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TERRITÓRIO DA VIOLÊNCIA: UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA Ignez Costa Barbosa Ferreira* Nelba Azevedo Penna** *Professora Pesquisadora Associada – Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – Universidade de Brasília. E-mail: igcosta@terra,com.br ** Professora Doutora do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. E-mail:[email protected] RESUMO: O trabalho aborda a violência de um ponto de vista geográfico, isto é, espacial. Mas não é a espacialização do fenômeno da violência, o local onde ela ocorre. É a territorialização, a formação do território da violência, o que implica em realimentar a violência pela via da inércia espacial e pelo papel do espaço no processo social. Assim, existiria sempre a possibilidade dessa territorialização na formação do espaço urbano, dentro da lógica dos processos sociais atuais. De um lado, a extrema valorização do espaço urbano. De outro a exclusão social de camadas da população e de atividades a ela ligadas. Esse espaço sem lei torna-se o reduto da ilegalidade, passa a ser o quartel general da ilegalidade e tem na população pobre o seu exército de reserva. Assim, o espaço vai realimentar a face perversa do processo social excludente da violência urbana. O trabalho trata da produção do território da violência no Distrito Federal. PALAVRAS-CHAVE: Violência urbana – território da violência – urbanização excludente – violência no Distrito Federal ABSTRACT: This assignment deals with the violence from a geographical point of view, that is, space. However, it is not the spacing of the phenomenon of the violence; it is the place where it occurs. It is the “territoriality” , the construction of the territory of violence. It implies in feeding the violence from the inertia and from the importance that the space has in the social process. Therefore, the possibility of this “territoriality” in the construction of the urban space would always exist, within the logic of the current social processes. On one hand, the extreme treasured urban space, on the other hand, the exclusion of the population social layers and their activities. This unlawful space becomes the perfect place for illegality, it becomes illegality’ s headquarters and the poor population is its reserved army. Thus, the space feeds the perverse face of the exculpatory social process of the urban violence. The assignment deals with the production of the territory of violence within the Federal District, Brasilia. KEY WORDS: urban violence – territory of violence - excluding urbanization - violence within the Federal District, Brasilia. I- Introdução Violência sempre existiu em todas as sociedades e em todos os tempos como forma de resolver conflitos entre pessoas, na família, na comunidade e entre os países. Atualmente, no entanto, convive-se com as formas tradicionais de violência e as novas, para as quais ainda há uma certa perplexidade. Tradicionalmente a violência abrange as ações de natureza criminal como roubos, delinqüência e homicídios. Atualmente, àquelas vêm se somar os atos que ferem os direitos humanos, como os de natureza sexual, maus-tratos, discriminação de gênero e de raça, englobando não apenas a agressão física, mas também situações de humilhação, exclusão, ameaças, desrespeito (Waiselfisz, 2000). Tema de grande GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 18, pp. 155 - 168, 2005

TERRITÓRIO DA VIOLÊNCIA: UM OLHAR · PDF fileÉ a nova faceta da criminalidade ligada ao crime ... assim, apresentar a contribuição da Geografia ao problema. Entende-se por território:

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TERRITÓRIO DA VIOLÊNCIA: UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE AVIOLÊNCIA URBANA

Ignez Costa Barbosa Ferreira*Nelba Azevedo Penna**

*Professora Pesquisadora Associada – Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – Universidade de Brasília. E-mail: igcosta@terra,com.br** Professora Doutora do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. E-mail:[email protected]

RESUMO:O trabalho aborda a violência de um ponto de vista geográfico, isto é, espacial. Mas não é a espacializaçãodo fenômeno da violência, o local onde ela ocorre. É a territorialização, a formação do território daviolência, o que implica em realimentar a violência pela via da inércia espacial e pelo papel do espaço noprocesso social. Assim, existiria sempre a possibilidade dessa territorialização na formação do espaçourbano, dentro da lógica dos processos sociais atuais. De um lado, a extrema valorização do espaçourbano. De outro a exclusão social de camadas da população e de atividades a ela ligadas. Esse espaçosem lei torna-se o reduto da ilegalidade, passa a ser o quartel general da ilegalidade e tem na populaçãopobre o seu exército de reserva. Assim, o espaço vai realimentar a face perversa do processo socialexcludente da violência urbana. O trabalho trata da produção do território da violência no DistritoFederal.PALAVRAS-CHAVE:Violência urbana – território da violência – urbanização excludente – violência no Distrito Federal

ABSTRACT:This assignment deals with the violence from a geographical point of view, that is, space. However, it isnot the spacing of the phenomenon of the violence; it is the place where it occurs. It is the “territoriality”,the construction of the territory of violence. It implies in feeding the violence from the inertia and fromthe importance that the space has in the social process. Therefore, the possibility of this “territoriality”in the construction of the urban space would always exist, within the logic of the current social processes.On one hand, the extreme treasured urban space, on the other hand, the exclusion of the populationsocial layers and their activities. This unlawful space becomes the perfect place for illegality, it becomesillegality’s headquarters and the poor population is its reserved army. Thus, the space feeds the perverseface of the exculpatory social process of the urban violence. The assignment deals with the productionof the territory of violence within the Federal District, Brasilia.KEY WORDS:urban violence – territory of violence - excluding urbanization - violence within the Federal District,Brasilia.

I- IntroduçãoViolência sempre existiu em todas as

sociedades e em todos os tempos como formade resolver conflitos entre pessoas, na família,na comunidade e entre os países. Atualmente,no entanto, convive-se com as formastradicionais de violência e as novas, para asquais ainda há uma certa perplexidade.

Tradicionalmente a violência abrange as açõesde natureza criminal como roubos, delinqüênciae homicídios. Atualmente, àquelas vêm se somaros atos que ferem os direitos humanos, comoos de natureza sexual, maus-tratos,discriminação de gênero e de raça, englobandonão apenas a agressão física, mas tambémsituações de humilhação, exclusão, ameaças,desrespeito (Waiselfisz, 2000). Tema de grande

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complexidade e inúmeras facetas, a violênciaurbana abrange uma multiplicidade de fatores.Há muito extrapolou o ambiente policial e secoloca para a sociedade o desafio de decifraros seus códigos.

A importância da violência em nossascidades não se resume a uma questãoquantitativa pelo número de pessoas atingidas- é a abrangência e a complexidade dofenômeno, na atualidade, o que mais preocupa.É a nova faceta da criminalidade ligada ao crimeorganizado que gera insegurança nos cidadãos,interfere no território e se torna um poderparalelo ao do Estado.

A busca de soluções para um dosproblemas que mais aflige os citadinos e absorveas atenções dos políticos e administradores dascidades demanda um esforço de entendimento,que aponte rumos para uma prática eficientede combate e/ou de prevenção. Faz-senecessário atentar para os diferentes aspectosda complexidade da violência de nossos dias,confrontando as diversas abordagens eassimilando novos olhares que complementemos já existentes. É nesse sentido que se colocaa presente contribuição à discussão daproblemática, mostrando como a violência,tratada sob diferentes enfoques, seterritorializa e o papel do espaço urbano noprocesso de produção e reprodução dessefenômeno.

O trabalho enfoca a violência de umponto de vista geográfico, isto é: aterritorialização; a formação do território daviolência, reduto de poder do crime organizadoque daí comanda sua atuação na cidade, seuexército formado pela população excluída quese liga à rede da droga e da contravenção.

Considera-se, no presente estudo, aviolência em todas as suas manifestações etoma-se como dado o homicídio. Embora nemsempre a violência cotidiana termine em morte,a morte revela a violência levada ao extremo.Os homicídios são a parte visível de umarealidade complexa. Por outro lado, o dado demortalidade por homicídio, a partir do óbito

registrado pelo SIM1 é mais fácil de se obter epassível de comparação.

Inicialmente o trabalho procura justificaras implicações do espaço nos processos sociaise como o processo de criação do espaço urbano,concentrador de renda e socialmenteexcludente, cria áreas vulneráveis àcriminalidade. Busca-se mostrar como se formao território da violência dentro do espaçourbano de um modo geral, e como o mesmocontribuiria para realimentar a violência e aexclusão.

II- A visão geográfica da violência

A tradição da produção geográfica noassunto se restringe à preocupação com aespacialização do fenômeno, isto é, localizar asocorrências criminosas no espaço urbano ecorrelacioná-las às condições do local ondeacontecem. Muitas vezes essas condições, quefavorecem a ocorrência, são confundidas com aprópria causa das mesmas. A espacialidade éuma categoria geográfica usada por todos osramos do conhecimento como uma primeiraapreensão do fenômeno na busca de suaexplicação pelas diferentes especialidades. Aespacialização das ocorrências permite aosórgãos de segurança pública vigiar e punircrimes, mas não é suficiente para combater aonda de violência que assola nossas cidadesporque não chega às suas raízes. Aqui sepretende uma outra categoria de análise que éa territorialização da violência no espaçourbano: a produção do espaço da violência: oterritório da violência.

Pretende-se, com isso, contribuir paraacrescentar algo mais ao conhecimento do temae, assim, apresentar a contribuição da Geografiaao problema.

Entende-se por território: “(...) o espaçoconcreto em si (com seus atributos naturais esocialmente construídos) que é apropriado,ocupado por um grupo social. A ocupação doterritório é vista como algo gerador de raízes eidentidade. Um grupo não pode mais ser

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compreend ido sem o seu te r r i tó r io , nosentido de que a identidade sócio-culturaldas pessoas estaria inarredavelmente ligadaaos atributos do espaço concreto (natureza,pat r imôn io arqu i te tôn i co , pa i sagem)”(SOUZA, 1995:84).

Os diferentes territórios da cidadenão se def inem apenas como uma basesobre a qua l se formam as ident idadesurbanas, mas operam de forma dinâmicapara a const i tu ição dessas ident idades,se jam e las a pobreza , a r iqueza ou aviolência. Essa abordagem da realidade tempor base a noção de “produção do espaçourbano”, na qual o espaço da cidade não éapenas um e lemento t rans i tó r io dasoc iedade, um receptáculo das re laçõessociais, ou mesmo, um pano de fundo dasmesmas. Sob esse ponto de vista, as formasespaciais criadas pelos homens – como asc idades , ba i r ros , guetos , á reas depreservação ambienta l , parques –expressam as relações sociais vigentes deacordo com a época em que fo ramproduzidas.

As cidades, transformadas em objetosde consumo, ag regam conteúdos sociais àsformas construídas que se art iculamfortemente para criar territórios urbanos.Assim, os espaços passam a ser diferenciadospor suas “formas-conteúdos”, e não apenaspor condições variáveis da natureza e dasociedade. As sociedades ao produzirem seuespaço valorizam ou desvalorizam certasporções do território que vão ser apropriadaspor diferentes atores sociais. A configuraçãoterritorial possui “uma existência materialprópria, mas a sua existência social, isto é,sua existência real, somente lhe é dada pelasrelações sociais” e esse conjunto de relaçõesexpressa uma “conf iguração geográf ica”.(SANTOS, 1996:51).

Tradicionalmente, a violência costumaser relacionada à pobreza, à exclusão social,à omissão do Estado, ausência de serviçospúblicos urbanos e ao próprio processo de

urbanização que cria os enclaves de pobrezae as periferias. A complexidade e o crescimentoda vio lência nas c idades tem levado aconsiderá-la como o resultado da junção detodos esses aspectos, facetas do processosocial. É no território que esses diferentesaspectos do processo social se articulam, seinterpenetram, se completam e secontradizem. Admite-se então que a violênciatambém se territorialize.

Os espaços formam pontos de “fixação”da história de sua produção. Assim, o espaçoentendido como um sistema de objetos e umsistema de ações, articulados, seria umaprodução histórica. Segundo Santos, “oselementos f ixos, f ixados em cada lugar,permitem ações que modificam o próprio lugar,fluxos novos ou renovados, que recriam ascondições ambientais e as condições sociais,e redefinem cada lugar” (SANTOS, 1996:50)Ao se territorializar, a violência fixa no espaçoaquelas condições inerentes aos processosque lhe deram origem e, assim, os realimenta.As sociedades, como produto de mudançaspol í t icas e econômicas, tornam-se maismaleáveis às transformações de ordem globaldo que os territórios construídos e suas infra-estruturas. Estes não são tão faci lmentereestruturados, modificados e moldáveis coma mesma rapidez dos processos sociais: sãomais permanentes pela própria inércia. E poressa inércia, interferem nos processos sociaisreal imentando aque les que lhes deramorigem.

A visão territorial tem sido esquecidanos es tudos da v io lênc ia urbana e nasmedidas de combate, que atuam igualmenteem todos os lugares ignorando suasespecificidades e as territorialidades criadaspela violência. É no território que a pobreza,a exclusão social, a omissão do estado, aviolência e as carências tornam-se maisv is íve is , mais presentes e escapam dasmáscaras que as médias e as abordagenssetoriais lhes imprimem e minimizam.

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III- A Produção do espaço da violência:Território da Violência

O espaço urbano é produzido pelosagentes sociais de forma excludente, desiguale injusta, coerente com a lógica capitalista quecomanda o desenvolvimento das nossascidades. As cidades são “produto, meio econdição” (Carlos, 1994: 84) das lutas e conflitossociais e espaciais que se formam ao longo dahistória. Assim, no espaço urbano estão, de umlado, os espaços elitizados das classesdominantes; de outro, os espaços periféricosdas classes populares e as hiperperiferias dosexcluídos. Entre eles forma-se no tecido urbanoo espaço da classe média. Esse processo originaum tecido urbano fragmentado, segmentado econtraditório, porém, extremamente articulado.

Os espaços elitizados das classesdominantes caracterizam-se pelo consumo debens e de infra-estruturas com alto padrão dequalidade e de técnica, financiados pelosgovernos. Nos espaços periféricos predomina acultura da pobreza e sua dinâmica para reduziros efeitos devastadores do desemprego(principalmente por intermédio do comércioinformal) e das necessidades habitacionaisimediatas. Sem opção no mercado imobiliário,com pouco ou nenhum financiamento público ouprivado, predomina a informalidade e aautoconstrução, que não atende às exigênciasmínimas de uma habitação normal. Podemosdizer que são os espaços-conteúdos da culturada subsistência.

Com isso, criam-se, dentro do tecidourbano, espaços desvalorizados, onde aausência do Estado e das instituições públicasfaz com que sejam abandonados pela lei e ondeo contrato social é rompido. São esses locaisque abrigam a população excluída socialmentee espacialmente periferizada, redutos de todasas formas de violência, desde a discriminação,ao inacesso, aos direitos do cidadão e à própriacidadania.

A urbanização sem urbanidade, semjustiça social, coloca a distância social entre osindivíduos a uma pequena distância territorial.

A proximidade física no território confronta asdiferenças sociais em termos de direitos doindivíduo à sobrevivência, à saúde, ao trabalhoà vida, etc. O enclausuramento do pobre,espacialmente próximo das condições da vidamoderna urbana e socialmente tão longe dela,fruto do inacesso, ou da periferização, que otorna duplamente distante, dificulta a mobilidadesocial. Cria-se uma barreira espacial quereproduz a pobreza, como um fator a mais. Apobreza segregada fica mais pobre, tornandomais difícil a mobilidade social e com isso maisvulnerável às ações criminosas.

Espaços de exclusão da lei e da ordemsocial, abrigo da população segregada, redutoda violência em seus diferentes aspectos, sãoapropriados pelas organizações criminosas e/ou ilegais que os faz seus espaços de poder. Àviolência estrutural desses territórios vem-searticular a violência organizada do crime naatualidade. Cria-se, assim, o território daviolência, porções do espaço urbano apropriadaspelas organizações criminosas que exercem seupoder sobre eles transformando-os em redutosde poder do crime organizado que daí comandasua atuação na cidade, enfrenta o estado emanobra o seu exército formado pela populaçãoexcluída que habita esses locais.

A autoridade pública, ao se omitir dasobrigações elementares em decorrência docolapso do Estado no contexto internacional,”entrega as ruas e as favelas ao império daviolência e da lei do mais forte” (Abranches,1994:128). As comunidades faveladas e maispobres são facilmente dominadas pelos gruposcriminosos que nelas se instalam ”porque elassão mais vulneráveis e não têm qualquercapacidade de resistência. Não conseguemsegurança pública suficiente para torná-lasinfensas à ação do banditismo” (Abranches,1994:128), que explora as carências sociais emateriais da comunidade a seu favor,fundamentalmente pela ação armada.

Esses espaços tornados territórios daviolência são parte ativa no desenvolvimentodo poder constituído pelo crime organizado e

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pela violência a ele atrelada. E, dessa forma,realimentam os processos sociais responsáveispela violência urbana.

O pobre é extremamente violentado coma vida nas favelas e periferias. A desigualdadesocial é a raiz disso. São esses locaisabandonados pela lei e à margem dos requisitosda urbanização moderna que abrigam apopulação excluída socialmente e espacialmenteperiferizada. Essa população adere ao crimeorganizado como resposta radical à violênciaque lhe foi imposta pelo sistema legal, e cai emoutra: a ilegal.

Assim, nas cidades definidas como o lugaressencial da pobreza, das desigualdades sociaiscrônicas e da anomia, a violência é um dos seusaspectos mais visíveis. Juntos esses elementoscompõem as manifestações das formas sociaisproduzidas nos últimos anos, e que emergemcomo a dinâmica mais contundente da relaçãosociedade-espaço.

A territorialização da violência implica emrealimentar a violência pela via da inérciaespacial e pelo papel do espaço no processosocial. Como já disse o geógrafo francês YvesLa Coste, “o espaço não é neutro neminocente”. Não é neutro porque interfere noprocesso social e não é inocente por serestratégico. Assim, a persistir a mesma lógicados processos sociais atuais, existiria semprea possibil idade dessa territorialização naformação do espaço urbano propiciando amanutenção da violência. Não basta, então,retirar uma favela de um local, desmontar umterritório, porque a mesma forma espacial vaiaparecer em outro lugar, desde que osprocessos que lhe deram origem persistam.

IV- O processo de urbanização e a produçãodo espaço da violência: exclusão social,pobreza, periferização, segregação sócio-espacial, hiperperiferia

No conjunto da população brasileira(tabela1), no ano de 1998, a taxa de óbitos porhomicídio, em 100.000 habitantes foi 25,9

enquanto nas capitais dos estados a mesmataxa foi de 45,1 e entre os jovens (faixa etáriade 15 a 24 anos) essa taxa foi de 88,8. Nascapitais dos estados a violência é maisacentuada como causa de mortes,principalmente entre os jovens. Esses dadosexpressam uma tendência da violência no paísser eminentemente urbana e atingirprincipalmente os jovens

Os trabalhos que investigam as váriasabordagens teóricas sobre os determinantes dacriminalidade mostram, em quase todos os tiposde abordagem, a presença das variáveis sócio-espaciais relacionadas ao processo deurbanização (pobreza, desigualdade,concentração de renda, desemprego, entreoutras), bem como taxa de urbanização,adensamento demográfico, presença de vilas,favelas e bairros pobres na periferia dascidades. (Cerqueira e Lobão, 2003). Os autorescitados chamam a atenção para o fato de que,embora possa se verificar determinadasregularidades estatísticas que variam conformea dinâmica regional e criminal, a violência e acr iminal idade são fenômenosmultidimensionais e multifacetados, portantonão podem ser avaliados a partir de umavariável apenas. Explicações unidimensionaisde fenômenos com essa complexidade semostrarão equivocadas.

A literatura brasileira vai buscar apoiopara suas pesquisas teóricas e empíricasprincipalmente na Teoria da DesorganizaçãoSocial (Cerqueira e Lobão, 2003: 5, 17, 23;Abranches, 1994; Zaluar, 1994). Muitosautores encontraram uma correlação positivaentre os fatores espaciais e socia is daurbanização brasi le ira: favelas, pobreza,desemprego, desigualdades, etc. Abranches(1994) procura analisar o macroambientesocia l para encontrar um conjunto decondições que estimulam o crescimento daviolência e da criminalidade associado à tensãourbana e às condições sociais da convivênciametropolitana causadas pela desordem civil eanomia da ordem pública constituída.

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Outro fato de fundamental importânciaobservado por Cerqueira e Lobão (2003), é queexatamente nos períodos em que foi observadauma tendência crescente da taxa de homicídios,houve uma deterioração dos indicadores sociaisnaqueles lugares, com aumento do número depobres e indigentes.

Segundo Abranches (1994), as raízes daviolência urbana possuem uma matrizmultifatorial que abrange duas dimensõesdiferentes - a social e a moral. Essas dimensõesse manifestam no macro e no microambientesocial e espacial. O plano macro é caracterizadopela institucionalidade vigente, pela ordempública constituída, onde se realiza os processosgerais da urbanização brasileira. Omicroambiente é dado pela estrutura daconvivência nas comunidades locais, e se realizaproduzindo e consumindo um determinadoespaço. No microambiente socioespacial searticulam as condições locais favoráveis àapropriação desses espaços pelas quadrilhascriminosas. Tem-se então a formação doterritório da violência

(...)“quando sua institucionalidade, istoé, as regras e normas de convivência definidaspela comunidade, é distorcida, por inúmerasrazões, a ponto de eliminar a barreira moral elegal entre pessoas honestas e bandido; elase torna uma fonte independente de reproduçãodas condições sociais e pessoais para a droga,a violência e o crime” (Abranches, 1994: 130).

As teorias da crescente pobreza dapopulação (sendo a pobreza consideradatambém um fenômeno multidimensional) e darecessão econômica, por si mesmas, não sãosuficientes para explicar causas edeterminantes da escalada da violência e dacriminalidade nas cidades brasileiras. O que éimportante salientar é que, nesse contexto dedesorganização socioespacial do crescimentourbano, existe uma interação de processos(econômicos, sociais, espaciais, institucionais,políticos e culturais) que contém e estãocontidos no cotidiano da vida urbana, quesomente pode se realizar produzindo e

consumindo um espaço. Essa interação deprocessos forma um “constructo” socioespacialque tem um grande impacto no território devidoà concentração numa mesma área urbanadensamente povoada. Nesses territórios, assimconstituídos, grupos criminosos – de menor oumaior organização e armamentos – apropriam-se desse espaço, se instalam, dominam apopulação e o local, e alí se fortalecem paradesenvolver suas ações. A criminalidade seimpõe porque esses grupos criminosossubmetem a comunidade a toda espécie de usose abusos, aterrorizando a população,principalmente os jovens. Nesse contexto nãopodemos esquecer, ainda, a ação de grupos depoliciais corruptos, envolvidos na extorsão doslucros obtidos com a atividade criminosa (tráficode drogas, seqüestros, assaltos, receptação deobjetos roubados, etc conforme amplamentedivulgado pela imprensa).

Portanto, é o conjunto de carênciassociais (e morais) que criam, nas cidades,territórios propícios ao surgimento de “padrõesinconformistas de comportamento, demanifestações violentas de insatisfação e detransgressões criminosas” (Abranches,1994:134) que estão indissoluvelmentearticulados às carências materiais daurbanização excludente.

Um estudo crítico da criminalidade e daviolência não pode se ater à análise de variáveis,investigando causas e conseqüências, semquestionar a que novos fatos levaria o quadroatual da violência urbana, ou que novosprocessos teriam origem na deterioraçãocrescente das condições de existência social ematerial das populações urbanas.

Em seus estudos sobre a urbanizaçãobrasileira, Milton Santos (1993) chama a atençãopara o caráter excludente da nossa urbanizaçãoque produziu a cidade, especialmente a grandecidade, como pólo de pobreza.

“A cidade em si, como relação social ecomo materialidade, torna-se criadora depobreza, tanto pelo modelo socioeconômico deque é o suporte como por sua estrutura física,

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que faz dos habitantes das periferias (e doscortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobrezanão é apenas o fato do modelo socioeconômicovigente, mas, também, do modelo espacial”(Santos,1993: 10).

O entendimento dos problemas urbanos,com tantas necessidades recorrentes e outrasemergentes, leva a que uma solução para osmesmos deva ser buscada na interpretaçãoabrangente da realidade, ou seja: uma profundaanálise dos processos formadores daurbanização, em seus diversos contextoshistóricos, políticos e culturais. Esseentendimento mais amplo deve incluir a análisedas diversas modalidades do uso do territóriopara identificar as especificidades do fenômenoda violência e, a partir daí, mensurar suaproblemática.

A violência urbana, entendida como umprocesso amplo, que vai além da criminalidade,“surge e se avoluma à medida que as cidadescrescem e se tornam mais complexas, maisdominadas pela multidão e pela anomia”(Abranches, 1994:125). A urbanizaçãoexcludente cria um crescimento anárquico quepermite a produção de espaços onde impera “omandonismo característico das quadrilhas quetiranizam as periferias urbanas e as favelas,exercido fundamentalmente pela violênciaarmada e pela intimidação física, sem qualquerresquício de legitimidade – é intrinsecamentecriminoso” (Abranches, 1994:127).

A ordem espacial assim resultante é ada urbanização perversa, da cidade excludente,na qual essa ordem espacial está sendopermanentemente recriada, no sentido de suaprópria reprodução, realimentando a violênciae a criminalidade, pela territorialização dasmesmas. O território da cidade se produz,produzindo e reproduzindo as formas deviolência urbana e criminalidade comandadaspelo conjunto de fatores que se materializam ese realizam nas cidades. Assim, a luta pelo usodo espaço da cidade coloca a questão dacriminalidade e da violência como um problemacoletivo, uma situação que, no mínimo, precisaser regulada e controlada. Por isso começa a

ser pensada como forma de obter uma respostaintegrada, na qual se articulam os diversossegmentos sociais, públicos e privados.

A crise do Estado, representada peloenfraquecimento da autoridade pública, tem umimpacto decisivo sobre o padrão dedesenvolvimento da urbanização, seja pelaomissão e colapso dos serviços públicos deinfra-estrutura e de segurança, seja pelacorrupção e deformação que degrada a funçãopública.

Todos esses fatores apontadoscontribuem para deteriorar as condiçõesmateriais e sociais de vida nas cidades,negando a grande parte da população o acessodigno às condições espaciais urbanasrelacionadas à habitação, saneamento,transporte, emprego, infra-estruturas entreoutros serviços. O crescimento das carênciasmateriais urbanas, cada vez mais, torna ascidades pólos de pobreza, e é um dos fatoresde agravamento da crise urbana, pois, aindaassim, as cidades possuem capacidade de atraire manter um grande fluxo de pessoas. Entre1986 e 1993, quando houve grandedeterioração das condições sociais no Rio deJaneiro, o número de pobres cresceu cerca deum milhão de pessoas (Cerqueira e Lobão,2003). Esse dado leva os autores a supor que“ainda que não se observasse maiordeterioração das condições de desigualdade darenda, a sociedade poderia assistir, ainda assim,a um espiral no crescimento dos homicídios,influenciado, entre outras coisas, pelocrescimento populacional”. A diminuição dadesigualdade sócio-econômica possui um forteimpacto negativo sobre o número de homicídios,o que não significa que se tome o pobre (ou apobreza em si) como o agente da violência.

Outro fator que tem contribuído para oagravamento da crise socioespacial urbana é opouco alcance dos programas sociais dosgovernos federal, estaduais e municipais paraapoiar as populações desfavorecidas e paraimplementar melhorias dos serviços públicos desegurança e de infra-estrutura urbana.

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Durante as décadas de 1960 e 1970,quando ocorreu a explosão demográfica eaceleração da urbanização, com a imigraçãocampo-cidade, não havia nas cidades nem infra-estrutura, nem habitação, nem emprego. Asmassas foram jogadas nas cidades comabsoluta ausência de políticas efetivas deproteção à população e organização urbana.

Esse processo de aprofundamento daurbanização excludente ocorreu ainda com aqueda contínua do valor dos salários, dadeterioração da renda, com a diminuição daqualidade dos serviços de educação e saúde.

No âmbito econômico, principalmente apartir dos anos de 1980, é crescente adificuldade do país em “recuperar-se das crisesfinanceiras, quando o domínio da tecnologia eda informação torna-se mais decisivo para ocrescimento e a participação no mercado mundialdo que a construção de indústrias e infra-estruturas”. As grandes indústrias investem nareengenharia das empresas: geram ganhosencolhendo, fazendo cortes nos ítens dedespesas, aumentando a taxa de lucratividade,mas empregando cada vez menos pessoal.

Os resultados desse “desenvolvimento”são desapontadores e se refletem nasgalopantes estatísticas da criminalidade e daviolência, na longa estagnação econômica, e setraduzem na falta de perspectivas de progressopessoal e ascensão social, principalmente paraos jovens brasileiros – hoje representam o“gargalo” da sociedade que seremos no futuro.Vivemos hoje o agravamento do quadro socialexcludente, apoiado no corte do orçamentosocial e diminuição dos investimentos públicos.“Nas cidades estão sendo construídas situaçõesexplosivas de potencial imprevisível, pois esseprocesso é acompanhado da ampliação dainformação sobre os direitos da cidadania,aumentando as aspirações e as metas de vidada população urbana” (Zaluar, 1994).

Estes fatos não permitem que se instaleum processo de melhoria nas condições sociaise materiais da vida urbana nas cidades,aprofundando um ciclo que se repete de forma

constante. Isso nos leva a questionar oenfrentamento da questão da criminalidade eda violência sem uma articulação direta com aspolíticas urbana, territorial e regional.

Estamos diante de novas formas e novosconteúdos da violência e da criminalidademodernas, nos quais devemos buscar hipótesesalternativas, ainda que mais compreensivas,para entender e tentar explicar o que estáocorrendo no espaço urbano atual. No cenárioda violência urbana surge um novo ator: o crimeorganizado.

V- O crime organizado e o espaço urbano

Nas últimas décadas, os homicídios noBrasil aumentaram 223% e são a segunda causade mortalidade na população em geral, depoisdas doenças cardiovasculares, segundo aFUNASA.

A partir de 1980 passa-se a incorporar,no Brasil a utilização acentuada da cocaína, porser mais lucrativa que a maconha (tida comodroga leve), acarretando um aumento nacriminalidade, com o uso de armas maispoderosas e defesa de maior lucro.

Neste texto considera-se como crimeorganizado o tráfico de drogas e de armas,contrabando e formação de quadrilhas. Noquadro da violência urbana da atualidade,homicídios, seqüestros, atentados, assaltos eroubos estão principalmente ligados a esse tipode crime. No Rio de Janeiro admite-se que ocrime organizado seja responsável, direta eindiretamente, por 99% dos homicídios.

Trata-se da violência organizada, umnovo processo que atua no espaço urbano comoum dos agentes da urbanização, valendo-se dainformalidade e da ilegalidade da ocupação, daespeculação do mercado imobiliário, da ausênciado poder público, da impunidade e davulnerabilidade da população pobre. O crimeorganizado tem como características: ailegalidade, a formação de redes, amovimentação de grandes somas de dinheiro,

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a corrupção de policiais e políticos e a cooptaçãode pessoas. É o “crime negócio” como colocaAlba Zaluar (1999:67), que considera como umnovo tipo de crime relacionado ao contrabandode armas e de drogas, redes de escambo entremercadorias roubadas e o tráfico de drogas e,baseado na lógica da acumulação capitalista,recrutando jovens pobres para trabalhar nessenegócio (Zaluar, 1999:66). A criminalidade passaa fazer parte de um negócio altamente lucrativoque é o tráfico de drogas, mundialmenteimportante em termos financeiros, pelas grandessomas de dinheiro que envolve. Segundo amesma autora “(...) o crime organizado nãopode mais ser desconsiderado como uma forçaimportante, ao lado dos Estados nacionais,partidos políticos, igrejas, empresasmultinacionais etc” (1999:69).

O crime organizado atua em setoresricos e pobres da sociedade, participando delicitações públicas e investindo nos setores detransportes e construção civil, onde age paraarrecadar fundos para patrocinar suas ações,especialmente a de compra da droga e as dearmas e de sustentar seus exércitos, e, tambémpara investir seus lucros escusos - lavagem dedinheiro. Isso envolve pessoas influentes epolíticos. Do outro lado da cadeia organizadaestão os pobres como mão-de-obra. Dentre osatores envolvidos nessa organizaçãoencontram-se: os clientes da droga (o mercadoconsumidor formado pelos estratos médios ealtos da sociedade, e também por pobres que,para custear o vício aderem ao crime); osconiventes (políticos e pessoas corruptas) queintermediam o tráfico e dão apoio às ações); osmandantes ; a polícia corrupta ; ostrabalhadores (mão-de-obra, geralmenteformada pelos pobres das favelas e periferiasurbanas que distribui a droga e faz a segurançados pontos de venda).

A estratégia do crime organizado estána organização espacial hierarquizada capaz deburlar a lei e a ordem, inclusive com o uso dearmas. Articula no espaço os pontos deprodução da droga, os locais de venda no varejo,o transporte e pontos de transbordo e

armazenagem, formando redes que extrapolamo local, o regional e se globalizam (Souza, 1996).

O caráter de il icitude supõe aclandestinidade, a localização em pontosestratégicos do território onde possa seesconder, de preferência na informalidade doslugares onde a omissão do Estado os tornaterritórios l ivres para o domínio dessasorganizações. Na cidade formal, se encobre pelopoder financeiro e político, pela anomia da cidadee se protege com a impunidade.

Pode-se dizer que estamos diante de umnovo poder dentro da cidade que enfrenta opoder público, não respeita o poder privado esubmete a população.

Por suas próprias características, o crimeorganizado elege a cidade e, principalmente acidade grande como seu locus, porque aí seapresentam as condições propícias para essetipo de atividade se instalar: mercadoconsumidor, canais de comunicação, aeroportos,anonimato das multidões que esconde acorrupção e dificulta a visualização dos culpados,a anomia, a impunidade, e a mão-de-obraconstituída pela população pobredesempregada e desamparada pelo poderpúblico. Quanto mais a cidade cresce, mais setorna o locus desse tipo de ação organizada, e,quanto mais ela envolve pessoas, mais crimesocorrem: queima de arquivo, combate entre asorganizações pelo domínio do mercado, alémdas vítimas inocentes das balas perdidas e dosseqüestros. Quanto mais cresce o crimeorganizado mais o poder público fica fragilizadoe passa a ter menos condições de combatê-lo.O choque entre o poder público e o crimeorganizado gera mais violência.

No bojo do processo de urbanizaçãoexcludente, que tem por base as desigualdadessociais e econômicas, criam-se os territórios dasegregação e da pobreza, onde a violência semanifesta em todos os seus aspectos: omissãodo estado, quebra do contrato social, inacessoá saúde, à cidadania, à instrução, à formaçãoprofissional, ao mercado de trabalho, àsegurança e às infra-estruturas urbanas. As

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periferias pobres oferecem, então, o locusprivilegiado para o estabelecimento do territóriodo crime organizado: a ilegalidade, a ausênciade segurança pública, a ausência dasinstituições de controle público. O crimeorganizado se apropria desses locais e ostorna seus terr i tór ios, onde se f ixa aorganização da criminalidade, que daí articulaas ações no espaço urbano. Esses pontos doespaço não são contínuos, nem contíguos, masarticulados - são os territórios da violência.Segundo Souza (1996), no Rio de Janeiro asorganizações (Comando Vermelho, TerceiroComando) disputam o mercado do varejo econst i tuem sua própr ia rede. Cada redearticula territórios “vinculados a uma mesmaorganização, costurados por uma mesmarelação de poder”. As favelas são os nós darede. São os fixos que articulam os fluxos.

Entre esses pontos, outros territóriosse formam, como os bairros legais, etc. “Aterr i tor ia l ização das favelas pelo cr imeorganizado é assim, um fator de fragmentaçãosócio-pol í t ica-espacial do tecido urbano”(Souza, 1996:449).

Ao se tornarem territórios do crimeorganizado, a violência aumenta nesses locais.Em contrapart ida a mobi l idade social dapopulação fica bloqueada, coptada pela ordemcriminosa. Um verdadeiro desenvolvimentosócio-espacia l na escala das favelas ébloqueado pela “asf ix ia de organizaçõescomunitárias, tolhimento da liberdade dosmoradores” (Souza, 1996:426), Assim, o crimeorganizado age no sentido de acentuar aexclusão social e impedir o desenvolvimentodesses enclaves do espaço urbano. Acriminalidade se favorece da pobreza que setorna funcional para o crime, e este contribuipara aumentá-la, inclusive gerando novasexclusões pela via da inclusão de jovenspobres no vício e na criminalidade, na coptaçãodas comunidades carentes e no descréditonas instituições da sociedade organizada.

Por outro lado, agindo no desvio dodinheiro público, via corrupção, contribui para

diminuir os recursos para invest imentospúblicos no setor social e, por conseguinte,no combate à pobreza. As cifras da corrupçãoe do desvio das verbas públ icas,freqüentemente mostradas pela mídia, tornamfacilmente perceptível a forma de resolução deboa parte das carências das populaçõespobresno que se refere à saúde, educação,habitação e segurança.

VI- Os fixos e os fluxos do crime organizado

Para Souza (1996:422), o cr imeorganizado tem várias escalas: a da favela ea das redes internacionais do tráfico de drogase de armas, com diferentes atuações econexões. Na escala nacional o cr imeorganizado atua na corrupção e no desvio deverbas públicas. O Crime organizado se articulacom a corrupção econômica e política quepassa pela polícia. Exagera-se o poder dealcance da organização dos traficantes dasfavelas, que operam no varejo, noabastecimento do mercado local. Os grandestraf icantes operam com a importação,exportação e no atacado, bem como seussócios e os por eles corrompidos e cooptados(Souza, 1996:430). O dinheiro gerado pelonegócio da droga, os “narcodólares”, temimportância no sistema financeiro mundial oque justifica a dificuldade dos estados emcoibir a lavagem desse dinheiro em seusterritórios e até mesmo as atividades dasorganizações.

O crime em rede extrapola a esferalocal, “atravessa fronteiras de classes sociais,de idades, de gênero e de nações” comimplicações globais e passa a ter influência naorganização espacial da cidade e não serapenas o resultado desta (Souza, 1997).

Os territórios da violência como “fixos”alimentam dois tipos de fluxos articuladosentre si e inerentes ao crime organizado.

No pr imeiro caso, trata-se daarticulação com a corrupção que envolve opoder e o dinheiro e alimenta fluxos nacionais

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e internacionais. A manutenção desse“negócio” gera violência e criminalidade. Nosegundo caso, esses fixos articulam fluxos demiséria e exclusão. É a população excluída eperiferizada que é atingida e se torna maisvulnerável. Com isso mais difícil se torna a suamobilidade social. São alimentadores das novasexclusões e de mais pobreza por conta dasmesmas. Os jovens viciados se afastam dasfamílias, das escolas, do emprego e mergulhamna miséria ou entram no crime para pagar adroga e se expõem à violência do crimeorganizado, como vítima ou como mão-de-obra.

VII- Pobreza e criminalidade

Comumentemente é feita a associaçãoentre pobreza e criminalidade, como uma relaçãode causa e efeito, atribuindo-se o aumento dacriminalidade ao aumento da pobreza. Muitaspesquisas apontam a falácia dessa correlação,como Cerqueira e Lobão (2003). Os achados eas cons ta tações de ta i s pesqu i sasdesmist i f i cam a causa l idade: pobreza –criminalidade, mas não chegam ao âmago daquestão.

Trata-se de um processo no qual aurbanização, por seu caráter excludente,segrega espac ia lmente os pobres:segregação sócioespacial com periferização.Formam-se, assim, os enclaves de mão deobra submissa - prato cheio para o crimeorganizado. O tráfico de drogas e outrasatividades criminosas tornam-se a únicaa l te rnat iva de ganhar a v ida para apopu lação pobre , desempregada e semexpectativas; “a pobreza é funcional para otráfico de drogas, o qual devora a juventudedas favelas como mão-de-obra barata edescartável” (Souza, 1996:439).

Além do tradicional papel do Estadona urbanização excludente, está havendouma maior desobr igação do mesmo comrelação à pobreza urbana, ou seja: ”adiminuição da pequena presença “social” daordem capitalista formal”, daí o “vácuo de

poder e legitimidade, estimulador da ordemilegal que é o crime organizado” (Souza,1996: 445).

Por outro lado, o mesmo processo quecr ia a pobreza , c r ia a r iqueza , aconcentração de renda e de poder e osmeios de circulação e as infra-estruturas empontos se let ivos da c idade, acentuandoass im as des igua ldades espac ia i s . Aospobres só resta , então, as per i fer ias ehiperperiferias.

O crime organizado tem como base acorrupção, o uso do poder, e age na evasãode recursos do Es tado , provocando oesvaziamento dos recursos públicos para ocombate à pobreza. E, por conseguinte,acentua a exclusão. Por outro lado, contribuipara a acumulação pela via da lavagem dedinheiro. E quanto mais aumenta o poder docrime, mais criminalidade e mais pobreza..O tráfico de drogas gera a violência parade fender seu negóc io , no vare jo e noatacado. Arma seus exércitos. Mata-se peladisputa de pontos de venda no varejo. Acorrupção se amplia para permitir o negócioe a cooptação torna-se maior. O crimeorganizado atua também na cidade legal, viacorrupção e tráfico de influência, onde seoculta atrás do poder.

Com isso o poder públ ico seenfraquece, com menos recursos para osinvestimentos sociais, e, daí mais pobreza emais vulnerabilidade.

A vio lência organizada cr ia seusterritórios onde traz cativas pessoas excluídasda cidadania. A população invisível socialmentepor não ter trabalho, nem documentos, nãoser contribuinte, que não tem acesso à justiça,aos direitos do cidadão, torna-se escrava docrime. Ganham poder, prestígio, dinheiro eproteção dentro da rede, mas são eliminadosfisicamente desde que constituam ameaça àorganização. Por outro lado, o domínio que ocrime organizado exerce em seus redutosimpede a mobil idade social das pessoas,asfixia a organização da comunidade e crianovas exclusões.

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A violência no Brasil apresenta-seextremamente concentrada nas grandescapitais do Sudeste, e particularmente ligadaao crime organizado. Isso justifica que apreocupação nacional em termos de violênciafique então focada no Rio de Janeiro e São Paulo.Estudos sobre os homicídios no Rio de Janeiroe em São Paulo, comparados com o total noBrasil, (Cerqueira e Lobão, 2003): Rio de Janeiroe São Paulo obtiveram, juntos, uma taxa de230%. Esses dois estados (onde se localizamas duas maiores cidades brasileiras: Rio deJaneiro e São Paulo, respectivamente)respondem por quase metade do total dehomicídios no Brasil. Outro dado importanteapresentado pelos autores é o crescimento doshomicídios entre jovens de 10 a 29 anos, amaioria homens sem instrução ou com o 1º grau(atual ensino fundamental), e a participação daarma de fogo como instrumento do homicídio2 .

Brasília como ponto de articulação docrime organizado supõe dois tipos de “fixos” em

seu território: um difuso, representado peloespaço formal e elitizado da venda no varejo,junto à clientela; o outro, os espaços periféricos,potenciais de territórios da violência, onde ovarejo se volta para a população pobre atingidapelo vício da droga barata.

No primeiro caso, trata-se da articulaçãocom a corrupção que envolve o poder e odinheiro e alimenta fluxos nacionais einternacionais. A manutenção desse “negócio”gera violência e criminalidade. No segundo caso,é a população excluída e periferizada que éatingida e se torna mais vulnerável. Com issomais difícil se torna a sua mobilidade social.Esses fixos articulam fluxos de miséria eexclusão. São alimentadores das novasexclusões e de mais pobreza por conta dasmesmas. Os jovens viciados se afastam dasfamílias, das escolas, do emprego e mergulhamna miséria ou entram no crime para pagar adroga e se expõem à violência do crime

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organizado, como vítima ou como mão-de-obra. Os dois tipos de territórios, apontadosanteriormente são articulados pelos fluxosque são inerentes ao cr ime organizado.Ambos fazem parte do espaço da violênciadentro e fora do DF.

VIII- Conclusão

O olhar geográfico sobre a violênciapermite mostrar uma outra dimensão dacriminali dade, que é a da territorialização damesma: a formação dos territtórios da violênciae como a violência se realimenta pela inérciaespacial. Ao se admitir o papel do espaço urbanono processo de produção e reprodução daviolência, pode-se considerar o valor estratégicodo mesmo na ação sobre a violência, como maisuma alternativa no combate à criminalidade.

O estudo leva a concluir que hánecessidade de interferir nos espaços jácriados, potenciais territórios da violência, paraque não se tornem redutos do crime, e que aatuação no espaço da cidade via gestão doterritório poderia ser uma estratégia para coibira criminalidade.

Em suma, agir no território pode serestratégico para desmobilizar a organizaçãocriminosa. Essa ação estratégica se daria emdois sentidos:

?evitar a formação das áreas de risco ;

?tornar menos vulneráveis as áreas derisco já existentes.

No primeiro caso, trata-se de agir viagestão do território no sentido de inibir aformação das áreas peri fer izadas,desvalorizadas, abandonadas pela lei, pelasinstituições urbanas, única alternativa demoradia dos pobres e exclu ídos. Issorealimenta a exclusão e a pobreza além deoferecer as condições propíc ias para asorganizações criminosas fazerem delas o seuterritório: território da violência.

No segundo caso, trata-se de atuar nosterritórios de risco já existentes no sentidode torná-los mais resistentes ao domínio dasfacções criminosas, à ampliação da pobreza,da exclusão e da violência, Isso se daria viafortalecimento das potencia l idades dapopulação local, organização das comunidadese construção do desenvolvimento social dosmoradores do lugar.

Como foi colocado anteriormente, agirsobre o território significa criar oportunidadesnovas ou estratégicas para que os processossociais se realizem de forma menos perversa,as mudanças ocorram e os territórios tenhamnovas identidades.

Notas

1 Sistema de Informação de Mortalidade do Ministérioda Saúde - DATASUS

2 73,6% dos homicídio no Brasil no Brasil sãodecorrentes do uso de arma de fogo, enquantonos Estados Unidos esse número é de 43%.Waiselfisz, 2002).

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Trabalho enviado em maio de 2005

Trabalho aceito em setembro de 2005

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