamiie (che chy. sua mulher). cuidariis bern de mim. para que eu possaviver segundo as normas. Por isso, escuta, Tenho que escolher os ali­mentos. A carne que eu consumir seni de mymba pora'. Todos os de­mais alimentos precisarei obter para meus companheiros: 0 piky, 0

taytf!,tu; freqiientarei 0 pais dos taytetu para tcazer carne aos meusco~anheiros; freqiientarei os riDS para Ihes trazer peixes."

Procurou 0 mburu durante dois anos e Nhamandu 0 iluminou:"Pois bern. tu tens mbaraete. Nao te enganes: esomente assim que teseni permitido apoderar-te do reOexo. "25 Dessa maneira, consagrou­-se aos exercicios espirituais. Sua mulher cuidava dele. Tomou casca

, de cedro e fez uma infusiio para the lavar as miios e os pes. Ela lheesfregou todo 0 corpo. Depois. ele se deitou em cima de urn ped?t;ode casca de cedro; debaixo da cabeya. colocou urn travesseiro de ce­dro.26 urn apyka.27 A mulher disse ao marido que mio devia maiscuidar das outras mulheres. nem dela mesma. Quando ela fazia 0

amor. fora da casa, com outros homens, ete aceitava. Disse amuther;"Tu vais fazer kaguijy (caldo de milho); vais fazer mbujape (panque­cas de milho); vais fazer uichi (farinha branca de milho). E so isso 0

que eu VOll comer. Nao comerei a comida dOsteko achy; nao come­rei sal nem banha. Unicamente carne de kochl."

Entao e1es (os deuses) the disseram: "Observa bern quando entrar a

Page 56: Terra sen mal helen clastres

108 HELENE CLASTRES

nova esta¢o e aguarda 0 jechaka: vamos pronunciar as palavras.Vamos abandonar 0 ser que era teu. Ela (a mulher dele) permanecenina terra. Mas. a urn dos seres que fizeste descer, se ele souber interro­gar, tu envianis as palavras."

Esse exemplo ilustra a significa~ao conferida ao mborayu por suaposic;ao na jun,ao de duas eticas: se 0 senso da justi,a procede do res­peito pela reciprocidade, ele tambem e 0 momento em que essa reei­procidade e rompida. Quem e possuido pelo mborayu nos e descritocomo 0 avesso exato do ca~dor egoista, pois consagra seus esfor,os aobter, para a satisfa,ao dos outros, alimentos que ele proprio naoconsome: imagem do parceiro ideal, que da sem exigir nada em troca.Mas, por se libertar da obriga,ao de receber, situa-se no exterior dosistema de troca e afirma sua independencia em rela,ao a coletivi­dade; e por isso que 0 mborayu e 0 come,o da salva,ao. Inversamen­te, quem e seduzido pelo lupichua rejeita 0 outro termo da troca por­que tOma e nao quer dar: tentativa ilusoria de libertac;ao pois, ao mes­mo tempo que nega a reciprocidade, manifesta sua dependencia emrela,ao a comunidade.

Esta dissocia,ao entre dar e receber, 0 primeiro sendo afetado devalor positivo, 0 segundo de valor negativo, e apenas outra maneirade traduzir a oposi,ao entre as duas recusas possiveis da vida social,de que ja tratamos. Ela permite medir a distancia ·que separa osmbias dos antigos tupis-guaranis. Para esses ultimos, a procura daTerra sem Mal tinha como corolario a destrui,ao da sociedade, de vezque esta era pensada como radicalmente rna; os discursos proferidospelos seus carals sao bastante instrutivos a esse respeito: era precise- diziam - parar de cultivar, de ca,ar, de respeitar as regras de ma­trimonio. A vida social so era viv!da como obstaculo. Os discursosdos mbias sao bern diferentes e apreendem a vida social segundo umadupla dimensao, positiva e negativa: positiva, enquanto veem nela 0

necessario tempo de prova (fun,ao que antigamente cabi.. as migra­,oes), de modo que 0 que era obsticulo outrora tornou-se meio; ne­gativa, enquanto ela permaneceu uma modalidade da existeneia rna e,como tal, aquilo a que se deve renunciar para chegar a Terra semMal. Assim, os guaranis souberam conservar no seu discurso religio­so a significa,ao critica que ele tinha antigamente e adapti-lo a umaexigencia nova de justifica,ao dos valores culturais. Nessa justificac;aoconsiste 0 deslocamento sofrido pelo discurso sobre a Terra sem Mal:de agora em diante, cabe-Ihe uma fun,ao que nada 0 destinava a

.preencher - a de validar a sociedade.

••

1

capitu!oVI

AS ULTIMAS GERA<;dES

o deslocamento do discurso e 0 correlato das profundas mudan,asque afetaram as sociedades guaranis. Pois, se os temas essenciais dasretlexoes indias iimitam-se a perseguir preocupa,oes antigas, se por­tanto se iluminam ao serem repostos na continuidade de uma tradi­,ao, tambern traduzem uma atualidade. 0 discurso sobre a Terra semMal continua sendo 0 que sempre foi: certo discurso sobre a socieda­de e sobre uma sociedade presente. A leitura "antropologica" do dis-'curso religioso pode-se, portanto, superpor uma leitura sociologica.Aborda-la-emos rapidamente, pois e evidente demais. Seu interessevern, principalmente, de nos levar a perguntar se, por tras da coeren­cia do discurso sobre a Terra sem Mal, nao se dissimula urn abalomais profundo.

Nessa perspectiva, pode-se notar que, se 0 discurso conservou suavoca,ao critica (razao por que preferimos falar de'deslocamento), estatodavixte enfraqueceu. Por urn lado, com efeito, define a Terra semMal como a nega,ao do estado de sociedade (faz dela 0 objeto deuma procura. individual) e, se e verdade que garante a ordem social,s6 0 faz na medida em que essa propria ordem e inatual, ja que pre­gar 0 respeito pelas boas normas e recusar 0 eSlado presente da so-

,ciedade. A etica coletiva so e compativel com a dica da salva,aoporque ela mesma e critica. Mas, por outro lado, tambem ha enfra­quecimento, pois os guaranis pensam que pode existir uma sociedadejusta, uma sociedade fundada no mborayu e atribuem esse merito asdo seu passado: e evidente que elas nao 0 tinham, exceto - restri,aoimportante - no nomadismo que permitiam. Tal enfraquecimentonao se acompanhara de uma debilita,ao correlata da cren,a: se a ida­de de ouro come,a a ser projetada no passado, nao sera sinal de que afe come,a a se perder ease transformar em mito?

A ambivalencia que definia a natureza humana define igualmente. uma sOc;ied!lde e.m que coexistem valores tradicionais e valores DOVOS.

sendo bons apenas os primeiros, porque sao os que distinguem os Po- .

Page 57: Terra sen mal helen clastres

rangue'i dos "que niio foram enfeitados" - os paraguaios, Viverconforme as nOTmas significa, como vimos, evitar a dissemelhanc;a;ora, a dissemelhanc;:~ mio e apenas inerente ao homem. ela e inerentea uma sociedade em que dois modelos culturais estio em cont1ito.

Se a ordem social e teko achy, rna ou doente, idealmente, em refe­rencia ao marii ey. tambem 0 e realmente. por haver perdido sua coe­rencia e unidade. Sua imperfeic;ao e agravada pela multiplicidade, asboas normas niio tern mais forc;a para se impor, porque foram substi­tuidas por outros valores que as contradizem e tornou-se impossivelconformar a pratica ao que os mbias definem como sendo a boa etica.De modo que, se a reflexao sobre a ambigliidade da natureza humanapermitia dar conta da possibilidade teorica do kandire, a reflexiio so­bre a dissemelhanc;a dos modos de vida da conta da impossibilidadereal de ascender a Terra sem Mal.

Evitar os modos de vida dissemelhantes entre si e, com efeito, evi­tar conduzir~se ao mesma tempo como mbhi e como paraguaio, epri­vilegiar os valores e regras de vida tradicionais e recusar os outros,que pOlleD a pOlleD se impuseram: eesfon;ar-se por viver como eleito.numa comunidade que ja niio e rnais ados eleitos. 0 caso de aguyjeque relatamos acima ilustra bern essa exigencia. Escolher as comidastradicionais dos mbias (as preparac;oes a base de milho) e, sobretudo,excluir os alimentos estrangeiros e, portanto, recusar os modos de vi­da estrangeiros:os guaranis cultivam, como antigamente. 0 milhonas suas proprias terras queimadas; e verdade que ainda cac;am. masja niio ha grande coisa para cac;ar na sua regiiio. Esses recursos tradi­cionais sao. pais. insuficientes e os Quiros que se acrescentam (carne.sal, banha) devem ser comprados, obrigam a cumprir urn trabalho re­munerado, fora da comunidade. Escolher urn regime alimentar tern,assim. implicac;6es economicas e sociais de monta: implica adotaruma pratica economica conforme ao ideal mbia (sem duvida alguma),mas niio a realidade, e restrita demais para ainda ser possivel. Ade­mais, Olio basta urn comportamento econ6mico conservador; a ascesealimentar niio da a perfeic;iio, mas somente 0 que a torna possivel -o mborayu. Para obter 0 aguyje, e preciso ir aIem no conservantismo(ou na recusa da sociedade atuaj), cumprir urn ritual (ou seja, algoque em principio deveria envolver 0 conjunto da comunidade) ao quala comunidade ja renunciou ha muito tempo. Restric;iio no plano eco­TJ6mico, excesso a nivel da vida rima], vale dizer que a Terra semMal s6 e acessivel ao prevo de uma oPvao duas vezes impossivel,pois convida todos a se conformarem a modelos culturais que niio saomais os dos mbias. 0 discurso religioso evidentemente niio mudou 0

sozinho, a pratica religiosa tambem se modificou: ainda e possiveldam;ar e rezar, mas nao e mais possivel - exceto sendo urn 10lleo ­repetir hoje os gestos dos antigos ca ra {s e abandonar tudo, a procurada Terra sem Mal.

Urn nhanderu (xamii) chiripa explicava muito bern esta impossibi-lidade a Leon Cadogan,

Nos, os nhanderus de hoje, fazemos apenas esforc;os esporadicos pa­ra cantar, e fadados ao fracasso. E como poderiamos cantar? Veja,uma manha, na rede, me ponho a eantar as palavras que me sao ins­piradas pelos senhores do alem. E minha mulher me interrompe, 0

que voce esta fazendo, cantando quando niio ha sal nem banha paraa refeic;iio' Tenho que me levantar e sinto raiva. Impossivel cantarquando a gente esta com raiva. Como poderiamos receber inspira<;iioquando temos que trabalhar para nossas familias niio morrerem defome? Precisamos trabalhar para comprar carne, porque 0 senhordos taiar:us e dos outros animais da floresta os impede de cair nasnossas armadilhas. E precisamos trabalhar para nos vestirmos comoos paraguaios, porque nossos pr6prios eompanheiros ehegam a zom­bar dos ornamentos rituais... I

E sem duvida, antigamente, os profetas podiam dispensar-se de tra­balhar, os outros se encarregavam de" cultivar suas plantac;oes e elespodiam consagrar seu tempo a cantar. Hoje, talvez pudessem abster­-se de trabalhar nas plantavoes ou de ir acava e, contudo, receber ~ua

parte das colheitas ou da cac;a. Mas, se precisam de facas, de macha­dos ou de roupas, precisam ir trabalhar algum tempo numa haciendaou obraje paraguaio; este e urn trabalho que ninguem fara por' eles.Os produtos adquiridos pela venda do seu proprio trabalho niio po­dem ser repartidos nem trocados, ou, se siio trocados, e contra obje­tos equivalentes, cuja posse implica, portanto, que 0 dono efetuou urntrabalho remunerado. Este outro sistema requer que cada urn traba­lhe porlf' Em outros termos, e toda a etica do mborayu que se veposta em questio. Com a perda da autarquia econ6mica, niio e so­mente 0 lazer do cantar que se perdeu, mas todo 0 sistema de trocaque definia a sociedade com precisiio. Os "esforc;os" dos profetas,portanto, ja se acham fadados de antemiio ao fracasso. Mas, se fracas­sam, nao e tanto por serem "esponidicos", mas antes porque visamalgo impossive], continuar a dizer urn discurso que, por haver perdi­do seu lugar originario, tornou-se indizivel. 0 discurso sobre a Terrasem Mal foi 0 de uma civiliza<;iio que, sabendo-se mortal. via contudoem si mesma os germens de possiveis transformac;6es. Entao, 0 dis­curso dos profetas podia exercer sua plena func;iio critica. Tais socie­dades estio destruidas e foi de fora que veio sua destruic;iio, 0 discur­so profetico niio pode mais desempenhar a mesma func;iio.

E por essa raziio, alias, que ele se deslocou e e porque a sociedadese destroi que ele precisa justifica-Ia. Mas essa justificac;iio aos costu­mes passados e estritamente teorica e niio implica crenc;a alguma numpossivel retorno. Se as belas palavras recordam as tradic;oes, e parasublinhllr melhor a constata<;iio do seu esquecimento, Da mesma for-

IIITERRA SEM MALHELENE CLASTRES110

Page 58: Terra sen mal helen clastres

112 HELENE CLASTRES

ma 0 discurso sobre a Terra sem Mal era negador demais parapodert6r~ar-se "revivalista". E sem duvida por isso que, se permaneceuprofetico, ja niio anuncia 0 ad vento de uma ordem desprovida decoe"iio. mas a morte - proxima - da sociedade: Nos somos asl1ltimas gera~6es. as jeguacavasesqueceram as normas e nao sa.bemmais conduzir-se: desejam possuir as ferramentas dos outros habltan­tes da terra, consumir os alimentos dos estrangeiros; sentem desejopelas mulheres estrangeiras e seu senso da beleza se perverteu; asproprias jachucavas passam a desdenhar 0 urucum e a preferlf outrosadornos... Eles desejam portanto coisas multiplas e dissemelhantes eo esquecimento das normas termina por abolir ate mesmo 0 desejo deaguyje: e por isso que a Terra sem Mal se tornou inacessivel paraeles.

Afastando-se dos seus ancestrais, os ultimos dos Eleitos tambem sesepararam dos seu~ deuses. Isto e 0 que dizem as .belas palavras: se edoravante impo.sivel 0 acessO dos guaranis a Morada. e porque a per­da das suas tradi~6es tornou desmedido 0 obstaculo que os separa de­la. Entre os homens e os imortais. estabeleceu-se uma nova distancia.que e incomensuravel: seu signo e 0 silencio dos deuses, que mio res­pondem mais aos Eleitos. para desvendar suas normas.

Nos. que somos as ultimas gera~6es,

ja mio nos abstemos de mais nadade agora em diante mio sabemos mais conduzir-nos.

E por isso que Carai Ru Ete, Carai Chi Etenao querem mais dizer as palavras para obter as normas da for~a.

Contudo, sera que os homens ignoram essas normas, euja revelal;aopedem tanto? Como se conduzir para tornar-se aguyje, isso todos osguaranis eonheeem e podem dizer. 0 que nao quer ser dito e se dissi·mula sob a forma de uma questao proposta aos deuses e, antes. urnproblema que os guaranis colocam para si mesmos: a pergunta sobre,a validade do 50u discurso, ou a veracidade da sua fe. 0 obstaculo in­transponivel e a duvida que desde agora os habita. Com 0 declinio dasociedade, poueo a poueo se apaga a eren~a; os que podem dizer-se os'ultirnos mio 0 ignorarn, nem deseonheeem que seu discurso nadarnais tern a dizer. a nao ser anunciar ,seu proprio tim.

Nota

(I) LeOD Cadogan, Como interpretan los Chiripa la danza ritual.

CONCLusAoo PROFETISMO

A Terra sem Mal: um espa~o sem Jugares marcados. onde 50 apa­gam as rela~Oes sociais. um tempo sem pontos de refenlncia. em quese abolem as gera~6es. E 0 aguyje. a completude; no conjunto doshomens cada um se ve restituldo a sl proprio. suprimida a dupladistancia que os fazia dependentes uns' dos outros e separados dosdeuses - lei de sociedade. lei de natureza: 0 mal radical.

A rela~ao contestadora com a ordem social e a rela~ao nao-teologi­ca com 0 sobrenatural estabelecem-se num tinieD discurso, ainda maissurpreendente porque delimita, aqui, 0 campo da cren~a. E por issoque, se 0 discurso dos tupis-guaranis pode evocar outros mais fami­liares, de fato nao coincide com eles em ponto algum. A Terra semMal e a idade de ouro, se assim quisermos, mas anunciada. e niio per­dida desde toda a eternidade. E uma Terra Prometlda na propria terrae que contudo nao sera um reino, porem, ao contrario. a aboli~ao detoda forma de poder. Discurso inesperado, por ligar justamente 0 queesperariamos ver segregado, por inverter as linguagens - a da fe on­de aguardavamos 0 mito - e que implica uma nova maneira de pen­sar 0 homem, a terra. 0 ceu, os deuses. em que explode 0 sentldo e sedispersa a verdade.

o que surpreende, finalmente, nesse pensamento e 0 faz tao no­vo e sua v~a~ao profetica. Profetismo, aqui. nao pretende referir­-se apenas - nem essencialmente - a anunciay3.o pelo discurso deurn certo futuro - 0 advento do homem-deus; mas siro ao fata deque, para preservar a possibilidade desse desejo impossivel, escolhe-seo risco de perder todas as certezas; a das existencias sedentarias, co·mo as das verdades estabelecidas. Se 0 pensamento dos tupis-guaranis

, e profetieo, .e por pressentir a salval;ao como inacessivel e por saberque, pa~a continuar acreditando nela apesar de tudo, e preciso eons­tantemente ultrapassar todos os limites, quer dizer. renunciar a toda

• forma de enraizamento. A procura da Terra sem Mal remete a essarenuncia: e sua condil;ao, e seu efeito. Por isso e ela a medida comumda vida e do pensamento profeticos, buscando a Terra sem Mal, ou­trora as vidas se tornavam vagabundas; hoje, as palavras dos profetasvao a cata de uma verdade desde sempre furtada.

A palavra dos antigos profetas, por dizer 0 peso insuportavel dalei, devia - para ser ouvida - provir de fora (a posi~ao de exteriori­cfade dos profetas) e da mesma forma so podia produzir efeito fora (0fracasso politico deles). Fora, fora da lei que desigr.a a cada um 0 seu

Page 59: Terra sen mal helen clastres

114 HEU':NE CLASTRES TERRA SEM MAL 115

lugar no espal'o marcado de um territorio tribal. no tempo contabili­zado de uma genealogia. Por colocar-se de antemao adiante de tadaIegalidade. ela gera um espal'O e um tempo novos, fora do espal'0 e dotempo sociais, quer dizer, sem diferenl'a. E-Ihe portanto impossiveltoda fixidade e, devido ao mesmo movimento, uma vez tornadas im­passiveis as antigas refenlncias a linhagens e grupos locais, niio hamais estatutos diferenciados e desaparecem as antigas relal'Oes. Desdeenta~, entre as homens tornados de direito iguais, e possivel outra re­lal'ao: a do mborayu. a reciprocidade. Possivel apenas parque se ins­tauram essas relal'oes nao-marcadas com 0 espal'0 e 0 tempo, que saoas da vida nomade: fora dos limites do territorio, "aqui" e "agora"nao sao mais do que 0 lugar e 0 momenta do instiivel, do provisorio:nenhuma hierarquia pode. portanto, ser implantada.

OUl'a-se a palavra profetica: e rompem-se 'os quadros que garan:tiam as existencias, todo a espal'O medido e diferenciado do social. Eo error que, arrebentando as coordenadas espaciais e temporais que assubordinavam umas as Qutras, isola as vidas e as justapoe. Todos derepente sao profetas e isso deixa de seT urn estatuto. Na extensao semlimite e sem diferenl'a da floresta indefinidamente atravessada, so epassive! habitaT, mas DaO residir; subsistir, mas sem produzir; lar­gam-se mortos, sem fundar linhagem. Um puro deslocamento, quenao implica volta alguma para tras nem acabamento algum. Impos­sivel e estabelecer novas territorios em outro lugar, garantir novasleis - porque a Sa1va93.0 esta sempre adiante, sempre fora do limite;perdida, mal entrevista. Por seT sem limite, oespa90 torna-se, nomesmo movimento, sem saida.

Dai, sem dilvida, a necessidade do obstiiculo que, se impoe um ter­mo brusco a viagem, ao mesmo tempo e a que vem justifica-Ia e per­mitir-Ihe prosseguir. 0 mar mateJico que nao pode ser atravessado,porque obsta a marcha, garante a exisrencia do "alem". que e 0 lugardo repouso. Obstiiculo portanto de duplo sentido porque. se impede 0acesso a Terra sem Mal. tambem impede ao mesmo tempo que a fese perea. A procura nao eva, pode-se continuar andando.

Poder de nao-repouso da palavra dos profetas, que so e tornadapossivel. legitima, por esse movimento infinito que ela gera. Palavratao eficaz quae impotente, que se anula desde que pretende realizar­-se, e pelo mesmo movimento: urn pOlleo como urn tecido imagimirioque so pudesse progredir sob a condil'ao de se desfazer simultanea­mente e assim se reduzisse a um ponto nunca fixo.

Em harmonia com uma exisrencia incapaz de estabelecer-se ja­mais, um pensamento impotente para afirmar 0 que quer que seja.Pois as belas palavras suprimem as distancias que 0 discurso, habi­tualmente. estabelece. A bela linguagem nao e a que, dirigindo-semais aos deuses do que aos homens, apenas deslocaria as relal'Oes: e

uma linguagem sem rela<;:oes - inspirada. se assim quisermos. Nela,quem fala e tambem, ao mesmo tempo, quem escuta. E, se interroga,sabe que nao ha outra resposta alem da sua propria pergunta indefini­damente repetida. 0 profeta que diz as belas palavras nao se dirige aninguem, nao comunica. nao enuncia verdade alguma. Remetido so­mente ao vacuo do seu pensamento, num soliloquio que nao tern co­mel'0 nem fim.

De novo eu escuto. De novo eu questiono.Ha sempre nas belas palavras um "de novo" que, se recorda sem

dilvida 0 carater cotidiano do rito. parece muito mais estar presente epara marcar uma qualidade essencial das belas palavras: que elas niiorem comel'o, mas estiio sempre continuando algo. Dir-se-ia que 0profeta nao tem 0 poder de inaugurar esse discurso, pelo qual - aocontrario - e ele que parece estar possuido: discurso que ele podeapenas ecoar sem nunca dominar. Talvez seja por isso que este dis­curso e somente uma pergunta sempre em aberto. Como se, aindaimperfeitos demais a despeito de todos as seus esforl'os, os Eleitosnao tivessem outra maneira justa de ouvir, a DaO ser interrogandosempre. sem nunca afirmar, os deuses dirao finalmente as palavrasabundantes, as que desvendam as normas da Morada? Uma pergun­ta que nao pede nenhuma resposta. Ou melhor. 0 que as belas pala­vras parecem indicar e que pergunta e resposta sao igualmente impas-'siveis. Basta prestar atenl'ao nos rempos e formas verbais: a afrrma­yiio so estii no passado e no futuro; 0 presente e sempre 0 tempo danegal'ao. E: Tu jd disseste as palavras. ou Dirds novamente as pa­lavras abundantes. Mas 0 profeta que fala e escuta nunca encontranada. a nao sela ausencia: Tu nao dizes nada, nao dizes absoluta­mente nada. Solidao de um pensamento tao desesperado a ponto dese lanl'ar are onde pensar se torna impossive!. A mesma impatenciaque antigamente marcava sua pnitica agora marca 0 discurso dos pro­fetas. E a qualidade atribuida as suas palavras, sempre proferidas ausolicitadas em abunddncia, em tal abundancia (diriamos) que e im-

, possivel agarra-Ias, talvez traduza uma qualidade mais profunda, con­trapartida da imporencia deles - 0 poder que eles rem de dizer umaverdade irredutivel a dogmas estabelecidos. Se as belas palavras saoas que nao se podem repousar em algumas verdades seguras, talvez secompreenda melhor porque as guaranis optaram por dize-las, preci­samente, belas {em vez. por exemplo, de "verdadeiras" ou "sagradas"- 0 que elas tamhem saoJ. 0 que traduz 0 fluxo abundantedas pala­vras, impossivel de ser retido pelo homem: um pensamento que, pornao querer excluir nem compartimentar, lanl'a-se are esse lugar maisremota do pensamento em que encontra, em si mesmo, 0 obstiiculo,o ponto-limite que 0 torna ao mesmo tempo possivel e impossivel ­como 0 horizonte: ponto-limite em que vem juntar-se os contrarios, a

Page 60: Terra sen mal helen clastres

116 HELENE CLASTRES

terra e 0 ceu. as homens e os d.euses.o profeta: eternamente a escuta de palavras abundantes e nunca

proferidas. feito 0 unico ponto fixo de urn discurso que sempre Ihe es­capa e onde pousa uma verdade que parece ter-se tornado n6made.

Palavras relativas ao esqueleto do bastao­-insignia

Pais bern, ja que e assim, 'entia agoraestou a escuta desta maneira:os 0880S do baslio-insignia. a grande coisa nao-pequena IIIfa90 que fiquem a escuta, Carai Ru Ete.

2 Ja que e assiin, desta maneira,quanto as normas do dizer restituidotu faras surgirem numerosas palavrasquanto as normas da obstina9aotu faras surgirem numerosas palavras.

3 Ve: fa90 prestarem aten9iioos ossos do baslio-insignia, os ossos da taquaraestou, ereto, f~ndo que eles prestem aten9ao.

4 Quanto a tudo 1>so,o que dizes tu, <'> Carai Ru Ete?quanto as normas da minha for9aquanto as normas da minha coragemo que me diras, enlio, tu?

5 Ve:Invocando, eu fa90 que eles fiquem a escuta.

, Depois de quem sabe quantas primaverasdepois de quem sabe quantos invernosquanto as normas da minha fOf9a. as normas do meu valor.as normas da obstina9iiodiras as palavras em abundlincia?Para 0 caso em que. tu as digaseu fa90 que de novo. eles fiquem a escuta.

6 Ja que e assim,faras que eles pronunciem palavras abundantesquanto as normas do meu valor, as normas da minha for9aquanto as normas da obstina9ao, as normas da completude.Ve: eu fa90 que fiquem a escuta.

Page 61: Terra sen mal helen clastres

Por tudo isso, eu vos conjurodizei-me palavras abundantes, Carai Ru Ete, Carai Chi Ete.

7 E e assim que eu digo de novo- eu, que sau aque1e que lo ornaste ­que e de ti que estoll novamente it escutacom vista as normas para a for,a,que eu fa,o que de novo eles fiquem a escuta.

8 Gra,as a lodo isso, entiio, eu te canjuro,faras que sejam proferidas palavras abundantesquanto as normas para obter a obstina,aoquanto a futura sede do meu lar,revelai-me tudo isso, Carai Ru Ete, Carai Chi Ete.

9 Em conseqiiencia,e em maior abundancia que faras dizer as palavrasrelativas as normas da for,a;brotam das normas da coragemas normas para atravessaro mar mau, horripilante,o que escapa a toda excelenciao que e perfeitamenlo inacessive1.

10 Tu, parem, a partir da tua perfeita acessibilidade,faras pronunciar as palavras abundantesquanto as normas da obstina,ao,e, para que eu possaatingir a loa moradia,faras pronunciar as pa1avras abundantesCarai Ru Elo, Carai Chi Ete.

II Ja que e assim,fa,o que eles fiquem a escutanao em vao eu fa,o que fiquem a escutaos ossos do bastiia-insignia, a grande coisa nao-pequena.

12 Eu fa,o ficarem a escuta,dize-Ihes, eu te conjuro, as palavras abundantesquanto as normas do valor, as normas da for,aas normas para obter a obstina,aoas normas para atravessar 0 mar mau, horripilante.

13 E e por isso mesmo,para que eu possa atravessa-Io- 0 grande, 0 imenso mar ­para que eu possa atravessa-Io,quanta as normas da Moradapronuncia-as, eu lo conjuro, as palavras abundantes. '

14 Em conseqiiencia,ja que eu os fa,o ficarem' a escuta,

118 HELENE CLASTRES

i-

",

TERRA SEM MAL

por que entiio nao pronunciais as palavras abundantesvos que sois Carai Ru Elo, Carai Chi Eloa mim, que sou aquele que vos ornaslos?

15 Quanto a mim, eu que sou aquele que vos ornaslos,estoll a escutae fa,o ficarem a escutaos ossos da taquara, daquela que vOs ornastesos ossos do bastiio-insignia, daquele que vos ornaslos!

Nota

(1) Nome religioso do cadaver.

119

1

Page 62: Terra sen mal helen clastres

TERRA SEM MAL 121

Palavras dos ultimos dentre os eleitos

Pois e isso, meus irmios, minhas irmas,para obtermos as normas da obstina~ao,

as normas da completude, as normas da completude,para que nos chegassemos a completudenos nos erguemos no esfo~o.

2 Como deveremos nos conduzir na verdade?o que disse, na verdade, Nhande Ru Papari?Como ele viveu, na verdade?Como Nhande Ru Papari, para 0 seu proprio ser futuro,lilo bem soube, na verdade?

3 Conformemente a isso, de novo vamos nos conduzir.meus irrruios, minhas irmas.Gr~as a isso nos erguemos (I) ja no esfor~o

com 0 baslilo-insignia que Nhande Ru Carai Eteconcebeu.Nos 0 brandimos, nos nos abaixamos, nos nos reergu~mos,

nos - os eleitos.4 De novo dira as palavras Carai Ru Ete:

de que maneira, outrora,os que deviam alcan~ar a completude se erguiam?a respeito das normas da alirnenta~o,

quais, dentre as numerosas palavras, ele enumerou outrora?as normas da alimenta~o, as normas da completude,quanto a elas 0 que ele editou outrora?

5 Essas palavras os eleitos escutarao de novo,rezanio os eleitas.Aos eleitos que se erguem no esfo~o

Carai Ru Ete, Carai Chi Ete ja disseram as palavrasreferentes as normas da coragem, as normas da for~a.

6 As normas da alimenta~o

ele bem escolheu, na verdade.

"

Depois disso. se tivermos 0 desejode nao escolher a comida,a completude naa existira nunca.Fala-se que assim foi disposto:que 98 que obtiveram a completude. Qutrora.esses escolheram os alimentos na sua totalidade.

7 Em conseqiiencia. nos os pouco numerosos companheiros de fo­gueira,(2lseguramente mio seremos avarentos quanta it. com ida.gra~as ao amor 131 que sentimospor nossos irmaozinhos, por nossas irmazinhas,por eles que come~am a brincar na terra 141.

8 Por solicitude pela vida deles, .Carai Ru Ete dira seguramente, aqueles,as normas para obter a for~a;

faremos seguramente que Ihes seja distribuidapar Nhande Ru Tenondea manifesta~ao da sua solicitudea partir desta solicitude que ele derem,nos nos apropriaremos dela. por pequena que seja.Ele a tornani perfeitamente visivel a nos(nosso pai Carai Ru Ete),aos que portam 0 jeguaca, as que portam Q jachuca.

9 Em conseqiiencia, a partir de agora,as ultimas gerac;oes, Jeguacavasse sentirem 0 desejo 'de todas as coisas,se sentirem 0 desejo de consumir alimentosnumerosos e dissemelhantes,enlilo os ultimos descendentes dos homens e das mulheresnunca se i~arao as normas da completude,as normas da forc;a.

10 0 homem, 0 Nhanderu, aqu.ele que derem a completudeesc;olheu cuidadosamente a comida, com certeza;por isso, por nao haver consumido os alimentos na sua totalidadeo homem. com certeza. soube as suas pr6prias nOTmas. '

1I Nos, outros, que somos as ultimas gerac;6es,doravante de mais nada nos abstemos.ja mio sabernos rnais nos cornportar.E por isso que utilizamos as ferramentas dos outros habitantes daterra,e que are mesmo a alimentac;iio dos outros habitantes da terranos eleitos somos possuidos pelo desejo de consumi-Ia.Carai Ru Ete, Carai Chi Etemio querern rnais dizer as palavras

I

Page 63: Terra sen mal helen clastres

para obter as normas da obstina,ao.12 Mesmo que seja assim, a nos os eleitos que observamos,

com certeza eles farao dizer de novo as palavras,e ja que e assim,nos os eleitas, nos os eleitos que estamos a escuta.com certeza observaremos bern de novo;aos que sao as ultimas gera,oes, tambem a eles.de novo dirao as palavrasCarai Ru Ete, Carai Chi Ete.

·13 Jii que e assim,a nos que somas os que escolhemos a comidaque e a comida dos habitantes da terra,eles dirao as palavras em abundancia.

14 Quanto as que entre as mulheres sao outras,se vivermos sem as ver como objetos de admira,ao,eles dirao as palavras em abundanciaeles que sao Carai Ru Ete, Carai Chi Ete.

15 "Pois entiio, ja que e assim,ele atingiu a completude - meu filho.Depois disso, meu filho de natureza diferente,'vai sobre a terra;aos que sao nossos enfeitados dize as palavras em abundanciaquanto as normas da obstina,ao, as normas da completude.la que e assim mesmoja que em verdade ele se obstina e se ergue no esfor,o,faremos que pronuncie verdadeiramenteas normas relativas ao seu derradeiro lar,as normas do lar ultimo, vamos revela-Ias a ekare mesmo 0 grande marele sem nenhuma dtivida atravessani, com certeza."

16 Em consequencia,por pequena que seja a amizadeele nao se fara inimigo dos seus proprios companheiros de lar.Se efetivamente nao nos fJzermos inimigos,aquele que e 0 nosso pai Carai Ru Etenos fara com certeza dirigir as palavrasa Nhamandu Ru Ete,as palavras das normas da vida, das normas da completude.

17 Quanto aos alimentos na sua totalidadeDaD deixemos tornar-se visivel a avareza;acomida, a comida.nos que vivemos como eleitosnos, os eleitos de boa saude,nos, os eleitos, desejamos consumi-Ia.

Notas

(I) Tempo verbal: presente.(2) Foyer: fogo. Jar. morada tN. do T.)(3) Varios termos franceses foram necessarios para restituir lodos os matizes do

guarani 'm/J0rayu. Conforme 0 contexto, e traduzido por:- amor, quando se trata da relacao aduitos-criancas;- amizade ou solidariedade, quando diz respeito as relacoes sociais dos adultos en-

tre si:- solicitude, quando se trata da relacao dos divinos com os humanos.(4) Aqui se trata das criancas.(5) Esse texto e 0 anterior foram recolhidos e traduzidos do Guarani. em 1965. porPierre Clastres e Leon Cadogan.

123TERRA SEM MAL

A comida dessa naturezaa nossos irmaos doaremos. na verdade.a comida que e nossaa nossas irmas doaremos, certamente, com generosidade.

18 Na verdade, e somente desta maneiraque a propria amizadeNhande Ru Tenonde podeni ver verdadeiramente.A partir de tudo isso. na verdade,ele estabelecera as palavrasrelativas as normas da obstina,ao.

19 Agora sim,quanto a propria comidapor causa do desejo que temos de nos mostrar avarentos por ela,por causa disso. eles DaD dinio mais as palavrasrelativas as nOTmas da perseveranyaaos que sao objetos da sua solicitude.

20 "As normas da solidariedadeas normas da amizadeeles nao as recebem mais, meus mhos,meus jeguacavas, minhas jachucavas."Eis 0 que, na verdade, diz Carai Ru Ete (5).

I

I

<

1

HELENE CLASTRES122