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Terror e Exílio em Diálogues
des Carmélites, de G. Bernanos
Fernanda Maria de Souza e Silva
UFRJ / 1998
4
TERROR E EXÍLIO
em
DALOGUES DES CARMÉLITES, de G. BERNANOS
por
FERNANDA MARIA DE SOUZA E SILVA
Departamento de Letras Neolatinas
Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo.
Co-orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello
Rio de janeiro
1998
5
A meu pai, consciência contra a prepotência do dinheiro, em seus acertos e desacertos, seu amor à vida, sua fé.
A minha mãe, que me ensinou a Ler ...
Para o Nélio, Fernando e Bárbara.
6
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo, pela segura orientação competente e pela amizade segura.
À Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello, que apostou em mim.
Ao Professor Doutor Jacques Leenhardt, pela orientação desprendida, inteligente e amiga.
Aos Professores Doutores Monique Gosselin e Michael Kohlhauer, pelo apoio e comentários enriquecedores,
Aos Professores Doutores Ronaldo Lima Lins, Angela Correa, Maria Thereza Barrocas e Lígia Vassalo, pelas sugestões e encorajamento.
A Maria do Carmo Cardoso da Costa, pela amizade.
Amizade e gratidão
a todos aos amigos que me ajudaram seja indicando artigos ou livros, seja dando sugestões ou fazendo comentários enriquecedores.
Reconhecimento
ao CNPq, que me concedeu um ano de pesquisa na EHESS e ao Departamento de Letras Neolatatinas, que permitiu meu afastamento.
às pessoas que colaboraram direta ou indiretamente para a realização desta tese.
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SINOPSE
Diferentes formas de Terror na História Contemporânea. Dialogues des Carmélites: o martírio das carmelitas de Compiègne. Carmelo: espaço de conflitos entre princípio aristocrático e aos valores burgueses. Blanche de la Force, símbolo de contradição. Sua errância. O exílio de Bernanos. Errâncias.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
2. CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR
3. INTERTEXTO : FIGURAS
3.1. Compègne – um espaço de violência
3.2. A Ordem do Carmelo
4. O TEXTO
4.1. Prefigurações
4.1.1. O prólogo de Dialogues des Carmélites – prefiguração da tragédia
4.1.2. Mudanças
4.1.3. A Profanação
4.2. Valores
4.2.1. O código aristocrático
4.2.1. A reversão de valores
4.3. Onde está Blanche?
5. BERNANOS, O EXÍLIO?
6. CONCLUSÃO
7. BIBLIOGRAFIA
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1. INTRODUÇÃO
A Tese aqui apresentada, Terror e Exílio em Dialogues des carmélites de
Georges Bernanos, tem como objetivo analisar o Terror que se apresenta sob
diferentes formas no texto escolhido e propor uma leitura da obra de Bernanos
sob o ângulo do exílio.
Sinteticamente, pois deixei para momento oportuno o desenvolvimento das
questões aqui expostas, vou, de início, localizar o escritor no panorama
intelectual de sua época.
Georges Bernanos (1888-1948) é um escritor francês de destaque,
romancista consagrado, autor de Sous le soleil de Satan e de Journal d’un curé
de campagne, entre outros. Também escreveu uma obra polêmica, violenta
denúncia contra os regimes totalitários da época, conhecida sob o título geral de
Essais et Écrits de combat, entre os quais se destacam Les Grands Cimetières
sous la lune e Lettre aux Anglais.
Classificar Georges Bernanos constitui uma difícil tarefa. Ele recusou todos
os rótulos que lhe foram, por vezes, atribuídos. Rejeita ser considerado um
profeta: "Je n’ai jamais rien prédit, mais je veux aujourd’hui, comme d’habitude,
dire tout haut ce que chacun pense tout bas" (EEC II: 297)1. Não aceita ser
considerado um doutrinador (EEC II:141) ou um panfletário (EEC II: 1271). E,
surpreendentemente, opõe-se ao título de escritor: “Je ne suis pas un écrivain.
La seule vue d’une feuille de papier blanc me harasse l’âme” (EEC I: 353-4).
1 As obras de Bernanos serão citadas no corpo do trabalho, com a abreviatura convencionada no final da Introdução, seguida da página.
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Esta contestação da escritura, no comentário de Jacques Chabot, na edição
da Pléiade, significa que Bernanos não se iludia com a eficácia do instrumento do
qual se serve. O autor de Les Enfants humiliés aceita e assume a condição de
homem que escreve, mas recusa o falso prestígio de ser um criador: “Du moins
ne me suis-je jamais pris sérieusement pour un créateur” (EEC I: 873).
Ele se define como uma voz que denuncia e incomoda: “Ma seule et
modeste vocation en ce monde est de parler quand tout le monde se tait” (CORR
II: 328).
De todas estas tentativas de classificações de Bernanos, talvez a mais
persistente, para leitores menos atentos, seja a imagem de um romancista
católico, recusada pelo próprio autor: “Je ne suis pas un écrivain catholique
comme on dirait, par exemple, un écrivain marxiste” (EEC II:1189). Escritor
católico, sim, mas no sentido de ser responsável:
Je suis un écrivain catholique, je veux dire un homme qui se tient responsable de ce qu’il écrit, non seulement vis-à vis des catholiques, mais du premier venu qui le lit, et auquel il doit toute la vérité dont il dispose. (EEC II:1189)
A maioria dos leitores lê até: "sou um escritor católico" e não considera que
ele se dirige também a qualquer homem que o leia. E impressiona a acolhida feita
à obra de Bernanos por um grande número de ateus.
Gildas Bourdet, ao dirigir Dialogues des carmélites, em 1987, na Comédie
Française, declarou em uma entrevista:
11
Inúmeras pessoas não cristãs dizem-me que não conseguem escapar aos problemas que o texto provoca. Acredito que a razão se deva ao fato de Bernanos ter ido até as ultimas conseqüências das interrogações que ele fazia a si mesmo. (Bourdet, 1988: 35)
Bourdet sugere ainda que as contradições de Bernanos, longe de afastar,
aproximam-no de pessoas provenientes das mais diferentes classes sociais e
intelectuais.
Contradições e paradoxos poderiam caracterizar o autor, testemunha de um
renascimento espiritual francês, marcado por grandes conversões: Ernest
Psichari, neto de Renan (1913), Jacques e Raïssa Maritain (1906) e Charles
Péguy (1908), entre outros.
Bernanos participou também de algumas das grandes querelas políticas e
religiosas que agitaram as primeiras décadas do século XX, na França: L’Affaire
Dreyfus, o desenvolvimento de le Sillon, organização católica de esquerda e o
apogeu de L’Action Française, movimento de extrema direita. O Vaticano
condenou, sucessivamente, le Sillon em 1910, e L’Action Française, em 1926,
provocando revolta e desorientação em muitos católicos, que não entenderam,
inicialmente, as razões do Sumo Pontífice em condenar a primazia da política
em detrimento da fé.
Bernanos participou, ativamente, da renascença espiritual que se consolidou
por volta dos anos vinte e conheceu sua idade de ouro na década de trinta.
Claudel, Mauriac e Bernanos são alguns dos grandes escritores que, aureolados
de prestígio, atingem o grande público.
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Bernanos recusou a imagem de escritor católico, no sentido de ser
propagandista da fé, executor de diretrizes, mesmo que emanadas da Igreja. Mas
foi um cristão que escreveu romances.
Suas dúvidas, certezas e incertezas permitiram-lhe ser o autor de La Grande
Peur des bien-pensants (1931), elogio ao anti-semita Drumond, e de Les Grands
Cimetières sous la lune (1938), denúncia ao regime franquista, para citar dois
extremos. E a proximidade da morte parece ter inspirado Dialogues des
carmélites, texto luminoso, sua vida passada a limpo.
Dialogues des carmélites, escrito na Tunísia, cenário de seu último exílio
voluntário, como um modo de manifestar seu desencanto com a França do pós-
guerra, é uma meditação sobre os grandes temas que angustiam o homem: a vida,
a morte, a dor, o medo.
Para uma melhor e mais rápida compreensão da gênese da obra, muito
complexa, esquematizei-a em um quadro que se segue e que será,
posteriormente, desenvolvido.
13
A
Fato histórico
B
C
D
E
F
G
Crônica (Relato)
Villecourt
Gertrud von le Fort
Bernanos
Solicitação
Realização
Publicação
Teatro
H
3
1 2 5
4
Cinema Ópera TV CD
14
Como para os grandes escritores clássicos franceses do século XVII, a
matière não é nova. Nova, sim, é a manière de tratá-la. E é o que conta, pois aí
reside o selo próprio do escritor, sua originalidade.
Dialogues des carmélites baseia-se em um fato histórico. Em 17 de julho de
1794, durante o Terror revolucionário na França, dezesseis religiosas do Carmelo
de Compiègne foram guilhotinadas na Praça do Trono, atual Praça da Nação,
acusadas de ser inimigas do povo e de conspirarem contra a Revolução. Foram
beatificadas por Pio X em 27 de maio de 1906.
Dois relatos do martírio foram escritos (Jauffret, 1803) e (Guillon, 1821),
porém somente em 1836 foram publicadas as memórias de Marie de
l’Incarnation com o título Histoire des religieuses carmélites de Compiègne,
conduites à l’échafaud le 17 juillet 1794. Ouvrage posthume de la soeur Marie
de l’Incarnation, carmélite du même monastère. Embora anônima, os catálogos
da Bibliothèque Nationale de Paris e da British Library assinalam o Cardeal
Villecourt como responsável pela edição, citada sob a sigla Villecourt.
Gertrud von le Fort consultou um exemplar dessa obra existente na
biblioteca de Munich e, inspirando-se, livremente, neste acontecimento histórico,
escreveu, em 1931, em alemão, uma novela traduzida para o francês e publicada,
em 1937, sob o título: La Dernière à l’échafaud. A romancista modificou
circunstâncias, permitindo-se grande liberdade criativa com a História: Madame
de Croissy, a antiga Priora, não padeceu uma agonia humilhante; na "realidade",
sofreu o martírio juntamente com sua comunidade.
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Marie de l’Incarnation não era Mestra de noviças e sim uma das mais
jovens religiosas. Seu temperamento dificilmente poderia ser qualificado de
admirável e heróico, como Gertrud von le Fort o considera, com base no
documento Villecourt, já citado, que lhe atribui qualidades que não
correspondem à "verdade" histórica.
A confrontação da novela La Dernière à l’échafaud com a História, assim
como as diferenças entre o texto da romancista alemã, o roteiro cinematográfico
do Padre Brückberger e os diálogos escritos por Bernanos foram analisadas, entre
outros, por Michel Estève (Estève, 1960) e Joseph Pfeifer (Pfeifer, 1963).
Remeto ao recente estudo Destinée providentielle des Carmélites de Compiègne
dans la littérature et les arts (Gendre, 1994), para eventuais consultas.
Gertrud von le Fort criou, talvez inspirada em suas próprias angústias e
temores, uma personagem central, Blanche de la Force, também medrosa e
angustiada, com a qual a autora se identificava, não apenas pelo nome que lhe
atribuiu (le Fort/de la Force) mas pelo medo generalizado diante do mundo
ameaçado pelo Terror. A autora revelou, posteriormente, a motivação inicial de
sua novela:
O ponto de partida de minha criação não foi em primeiro lugar o destino das dezesseis carmelitas de Compiègne, mas a personagem da pequena Blanche. Ela nunca viveu, historicamente, mas recebeu o sopro de seu ser trêmulo, exclusivamente, de minha própria interioridade e não pode, de modo algum, ser separada desta origem que lhe é própria.[...] Esta figura levantou-se, por assim dizer, de dentro em mim como a encarnação da angústia mortal de toda uma época encaminhando-se para o seu fim. (le Fort, 1958:93 apud Gendre, 1994)
Esta obra é considerada pela maioria dos críticos como uma denúncia do
nacional-socialismo, e a própria autora apoiou esta interpretação.
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Tese mais recente considera que o alvo visado seria não o nazismo, porém o
comunismo (Pottier, 1991: 174-180). Quer se trate de uma denúncia do nazismo
ou do comunismo, o texto é, indubitalvelmente, uma denúncia contra o
totalitarismo em geral e constitui uma reflexão sobre a angústia contemporânea e
a vitória da Graça de Deus sobre o medo.
Terminada a II Guerra Mundial, o Padre Brückberger obteve os direitos
para a adaptação cinematográfica da novela de Gertrud von le Fort e escreveu um
roteiro - cinqüenta e quatro seqüências a serem filmadas -, o que se denominou
“le scénario”.
A tarefa de redigir os diálogos para o filme foi oferecida primeiramente a
Albert Camus, que recusou, alegando ser ateu, e sugeriu o nome de Bernanos.
Este aceitou a tarefa, iniciada em novembro de 1947, mas não a terminou no
tempo convencionado verbalmente, o que gerou uma série de equívocos e mal-
entendidos. Os diálogos foram concluídos em meados de março de 1948, quando
Bernanos já estava gravemente enfermo, vindo a falecer a 5 de julho do mesmo
ano.
O manuscrito, julgado inadequado para a linguagem cinematográfica, pelo
produtor Gaspard de Cugnac, permaneceu, literalmente, esquecido no fundo de
uma mala. Albert Béguin, grande admirador da obra de Bernanos e encarregado
pela família do acervo de suas obras, atribuiu um título ao texto, fez algumas
alterações e publicou-o em 1949.
Além de dar um título ao manuscrito, Béguin dividiu-o em cinco quadros e
um prólogo, resumiu algumas cenas e atribuiu nomes às religiosas que Bernanos
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deixara anônimas. Estas alterações foram exigidas pela mise en scène teatral. A
maioria dos críticos é formal: Béguin respeitou, escrupulosamente, o manuscrito
de Bernanos e a fidelidade da edição póstuma é total. Monique Gosselin revela,
entretanto, outras alterações feitas por Béguin (como a inserção da cena da
quebra da imagem do pequeno Rei da Glória) e lamenta que este não tenha
seguido o manuscrito da mão de Bernanos e sim o de sua secretária.
Existem dois manuscritos: um do próprio Bernanos e outro copiado por sua
secretária. Estes documentos se encontram na sala dos manuscritos da Biblioteca
Nacional de Paris.
O problema da autoria, objeto de muitas controvérsias, foi parcialmente
resolvido por Julien Green, em 25 de novembro de 1951, o qual opinou: a
significação espiritual da obra pertence a Bernanos, ao passo que a invenção e a
criação dos principais personagens pertencem a Gertrud von le Fort. O Padre
Brückberger e Philippe Agostini, roteiristas, também se consideram co-autores.
A lei francesa acolheu a questão que se prolonga até hoje. Os processos
referentes a Dialogues des carmélites impedem que o roteiro, sub judice, seja
consultado.
A sentença jurídica determinou que, em todas as edições e cartazes da peça,
devem constar obrigatoriamente os seguintes dados: "segundo uma novela de
Gertrud von le Fort e roteiro de R. P. Brückberger e de Philippe Agostini".
Dentre os estudos publicados sobre Dialogues des carmélites, destaca-se
uma Tese de Doutorado sobre a gênese da obra, posteriormente, publicada. A
autora, Meredith Murray, teve acesso ao scénario - roteiro - e reitera a
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originalidade de Bernanos, definida por Julien Green, em 1951, que consiste no
sentido espiritual da obra. Ao fazer reviver as personagens de Gertrud von le
Fort, “Bernanos deu à mesma aventura uma significação pessoal. A dependência
da origem não exclui, obrigatoriamente, a autonomia no plano espiritual.”
(Murray, 1963: 33). Esta pesquisa ainda não foi ultrapassada, tendo em vista que
ainda não veio a lume a edição crítica, que está sendo preparada sob a direção de
Monique Gosselin.
O cotejo formal estabelecido entre o texto de Bernanos, Dialogues des
carmélites, e La Dernière à l’échafaud (Boly, 1960) também fornece subsídios
para estudos da peça.
Entre outros estudos mais recentes, cito o artigo de Pierre Gille: "Drame
spirituel et forme dramatique dans Dialogues des carmélites" (Gille, 1984) e as
análises de Monique Gosselin: "Dialogues des carmélites, oeuvre testamentaire"
(Gosselin, 1988) e "Dialogues des carmélites, l’ultime méditation de Bernanos"
(Gosselin, 1995).
No tocante aos estudos históricos sobre as Carmelitas mártires, destacam-se
as publicações de William Bush, professor de literatura francesa em Ontario
(Canadá) e Le sang du Carmel ou la véritable passion des seize carmélites de
Compiègne texto publicado em 1954, de autoria do Padre Bruno de Jésus-Marie,
religioso carmelita. Trata-se uma obra indispensável ao estabelecimento da
verdade histórica, com documentos inéditos. A reedição, em 1992, comprova o
interesse dos estudos históricos, na época atual.
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A publicação dos Dialogues, em 1949, sob a forma de livro teve grande
sucesso, mas a revelação da força e do poder de sedução de Dialogues des
carmélites manifestou-se sobretudo no teatro. O texto traduzido para o alemão
foi encenado, com muito sucesso, no Festival de Zurique (1951) e depois em
Munique, onde a representação se transformou em verdadeira liturgia, com a
participação espontânea da assistência entoando o Salve Regina. Em 1952, a peça
foi encenada no Teatro Hébertot em Paris, numa adaptação de Albert Béguin e
Marcelle Tassencourt, onde permaneceu vários anos em cartaz, antes de ser
incluída no repertório da Comédie Française.
A repercussão na imprensa resume a pluralidade autoral de Dialogues des
carmélites, particularizando a contribuição de cada um:
O maior acontecimento da temporada teatral européia é uma peça abordando um fato histórico francês, tratado por uma romancista alemã, adaptado para o cinema por um Dominicano de Paris, teatralizado por Bernanos e representado no Festival de Zürique. (Carrefour, 8 de agosto de 1951)
Dialogues des carmélites, texto traduzido em várias línguas e submetido a
sucessivas adaptações para diferentes gêneros artísticos, teve sempre um grande
sucesso de crítica e de público, mas tornou-se internacionalmente conhecido,
graças à ópera de Francis Poulenc, que estreou no Ópera de Milão, em janeiro de
1957, e no Ópera de Paris, em junho do mesmo ano. Superando os numerosos e
complicados problemas de direitos autorais, foi encenada com imenso sucesso
nos principais teatros do mundo.
Um dos méritos de Poulenc foi o de alcançar a mesma grandeza dramática
atingida por Bernanos e provocar reflexões sobre o medo diante da morte, o
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mistério da graça divina e a violência do mal, em espaços onde tais discussões
seriam inusitadas. E, através da música, as carmelitas de Compiègne, que haviam
escolhido o silêncio e a solidão de um claustro, fazem ouvir seu canto,
interrompido pelo ruído da guilhotina em 1794.
Dialogues des carmélites foi difundido, também, através de discos. A ópera
de Poulenc foi gravada algumas vezes. A primeira gravação data de 1958 e
permanece um documento indispensável aos que amam a música.
O filme projetado pelo Padre Brückberger, em 1947, foi, finalmente, rodado
e exibido, em 1960, sob o título Le dialogue des carmélites. A crítica, em geral,
lhe foi desfavorável. A Société des Amis de Georges Bernanos e seus herdeiros
processaram os responsáveis, acusando-os de desonestidade intelectual e
infidelidade ao texto de Bernanos. O filme privilegia, não o plano espiritual, mas
as relações que unem a História, o homem e a sociedade.
Em 1984, Pierre Cardinal realizou, com sucesso, um filme para a televisão.
O diretor criou um Carmelo luminoso, dominado pela cor branca. No elenco,
uma coincidência: a jovem atriz Anne Caudry Bernanos, falecida
prematuramente, que incarnava Blanche de la Force, era a neta do escritor.
O apelo visual e dramático, a importância da imagem em detrimento da
narrativa, ressaltam não só da gênese da obra como também da transformação e
adaptação para diferentes gêneros artísticos: livro, peça de teatro, ópera, filme,
disco, etc. Qualquer estudo que se faça de Dialogues des carmélites deve ter em
vista a origem do processo criativo: diálogos para um filme a ser rodado.
21
Este rápido resumo da gênese desta obra já aponta para a importância da
intertextualidade como caminho para a sua análise.
O conceito de intertextualidade, hoje amplamente difundido, exige a priori
que se explicite seu emprego e delimite sua extensão. O ponto de vista de Marc
Angenot, sobre o assunto, é categórico: "Na minha opinião, é necessário que o
pesquisador, colocando as cartas na mesa, exponha e manifeste sua
problemática, revelando a origem de suas filiações teóricas e os objetivos que
pretende atingir" (Angenot,1984: 103).
O conceito de intertextualidade foi cunhado principalmente por Julia
Kristeva (Kristeva, 1969), na esteira da polifonia de Bakhtine (Bakhtine, 1970).
O que assim se enfatiza é o trabalho de produção de sentidos do texto no diálogo,
implícito ou explicito, com outros tantos textos, anteriores ou sincrônicos. Não
mais produto, dentro do circuito comunicativo Autor-obra-público, o texto,
considerado como um tecido, textura (Barthes, 1973: 100), se elabora ao tecer os
fios dos discursos múltiplos, na mais ampla acepção do termo, que o permeiam.
Barthes acrescenta a possibilidade de diálogo também com textos posteriores,
visão correlata ao processo de escritura-leitura em que o leitor coparticipa, com
o seu próprio texto, sua cultura, da produção de efeitos de sentidos do texto
escrito.
Genette demonstra, em Palimpsestes (Genette, 1982), o jogo pelo qual um
texto se superpõe a outro, substituindo-o e escondendo-o, mas sem apagar
completamente o traço anterior.
22
E Philippe Sollers resumiria a problemática do intertexto ao afirmar que
todo texto está situado na junção de vários textos dos quais ele é, ao mesmo
tempo, a releitura, a condensação, o deslocamento e a profundidade (Sollers,
1968: 75).
Em minha leitura de Dialogues des carmélites, não aponto as semelhanças e
diferenças entre o texto de Bernanos e os pré-textos que lhe foram fornecidos: a
novela de Gertrud von le Fort e o roteiro do filme que seria rodado, nem enfoco
as sucessivas adaptações do texto de Bernanos para diferentes gêneros artísticos:
livro, teatro, ópera, disco, cinema, por fugir este trabalho ao tema proposto.
Ao analisar Dialogues des carmélites, de Georges Bernanos, destaco o
contexto da ação na peça de teatro: o Terror, sob diferentes formas, e tento
responder à pergunta fundamental: onde está Blanche de la Force? (4.3). A
errância de Blanche, ao constituir o núcleo da Tese, remete ao questionamento:
onde estava o mundo em 1789-1794? e ao Carmelo de Compiègne. Em um
processo inverso, a Revolução Francesa é o eco dos debates internos entre o
princípio aristocrático e os valores burgueses discutidos no claustro (Cap. 4). A
inquietação de Blanche e sua angústia ressoam no nomadismo de Bernanos e seu
exílio interior. Esta problemática, a peregrinação do autor de Les Grands
Cimetières sous la lune conduz à questão: onde estava o mundo em 1948? E
finalmente provoca a indagação: onde estava Bernanos? Estas questões serão
transpostas para um plano espiritual superior, em um desenlace imprevisto do
ponto de vista humano, sob a ação da graça divina.
Procuro estudar, também, a significativa importância de dois contextos:
23
1. Contexto histórico (Cap. 2) que, aliás, é duplo: contexto do fato
histórico, a Revolução Francesa e o Terror, com seus conflitos ideológicos, e o
contexto contemporâneo de Bernanos: a guerra civil espanhola, a ocupação
alemã, o pós-guerra e a guerra fria, um sendo lido através do outro, subentendido
mas atuante.
2. Contexto religioso da primeira metade do século XX. Trata-se do
momento em que a renovação da fé católica faz da idéia de santidade uma
solução e um problema e assim atinge o núcleo do mistério da salvação: a
questão da graça (4.3). Tal contexto ajuda a esclarecer certas opções políticas de
Bernanos referentes à L’Action Française e sua crise pessoal (Cap. 5).
A visão trágica de Bernanos (cap. 5) inserida nas duas panorâmicas
anteriores. Mais e melhor do que apenas a biografia do escritor, a sua visão do
mundo, sem dúvida consoante com a sua vivência da história e da religião. Visão
trágica, no sentido empregado por Lucien Goldmann, em Le Dieu caché, a
impossibilidade de viver sob o olhar de Deus, presente e escondido, em um
mundo dominado por valores incompatíveis com a fé (Goldmann, 1959).
Finalmente, proponho uma leitura de Bernanos, sob o ângulo do exílio,
(Cap. 5) exílio que se apresenta, sobretudo, através de uma contínua errância.
O corpus específico de minha análise é o texto Dialogues des carmélites tal
como o apresenta a edição Pléiade de 1961. Enquanto não for estabelecido,
através de uma edição crítica que está sendo preparada, um texto com maior rigor
ecdótico, minha escolha justifica-se pelo texto confiável, pelo rigor das notas,
comentários e variantes.
24
Abreviaturas:
Dialogues des carmélites será referida no corpus da Tese sob a forma abreviada
de Dialogues e citada, nas referências bibliográficas, sob a sigla DC seguida da
página.
Oeuvres romanesques - OR
Essais et écrits de combat I - EEC I
Essais et écrits de combat II - EEC II
Combat pour la liberté - CORR II
25
2. CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR*
Pour moi, j’appelle Terreur tout régime où les citoyens, soustraits à la protection de la loi, n’attendent plus la vie ou la mort que du bon plaisir de la police d’État.
Bernanos
Dialogues des carmélites, obra originalmente concebida para um filme foi
escrita por Bernanos nos últimos meses de sua vida, de novembro de 1947 a
março de 1948.
As datas são importantes porque indicam um período conturbado, doloroso
e polêmico, vivido pela sociedade francesa. Os anos de 1944 a 1949, de um
modo todo especial, foram dominados pelo que se denominou l’épuration, a
depuração, a tentativa de transformar a sociedade francesa, purificada dos
colaboracionistas e dos partidários de Vichy. Este processo prolonga-se até os
dias atuais, quando são julgados os acusados de crimes imprescritíveis, os crimes
contra a humanidade, como a Shoah ou o Holocausto, tentativa nazista de
destruir o povo judeu.
Constata-se a persistência de um grave problema não inteiramente
resolvido, que continua dividindo a sociedade francesa, como outrora o processo
Dreyfus a fragmentara, reafirmando a constatação, tornada banal, da existência
do que se convencionou chamar Les deux France.
Em 1947-1948, discutia-se e praticava-se a depuração. Bernanos, no último
exílio voluntário na Tunísia (Cap. 5), escreve seu “testamento espiritual” e
Vladimir Jankélévitch, professor de filosofia moral e um dos mentores da
* O capítulo muito deve ao Seminário Fonctions sociales de la littérature. Paris: EHESS, 1995
26
juventude da época, proclama a impossibilidade de se perdoar e de se esquecer:
“O perdão é forte como o mal, mas o mal é forte como o perdão” (Jankélévitch,
1986:15).
Os fatos são bem conhecidos: em junho de 1940, o Marechal Pétain, herói
da Primeira Guerra Mundial, assina o vergonhoso Armistício franco-alemão e,
em outubro do mesmo ano, anuncia, publicamente, sua decisão de colaborar com
os invasores nazistas. A França, dividida em zona livre e zona ocupada, obedece
ao que se convencionou chamar "Governo de Vichy".
O início da Resistência contra os alemães dataria de 8 de junho de 1940,
quando o General Charles de Gaulle, de Londres, falando através da rádio,
denunciou a ilegitimidade de Vichy e conclamou os franceses a resistirem: “a
flama da resistência francesa não deveria se apagar” (de Gaulle, 1944-1945: 13-
14).
Durante os três anos que se seguiram, o comitê do General de Gaulle, em
Londres, simbolizou principalmente o fato de que nem todos os franceses haviam
capitulado. O movimento gaulista poderia ter fracassado. Do ponto de vista
militar, era insignificante e, politicamente, representava apenas a si mesmo. Ter-
se tornado o Governo provisório da República Francesa foi o resultado de
acontecimentos ulteriores ocorridos na França, entre outros, o apoio da esquerda
e, principalmente, do partido comunista.
Em 1942, a Resistência metropolitana começou a considerar de Gaulle um
chefe e não um mero símbolo e, em 1943, a união estava consolidada entre os
resistentes de Londres e os franceses vivendo no exílio e na França ocupada.
27
Em 25 de agosto de 1944, Paris é libertada pelas forças aliadas e, em 7 de
maio de 1945, a Alemanha rende-se incondicionalmente.
O processo de depuração é deflagrado a partir da libertação de Paris pelas
forças aliadas e culmina na condenação à morte de Pétain, cuja pena foi
comutada em prisão perpétua, em 1945.
Julgamentos, processos, condenações, discussões sucederam-se motivados
pelo ódio, pelo ressentimento, pelo desejo de justiça e também por motivos
menos nobres. Quem colaborou com os ocupantes nazistas? Quem resistiu
arriscando a vida?
Nesse contexto histórico e político, destaco os anos 1944 a 1949 por
constituírem o auge do processo de limpeza, de épuration, quando Dialogues foi
escrito.
Desencadeou-se, nesse período, uma verdadeira caça aos culpados. Importa
considerar que a depuração conseguiu desagradar à maioria dos franceses da
época. Os que haviam resistido aos alemães criticavam a sua brandura e
moderação, e alguns acusavam-na mesmo de fraqueza; os que colaboraram
lamentavam sua violência. Em todo caso, a maioria dos estudiosos concorda que
a aplicação das punições foi profundamente injusta, preconceituosa. Verificou-se
mais uma vez a verdade proclamada por La Fontaine: “Selon que vous serez
puissant ou misérable, les jugements de cour vous rendront blanc ou noir” (La
Fontaine, Les animaux malades de la peste).
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O período da depuração suscitou numerosos estudos de historiadores
idôneos e competentes,1 mas parece que somente agora, mais de cinqüenta anos
decorridos, os franceses mostram-se capazes de examinar com isenção o tema
conflituoso de um passado doloroso - Vichy, um passado sempre presente e que
revela um luto mal resolvido, uma História inacabada.
As lembranças da Ocupação, no dizer dos autores de Vichy, un passé qui ne
passe pas (Conan & Rousso, 1994), ocupam, atualmente, um lugar
desmesurado na consciência nacional francesa.
Um passado desconhecido das gerações atuais ressurgiu brutalmente na
memória dos franceses. O que conduziu a vontade de fazer ou refazer o
julgamento de Vichy e da Colaboração e levou a uma crítica implícita da maneira
como a depuração foi realizada. Recusa-se a atitude antes preconizada, de "virar
a página", e rompe-se o silêncio mantido, durante longos anos, sobre certos
aspectos do problema que dilacerou uma nação.
Essa mudança permitiu melhor compreensão e valorização do notável
trabalho de Peter Novick, pesquisador americano que durante três anos, de 1960
a 1963, leu, verificou e comparou todas as fontes acessíveis na época. Sua Tese
de Doutorado, elaborada em inglês, foi publicada em 1968. A tradução francesa
veio a lume em 1985, quando seu livro deixou de interessar apenas aos
especialistas e passou a atrair um grande número de leitores. A grande vantagem
de Novick advém da objetividade e da seriedade com que informa os fatos. Sem
1 Cito, entre outros, Pascal Ory, Jean-François Sirinelli, Henry Rousso, Michel Winock, Jean-Pierre Azéma e Peter Novick cujas obras constam na bibliografia.
29
envolvimentos afetivos, o autor expõe, com honestidade e distância, o resultado
de sua pesquisa, traduzida em números.
A depuração foi obra dos vencedores, dos que fizeram a Resistência, e a
História desse período, pelo menos a curto prazo, por eles foi escrita. Como
decorrência, estabeleceram-se e prevaleceram os postulados históricos e jurídicos
da depuração: o Armistício de 1940 foi um crime, Vichy um regime usurpador e
a colaboração uma política de traição (Novick, 1985: 52).
Sob esse ângulo enfocarei, em termos gerais, a Resistência francesa e a
depuração. Este processo de limpeza da sociedade francesa aplicou-se de maneira
desigual, em um contexto conflituoso: alguns não queriam e não podiam
esquecer, e outros não admitiam reviver a lembrança dos anos negros da
Ocupação nazista que dividira a França.
Uma das conseqüências do governo de Vichy foi a modificação ocorrida no
espaço político e intelectual francês, face à escolha inevitável que se impôs:
recusar ou aceitar a política colaboracionista. A decisão revelou-se, a posteriori,
independente de posicionamentos anteriores. Embora fosse calculável que a
direita apoiaria Pétain e que a esquerda o rejeitaria, os acontecimentos mostraram
que cada indivíduo assumiu uma posição pessoal e imprevisível diante de um
fato consumado: o Armistício de 1940 e a colaboração.
A maioria dos intelectuais, na França, em um primeiro momento, entoou
louvores ao Marechal: Paul Claudel compôs uma Ode au Maréchal Pétain e mais
tarde elogiou, igualmente, o General de Gaulle em Ode au Général, o que foi
considerado, pelos contemporâneos, uma palinódia. François Mauriac teria sido,
30
por um curto período, partidário de Pétain. E não causou nenhum espanto a
expressão "divina surpresa" com que Charles Maurras saudou a consolidação do
colaboracionismo, em 9 de fevereiro de 1941.
Provenientes de católicos de direita, essas atitudes políticas poderiam ser
consideradas previsíveis; porém, como justificar que representantes da
intelligentsia da esquerda parisiense, como Emmanuel Berl e Gaston Bergery,
redigissem os discursos lidos por Pétain? (Ory & Sirinelli, 1992: 115-88).
A conclusão evidente é que, no início, reinava certa unanimidade entre os
intelectuais que permaneceram na França, em relação a Vichy.
Mas, a partir de maio de 1941, forma-se o Comité national des écrivains -
C.N.E. - reunindo os intelectuais que se opunham ao invasor e ao regime de
Vichy. De 1942 em diante, quando as tropas aliadas desembarcaram na África do
Norte e a Alemanha ocupou a Zona Livre, mudanças significativas acontecem.
Alguns permanecem colaboracionistas: Ferdinand Céline, Robert Brasillach e
Pierre Drieu la Rochelle, os mais conhecidos; outros guardam prudente silêncio e
afastam-se de Paris. E numerosos são os escritores que escolhem a via da
clandestinidade para protestar, fundando uma revista e uma editora: Les Lettres
françaises e Éditions de Minuit. Um dos fundadores dessa editora, Jean Bruller
Vercors, escreveu Le Silence de la mer (1941-1943), um dos mais conhecidos
textos de ficção inspirado pela Resistência. A célebre novela apresenta uma
metáfora da Resistência na personagem da jovem que, obrigada a hospedar um
oficial alemão, opõe-lhe, obstinadamente, o silêncio.
31
O silêncio livremente escolhido difere do silêncio imposto aos intelectuais
alemães antifascistas, refugiados na França e, que em 1940 se viram obrigados,
para escapar à prisão e à extradição, a recorrer à fuga ou ao suicídio. O drama
daqueles que consideravam a França como sua verdadeira pátria espiritual e que
foram compelidos a um novo exílio ou à morte foi analisado em Exil et
engagement, um estudo ímpar no gênero (Betz,1991).
A resistência existiu, desde o início da guerra, entre os que se exilaram:
Georges Bernanos, no Brasil, o filósofo tomista Jacques Maritain, nos Estados
Unidos, o romancista Jules Romains, em Nova York e depois no México, onde
também se exilou André Breton, o papa do Surrealismo. Apesar das diferenças
ideológicas inconciliáveis, unia-os um sentimento comum de abandono total, de
desamparo e de perda irreparável.
Uma das formas de resistência e de presença intelectual francesa, no exílio,
foi o funcionamento de 1942 a 1945 da École des hautes études em Nova York.
Aí lecionaram Maritain e Lévi-Strauss, entre muitos outros. Procuraram dar
testemunho, mas estavam longe, a salvo do dia a dia, da convivência quotidiana e
inevitável com o ocupante. Desaparecida logo após o final da guerra, essa
instituição prestigiosa era praticamente ignorada pelo grande público. E os que
dela tinham conhecimento não a valorizavam suficientemente.
Isto porque grande ressentimento caracterizou a atitude da maioria dos
franceses em relação aos ilustres exilados que não enfrentaram o dilema
diariamente renovado: que atitude assumir diante do mais forte? O que é mais
importante, a vida ou a honra? Uma vida sem honra teria sentido? E a realidade
32
comprova que os heróis, os mártires e os santos constituem uma exceção e não a
norma. Há várias espécies de coragem, como disse Bernanos: “si la force est une
vertu, il n’ y a pas assez de cette vertu pour tout le monde” (DC:1690).
Tratava-se não mais de hipotéticas discussões cornelianas, semelhantes
àquelas encontradas nos textos clássicos, mas de assegurar o pão de cada dia, de
sobreviver.
Após a Liberação - 1944 - e, sobretudo, depois da rendição incondicional da
Alemanha - 1945 -, instala-se na França l’épuration - a depuração - uma prática
visando julgar e punir todos os suspeitos de colaboração com o inimigo. Esses
acertos de conta do pós-guerra fizeram milhares de vítimas, culpadas ou
inocentes, em um processo que pode ser considerado um ressurgimento do Terror
reinante nos anos 1793-1794, e encerrado, oficialmente, após a execução de
Maximilien Robespierre e o advento do Thermidor.
Esse processo de "purificação", a imposição do que se considera o Bem e a
Virtude pela força, sempre movido por uma Fé, aparece, periodicamente, na
História da humanidade sob diferentes denominações: a caça às feiticeiras, a
Inquisição, a noite de São Bartolomeu. Períodos dominados pelo terror poderiam
ser enumerados e, ainda assim, a lista estaria sempre incompleta. Proponho-me a
evocar os Terrores contemporâneos na medida em que eles podem ser
comparados com o Terror de 1792-1793.
O Terror inicial da primeira República constituiu um modelo seguido por
outros processos de depuração violenta que pontuaram o curso da História: a
Comuna de Paris de 1871, a guerra civil espanhola, o terror nazista, o terror
33
comunista, o terror provocado pelo medo do comunismo, os terrores asiáticos: no
Japão, na China, no Cambodja e, mais recentemente, o terror movido pela
determinação de limpar a raça, na Bósnia. No dizer de René Sédillot, todos os
Terrores se assemelham e todos são diferentes. Mas todos os períodos de Terror
evocam, de um modo ou de outro, o Terror arquétipo: o da Revolução francesa
(Sédillot, 1990: 261).
Se todos os Terrores possuem características análogas às do Terror de 1793-
1794, com mais forte razão, l’épuration - a depuração - apresenta-se dominada
pelo espírito jacobino: o desejo de extirpar o mal, impor a virtude pela força,
castigar os culpados e construir uma nova sociedade.
Augustin Cochin, autor de L’esprit du jacobinisme, observa, com muita
propriedade, que a fé inspira o sacrifício pessoal a uma idéia a que se aderiu
apaixonadamente, enquanto o fanatismo sacrifica os outros a essa idéia. A fé e o
fanatismo constituiriam as duas faces do entusiasmo. E o espírito jacobino
somente conhece o fanatismo (Cochin, 1979:188).
O jacobinismo predominou na prática da limpeza da sociedade, no pós-
guerra francês, manifestando-se em julgamentos sumários, delações e muitas
vezes em castigos arbitrários como o aplicado às mulheres que mantiveram ou
teriam mantido relacionamentos amorosos com os alemães - o caso das femmes
tondues - mulheres tosquiadas. As vítimas, culpadas ou inocentes, tinham seus
cabelos raspados e eram expostas à execração pública.
A relação entre 1944 e 1793, evidenciada por historiadores, foi
demonstrada, anos mais tarde, em 1956, por Jean Anouilh em uma peça de teatro
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Pauvre Bitos ou le dîner de têtes, onde o Terror e a depuração se misturam.
Anouilh reproduz a justiça sumária preconizada por um Saint-Just, mostra como
o mesmo modelo serviu em 1945 e denuncia ao excessos da depuração. O autor,
amargurado pelo que considerou injustiça, como a condenação de Brasillach,
também acertou suas contas. No dizer de Sédillot, seu dîner de têtes - jantar de
cabeças -, também foi um festival de cabeças decepadas.
Entretanto, descobrir, para castigar, os verdadeiros culpados de
colaboracionismo constituiu um problema complexo, delicado, quase
insuperável, de tal maneira o joio estava misturado com o trigo. Tentar separá-
los, antes do tempo da colheita, como adverte a parábola evangélica, seria correr
o risco de cometer danos irreparáveis (Mt.13, 24-30).
O passar do tempo permite maior equilíbrio na avaliação dos "anos negros":
a participação da França na vitória aliada foi menor do que os franceses
gostariam de pensar, mas também esta colaborou menos do que alguns a
acusam.
É difícil imaginar, entretanto, que os quarenta milhões de franceses que
aplaudiram Pétain em 1940 se tivessem transformado, em 1944, em quarenta
milhões de resistentes.
Ao assumir o poder, de Gaulle criou o mito da Resistência. Segundo Henry
Rousso, o general vitorioso procurou “escrever e reescrever a história dos anos
de ocupação propondo uma visão procedente de seu imaginário pessoal”
(Rousso, 1987: 26). A Resistência foi assimilada e estendida a toda a nação. A
35
salvação emanaria da France éternelle, abstração que constitui um dos
sustentáculos de seu ideário simbólico.
Criou-se um arquétipo do herói da Resistência que, no dizer de Jean Pierre
Azéma, apresentava uma
... imagem confusa onde se entremeavam o agente secreto, o justiceiro ou o fora da lei e que lembrava o herói dos filmes de faroeste e o cavalheiro medieval ao fazer explodir (...) um número incalculável de usinas e de pontes (Azéma, 1979: 169).
No pós-guerra e durante muitos anos, raciocinou-se do seguinte modo: a
Resistência é de Gaulle; ora, a Resistência é a França; logo, de Gaulle é a França.
Mas os mitos são dificilmente suportáveis por muito tempo e o General pede
demissão da presidência do Governo provisório, em 1946, só voltando ao poder
em 1958, para renunciar definitivamente em 1969.
O problema então era que os antigos resistentes achavam que a hora da
colheita já chegara, enquanto o General de Gaulle, considerado “o mais íntegro
dos franceses”, conclamava ao perdão e ao esquecimento, repetindo que a França
tinha necessidade de todos os seus filhos.
Viso, com estas reflexões, estabelecer o contexto no qual Dialogues foi
escrito. Por essa razão, limitar-me-ei a fazer uma breve síntese dos resultados da
depuração no pós-guerra francês, com base em estudos dos historiadores
anteriormente citados. A depuração a todos desagradou e foi aplicada de modo
desigual aos diferentes setores da sociedade francesa.
Segundo Novick, o sentimento geral era de que os escritores e jornalistas
constituíram os bodes expiatórios do colaboracionismo enquanto outros
36
segmentos, em particular os colaboradores econômicos, recebiam penas
simbólicas ou nem mesmo eram presos.
Também instituições tradicionais, como a Academia Francesa, quase não
sofreram retaliações. Comparável, no dizer de Paul Bourget, à Câmara dos
Lordes, ao Vaticano e ao Estado-maior da Prússia, a Academia Francesa
constituía um reduto reacionário, colaborou com os nazistas e apoiou Vichy. A
maior parte dos acadêmicos era germanófila, com exceção de Georges Duhamel
e, sobretudo, de François Mauriac, o único acadêmico que militou na atividade
clandestina ilegal.
Após a Liberação, os resistentes mais exaltados chegaram a cogitar da
dissolução da casa de Richelieu. Fiel à sua política de conciliação, o General de
Gaulle contemporizou, acalmando os ânimos, mas sugeriu à Academia a eleição
de escritores ligados à Resistência, para seus quadros. As promessas
tranqüilizadoras foram muito bem recebidas, mas as propostas inovadoras caíram
no vazio.
Algumas sanções, entretanto, foram aplicadas sem que a Academia pudesse
impedi-las: quatro colaboracionistas, condenados à degradação nacional, foram
excluídos automaticamente: Abel Bonnard, Ministro da Educação Nacional em
1942; Abel Hermant, escritor pedante e superficial; Charles Maurras e Philippe
Pétain. A reação da Academia foi passiva e eloqüente: os lugares dos dois
primeiros excluídos foram preenchidos, mas até a morte de Maurras (1952) e de
Pétain (1951) suas cadeiras permaneceram desocupadas.
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A Academia Francesa não mudou após a depuração: continuou um reduto
de antigos colaboracionistas e partidários de Philippe Pétain. O que talvez
esclareça e justifique a recusa de Georges Bernanos em aceitar a eleição que lhe
foi proposta, por intermédio de François Mauriac, em 1946.
Ao rejeitar, formalmente, a honraria, em carta endereçada a François
Mauriac, em 27 de março do mesmo ano, Bernanos exprime-se em tom cortês e
deferente (CORR II: 627). Os verdadeiros sentimentos, entretanto, revelam-se em
sua correspondência, quando declara não desejar conviver com os acadêmicos
que lhe inspiram aversão, sobretudo, com o "velho impostor" Paul Claudel, eleito
em 5 de abril de 1946.
Em tom mordaz, Bernanos fustiga a vaidade, denuncia o que considera
ridículo e defende sua liberdade de opinião: "Je ne voudrais empêcher personne
de s’ habiller d’une manière ridicule, mais il y a des vérités qu’ on ne saurait
dire, ni même écrire, en habit de carnaval, c’ est-à-dire en jouant un
personnage” (CORR II: 642).
À semelhança da Academia francesa, a Igreja católica, na França, constituía
um verdadeiro monumento de conservadorismo e apoiara o governo de Vichy.
Houve exceções, entretanto, de simples católicos que honraram a Igreja, mas a
hierarquia - bispos e cardeais -, em sua maioria, era partidária de Pétain.
A reação contra o colaboracionismo da Igreja foi pautada por diplomacia,
prudência e firmeza. O cardeal Suhard, adepto de Pétain, foi impedido de
celebrar a missa em Notre-Dame de Paris e recebeu um tratamento glacial dos
representantes gaullistas. A morte do cardeal Baudrillart, colaborador declarado,
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poupou-lhe a vergonha de comparecer ao banco dos réus. O próprio
representante do Papa, o Núncio apostólico, perdeu o cargo. Sucedeu-lhe
Monsenhor Roncalli, o futuro João XXIII, que se viu obrigado a resolver o
problema de transferir de sede os bispos considerados indesejáveis, por terem
colaborado com Vichy e com os alemães. As pesquisas sobre o tema não são
exatas. O governo teria pedido por volta de trinta ou trinta e cinco transferências
e obteve apenas a revogação de sete bispos, em acordo concluído em 1945. As
negociações transcorreram com o mínimo de publicidade, o que evidencia a
cautela com que as partes trataram um problema envolvendo a Igreja e o Estado
(Novick, 1985: 210-13).
A depuração exerceu-se, assim, de forma desigual e aleatória. Os altos
funcionários, os grandes empresários, os militares, os magistrados e os artistas de
teatro e cinema recebiam penas simbólicas ou permaneciam em liberdade.
Georges Bernanos denuncia: “On fusille tous les jours des miliciens de vingt-
cinq ans, mais [...] les amiraux, les généraux, et les magistrats sont tabous”
(CORR II: 576).
Contrariamente, os escritores e, em particular, os jornalistas eram julgados e
condenados à morte. Robert Brasillac, jornalista de Je suis partout, órgão
colaboracionista e anti-semita, foi fuzilado em 1945, malgrado uma campanha
para obter uma comutação de sua pena. Pierre Drieu La Rochelle, diretor da
Nouvelle Revue Francaise (NRF), germanófilo declarado, suicida-se. Louis-
Ferdinand Céline, anti-semita notório e autor de panfletos em favor dos alemães,
foge e refugia-se na Dinamarca.
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Ao lado desses colaboracionistas eminentes, obscuros jornalistas que não
mereciam a pena máxima também eram condenados à morte, constatava Albert
Camus, desiludido e enojado, depois de acompanhar durante dois meses e meio o
desenrolar dos processos na Corte de Justiça de Paris.
Camus e Mauriac, durante o outono e o inverno de 1944-1945, debateram
calorosamente o tema da depuração. Camus, editorialista do jornal Combat,
rejeitava, ao mesmo tempo, o ódio e o perdão. O ódio, porque era um sentimento
que desconhecia e que lhe provocava repulsa, e o perdão, porque o considerava
um insulto aos companheiros, aos camaradas mortos durante o período de
clandestinidade e aos princípios por que tinham lutado.
Mauriac, no Figaro, fez-se o apóstolo da reconciliação e do perdão, e era
denominado "Saint François des Assises". Esta referência constitui um jogo de
palavras intraduzível em português: "Assise", cidade onde morou São Francisco,
o santo do perdão e do desprendimento; "Cour d'Assisses" designa os tribunais
criminais na França. Com a autoridade de quem se comprometeu na luta
clandestina pela Resistência, mas com a humildade de quem em um primeiro
momento elogiara Pétain, Mauriac concluía seu texto semanal com uma frase do
Evangelho: “O que de vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a
pedra” (Jo. 8, 7).
Camus cedeu a Mauriac, concluindo, entretanto, que, se a caridade de seu
opositor era admirável, sua concepção de cidadania era deplorável. Anos mais
tarde, em 1950, o autor de L’homme révolté confessava que Mauriac tinha razão.
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O autor de L’étranger faz uma importante distinção entre os colaboradores,
que aceitaram as honrarias e as responsabilidades durante a ocupação, e o povo
em geral, preocupado em sobreviver durante um período de escassez, de
racionamento de víveres, filas intermináveis e câmbio negro (Rousso, 1992).
Pretendi, nesse breve histórico da questão, recortar um momento de
perturbação, violência, coragem, intranqüilidade e, sobretudo, de insatisfação e
não traçar, exaustivamente, o processo de depuração que se revelou, a longo
prazo, uma utopia.
Abstive-me de analisar o processo de limpeza nos movimentos sindicais,
assim como a radicalização relativa às mulheres, principalmente, às prostitutas;
apesar de sua relevância, por serem excessivamente complexos e fugirem, de
certo modo, ao tema proposto.
Concentrei, portanto, meu estudo em dois blocos que receberam tratamento
diverso do governo provisório: a Academia Francesa e a Igreja Católica,
poderosas instituições, objetos de uma depuração mitigada, e os intelectuais, alvo
fácil de investigações e violentas represálias.
No meio intelectual, há que se destacar os escritores e, principalmente, os
jornalistas considerados os mais responsáveis, por terem influenciado,
diretamente, a opinião pública.
A severidade com que foram julgados os jornalistas provocou um
sentimento geral de que eles estariam representando o papel de bode expiatório,
41
em uma sociedade que se sentia culpada e principalmente não distinguia, de
modo claro, os culpados dos inocentes.
Procurou-se, entretanto, discernir o diferente grau de culpabilidade dentre
os acusados. Alguns foram julgados pelo tribunal criminal e condenados à morte.
Outros sofreram diferentes restrições, abaixo esclarecidas.
No que tange aos escritores, houve uma depuração oficial e outras oficiosas
- as famosas "listas negras" que condenavam ao ostracismo aqueles que teriam
colaborado e com os quais os membros do Comité National des Écrivains (CNE)
não desejavam manter nenhum contato profissional.
O resultado prático dessas listas era nada publicar do escritor renegado, não
mencioná-lo e, principalmente, boicotar os jornais que, porventura, ousassem
publicar seus textos. O silêncio, o pior dos castigos, instalou-se em volta dos que
o próprio CNE reconhecia desigualmente culpados.
O valor das listas de exclusão, com o passar do tempo, tornou-se
meramente simbólico e perdeu sua importância quando os grandes escritores não
comunistas - Georges Duhamel, Jean Paulhan, François Mauriac e Jean
Schlumberger - afastaram-se do CNE, a partir de 1946, motivados pela utilização
indiscriminada da lista negra e, sobretudo, por discordar de sua orientação
marxista.
A depuração não conseguiu atingir o objetivo proposto: uma transformação
total da sociedade francesa. Contudo, modificações houve: mudanças sociais e
políticas que contribuíram para uma renovação parcial, mas profunda, na
42
literatura francesa. Renovação motivada pela morte de alguns escritores -
Romain Rolland, Jean Giraudoux ou pela perda de credibilidade, decorrente de
ligações comprometedoras com Vichy - Charles Maurras, Louis-Ferdinand
Céline, Henry de Montherlant.
Albert Camus, Jean Bruller Vercors, Jean-Paul Sartre, outra geração de
escritores, marcada pela Resistência, ocupará, doravante, a cena literária, sem
conseguir, entretanto, “forçar as muralhas da Academia francesa, monumento
da vida intelectual francesa” (Novick,1985: 210).
Dialogues foi um texto escrito, no pós-guerra, em um momento de conflitos
históricos. O texto, entretanto, está vinculado, não à organização da resistência
armada, mas à luta, também clandestina, que alguns escritores sustentaram, com
as armas de que dispunham, para resistir, através das idéias, ao inimigo.
Esta luta desenvolveu-se, sobretudo, no teatro trágico, lugar das grandes
decisões, onde as contradições inerentes ao homem são expostas, em que se dá a
catarse, a liberação, a purgação da angústia humana (Leenhardt, 1995).
O teatro trágico ocupa um lugar de destaque na vida intelectual francesa
durante a Ocupação e no pós-guerra, enquanto o gênero romanesco apresenta
certa estagnação.
A relativa pobreza da produção romanesca, durante o decênio 1940-1950,
também pode ser explicada por fatores externos como a presença da censura, o
fechamento das fronteiras e a escassez de papel. A tiragem era limitada a 5000
exemplares o que diminuía a difusão das obras (de Beer, 1963: 266). Tais
43
motivos contribuíram para o florescimento do teatro que oferecia um campo
renovado e mais acessível à literatura.
Se, após a guerra, Aragon e Giono continuam sua obra, François Mauriac
dedica-se ao jornalismo; Martin du Gard não publica os romances que escreve e
Malraux já renunciara à obra romanesca, após a publicação de L’Espoir, em
1937. Bernanos sacrifica sua obra romanesca para dedicar-se aos Écrits de
Combat, sua obra polêmica, considerada prioritária naquele momento.
Graças à descentralização da cultura, um público maior e mais variado tem
acesso às grandes peças, antes restritas a Paris. Data de 1947 a criação do festival
de Avignon, uma data essencial na dramaturgia francesa do século XX, em que
se destacam a atuação de Jean Vilar e a preocupação do testemunho, a presença
atuante de Camus e de Jacques Copeau.
Parece-me, entretanto, que os motivos da escolha do teatro como meio de
expressão das tensões de um momento conturbado residem no próprio teatro.
No período da Ocupação, as reuniões foram, primeiramente, proibidas e,
posteriormente, desaconselhadas, por prudência. As representações teatrais
permitiam o agrupamento de pessoas, com o álibi do espetáculo público. E o
teatro constituía, muitas vezes, um lugar de resistência onde aconteciam
verdadeiras celebrações, congraçando público, atores, diretores e todos os que
contribuíam para a "festa do instante" (Bondy, 1996). O momento único e
mágico da representação teatral jamais pode ser repetido, mesmo com o texto
inalterado, os mesmos artistas, o mesmo espaço físico e, se possível, o mesmo
público. Trata-se de um instante fugaz e único.
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Razões de outra ordem também contribuíram para o auge do teatro nesta
época: o espaço físico era um abrigo, se não inviolável, pelo menos seguro. Além
disso, era aquecido, no rigor do inverno, quando a calefação era privilégio de
uma minoria.
Mas parece que o grau calorífíco não era o único elemento em jogo e o
teatro não monopolizava o interesse do público. As bibliotecas e os cinemas
estavam sempre repletos, as salas de espetáculo lotadas; o que cada um procurava
era evadir-se e esquecer, durante algumas horas, a dureza daqueles tempos.
Assim, o teatro foi, durante a Ocupação, e continuou a ser no pós-guerra,
um meio de comunicação, por excelência, entre os que se questionavam a si
próprios e às suas certezas e transformavam-nas em indagações.
No decênio 1940-1950, as peças de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre
constituem novidade no panorama teatral da época. Tradicionais quanto à forma,
revelam-se provocadoras quanto à visão do mundo que propõem.
Sem pretender repetir os inúmeros paralelos estabelecidos entre Camus e
Sartre, assinalo o papel de maître à penser - mentor intelectual - desempenhado
pelos dois escritores e a visão do mundo que exprimem, através do teatro, no
pós-guerra.
A percepção aguda do absurdo do mundo e a revolta, para Camus; a
responsabilidade do indivíduo colocado em situações-limite, para Sartre; negação
do trágico, para o autor de L’État de siège (1948); a condenação à liberdade, para
o autor de Les Mouches (1943), seriam estes os conceitos predominantes, o
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essencial das preocupações que os perseguem, partilhadas com o público, através
do teatro, utilizado como uma tribuna.
Camus, resistente de primeira data, lutara, como redator-chefe, à frente do
jornal Combat durante os primeiros anos do pós-guerra. À semelhança de
Mauriac, suas obras, publicadas durante os "anos negros", respectivamente, o
romance L’Étranger (1942), o ensaio Le Mythe de Sisyphe (1942) e a peça de
teatro Le Malentendu (1944) não parecem revelar nenhuma relação direta com a
conjuntura do momento político da época. Todavia, necessário se faz lembrar que
uma peça menos conhecida do grande público, Caligula, na qual o autor evoca o
clima de terror, a loucura e o crime foi escrita em 1938, publicada em 1944 e
representada em 1945.
Sartre combateu como escritor e não como resistente ativo na luta
clandestina. A representação de Les Mouches (1943), Huis clos (1944) e Les
Mains sales (1948) marcou época. A influência exercida pelo autor de La Nausée
é por demais conhecida. As gerações que se sucederam, do pós-guerra até sua
morte em 1980, revelam, de um modo ou de outro, marcas de sua influência,
exercida nos mais diferentes setores: filosofia, política e literatura.
Enquanto Camus e Sartre atingiam o grande público de esquerda, Henry de
Montherlant impunha-se a um público mais conservador. Seu percurso
intelectual caracteriza-se pela ambigüidade ideológica. Em 1945, Montherlant é
um dos poucos escritores de renome, punidos com a mais grave sanção do CNE:
interdição de publicar durante dois anos.
46
A reputação de colaboracionista justificava-se por seus escritos, durante a
ocupação, publicados em órgãos tais como: Cahiers franco-allemands (1940), La
Gerbe (1941-1942), Comoedia (1941). Esta revista, de jogo colaboracionista
sutil, conseguiu fazer com que grandes nomes da intelectualidade francesa
participassem de suas publicações: Giono, Sartre, Valéry, Copeau, Dullin,
Barrault. E também, ainda em 1941, quando o vazio se fazia em torno de Drieu
La Rochelle, Montherlant escreve artigos para a NRF. Além dos artigos em
jornais e revistas colaboracionistas ou simpatizantes, Montherlant publica, em
1941, Le Solstice de juin, obra menor, mas recebida pelos leitores como uma
apologia da Alemanha, uma celebração ambígüa do nazismo. Le Solstice de juin
merece importância porque modificou, por completo, o relacionamento do autor
com o público e justificou, aos olhos da maioria, sua presença na lista negra dos
condenados ao ostracismo intelectual, pela depuração.
O caso Montherlant não pode ser reduzido a simples colaboração pró-
Alemanha. Em 1942, o autor de Solstice de juin escreveu La Reine morte
representada com grande sucesso pela Comédie Française. A partir daí, cessa de
escrever romances, a exemplo de outros grandes nomes da literatura francesa, e
dedica-se ao teatro, afirmando-se como dramaturgo.
La Reine morte, com base em fato histórico português do século XIV, e no
drama espanhol do século XVII, Régner après la mort, de autoria de Luis Velez
de Guevara, narra o assassinato de Inês de Castro, a esposa secreta do herdeiro
do trono, por Alfonso V. Ao tornar-se rei, Pedro coroa o cadáver de Inês,
fazendo-a rainha.
47
Esse acontecimento inspirou inúmeros poetas e dramaturgos, entre eles,
Camões que imortalizou, em Os Lusíadas, o trágico episódio.
Montherlant enfatiza, sobretudo, a personalidade ambivalente do rei, atraído
por Inês de Castro, mas decidido a sacrificá-la, por razões políticas. O jogo do
poder, mesclado de sadismo, revela-se nessa peça que foi recebida, por
determinado público, como metáfora da Resistência francesa.
Jean Pierre Azéma observa, entretanto, que apenas uma única réplica: “En
prison se trouve la fleur du royaume” (Montherlant, La reine morte, 1958),
aplaudida pelo público, não permite que se possa considerar o autor de Solstice
de juin um jacobino, um resistente (Azéma, 1979:153).
Se se tratasse de um caso isolado na obra de Montherlant, La Reine morte
poderia ser considerada uma obra em que há alusões patrióticas, ou que o público
quis julgar como tais.
Em 1953, o dramaturgo publica Port-Royal, o drama da injustiça, no qual
expõe as perseguições infligidas por Luis XIV às religiosas da abadia de Port-
Royal-des-Champs; perseguições que culminaram com sua dispersão em
diferentes conventos e a destruição do próprio edifício onde florescera o
jansenismo.
O rigor, a procura do absoluto e, principalmente, a recusa dos valores
mundanos tornaram o jansenismo um elemento contestador da razão de Estado e
do argumento da autoridade sobre os quais se fundava o absolutismo. Por esses
motivos, entre outros, Port-Royal, no dizer de Louis Cognet, insere-se no vasto
48
movimento sociológico que provocaria o desmoronamento do Antigo Regime. E
não foi sem fundamento que certos meios jansenistas julgaram a execução de
Luís XVI, em 21 de janeiro de 1793, uma vingança póstuma do monastério
destruído (Cognet, 1961: 142-45).
A gênese da obra merece ser considerada. Em 1929, Montherlant, ao ler
Port-Royal de Sainte Beuve decide escrever uma peça de teatro inspirada em um
episódio desse movimento religioso e político que deixou marcas indeléveis na
História da França. Durante dois anos, de 1940 a 1942, trabalhou em uma
primeira peça que, por prudência, permaneceu inédita. Em 1948, ao relê-la, julga-
a insatisfatória e arquiva-a.
Uma nova leitura, em 1953, confirma o julgamento anterior, e Montherlant
resolve escrever uma segunda peça, inteiramente diferente da primeira, inspirada
em outro episódio da história da controvertida abadia.
Este breve histórico evidencia a importância do tema para o autor que
declarou ser o jansenismo sua verdadeira família espiritual: “Cette famille était et
ne cessera jamais d’être la mienne” (Montherlant, 1958: 664).
Considerado por muitos de seus contemporâneos um colaborador
ideológico, Montherlant escreveu, entretanto, La Reine Morte e onze anos mais
tarde, Port-Royal, que pode ser recebida como a tragédia da consciência livre
diante da prepotência da autoridade absoluta.
Os críticos julgam-no um escritor de múltiplas máscaras ou de inúmeras
facetas. E o próprio Montherlant parece confirmar sua ambigüidade e
49
complexidade ao atribuir a Soeur Angélique de Saint Jean, importante
personagem de Port-Royal, uma declaração que poderia endossar: “Ne cherchez
pas à percer ces choses. Il y a de tout en certaines âmes. Et parfois dans le
même moment” (Montherlant, 1958: 1047) (Grifos meus).
Julguei importante enfatizar este aspecto da obra de Montherlant porque
Port-Royal foi representada, na cena parisiense, aproximadamente, durante o
mesmo período em que Dialogues des Carmélites de Bernanos constituía o maior
sucesso da temporada teatral européia.
E não era por acaso que as duas peças tratavam de um fato histórico
francês, cujas personagens eram mulheres indefesas, religiosas, vivendo em
comunidade, vítimas de um poder absoluto e arbitrário.
Port-Royal também faz parte do repertório da Comédie Française e sempre
é representada com sucesso. Dialogues foi traduzida para várias línguas e as
sucessivas montagens alcançam grande êxito. No Brasil, foi representada
diversas vezes. Destaco a temporada, no teatro do Copacabana Palace, em 1955,
pela companhia de Henriette Morineau. Maria Clara Machado representava
Blanche de la Force e Madame Morineau vivenciou Madame Lidoine, a segunda
Priora. Se mais representações não há, a causa reside, entre outras, nos inúmeros
problemas de direitos autorais que uma montagem acarretaria. Bernanos deixou
muitos herdeiros e há processos ainda em curso.
Dialogues, julgada por muitos críticos a melhor peça teatral do pós-guerra,
foi elaborada em plena guerra fria, conflito eminentemente intelectual,
compreendido entre 1947-1956.
50
A noção de guerra fria assume, na França, conotações de uma verdadeira
luta com toda a carga semântica de agressividade nas relações interpessoais que o
termo acarreta e de recusa em admitir não somente a concessão, a negociação,
mas também a neutralidade e a cômoda posição de meio termo.
Após a efêmera fraternidade vivida na época da Resistência, os intelectuais
dividiam-se em campos opostos. Não ser comunista equivalia a ser anticomunista
e o anticomunista, no julgamento exaltado da época, correspondia a um fascista.
A guerra fria remete a um passado imediato: ao processo de depuração
posto em prática após a Liberação de Paris pelos Aliados e aos anos negros da
ocupação nazista.
Esses momentos caraterizaram-se por uma espécie de terror: a imposição,
pela força, do que se considerava um direito ou uma verdade. E, em se tratando
da depuração e da guerra fria, o terror assume o que poderia ser considerado uma
manifestação do jacobinismo sempre presente nas guerras franco-francesas
depois da Revolução de 1789.
O terror assumiu diferentes formas nos diversos momentos: o ocupante
alemão tentou eliminar os judeus, sufocar a Resistência e provocou sentimentos
de horror, medo e vergonha naqueles que "não cantaram" para o inimigo. O
acerto de contas do pós-guerra fez milhares de vítimas, em uma tentativa de
limpeza que se assemelhava ao Terror de 1793. E a esquerda, predominante na
guerra fria, não admitia a menor possibilidade de um intelectual não pertencer ao
partido comunista, desencadeando exclusões que equivaliam à morte em vida.
51
O último texto de Georges Bernanos trata de um fato histórico, ocorrido no
século XVIII durante o Terror da Revolução Francesa. Como já referido, o autor
fora solicitado a escrever os diálogos para um filme baseado em uma novela de
Gertrud von le Fort. Estas circunstâncias não invalidam o fato de que o autor se
apaixonou pela tarefa e dela fez não só uma última meditação sobre a vida e a
morte, como seus críticos assinalaram, mas também uma reflexão sobre o
momento histórico em que vivia.
A contemporaneidade, a ocupação alemã, a depuração e a guerra fria
formam o contexto implícito de Dialogues, que se inscreve na data de publicação
do texto.
No dizer de Derrida, uma data é sempre uma metonímia e designa a parte
de um acontecimento ou de uma seqüência de acontecimentos para lembrar o seu
todo (Derrida, 1986: 41). E também a referência à publicação da obra em 1949,
sabendo-se que fora escrita em 1947-1948, equivale ao todo, em determinado
contexto.
O contexto, implícito mas atuante, articula-se com o período do Terror no
qual a ação da peça se desenrola. Os dois momentos refletem-se como em um
processo especular - o Terror de 1792 -1793 é revisitado à luz da
contemporaneidade e esta desvela as constantes que a ligam à Revolução
Francesa, considerada por muitos historiadores como a inspiradora de todas as
revoluções modernas (Sédillot, 1990: 272).
Assim, a inscrição da História, em Dialogues, realiza-se através do
desenrolar da Revolução Francesa.
52
A História, manifestada sob o aspecto da Revolução Francesa, é
considerada la toile de fond - o pano de fundo - quando se privilegia o drama
espiritual, como julga Monique Gosselin. E também pode ser considerada a
structure portante de l’action - a estrutura que sustenta a ação - no dizer de
Pierrette Renard. A noção de estrutura, evocando um termo de engenharia,
acrescenta uma importância essencial ao papel desempenhado pela História em
Dialogues.
Parece-me, entretanto, que, além de pano de fundo e estrutura sustentadora,
a Revolução é, sobretudo, uma personagem discreta porém implacável que
modifica a sociedade e que teria uma função análoga ao Destino da tragédia
clássica.
Importa, assim, ressaltar que o Terror de 1793, reescrito por Bernanos, em
1948, acha-se contaminado, em Dialogues des Carmélites, por outros terrores
contemporâneos. O terror da ocupação nazista, da depuração e da guerra fria já
foram mencionados, mas o terror da guerra civil espanhola, vivido em Maiorca,
também está presente de modo implícito mas atuante.
O autor de Les Grands Cimetières sous la lune associava os dois terrores e
rebate, de antemão, em 1938, uma possível acusação de impropriedade de
termos: “Si le mot de Terreur vous semble trop gros, cherchez-en un autre, que
m’ importe!” (EEC I: 430).
Embora o terror reinante em Maiorca diferisse, aparentemente, do Terror de
1793, Bernanos discernia o elemento comum que os identificava: o desrespeito à
dignidade do homem e a imposição pela força, da ordem e do que se considerava
53
o bem e a virtude. O terror vivido em Maiorca articula-se, portanto, também, com
o de 1793.
Bernanos, em 1939, no Brasil, ao evocar a guerra civil espanhola, enfatiza a
distinção entre os dois momentos da Revolução Francesa: “Ce n’ est pas avec
Hoche ou Kléber, c’ est avec Fouquier-Tinville et Marat que vous avez trinqué”
(CORR II: 257). O general Louis Hoche e o general Jean-Baptiste Kléber,
representam, para Bernanos, um certo equilíbrio e moderação no âmbito do
processo revolucionário, o que os ligaria aos ideais de 1789, em oposição a Marat
e Fouquier-Tinville, nomes emblemáticos do Terror desmedido.
O autor aludira em Les Grands Cimetières sous la lune a outros terrores que
pontuaram a História da França como a noite de São Bartolomeu e a Comuna de
Paris, em 1871, denunciando o princípio que os impulsionava: a determinação de
exterminar todos aqueles que fossem julgados indesejáveis, em um processo de
limpeza (EEC I: 433). E indesejável é aquele que é diferente, aquele que se isola
de uma verdade global.
Cumpre ressaltar, porém, a modificação do ponto de vista de Bernanos
sobre a Revolução Francesa ao longo dos anos. Seu interesse pelo Movimento de
1789 manifesta-se após a ruptura com Maurras em 1932, época em que Bernanos
descobre “a mensagem universalista da Revolução, revista por Michelet e
corrigida por Péguy” (Kohlhauer, 1994: 105) e, sobretudo, os valores de uma
revolução até então depreciada.
Os textos são elucidativos: em 1931, ele escreve: “...cette Révolution
fameuse, celle de 1789, n’ a eu qu’ un résultat certain: la consolidation des biens
54
acquis grâce à quelques poignées d’ assignats, frauduleusement” (EEC I: 102).
Como observa Monique Gosselin, a guerra civil espanhola provoca em Bernanos
a descoberta de que o Terror não era o apanágio dos teóricos de esquerda, êmulos
de Robespierre e que poderia emanar de homens e cristãos com quem havia
partilhado os mesmos valores.
A atitude tomada em relação ao Movimento de 1789 evolui e leva
Bernanos a considerá-lo em 1947 “...non pas l’ écroulement, mais l’
épanouissement de l’ancienne France, éperdue jusqu’au délire de confiance en
elle-même et de foi dans l’ homme” (EEC II:1273).
Bernanos não considera a Revolução Francesa como um todo e opõe 1789 a
1793 dentro da tradição monarquista. Este antagonismo permanece em
Dialogues, seu último texto, no qual estão presentes todos os terrores vivenciados
ou que faziam parte de sua cultura, como o horror à Revolução de 1793 (CORR
II: 257), horror explicável por sua formação católica conservadora, tradicional e,
principalmente, por suas idéias monarquistas nunca renegadas.
A conclusão a que o autor chegara, em 1938, poderia ser repetida, após o
decurso de um decênio: “Toutes les Terreurs se ressemblent, toutes se valent,
vous ne me ferez pas distinguer entre elles, j’ai vu trop de choses maintenant, je
connais trop bien les hommes, je suis trop vieux” (EEC I: 433).
A repetição do advérbio trop - em excesso - indica o cansaço e o
desencanto do autor, já bastante doente, e exprime sua angústia e solidão moral.
55
Assinalada a articulação dos diferentes terrores, uma pergunta impõe-se:
tratar-se-ia de uma repetição ou de um paralelismo que deve ser questionado?
Repetição e paralelismo não são sinônimos. Repetir significa que um fato
ou ação torna a acontecer e paralelismo indica uma progressão semelhante de
coisas comparáveis ou que acontecem da mesma maneira.
No contexto histórico referido, trata-se de uma repetição e de um
paralelismo: o Terror de 1793 reaparece na guerra civil espanhola, durante a
ocupação nazista, na depuração e na guerra fria, de modo análogo, mas diverso.
Os diferentes terrores articulam-se e podem ser lidos como espelho e refração.
Trata-se, então, da concepção cíclica do tempo, da volta periódica de certos
acontecimentos e de personalidades, do retorno eterno?
A novela de Gertrud von le Fort parece autorizar essa leitura, porquanto a
autora admite a teoria dos ciclos cósmicos, do Caos: “O caos, que brame
eternamente no mais profundo dos elementos, rompeu a crosta aparentemente
firme dos hábitos” (le Fort, 1937: 15).
As concepções históricas da romancista alemã e do autor de La France
contre les robots, entretanto, diferem. Para Bernanos, a História existe em si e
não consiste em repetições inevitáveis, embora existentes. A fé, uma nova
categoria introduzida no contexto, permite, no dizer de Eliade, uma liberdade
criadora por excelência:
Ela constitui uma nova fórmula de colaboração do homem com a criação... Somente esta espécie de liberdade, (...) fundamentada, garantida e apoiada por Deus é capaz de defender o homem moderno contra o terror da história ... [...] Qualquer outro conceito de liberdade moderna, independentemente da satisfação que possa proporcionar a quem a possua, é impotente para justificar a história. E a não justificação eqüivale ao terror da história. (Eliade, 1969: 180)
56
Para Bernanos, cristão, a História existe como tal e não como mera
repetição. O passado permite-lhe melhor compreender seu próprio tempo.
Sua visão histórica orienta-se, não para o passado, mas para o futuro, na construção de uma utopia. O termo Utopia empregado não no sentido vulgarizado de projeto irrealizável, quimera, ou fantasia, mas na acepção de construir, de refazer um mundo para os homens livres" (Kohlhauer, 1988: 113-39).
Em conferência pronunciada, em 1946, em Genebra, intitulada: "L’esprit
européen et le monde des machines", Bernanos repete como um refrão: “Le
monde ne sera sauvé que par les hommes libres. Il faut faire un monde pour les
hommes libres” (EEC II: 1370).
Nesse contexto histórico, no final da primeira metade de um século
balisado, não pelos períodos de paz, mas por duas guerras mundiais, Bernanos
reflete sobre os regimes totalitários, sobre a prepotência da força e medita sobre o
destino das dezesseis carmelitas de Compiègne, vítimas de um regime de
exceção.
Como ser livre em um mundo dominado pela máquina? A vida seria mais
importante do que a honra? O sentimento de honra é mais importante do que a
vida? O que ameaça o homem? Como reagir diante da força? E, principalmente,
como conciliar o impasse diante do poder arbitrário e a promessa de libertação,
de participar “da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rom. 8,21) ?
Bernanos interrogava-se sobre estes problemas ao escrever seu último texto
e levou seu questionamento até às últimas conseqüências. A sinceridade das
indagações explicaria, talvez, por que esta peça comove mesmo aqueles que não
partilham sua fé e nela encontram o eco de suas preocupações.
57
Dialogues não é apenas um belo texto recitado por religiosas
contemplativas. É também uma peça sobre o medo, a vergonha de sentir-se
indigna, o drama. da exclusão, a procura de um lugar no mundo e um debate
interno sobre as mudanças revolucionárias que transpõem as paredes de um
Carmelo.
Todas estas questões serão discutidas, na forma de diálogos, à luz da fé que
norteava Bernanos.
58
INTERTEXTO: FIGURAS
Após ter estudado o contexto histórico em que foi escrita a peça Dialogues
e antes de analisar o texto propriamente dito, considero importante enfocar
algumas figuras que funcionam como intertexto da ação: a cidade de Compiègne,
a ordem do Carmelo, o convento do Carmelo na França em revolução. Poder-se-
ia caracterizá-las como intertextos, por vê-las não como meros cenários ou pano
de fundo. Classifico também a Revolução Francesa como intertexto porque a
considero, na peça, não um momento histórico congelado no tempo, mas um
conjunto de discursos, com os quais dialoga o texto de Bernanos.
Primeiramente, enfocarei, nessa perspectiva, a cena do mundo, o espaço
temporal, para em seguida propor uma leitura de Dialogues.
3.1. Compiègne - um espaço de violência
“Très fidèle au roi et au règne” - divisa da cidade de Compiègne, antes da Revolução Francesa.
O núcleo principal da ação de Dialogues se desenrola, como referi, durante
a Revolução Francesa, de 1789 a 1794, do início do processo revolucionário ao
ápice do Terror, no âmbito do Carmelo de Compiègne.
A Revolução Francesa inaugurou uma nova era e, ao abolir o Antigo
Regime, pretendia suprimir os privilégios garantidos à nobreza e eliminar as
injustiças sociais. Liberdade, Igualdade e Fraternidade, complexo e utópico
ideário revolucionário que, no dizer de Celina Maria Moreira de Mello, funciona
compactado apenas como slogan, e, se analisado, exibe contradições entre a idéia
59
de Liberdade vinculada ao liberalismo, a de Igualdade, inspirada no
republicanismo e o ideal de Fraternidade, influenciado pelo socialismo (Mello,
1994).
Apesar das contradições, a Revolução Francesa mudou a História do
mundo. A ruptura com o passado, a instauração no poder político de uma
ideologia burguesa e sobretudo a possibilidade de uma certa mobilidade social
marcam este período de mudanças, de transição e de crise.
Neste contexto, instaura-se o Terror, uma tentativa de impor a todos a
virtude através da força e da violência. A violência constitui uma resposta ao
medo, sentimento inaceitável para muitos e que só pode ser vencido e controlado
pela aceitação de sua existência. E o medo, no dizer de René Girard, em La
violence et le sacré (1972), uma vez desencadeado e exprimindo-se pela
violência, requer "bodes expiatórios" para ser apaziguado.
Durante o período do Terror da Revolução Francesa, o ódio dirigia-se
contra os representantes da nobreza e do clero, classes dominantes no Antigo
Regime, porque o povo temia que essas classes recuperassem o poder.
Quando se fala do Terror, há que se distinguir o Terror reinante em Paris,
comandado por Robespierre e seus partidários, e o Terror existente no resto da
França, desigual e dependente daqueles que o representavam. Assim, em algumas
regiões, salvavam-se as aparências, empregava-se uma terminologia
revolucionária, mas, na realidade, os extremismos eram evitados. Vivia-se no
compromis - um meio-termo.
60
A cidade de Compiègne de 1789 a 1794 é a cena principal dos
acontecimentos do texto em estudo. A escolha da data em relação à Revolução
Francesa nunca é anódina e reflete uma escolha de caráter ideológico. Há os que
datam o processo revolucionário a partir de 1789, consideram-no um bloco
indiviso e não fazem distinção entre 1789, início do processo revolucionário, o
Terror de 1792, marcado pelo massacre dos padres refratários, os que se
recusaram a jurar fidelidade à Nação, e o Grande Terror de 1793-1794. Há
também os que aceitam os ideais de 1789 e condenam a violência do Grande
Terror.
Essa distinção permite concordar com os ideais de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade e a proclamação dos Direitos do Homem. Bernanos, discípulo de
Péguy, julga a Revolução de 1789, “... l’épanouissement de l’ancienne France,
éperdue jusqu’ au délire de confiance en elle-même et de foi dans l’homme”
(EEC II:1273), porém confessa ter sido educado no horror da Revolução de
1793: "J'ai été élevé dans l'horreur de la Révolution de 1793, et de ce régime des
suspects dont Robespierre nous a laissé l'effrayante formule: Il n'y a pas
d'innocents parmi les aristocrates" (CORR: 257).
Ao escrever os diálogos, para o roteiro extraído da novela de Gertrud von le
Fort, Bernanos, ao contrário da romancista alemã, menciona, rigorosamente, as
datas e os espaços no início da ação, propondo, como observa Pierrette Renard,
um nível suplementar de significação. E, no final, não mais indica as datas com
precisão, compacta os acontecimentos, visando um maior impacto dramático,
enfatizando o Terror dominante.
61
O início da ação é datado de 1789 e o fato histórico refere-se à execução de
dezesseis carmelitas, em Compiègne em 1794. Cidade muito antiga que vem da
ocupação romana, Compiègne, está situada às margens do rio Oise, a cem
kilometros de Paris, fazendo parte do Departamento de Oise.
Sua fundação é atribuída, sem provas, a Júlio César. O mais antigo
documento onde consta o nome de Compiègne (do latim compendium) é datado
do século VI (diplôme de Childebert I, 557). Além de ser uma das residências
preferidas dos reis da França, esta cidade foi sempre um teatro de guerras, de
lutas e de decisões históricas.
Marcada por importantes acontecimentos políticos e violentas paixões que
tiveram como cena sua floresta, seus castelos e suas igrejas, a cidade de
Compiègne foi sempre um espaço de violência.
Em 1430, Joana d’Arc foi aprisionada por seus inimigos às portas da
cidade. Uma história controvertida e até hoje mal explicada. Foi no castelo de
Compiègne que Luis XV recebeu a arquiduquesa Maria-Antonieta, noiva do
futuro Luis XVI. Em 1810, Napoleão Bonaparte restaurou o castelo para
recepcionar Maria-Luiza d’Áustria.
O Armistício de 11 de novembro de 1918, quando a França venceu a
Alemanha, foi assinado na floresta de Compiègne, assim como o vergonhoso
Armistício de 1940 em que o governo de Vichy se rendeu ao inimigo.
Alvo de bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial, Compiègne foi
sede de um campo de prisioneiros políticos.
62
A sociedade de Compiègne, antes da Revolução Francesa, podia ser
caracterizada pela moderação, pelo compromis, pelo meio-termo. E o meio-termo
permite soluções variadas e aleatórias.
Essa cidade, nostálgica das estadas lucrativas do rei e de sua corte,
amargava, nos idos de 1790, uma recente derrota: a perda do centro
administrativo que coube à cidade de Beauvais. Havia um certo acordo político,
em aceitar o conjunto das reformas impostas pela Revolução, sobretudo as
referentes à Igreja.
Nesta sociedade notava-se o peso da influência de um grande número de
padres conformistas, os que haviam jurado fidelidade à Constituição Civil do
Clero, em janeiro de 1791. O que se procurava, sobretudo, era salvaguardar o
equilíbrio interno da sociedade e, para isso, todos os acordos políticos
necessários eram realizados.
Importa considerar que a Revolução foi uma época favorável à ascensão de
categorias sociais durante muito tempo discriminadas. Entre estas destacava-se o
baixo clero, constituído de párocos e vigários, plebeus, mal remunerados e
descontentes com o alto clero. Os nobres, que formavam o alto clero, eram
beneficiários do dízimo e ocupavam importantes e rendosos cargos: eram bispos,
cônegos, vigários episcopais. Essa dicotomia do clero contribuiu para a queda do
Antigo Regime e para a consolidação das conquistas revolucionárias.
Ora, durante os anos 1793-1794, com o advento do Grande Terror, já não
havia possibilidade de acomodação, de meio-termo. Motivado, segundo alguns
historiadores, sobretudo pela revolta da Vendéia, pela presença dos inimigos nas
63
fronteiras e pelas dificuldades econômicas, o Terror se fez exigente. E as
autoridades e a sociedade de Compiègne foram acusadas de "tiédeur
républicaine", no jornal de Marat, pelo geógrafo Bussac. A reação não se fez
esperar: o autor da denúncia foi punido e encarcerado e a associação jacobina
Amis de la Constitution aderiu de maneira oportunista à Montanha, o partido de
Marat, Danton e Robespierre.
A sociedade de Compiègne procurou demonstrar, em seguida, um grande
espírito revolucionário. O clube jacobino chegou a propor que Compiègne fosse
rebatizada de Marat-sur-Oise. Além disto, as autoridades constituídas de
Compiègne apressaram-se em promulgar um edital descristianizador sobre a
regulamentação dos cemitérios, em 29 de outubro de 1793, calcado no edital de
10 de outubro do mesmo ano. O zelo em cumprir as determinações
revolucionárias revelaria talvez um receio de não se ser considerado
suficientemente patriota.
A condenação e a execução das dezesseis carmelitas de Compiègne, em
1794, estaria ligada ao desejo de fazer esquecer que Compiègne ostentara outrora
a divisa: "très fidèle au roi et au règne"? Teria sido um meio de exorcisar um
passado comprometedor e provar a fidelidade à Revolução?
Havia, evidentemente, um ódio contra os conventos. Entre outros motivos,
devido à estreita união entre a aristocracia e a Igreja católica, que constituía ao
mesmo tempo uma instituição religiosa e política. E os conventos eram
considerados, em geral, redutos da nobreza. Por isso foram perseguidos e
sofreram as medidas revolucionárias: proibição de emissão dos votos religiosos -
64
28 de outubro de 1789, anulação dos votos religiosos - 13 de fevereiro de 1790,
supressão da vida monástica: confisco dos bens e expulsão das religiosas de seus
conventos - 18 de agosto de 1792.
Por que as carmelitas foram guilhotinadas? As religiosas teriam
representado o papel de uma espécie de "bode expiatório"? De acordo com a
teoria de R. Girard, a escolha recai sempre sobre uma vítima um pouco marginal
em relação ao grupo social: mulheres, estrangeiros, loucos, crianças. A vítima
devia ser indefesa e não provocar vingança.
As carmelitas de Compiègne representaram, em um determinado momento
da Revolução, a vítima ideal. Mulheres que haviam renunciado ao mundo,
exilando-se em um convento e na maioria pertencendo à nobreza, representavam
um bom alvo à ira do povo que nelas via a síntese da opressão: religião e
nobreza. Fácil foi a Fouquier-Tinville, acusador público do tribunal
revolucionário e que também morreu guilhotinado, acusá-las de atividades
contra-revolucionárias e enviá-las ao cadafalso.
3.2. A Ordem do Carmelo
Non, ma fille, nous ne sommes pas une entreprise de mortification ou des conservatoires de vertus, nous sommes des maisons de prière. Bernanos - Dialogues
A palavra Carmelo serve para designar, ao mesmo tempo, a Ordem do
Carmelo (Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria, designação oficial) e os
conventos desta mesma Ordem.
65
Sua origem, pouco conhecida, remonta à 3ª cruzada (1189- 1192). Com
Jerusalém libertada, os cruzados descobriram os eremitas que viviam nas
encostas áridas do Monte Carmelo (Palestina), levando uma vida solitária, de
oração silenciosa e pessoal. No século XIII, por volta de 1220, Santo Alberto,
patriarca de Jerusalém, promulgou a Regra da Ordem que ainda hoje é
observada. Em torno de 1235, os carmelitas foram expulsos pelos Sarracenos e
espalharam-se pela Europa. Em 1254, São Luis, rei da França, trouxe de sua
Cruzada seis carmelitas que se estabeleceram em Paris.
Os carmelitas sofreram uma reforma no século XV, quando foi criado o
ramo feminino da Ordem, e outra no século XVI, mais profunda, orientando o
Carmelo para uma vida mais austera e mais contemplativa. Santa Teresa d’Avila
e São João da Cruz foram os grandes reformadores da Ordem. No século XVII,
em 1604, foi fundado em Paris o primeiro Carmelo Reformado.
O Carmelo desenvolveu-se extraordinariamente na França. Diferentes
classes sociais aí se encontravam, mas sempre constituiu o reduto de uma
aristocracia social e religiosa, que ali procurava um lugar propício à busca dos
valores eternos.
Esta ligação alienava a simpatia da alta burguesia, da noblesse de robe, para
com o Carmelo. O termo noblesse de robe (nobreza de toga), empregado
genericamente em sociologia, independe do fato de ter havido ou não
enobrecimento de um ou outro indivíduo e aplica-se principalmente aos
magistrados.
66
Cada grupo social possuia sua visão do mundo e essas se revelavam
antagônicas. A expressão "visão do mundo" é empregada segundo a definição de
Goldmann: "o conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias que reune os
membros de um grupo (freqüentemente de uma classe social) e os opõe a outros
grupos" (Goldmann, 1959: 26).
Assim, conta-se que no início do século XVII, Mère Marie-Angélique
Arnauld, a "abadessa-criança", filha de Antoine Arnauld, advogado do
Parlamento de Paris, no início de sua conversão, ao cogitar procurar um convento
mais austero, antes de descobrir que sua verdadeira vocação era reformar Port-
Royal, afastou a possibilidade de escolher o Carmelo. Entre outras razões, julgara
ser este bem-visto demais na Corte e contar com um número excessivo de
religiosas da mais alta nobreza. (Cognet, 1950: 81).
Ainda no século XVII, em 1674, Louise-Françoise de la Baume le Blanc,
duquesa de La Vallière, abandonada por Luis XIV, refugiou-se no Carmelo
parisiense da Encarnação, rue Saint Jacques, sob o nome de Louise de la
Miséricorde. Escreveu Réflexions sur la miséricorde de Dieu e, segundo as
crônicas, viveu uma vida exemplar.
No século XVIII, de maneira menos romanesca, porém igualmente
edificante, Madame Louise de France, filha de Luis XV e de Maria Leczinska,
fez-se carmelita no Carmelo de Saint-Denis. Inúmeros casos seguem o seguinte
esquema: ao ficar viúva, Madame X entrou no Carmelo, onde levou uma vida
edificante.
67
Há muito o que se dizer sobre a importância sócio-econômica, política e
sentimental dos conventos na França e alhures. De modo geral, em um certo
imaginário, os aspectos sócio-econômicos foram minimizados e o sentimental
exacerbado, encontrando no roman noir sua forma privilegiada de expressão. É
importante observar que este gênero literário, caracterizado pela hipérbole, que
explora o sentimentalismo dos leitores, abusando de um vocabulário onde
predominam palavras como mártir, sacrifício, renúncia, pecado, regeneração,
condenação, luz e trevas, conheceu seu apogeu entre 1780 e 1790, na França e na
Inglaterra, e era lido por um grande número de leitores.
O tema da religiosa a contragosto, assim como o da mulher desiludida com
o amor que se refugia num convento, revela-se recorrente na literatura. Bastaria
citar Mélanie ou la religieuse de la Harpe (1770), drama inspirado no suicídio de
uma jovem religiosa ou La victime cloîtrée de Boutet de Monvel (1792, atenção à
data) e o célebre La Religieuse de Diderot (1796) com o qual Bernanos
evidentemente dialoga, sem esquecer On ne badine pas avec l’amour de Alfred
de Musset (1834), sempre representado com sucesso e Port-Royal de
Montherlant (1954).
A figura da religiosa atrairia talvez por dois motivos: trata-se da virgem,
santa, meiga, compassiva, da esposa de Cristo. Desejá-la, seria provocar os céus;
seduzí-la, um sacrilégio. A outra explicação seria a fantasia masculina de
encontrar a mulher-irmã. Baudelaire, ao cantar a mulher amada, chamava-a
freqüentemente "ma soeur" (Baudelaire,1917: 195). Tratar-se-ia da necessidade
que o homem tem de bondade, de ternura e de cumplicidade. A irmã, soror, não
68
é o simples feminino de irmão, frater; aqui existe um componente a mais, de
compaixão e de simpatia (no sentido etimológico de sym + pathia: sofrer junto).
Roland Barthes qualifica esta forma de amor, cuja versão institucional seria o
casamento, como uma utopia “L'amour sororal... une utopie, un lointain très
ancien ou très futur" (Barthes, 1963: 17), utopia recorrente nos que
consideram a ternura uma qualidade exclusivamente feminina.
De modo geral, a religiosa que exerce fascínio é a contemplativa, a
enclausurada. A monja velada significa o interdito e por essa razão atrai as
fantasias masculinas que lhe atribuem beleza, juventude e fragilidade,
personificando a vítima indefesa. Bernanos ironiza esse cliché, vulgarizado por
Diderot, ao mostrar uma religiosa muito idosa, em vez da jovem seqüestrada que
os revolucionários esperavam encontrar, durante a busca ordenada pelo Comité
Revolucionário (DC: 1637).
Entretanto, as religiosas que exercem uma atividade apostólica e que podem
ser olhadas seriam consideradas seres assexuados e designadas indistintamente
como irmãs de caridade. Prevalece a qualificação caridosa, eliminando outras
possíveis adjetivações. E não é por acaso que os franceses englobam todas as
religiosas apostólicas com a designação: Les bonnes soeurs, que corresponde a
Les bonnes femmes, expressões ligeiramente pejorativas.
Os conventos representaram um papel muito importante na França, durante
o Antigo Regime, podendo ser um refúgio para as viúvas, as mulheres muito
pobres ou muito feias, uma espécie de colégio interno onde as jovens aristocratas
69
adquiriam alguns conhecimentos e esperavam o casamento, ou mesmo um lugar
onde se procurava viver um ideal de perfeição, através da renúncia e da oração.
No caso especfíco do Carmelo de Compiègne, há laços que sempre o
ligaram à família real. Ana d’Áustria, Luis XIV, o Duque de Orléans, Madame
de Maintenon, Maria Leczinska, Luis XV e mesmo Maria Antonieta e Luis XVI,
cultivaram grande amizade e admiração pelas filhas de Santa Teresa. Maria
Leczinska talvez tenha sido a que mais próxima esteve do Carmelo.
Profundamente católica, buscava, sempre que podia, refúgio no Carmelo.
As crônicas carmelitanas relatam até que ponto as religiosas eram
observantes da Regra. A rainha Maria Leczinska resolveu, um dia, dormir no
Carmelo, por motivos pessoais. Quando a Priora, que não tinha sido consultada,
tomou conhecimento do fato, forçou, delicadamente, a rainha a voltar para o
palácio, pois a Regra não permitia que mulheres casadas dormissem no convento.
Estas relações entre o Carmelo e a nobreza, com o Antigo Regime, mais do
que evidentes e em nenhum momento renegadas, constituíram um dos motivos
da condenação da comunidade de Compiègne em 1794.
Feitas estas considerações referentes ao intertexto: Revolução Francesa,
cidade de Compiègne, Ordem do Carmelo e o Convento do Carmelo, analisarei o
texto propriamente dito, ao propor uma leitura de Dialogues de Georges
Bernanos.
70
4. O TEXTO
J'ignore pour Qui j'écris, mais je sais pourquoi j'écris. J'écris pour me justifier. - Aux yeux de qui? - Je vous l'ai déjà dit, je brave le ridicule de vous le redire. Aux yeux de l'enfant que je fus. Bernanos
Dialogues des Carmélites, espécie de testamento espiritual de Bernanos,
representa o termo de uma evolução política, literária e espiritual. No dizer de
Monique Gosselin, esta obra sintetiza toda a experiência humana e espiritual de
Bernanos, elucidada e transfigurada pela escritura.
A epígrafe de Dialogues é uma citação de La joie:
En un sens, voyez-vous, la Peur est tout de même la fille de Dieu, rachetée la nuit du Vendredi-Saint. Elle n'est pas belle à voir - non - tantôt raillée, tantôt maudite, renoncée par tous... Et cependant, ne vous y trompez pas: elle est au chevet de chaque agonie, elle intercède pour l'homme (OR: 675).
O medo superado e resgatado, a reversão de valores, temas centrais em La
joie (1929) e em Dialogues (1947-48), textos separados por quase vinte anos,
revelam a unidade da obra bernanosiana.
Qualquer estudo que se faça da peça deve considerar o fato de Bernanos tê-
la escrito sob a forma de diálogos para um filme a ser realizado. O escritor
cronometrava as cenas e privilegiava as imagens. O apelo visual, o olhar do
escritor, caracteriza a obra bernanosiana em geral. Como observa Michael
Kohlhauer, em Traverses, sursauts, appartenances (1998), Bernanos escreve
como alguns filmam: o mais perto possível do olhar.
71
Olhar é uma ação voluntária e significa dirigir o olhar para ver melhor. Ver
significa uma percepção pela visão, que pode ser involuntária.
Bernanos emprega os significantes adequados a cada situação. Assim, em
Les grands cimetières sous la lune, o verbo ver é repetido como uma constante:
“Oui, certes, il m’a été donné de voir des choses curieuses, étranges" (EEC I:
419) confessa o autor, antes de relatar um acontecimento revoltante, do qual se
inteirara quase a contragosto. E comenta os massacres presenciados atestando sua
veracidade, com o argumento: eu vi. "J’ ai vu, j’ ai vu de mes yeux, j’ ai vu moi
qui vous parle, j’ ai vu un petit peuple chrétien [...] s’ endurcir tout à coup, j’ ai
vu s’ endurcir ces visages" (EEC I: 468). Quando deseja enfatizar a atenção, o
propósito, Bernanos emprega o verbo olhar: “Il est dur de regarder s’avilir sous
ses yeux ce qu’on est né pour aimer” (EEC I: 438).
Toda a obra de Bernanos pode ser lida sob o signo do olhar, de Sous le
soleil de Satan a Dialogues des carmélites. No prólogo da peça, o jogo ver - ser
visto será evidenciado na análise que se segue.
72
4.1. Prefigurações
4.1.1. O Prólogo de Dialogues des Carmélites - prefiguração da
tragédia
Ao escrever os diálogos para um filme baseado na novela La dernière à
l’échafaud, Bernanos reescreve tanto a História quanto a ficção.
Os dois planos, histórico e ficcional, interligam-se. É difícil separar, em
uma primeira leitura, a história da ficção. Os Duques de la Force, por exemplo,
realmente existiram e pertenciam à mais antiga nobreza da França. Gertrud von
le Fort identifica-os com o nome patronímico, com o significante la Force, mas
transforma os duques em marqueses. Bernanos mantém inalterada a modificação
feita pela romancista alemã.
Curiosamente, porém, os Duques de la Force eram os senhores de Caumont,
onde o pai de Mère Saint-Augustin seria negociante de gado - "marchand de
boeufs" - uma criação de Bernanos que será analisada posteriormente.
Em toda a peça, nota-se a coexistência de elementos históricos e ficcionais
que Maria Teresa de Freitas, em Literatura e história (1986), chama de
"narrativa híbrida", meio de expressão da visão trágica de Bernanos.
En 1774. Place Louis XV à Paris, le soir des fêtes données pour le mariage du Dauphin, futur Louis XVI, avec l’archiduchesse Marie-Antoinette. Les carrosses des aristocrates passent au milieu de la foule joyeuse contenue par le service d’ordre. Dans l’un des carrosses, on aperçoit un jeune couple, le Marquis de la Force et sa femme, qui est enceinte. Le Marquis descend de voiture et s’ éloigne vers les tribunes. Bernanos- Dialogues - Prólogo
Paris, 1774. Especificar uma data, personagens e lugares referindo-se a um
acontecimento equivale a inserir-se na História. E esta data não é anódina.
73
Refere-se às festas oferecidas por ocasião do casamento de Maria Antonieta e do
futuro Luís XVI. Trata-se de um fato histórico verificável.
Ao introduzir uma data, Bernanos procuraria dar um estatuto histórico ao
seu texto? Ou seria uma maneira de alertar o leitor / espectador para a
prefiguração da Revolução que esta cena constitui?
O primeiro quadro apresentado é de alegria e de festas. Nas comemorações
do casamento do Delfim, futuro Luís XVI, enfatiza-se a função - príncipe
herdeiro - enquanto sua identidade, colocada como um aposto, indica uma
previsão a ser realizada. O contraste evidencia-se com a apresentação da futura
rainha - a arquiduquesa Maria Antonieta, designada por seu nome próprio. O
leitor, conhecedor dos fatos históricos, pode deduzir um indício de um dos
grandes processos da História: a importância do papel representado por Maria
Antonieta e seu destino trágico, contraposto ao do futuro Luís XVI, cuja função -
ser rei - foi mais importante do que sua personalidade. Embora suas
contradições, teimosia, hesitações e fraquezas tenham apressado o fim da
monarquia na França, Luís XVI é visto, por inúmeros historiadores, como o rei,
vítima dos nobres e, principalmente, daquela que é julgada ora "La pauvre
Marie-Antoinette" ora o castigo infligido por Deus à França.
Mas na festa de seu casamento com o herdeiro do trono francês, Maria
Antonieta, filha da imperatriz Maria-Teresa da Áustria, era festejada com
entusiasmo.
74
No prólogo, o primeiro quadro é de alegria e festa, movimentação
harmoniosa e policiada. "Les carrosses des aristocrates passent au milieu de la
foule joyeuse contenue par le service d'ordre".
As carruagens, fechadas, metonímia de casas, protegem os aristocratas e
permitem que eles possam atravessar "au milieu", no meio, a multidão sem entrar
em contato com o povo. Os nobres passam, não se detêm. Este movimento e a
carruagem agridem a massa popular que alegre e inconsciente libera a alegria
permitida e policiada pelo serviço de segurança.
O Marquês de la Force e sua mulher, que está grávida, estão, como os
outros nobres, dentro de sua carruagem. Eles possuem os valores positivos:
nobreza, juventude, beleza e fecundidade, esperados do casal real cujo casamento
é festejado. Uma ação provocará mudanças nos acontecimentos: "Le Marquis
descend de voiture et s' éloigne vers les tribunes". É noite, o que indica o final
de um ciclo.
O segundo quadro reverte o anterior:
Le feu d’artifice commence, mais soudain des caisses de fusées s’enflamment et les explosions se succèdent. Quoi qu’il n’y ait aucun danger grave, la panique s’empare de la foule. Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés. La jeune Marquise, effrayée, pousse le verrou de la portière. Le cocher fouette les chevaux qui s’emballent et se lancent dans une course folle. Brusque colère de la foule, on arrête les chevaux, une vitre vole en éclats. (DC: 1567)
"Le feu d'artifice commence". Manifestação luminosa, o fogo apresenta-se
qualificado como sendo de "artifício", indica o artifício da festa, sua precariedade
e alude ao brilho e desperdício das festas da nobreza, assim como à
superficialidade, à supremacia do parecer, características de uma classe social em
decadência.
75
Segundo Durand e Bachelard, o fogo, símbolo rico, de significações
complexas e opostas, apresenta duas direções ou duas constelações psíquicas,
dependendo da maneira como é obtido: por percussão ou por atrito. No primeiro
caso, ele está ligado ao relâmpago e à flecha, possui valor de purificação e de
iluminação e opõe-se ao fogo sexual, obtido por fricção.
O fogo, conforme observou Elias Canetti, em Masse et puissance, é o mais
poderoso símbolo da massa, da multidão. Múltiplo e destruidor, o fogo é
insaciável, podendo surgir rápida e inesperadamente de qualquer lugar. O fogo
atua como se fora um ser vivo e como tal deve ser tratado (Canetti, 1966: 78-83).
O prólogo da peça teatral em estudo ilustra a ação do fogo sobre a multidão
e sua identificação constitui a prova irrefutável da estreita ligação que existe
entre a massa e o fogo.
Em um primeiro momento, o fogo participou dos festejos e atuou de modo
lúdico. Mas o percurso previsto interrompe-se. "Soudain des caisses de fusées
s'enflamment et les explosions se succèdent" - Repentinamente (soudain), o fogo
aprisionado nas caixas (caisses) liberta-se e incendeia-se. Há explosões
sucessivas. O fogo imprevisível propaga-se.
"Quoique n' y ait aucun danger grave, la panique s' empare de la foule.
Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés". O pânico,
injustificado, apodera-se da multidão. No espaço destinado às comemorações de
júbilo, um quadro de terror instala-se: "bousculade", empurrão, o contato físico
negativo, "cris de peur", gritos de medo, "des gens tombent à terre et sont
piétinés". A multidão é pisoteada, pisada pelos cavalos das carruagens.
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Nestes dois quadros, prefigura-se a tragédia que se desenrolará. Os
elementos essenciais aí se encontram. Situação inicial: alegria, festa e fogos de
artifício mas também latência de possibilidade de excessos indicada pela ação
limitadora de um poder coercitivo. Reversão da situação: à explosão dos
foguetes de artifício corresponde o pânico generalizado: agressões, ameaças,
pisoteamentos.
Ao ser agredida, a multidão reage: "Brusque colère de la foule, on arrête
les chevaux, une vitre vole en éclats" (grifo meu).
A carruagem dos nobres significa uma proteção e seria o equivalente a uma
casa. Quebrar um vidro significa abolir uma separação, violar um espaço
interdito e tornar vulneráveis os seus ocupantes.
O vidro protege e permite que as elites possam olhar e serem olhadas, à
distância, sem qualquer contato. Mas o vidro pode também isolar e enfraquecer.
Há um desequilíbrio entre ver, sentido ativo, e ser visto, sofrer uma ação. Aquele
que é visto torna-se objeto e não sujeito da ação.
Esse tema revela-se recorrente na literatura francesa. Examinarei dois
exemplos paradigmáticos:
Flaubert, em 1857, mostra Emma Bovary dançando no salão de baile do
marquês d’ Andervilliers, no castelo de Vaubyessard e sendo vista pelos
camponeses que se comprimiam diante da janela envidraçada.
Une domestique monta sur une chaise et cassa deux vitres; au bruit des éclats de verre, madame Bovary tourna la tête et aperçut dans le jardin, contre les carreaux, des faces de paysans qui regardaient. Alors le souvenir des Bertaux lui arriva. Elle revit la ferme, la mare bourbeuse, son père en blouse sous les pommiers, et elle se revit elle-même, comme autrefois... (Flaubert, 1972:61) (grifos meus)
77
A presença dos significantes vidros, barulho de vidros quebrados, e a ação
de olhar e ser olhada justificam a aproximação do texto citado com o prólogo de
Dialogues. Um exemplo análogo ao texto de Flaubert é encontrado em Proust.
Em 1918, de maneira mais incisiva, o autor de À la recherche du temps perdu
denuncia a oposição povo/elite ao enfocar os pobres admirando os ricos que
jantavam num grande "aquário", separados pela barreira do vidro:
Une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger. (Proust, 1954: 681)
Proust é mais cruel porque se pergunta se, um dia, os pobres, que observam
avidamente, não quebrarão o aquário para comer os peixes - os ricos - que estão
protegidos pelo vidro. Remete a uma revolução social hipotética ou talvez à
Revolução Russa. Poderia referir-se também à Revolução Francesa, de certa
maneira malograda, visto que a igualdade não foi alcançada, o vidro persiste
como barreira.
As paredes de vidro podem isolar não apenas os indivíduos, mas os grupos
e classes sociais. O vidro seria o sinal sensível dos preconceitos, da intolerância e
da insensibilidade dos homens.
O vidro provoca a indignação e parece mais destrutível; a madeira da porta
fechada de uma casa excita a imaginação. A carruagem atrai, duplamente, a
fantasia e a cólera do multidão, por conter vidro e madeira, por parecer uma
unidade fechada que se crê inviolável.
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Em Dialogues, após o confronto entre o povo e os soldados, a ordem é
restabelecida. Ressoara, porém, proferida por uma voz de homem, uma ameaça
que repercute também como uma maldição: "Tout va changer bientôt, c'est vous
autres qui serez massacrés, et nous roulerons dans vos carrosses!" (grifo meu).
Importa destacar que a superioridade social é representada por um objeto - a
carruagem, símbolo do poder de uma classe favorecida, na expressão "rouler
carrosse".
O texto indica que a violência premeditada contra a Marquise de la Force
não foi executada. E o prólogo termina. A seguir, uma indicação cênica informa
o nascimento de uma menina e a morte de sua mãe, a Marquesa de la Force. A
referência à Revolução que eclodirá bientôt é feita através do silêncio.
Se uma vidraça, uma porta fechada, uma carruagem, alimentam ódios e
fantasias, um convento de freiras enclausuradas constitui alvo ainda mais fácil
para o rancor, pois pertence ao domínio do interdito, do proibido.
O Carmelo, uma espécie de "bastilha" na imaginação popular, atrairá o
desejo de desvelar mistérios inexistentes, de demolir muros que separam, mais na
imaginação do que na realidade
O prólogo prepara e prefigura a grande reversão social que se anuncia. A
cena do mundo é o momento em que o Antigo Regime desmorona e instala-se
uma nova era, conseqüência da Revolução Francesa.
O Carmelo será invadido pelos revolucionários. Porém, antes de ser
ocupado, materialmente, sofrerá mudanças, intensificadas pela presença de
79
Blanche de la Force, nascida após a sublevação popular tratada no prólogo. Estas
mudanças se fazem sentir, através de conflitos de valores, que se refletem na
eleição de uma superiora burguesa, para um cargo tradicionalmente exercido pela
nobreza.
4.1 2. Mudanças
En d’autres temps, personne n’eut songé à Madame Lidoine, mais il y a maintenant de nos soeurs pour dire que Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la municipalité, parce que son père était marchand de boeufs à Caumont. [...] Et Madame Lidoine est d’ avis qu’ on devrait faire la part du feu. Bernanos
Bernanos consagra a primeira cena do terceiro quadro às conjecturas em
torno da eleição da nova Priora, da qual duas religiosas, Blanche de la Force e
Constance de Saint-Denis estão excluídas, por serem apenas noviças.
Poderia, à primeira vista, parecer anacrônico falar em eleições diretas no
século XVIII. Nas Congregações apostólicas, comumente chamadas ativas, as
eleições são indiretas. Os conventos não são autônomos: a superiora local é
nomeada pela superiora geral, eleita pelas delegadas, representantes das
diferentes comunidades religiosas. Quando a Congregação se distribui pelo
mundo inteiro, a superiora geral nomeia superioras provinciais que escolhem as
superioras locais.
Entretanto, desde a origem monástica, estruturada por São Bento, por volta
de 530, as Ordens religiosas elegem diretamente seus superiores, supervisionados
pelo bispo da diocese, em escrutínio secreto. A eleição não pode ser considerada
80
universal, porque as religiosas que ainda não proferiram os votos perpétuos e as
noviças dela são excluídas, como o texto o confirma.
No ano de 1789, morrera a Priora, a aristocrática Madame de Croissy.
Noutros tempos, a nova superiora seria Marie de l’Incarnation, uma nobre de
sangue e de espírito. Entretanto, as religiosas passam a cogitar no nome de uma
burguesa, uma plebéia, considerando as mudanças sociais, as rupturas definitivas
e sobretudo as ameaças que se fazem pressentir.
O contraste entre o outrora e o agora evidencia-se. Contrariamente ao
previsível, o curso de História mudou, os valores políticos e sociais inverteram-se
e Mère Saint-Augustin representa uma possibilidade de entendimento com a
municipalidade, tendo em vista sua origem plebéia.
Todo um passado de preconceitos e de ligações aristocráticas está contido
nesta constatação. Antes da Revolução de 1789, nem mesmo se cogitaria a
hipótese de eleger como Priora, em um Carmelo francês, uma plebéia, filha de
um negociante, de um "marchand de boeufs à Caumont".
A expressão marchand de boeufs - vendedor de gado, revela-se
extremamente rica em sentidos. O boi simboliza a burguesia que trabalha e
contrasta com a nobreza ociosa.
O comerciante está sempre trabalhando: pesa, discute, compra e vende com
lucro. Ele não produz. Está sempre em movimento e constitui um elo entre as
diferentes classes sociais. O fato de ser negociante de gado representa uma dupla
inserção espacial: por ser negociante está ligado à cidade e à estrada, às
81
mudanças rápidas, à ação. Vender gado representa também uma ligação com a
terra, com os valores estáveis, com o tempo, com o ser.
Na Europa, a origem do comerciante, negociante (le marchand), segundo os
estudos de Régine Pernoud, em Histoire de bourgeoisie en France (1962), está
situada entre o século X e XI e coincide com o renascimento do comércio. A
aparição do negociante é o índice da retomada de atividade em todos os domínios
e acompanha-se, se é que não o precede, de um recomeço da circulação. Em
todos os caminhos, principalmente os freqüentados pelos peregrinos, encontrar-
se-á o vendedor.
Aqueles que se recusam a lavrar a terra podem, de agora em diante,
procurar alhures a subsistência, mudar de condição social e encontrar em suas
andanças a fortuna que não teriam podido constituir nos domínios paternos.
Freqüentemente, o fluxo dos peregrinos os atrai. Espertos, os vendedores
compreenderam que a multidão de fiéis reunidos para as cerimônias religiosas
representava também uma clientela certa.
E estes negociantes também vão construir, porque necessitam de
entrepostos para a mercadoria e precisam, durante o inverno rigoroso, morar em
algum lugar. A origem de muitas cidades francesas, como Lille, está ligada à
atividade comercial. E em um mundo dominado, até então, por nobres ou
camponeses, a cidade será o feudo deste homem novo que se chamará: o burguês.
A cidade nasceu da estrada (Pernoud, R. 1962:120).
82
Em Dialogues, a expressão "marchand de boeufs" é pura criação de
Bernanos e, localizá-lo em Caumont, seria, talvez, uma referência implícita a
Pas-de Calais e aos burgueses imortalizados em uma escultura por Rodin.
Gertrud von le Fort, em La Dernière à l’ échafaud, não faz alusão à classe
social de Madame Lidoine, suas origens, sua família. E o documento histórico
também não justifica a criação de Bernanos, extremamente importante.
O padre Bruno de Jésus-Marie afirma, em Le sang du Carmel, que Madame
Lidoine era filha de um modesto funcionário do Observatório, que lhe
proporcionou uma boa educação, mas não podia dar-lhe o dote exigido pelo
convento, o que foi feito por Maria Antonieta, a pedido de Madame Louise de
France, filha de Luis XV.
O problema do dote merece algumas explicações. O dote era um costume
aceito e em nenhum momento questionado pela sociedade da época. Tratava-se
de uma soma em dinheiro ou em bens que a mulher levava para seu novo lar.
Dificilmente ela conseguiria casar-se sem dote. Seria tão fora dos costumes que
Molière apresenta esta possibilidade como um fato cômico. Quem não se lembra
do célebre "sans dot" de Harpagon, considerado um argumento irresistível?
Havia raras exceções, quando alguém se apaixonava por uma beldade pobre...
Mas a Doxa atesta a inconveniência de tal proceder: “Quand on ne prend en dot
que la seule beauté, le remords est bien près de la solennité”.
A História e a Literatura registram o problema enfrentado pelos pais ou
tutores para concederem um dote conveniente a suas filhas ou tuteladas. Quanto
maior o dote, mais vantajoso seria o casamento. Muitas vezes os pais
83
praticamente se arruinavam para casar bem suas filhas. E havia o caso de jovens
que eram obrigadas a entrar no convento, onde o dote exigido era
consideravelmente menor, mas existente. Hoje, esse costume foi abolido,
subsistindo apenas uma contribuição voluntária ocasional.
O costume obrigatório de levar um dote para o casamento perdurou depois
da Revolução Francesa, no século XIX, como ilustra Balzac em Le père Goriot
(1834) e mesmo no século XX, se bem que de maneira mais sofisticada e menos
explícita, embora Sartre refira-se explicitamente ao dote trazido por Odette em
L’Âge de raison.
Estas considerações explicam a importância do donativo feito por Maria
Antonieta à futura Mère Marie de Saint Augustin. Ter um dote facilitou sua
entrada no Carmelo. Caso contrário, ela teria sido talvez admitida como simples
irmã coadjutora (encarregada dos serviços domésticos), o que a
impossibilitaria de ser eleita Priora, mesmo em situações não previstas e
perturbadoras, como a França em revolução.
“Et Madame Lidoine est d’ avis qu’ on devrait faire la part du feu”.
“Faire la part du feu” significa renunciar ao que não se pode salvar para
preservar o que pode ser salvo. No conflito com o poder temporal, há que se
fazer maleável, saber fazer concessões no que é acidental.
O fogo, observa Elias Canetti, representa a massa humana, a multidão e, por
constituir o seu mais poderoso símbolo, teria direito, de fato, à sua parte. Para
salvar o essencial, mister se faz abrir mão do que não pode ser salvo. Mère Saint-
Augustin está disposta a fazer concessões, a dar a Cesar o que é de Cesar, com
84
uma única condição: que seja concedido, às religiosas, viver a vocação
carmelitana com dignidade, liberdade e honra. E exprime-se sem ambigüidade:
“Comptez donc bien que rien ne me coûtera pour obtenir qu’on nous laisse vivre
ici, selon notre vocation, dût le reste du monde s’ embraser” (DC: 1627).
Na rede textual, o signifiante feu faz ressoar o prólogo com suas seqüências:
o fogo de artifício da festa da realeza que se inflama e explode.
É preciso notar também que ao cogitar, para o cargo de Priora, no nome de
Mère Saint-Augustin, caracterizada, diretamente, como aquela que faz "la part
du feu", as religiosas também estão optando por uma atitude conciliadora. O
texto é explícito: "Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la
municipalité". O Carmelo representava uma espécie de Bastilha sitiada e não foi
preservado pela Revolução em curso. Destruí-lo, seria concretizar as mudanças:
“Oui, cette maison est une bastille, et nous détruirons ce repaire” (DC: 1642),
dizem os revolucionários.
As transformações da linguagem precederam as mudanças sociais e
políticas ou as provocaram. A violência da linguagem revolucionária revela-se no
emprego do significante repaire, antro, covil de animais ferozes e repugnantes e
traduz a representação que o povo fazia dos conventos: antros de despotismo, de
superstição e de mentira (DC: 1642). Ao anúncio da destruição sucedem-se as
seguintes etapas: ocupação do espaço físico através dos sons revolucionários, de
atos de vandalismo e finalmente a dessacralização de um lugar considerado
inviolável.
85
4.1.3. A profanação
On entend chanter la Carmagnole sous les murs du couvent; et les commissaires, suivis de la foule qui continue à chanter, font irruption dans l’enceinte. Ils enfoncent la porte de clôture. Précédés d’une Soeur sonnant la clochette, ils envahissent la sacristie. Bernanos
A Revolução invade, primeiramente, o Carmelo, através de uma sonoridade
profana: ruídos, desfiles, vozes e barulhos amedrontadores e pelas estrofes
provocantes das canções revolucionárias, La Carmagnole e Ça ira, escutadas a
contragosto.
O ritmo alegre, em contrate com as palavras ameaçadoras, ambos
contribuíam para tornar mais brutal a oposição entre a paisagem sonora
revolucionária e a existente no Carmelo.
A noção de paisagem sonora, empregada por Murray Schafer em O ouvido
pensante (1970), subverte o universo sonoro, englobando em um novo olhar os
ruídos, as canções, os silêncios aparentes, os gritos, os sons da natureza. Escolhi
esta abordagem por julgá-la mais adequada ao presente estudo.
A paisagem sonora violadora agita, provoca medo e mesmo pânico e
contrasta com a do convento. Há que se fazer distinção entre o silêncio-ausência,
que só existe teoricamente, e o silêncio-paz, a “música callada, la soledad
sonora” de que fala São João da Cruz, densa e plena, introspectiva e que se
executa em um outro registro.
A paisagem sonora do Carmelo compõe-se não só de silêncio- paz, mas
também de orações em voz alta, diálogos e conversas informais em alegres
86
recreios. Mas, tudo transcorre de modo previsto, obedecendo a uma rotina,
regulada pelo som dos sinos. O grande sino chama para a oração, marca o início
do grande silêncio e ordena o despertar. Um sininho - “clochette” - pode indicar
o início e o fim de atividades rotineiras como levantar-se, sentar-se, ajoelhar-se,
entre outras. Pode também servir de aviso discreto de que algo de inusitado está
acontecendo. Os sinos desempenham papel importante em todas as religiões e
têm como função primordial convocar para o momento presente, para o agora.
Esta paisagem sonora contrapõe-se aos cantos revolucionários que incitam à
violência. Em várias indicações cênicas de Dialogues, as duas canções La
Carmagnole e Ça ira são citadas, sempre provocando angústia e medo.
La Carmagnole foi um dos cantos mais difundidos da Revolução. A origem
da melodia é controvertida, porém todos concordam que a letra foi composta
logo após a prisão de Luís XVI e de sua família no Templo. A canção evoca com
precisão os acontecimentos de 1792. Dançado e cantado nas mais variadas
ocasiões, tornou-se um dos acompanhamentos habituais das execuções pela
guilhotina.
Trata-se de uma canção de treze estrofes e um refrão. Há algumas variações
e paródias. Cito, apenas, duas estrofes e o refrão, julgando-os suficientes para o
estudo que desenvolvo.
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Madame Veto avait promis (bis) De faire égorger tout Paris. (bis) Mais le coup a manqué Grâce à nos canonniers
Dansons la Carmagnole, Vive le son,vive le son, Refrain Dansons la Carmagnole, Vive le son du canon!
Monsieur Veto avait promis D’être fidèle à son pays. Mais il y a manqué Ne faisons plus d’quartier.
Sabe-se que Luis XVI, apelidado de "Monsieur Veto", usando o direito de
vetar de que ainda dispunha, proibiu o decreto contra os padres refratários e
opôs-se à permanência do acampamento dos federados em Paris. Apesar da
manifestação do povo que invadiu as Tulherias, Luis XVI manteve a interdição.
Maria-Antonieta, considerada a inspiradora das proibições, era cognominada de
"Madame Veto". O canto arrebatador e violento denuncia a traição do rei e faz o
elogio da força, exaltando o som dos canhões.
A canção Ça ira também foi uma das mais populares do período
revolucionário. Composta por volta de 1786 intitulava-se Le Carillon National.
Maria-Antonieta tocava esta música, sem imaginar que seus últimos momentos
seriam ritmados por esta canção tornada ameaçadora. A letra original foi
substituída, em 1790, por uma estrofe que refletia o otimismo revolucionário
(“...le bon temps reviendra... tout trouble s’ apaisera”) para finalmente
transformar-se no célebre refrão:
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Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates à la lanterne Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates on les pendra.
Si on n’les pend pas On les rompra. Si on n’les rompt pas On les brûl’ra. Ah! Ça ira, ça ira, ça ira...
Nesta canção: os significantes pendre - enforcar, rompre -despedaçar e
brûler - queimar, exprimem o ódio aos aristocratas, aos quais se desejava a
tortura, a degradação e a ignomínia. No Antigo Regime, enforcavam-se os
plebeus, porém os nobres eram fuzilados. A guilhotina democratizaria as
execuções, não mais fazendo diferença entre nobres e plebeus. Mas o que o povo
cantava, na sua revanche, era o desejo de infligir uma morte infamante aos
antigos senhores.
A multidão invisível, mas não menos ameaçadora, se faz presente através
dos sons que invadem a clausura e violam o espaço sagrado, antes que a
profanação se concretize. A pilhagem da sacristia é ritmada pelas violentas
estrofes de La Carmagnole.
A este canto as religiosas opõem o som de um sininho. As canções
perturbadoras, os barulhos da multidão, sempre inesperados, provocam, em um
primeiro momento, grande agitação nas religiosas: “Le premier mouvement des
religieuses est de courir ça et là dans le petit jardin” (DC:1678). Trata-se de uma
reação natural de medo, diante de uma ameaça que não se vê, mas se escuta.
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Mas, logo em seguida há uma mudança de registro. As religiosas se acalmam e
rezam diante da estátua da Virgem. O medo foi superado pela ação da graça.
A Revolução penetrou no Carmelo, não somente através das canções e dos
barulhos e ruídos. Os problemas sociais aí se fazem sentir. A própria negação: “Il
n’ y a point chez nous de bourgeoises ou d’ aristocrates” (DC: 1621) revela um
vocabulário contaminado pela nova ideologia.
A nobreza começou a ser chamada de aristocracia por volta de 1789, em
uma acepção pejorativa, reveladora de um conflito social inevitável. Embora o
significante aristocrata, proveniente do grego aristos, signifique o melhor, era
empregado, nos panfletos difundidos depois da queda da Bastilha, para designar
os insensatos nobres que pretendem possuir bens, privilégios, altos postos,
honrarias e dignidades sem o mínimo de trabalho (Martin, 1990: 64).
Se a religiosa repreendida afirma ter querido dizer simplesmente que todas
eram irmãs, o que foi dito, já não pode ser anulado. E a Priora constata com
sabedoria e uma certa ironia: “Voilà dix minutes que nous vous laissons un peu la
bride sur le col et vous en êtes déjà, Dieu me pardonne, à tenir séance entre
vous, comme ces Messieurs du Parlement” (DC: 1626).
O emprego da expressão "laisser la bride sur le col" deve ser entendida no
contexto da obediência cega exigida pela Ordem do Carmelo. Ela significa
permitir a alguém toda liberdade possível, entregá-lo a si mesmo, como quando
não se usa o freio para um animal de montaria. Há uma alusão implícita a "cavalo
domado". O homem necessitaria de freios para controlar seus instintos e a
obediência religiosa exerceria tal função. A observação feita pela Priora revela
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pessimismo em relação à natureza humana: livres, durante dez minutos, as
religiosas discutem e agem como se estivessem no Parlamento. A referência ao
Parlamento, lugar onde todos os representantes do povo podem exprimir,
livremente, sua opinião, possui conotação negativa e precisa ser entendida no
contexto histórico da época. Em 17 de junho de 1789, instalou-se a Assembléia
Nacional e a França passou a ser regida por um regime parlamentar. Na opinião
das religiosas, católicas e monarquistas, a instituição parlamentar soa como
sinônimo de desordem, desrespeito à hierarquia, demagogia.
O Carmelo, onde vivem as religiosas, exiladas do mundo por vontade
própria, não constitui uma ilha isolada, inatingível. “Dirait-on pas que l’ esprit
du siècle pénètre partout, jusqu’à travers les murailles du Carmel” (DC: 1621)
constata a Priora ao ouvir as discussões das religiosas. E por "siècle"
compreende-se, na linguagem religiosa, a vida do mundo, cujos valores são
mutáveis, em oposição à vida espiritual, de valores imutáveis e atemporais.
Nesse espaço, diferentes discursos existentes na época circulam, entrelaçam-se e
confrontam-se de modo violento e dissimulado, na linguagem e através da
linguagem.
Estes discursos representam diferentes valores que se opõem: o discurso
da nobreza e o discurso que chamaria de burguês. Os valores aristocráticos
concentram-se nas intransigências de um código de honra e os valores burgueses
caracterizam-se pelo equilíbrio, pela maleabilidade, mas principalmente, por
constituírem uma outra maneira de julgar, uma outra visão do mundo.
91
4.2. Valores
4.2.1. O código aristocrático
[...] mais vous parlez de l’honneur comme si nous n’avions pas depuis longtemps renoncé à l’estime du monde. Bernanos
Bernanos, ao escrever Dialogues, lembra conceitos de honra e de coragem
emblemáticos do século XVII, na França. Este ideal, individualista, nobre, com
laivos de paganismo e resquícios do compromisso feudal, é uma herança intacta
recebida do século XVI.
Honra é uma exigência pessoal, mas se manifesta na opinião do outro, na
reputação desfrutada. Em si, não só constitui uma virtude, como também um
conjunto de qualidades, variáveis no tempo e no espaço social. O rei podia
distribuir honrarias - des honneurs - mas não podia conceder nem retirar a honra
- l’honneur.
O conceito de honra está ligado, originalmente, à nobreza e ao exercício do
poder. Somente os nobres mereceriam confiança em seus compromissos; era-lhes
outorgado o porte de armas e a honra era um de seus insolentes privilégios.
Em que consiste a honra do fidalgo, este sentimento de dignidade própria
que leva o indivíduo a procurar merecer e manter a consideração geral de seus
pares?
Os nobres obedeciam a um código de regras fixas, a certos costumes
imutáveis e julgavam que o fato de ser nobre assegurava possuir todas as
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qualidades inerentes a sua classe social: coragem, altivez, generosidade,
fidelidade, etc. Acreditavam tudo saber sem nada ter aprendido, e a força do
sangue da raça - Genos - garantia-lhes sucesso e perfeição em todos os
empreendimentos. Como observa Maria do Carmo Pandolfo, “A linhagem reúne,
verticalmente, no tempo, os membros de uma mesma família, ligada pelo sangue
e unificada como um só ser na noção de Genos” (Pandolfo,1977: 88).
E a noção de família amplia-se, pelos laços de parentesco, fazendo com que
a nobreza se considere um grande clã. Fato reconhecido pela velha Priora: “Sur
une personne telle que Blanche de la Force, et qui est un peu notre parente”
(DC: 1599), aludindo aos laços de sangue que entrelaçam os nobres.
Nesta acepção, a honra parece ser uma qualidade especificamente
masculina dependente de outros valores tais como força, lealdade e coragem.
O grande teatro clássico francês constitui um hino ao herói que possuiria
todos os atributos específicos da fidalguia: grandeza de alma, energia, audácia,
força de vontade, intrepidez. Todas estas qualidades estariam encarnadas em
Rodrigue, personagem principal de Le Cid de Pierre Corneille (1637), o herói
completo que consegue realizar em vida a conciliação do desejo e da honra
(Pandolfo: 1977: 101-102), quando Rodrigue, orgulhosamente, exclama:
Je suis jeune,il est vrai; mais aux âmes bien nées La valeur n’attend pas le nombre des années (Le Cid: v. 405-6)
não exprimia senão a consciência de pertencer a uma classe superior. Os nobres
julgavam possuir um sangue mais puro e formar uma espécie de casta. Exigiam
93
seus privilégios com altivez e intransigência e proclamavam superioridade e
virtude.
A origem etimológica prevalece ao tratar-se da virtude do herói, aquele que
é forte e que se esforça por superar os próprios limites.
O termo virtude, proveniente do latim virtus, significa força viril, oriunda
de vir, homem. No antigo francês, designava bravura, força física, poder. A
Chanson de Roland (1080) qualifica o herói de vertueux, no sentido de valente,
corajoso.
A nobreza, arrogante e intransigente quanto aos seus direitos, deveria,
entretanto, ser dotada de uma qualidade essencial - a coragem - da qual
decorreriam a honra e todos os privilégios e prerrogativas que lhe eram
outorgados. Ter sua coragem proclamada constituía a mais alta qualificação a ser
obtida.
A honra, segundo o código da nobreza, é mais importante do que a vida.
Uma vida desonrada não teria nenhum sentido. Esse conceito de honra sintetiza-
se na interrogação de Rodrigue: "Qui m’ose ôter l’honneur craint de m’ôter la
vie?" (v.438).
No que se refere às mulheres, o sentido da palavra honra difere do conceito
de honra atribuído aos homens. A honra feminina estava ligada à fidelidade e
importava não somente à mulher, mas também aos homens de sua família - pai,
irmão, marido - que dela seriam os guardiães.
94
A honra acha-se ligada ao sentimento de orgulho, manifestado sob a forma
de altivez e, freqüentemente, de arrogância. Importa ressaltar que a altivez não
era considerada pelos nobres um defeito, e sim uma qualidade imprescindível.
E o que seria o orgulho? Esta tendência humana é quase sempre
apresentada de maneira negativa, embora não sejam claras as razões dos critérios
depreciativos que lhe são atribuídos. O orgulho constitui um dos sete pecados
capitais e merece uma reflexão e uma breve revisão.
Os sete pecados capitais: orgulho, ira, gula, preguiça, luxúria, inveja e
avareza constituem tendências fundamentais do homem e passaram a ser
considerados pecados capitais somente a partir do século XIII. Essas tendências
fundamentais, quando são exageradas, tornam-se pecados para a Igreja. Elas
originam-se numa desordem patológica individual, ou resultam de condições de
ordem sociológica e caracterizam-se pela desmedida, afirmou Norma Tasca, em
conferência sobre o orgulho, proferida no Congresso de Semiótica, realizado em
1995 em Urbino (Itália).
O orgulho seria uma estima exagerada de si mesmo, logo, é uma
desmedida, e estaria ligado a uma hybris insultante. Ele transgride o limite
concedido a uma auto-estima legítima e a sociedade moraliza este excesso,
condenando-o.
A tradição judaico-cristã está baseada na humildade e na submissão a Deus.
E a transgressão, fruto do orgulho, normalmente associada à desobediência de
Eva e à revolta de Lúcifer contra Deus, pode ser também encarada, sob o aspecto
de ignorar o outro e não respeitar os seus direitos. O orgulhoso não conhece
95
limites, porque não sabe quem é o outro e quem é ele próprio. Volta-se para si
mesmo, numa atitude ilegítima e narcisista, que acarreta conflitos na ordem
social existente.
O orgulho apresenta-se de variadas maneiras: vaidade, altivez, vanglória,
presunção e outros parassinônimos. De certo modo, estas diferentes
manifestações do orgulho são menos sutis e mais superficiais do que a falsa
humildade, espécie de orgulho que muitas vezes se esconde atrás de uma
aparente modéstia.
Em Dialogues, os valores aristocráticos, como o ideal de uma casta
ameaçada, podem ser sintetizados em um código de honra e exprimem-se através
de diferentes personagens: Blanche de la Force, o Marquês de la Force, o
Chevalier de la Force, a antiga Priora, Madame de Croissy, Constance de Saint-
Denis, mas, sobretudo, por Mère Marie de l’Incarnation, a sub-Priora do
Carmelo.
Cada personagem profere seu discurso pessoal, entretanto, todos
apresentam um ponto em comum: constituem a expressão de uma ideologia
aristocrática, de uma casta social que se crê superior, que acredita em suas
prerrogativas e não se esquiva dos deveres e das responsabilidades decorrentes de
uma situação privilegiada.
Emprego o termo discurso não só na acepção de texto ou de manifestação
verbal, mas também no sentido de “conjunto coerente de conhecimentos
partilhados, construído, a maior parte do tempo, de maneira inconsciente pelos
indivíduos de um grupo social.” (Charaudeau, 1982: 40 ).
96
Esses fragmentos de discursos sociais, exprimindo valores, presentes no
texto de Bernanos, pressupõem uma interdiscursividade e se apóiam nos saberes
compartilhados socialmente pelas personagens.
Há os que se identificam com o discurso de sua casta e, verbalmente, o
assumem. O que importa ressaltar é que as personagens têm seus traços
discursivos identificadores acentuados pelo meio a que pertencem.
O código de honra da nobreza, em que predominam o orgulho da raça e a
altivez, as diversas manifestações dos valores aristocráticos revelam-se nos
discursos das personagens deste grupo social, e, principalmente, em Marie de
l’Incarnation, protótipo desse imaginário.
Enfocarei, primeiramente, um grupo familiar: Blanche, o velho Marquês, o
Chevalier de la Force e, em seguida, o Carmelo, espaço influenciado pela
nobreza.
Blanche, filha do Marquês de la Force, consciente de sua linhagem, decidiu
tudo sacrificar para recuperar a honra de que se acredita privada. Um dos
argumentos, a seu ver muito importante, é obrigar-se a conviver com religiosas
que lhe seriam inferiores pelo nascimento e pela educação. Avalia, inclusive, a
eventual hipótese de dever obediência a uma superiora de nível social muito
diferente do seu. Dispõe-se a “vivre parmi des compagnes et sous l’autorité de
supérieurs d’une naissance et d’une éducation souvent bien inférieures” (DC:
1578). Acredita agir de boa fé ao pretender negociar com Deus, mas seu pai
denuncia o orgulho inconsciente dessa atitude:
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Ma fille, il y a dans votre résolution plus d’orgueil que vous ne pensez. Je ne passe certes pour dévot, mais j’ai toujours cru que les gens de notre état devaient en agir honnêtement avec Dieu.On ne quitte pas le monde par dépit... (DC: 1578).
Observe-se que, ao condenar o orgulho de um despojamento aparente, o
Marquês denuncia, implicitamente, o mérito da troca burguesa e incorre em um
orgulho de classe, restringindo à nobreza o privilégio de uma relação honesta
com Deus. Como se apenas os nobres merecessem confiança, o que seria um
outro nome da honra.
A consciência dessa superioridade traduz-se, aqui, não pela arrogância, mas
pela condescendência, atitude aparentemente positiva, que, no entanto, nega a
existência do outro. Assim, o velho Marquês por não vislumbrar um pretendente
melhor, aceitaria como genro, um nobre que outrora não seria considerado um
grande partido, visto que sua nobreza era recente, pois datava apenas de três
séculos (DC: 1572). E também, por alguns instantes, sua memória o faz reviver a
noite trágica da explosão dos fogos de artifício, mas logo se controla e tenta
convencer-se de que a Revolução não começou e que “Le peuple de Paris est
bon diable et tout finit par des chansons” (DC: 1574).
O Chevalier de la Force, irmão de Blanche, é o protótipo do nobre soldado
a serviço do rei, em uma relação que remontaria ao feudalismo. Lúcido e protetor
em relação a Blanche, não teme a morte e procura somente cumprir o dever. Sem
pretensões intelectuais, ele admite que, às vezes, é rude e que fala como um
soldado (DC:1630).
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Os valores e o código de honra da nobreza também são válidos no Carmelo,
espaço de uma "transposição espiritual e eclesial do mundo aristocrático"
(Balthazar, 1956: 446) e microcosmo da sociedade francesa da época.
O Carmelo pretende conciliar a busca da perfeição evangélica e os valores
sociais e morais de um passado que desmorona.
A nobre Madame de Croissy reconhece que, mesmo em um claustro, a
mentalidade reinante não poderia deixar de ser influenciada por “certaines
habitudes de penser selon le siècle, que la vie religieuse a bien pu discipliner,
mais non pas tout à fait réduire” (DC: 1599).
Experiente e sábia, ela admite que as religiosas trazem para o convento
toda a sua cultura, compreendendo, entre outros, a mentalidade e os preconceitos
da classe social a que pertencem. A vida religiosa pode atenuar tais exageros,
mas não destruí-los completamente.
Às vésperas da morte, a velha Priora alude ao próprio conhecimento do
coração humano: “Oh! Je sais ce que je dis” (DC: 1599). Por essa razão, ela
já advertira Blanche, de que não lhe seria exigido esquecer sua grande nobreza e
que também era necessário vencer e não forçar a natureza. E forçar a natureza
seria querer o impossível, pretender que as religiosas, ao entrar para o convento,
fizessem tabula rasa dos valores inerentes a seu meio social.
No Carmelo, onde todas as classes sociais estavam representadas, com o
predomínio da nobreza., refletiam-se, como em uma espécie de prisma, as
ideologias circulantes na França em revolução.
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A velha e aristocrática Madame de Croissy assume o discurso de sua casta,
com o qual se identifica. Da mesma forma, a jovem Constance de Saint-Denis,
revela uma perfeita adequação ao código de honra e aos valores morais da
nobreza. A alegria, a irreverência de suas réplicas e afirmações não escondem a
realidade: Constance ignora as transformações que ocorrem a sua volta e tudo
enxerga sob o ângulo desses valores.
Desse modo, ao evocar os camponeses de sua região, refere-se a eles como
“nos bons villageois de Tilly” e afirma: "Ces pauvres gens m’aimaient tous à la
folie, parce que j’étais gaie..." (DC:1592) o que faz ressoar La nouvelle Heloïse
de Rousseau. O orgulho às vezes ingênuo de Constance, leva-a a indagar sobre o
paradeiro dos franceses, dos bons franceses que deveriam proteger e defender os
padres perseguidos (DC: 102-103). Os preconceitos sociais, o orgulho atávico e a
conhecida ignorância da nobreza revelam-se na interrogação: “Hé! Qu’avons-
nous besoin des Grecs et des Romains? Est-ce que nos Français ont des leçons à
recevoir de personne?” (DC:1624).
A personagem nobre, luminosa e quase perfeita de Constance de Saint-
Denis, historicamente filha de um agricultor, revela inconseqüência e presunção,
ao afirmar que São Pedro renegara o Cristo porque não era nem francês nem
nobre (DC:1625).
A indicação cênica (régie) assinala que todas as religiosas riem após ouvir
essa declaração. Constance tenta, com habilidade, remediar o que dissera,
invocando um mal-entendido. Mas suas palavras reiteraram os valores da
nobreza que, em breve, revelar- se iam anacrônicos.
100
Demarcar, entretanto, as classes sociais, atribuindo-lhes um discurso
correspondente é não levar em conta a complexidade do real. Cada um fala
também a linguagem de sua família espiritual e não apenas a de sua casta social.
Como observou Proust, "... on s’ exprime toujours comme les gens de sa classe
mentale et non de sa caste d’ origine” ( Proust,19, 900).
A concepção moral é determinada não só pelo Genos, mas também pelas
afinidades intelectuais e morais que levam o homem a escolher seus antepassados
intelectuais, espirituais e morais. E esta escolha nunca é aleatória.
Esta observação torna-se imprescindível em se tratando de Mère Marie de l’
Incarnation que, com sua força de caráter, serve de contraponto à fraqueza de
Blanche de la Force e, em seu desejo exaltado de martírio, opõe-se ao equilíbrio
da nova Priora, Madame Lidoine, em religião, Mère Marie de Saint-Augustin.
É importante aclarar que não é meu objetivo tentar, sistematicamente,
assinalar a "verdade histórica" e a ficção, só o fazendo quando imprescindível,
como a análise da personagem Marie de l’Incarnation, que impõe uma pergunta
preliminar: em que medida se trata de uma personagem histórica ou fictícia?
Françoise-Geneviève Philippe, Madame Philippe, em religião, Soeur
Joséphine-Marie de l’Incarnation (1761-1836), filha natural de Louis-François de
Bourbon, Príncipe de Conti, relatou, transcorridos mais de quarenta anos, o
martírio das dezesseis religiosas do Carmelo de Compiègne, ao qual pertencera.
A redação do manuscrito ocorreu em um outro contexto político: a
Revolução de 1830 colocara no trono Louis-Philippe d’Orléans, filho de
Philippe-Égalité, guilhotinado pelo Terror e de quem Madame Philippe era prima
irmã.
101
O fato não poderia deixar de impressionar o futuro Cardeal Villecourt, que
prefaciou e publicou o manuscrito, deixando-se levar pela imaginação e pelos
devidos respeito e deferência por uma sobrevivente do martírio, idosa e bem
nascida. O prefácio forneceu subsídios para a construção de uma personagem
literária, ao conceder-lhe qualidades admiráveis, não comprovadas
historicamente.
Há um certo comedimento ao falar de Madame Philippe-Soeur Marie de
l’Incarnation. William Bush fala de sua "destinée mystérieuse e si intrigante
personnalité" (Bush, 1991: 10). E o Padre Bruno de Jésus-Marie refere, além da
documentação histórica, estudos grafológicos, que não revelam nenhuma
tendência para a grandeza trágica que lhe é atribuída por Gertrud von le Fort e
reiterada por Bernanos e Poulenc.
Gertrud von le Fort modifica a personagem e faz-lhe o panegírico em seu
texto. Marie de l’Incarnation é sempre apresentada com grandes elogios -
"grande dama de sangue real, grande carmelita, mulher admirável",
impressionante, notável, milagrosa, grande e digna religiosa, heróica e muitos
outros encômios (le Fort, 1938).
Francis Poulenc, em sua ópera, fá-la partilhar uma grandeur terrifiante com
Madame de Croissy e a nova Priora, no constante oscilar entre luzes e escuridão,
cumes e abismos (Coutance, 1994).
Terrível, parece ser a melhor caracterização da personagem, fazendo ressoar
o Cântico dos Cânticos: “Quem é esta, que avança como a aurora quando se
levanta [...] terrível como um exercito formado em batalha?" (Cântico: 6,9 ).
102
Assim, uma personagem histórica tornou-se inteiramente fictícia,
caracterizada pela grandeza trágica.
Importa enfatizar que Marie de l’Incarnation, como referido, era filha
natural do Príncipe de Conti. Gertrud von le Fort menciona o fato, omitido por
Bernanos, embora este faça referências às relações de família e de amizades que
a ligavam à nobreza.
Os filhos naturais não eram estigmatizados na corte francesa. Louis XIV
reconheceu e dignificou os seus bastardos. Cito, entre outros exemplos, a
legitimação dos dois filhos de Louise, Duquesa de la Vallière, assim como a de
todos os filhos de Madame de Montespan, outra favorita.
Mas o fato de ser filha ilegítima modificaria, a meu ver, seu posicionamento
em relação ao código de honra da nobreza. Seu lugar na sociedade não é algo que
lhe é devido - seu quinhão e seus direitos - mas o resultado de uma certa
condescendência e tolerância social.
As pesquisas não fazem referência ao nome da mãe de Marie de
l’Incarnation, sendo somente mencionado o nome do pai, o Princípe de Conti,
que lhe legara uma pensão. Isso justificou a ida da religiosa à Paris para tratar da
referida pensão. Portanto, quando suas compenheiras foram encarceradas e
condenadas à guilhotina, ela não estava presente.
Em Dialogues, Bernanos apresenta Marie de l’Incarnation com uma
sobriedade clássica. Ela seria a mais digna de ser eleita Priora. Tal constatação,
feita por Blanche (DC:1613) e por Mère Lidoine (DC:1665), não explicita as
103
razões de sua superioridade. Apenas uma vez lhe é atribuído o adjetivo
admirável, contrariamente à Gertrud von le Fort que o banaliza pela repetição.
A personagem se caracteriza pelas ações e pela maneira de ser: sua voz
“basse et martelée où l’on sent toute la passion contenue” (DC: 1663); a
violência, às vezes, transparece: “Son visage trahit violemment un premier
mouvement, sans doute impossible à reprimer, de mépris et de colère pour la
lâcheté de Blanche” (DC: 1638). A paixão e a violência manifestam-se em uma
conduta firme e inflexível, sendo reconhecidas inclusive por adversários, em um
confronto que não exclui certa admiração (DC:1642).
Seu discurso revela-se com ímpeto contido. Emoções controladas, mas não
menos violentas que poderiam fazer ressoar um “jardim fechado, fonte selada ”
(Cântico: 4,12).
A violência se esconde no despojamento, na obediência voluntária, na
linguagem polida e codificada, misteriosa e diferente das religiosas. A paixão é
linguagem e a linguagem torna-se ação.
A personagem Marie de l’Incarnation apropria-se do discurso masculino
sobre a honra e lhe confere características mundanas em desacordo com o
espírito da honra cristã. É preciso considerar que se trata de um discurso
masculino, uma vez que não era exigido das mulheres heroísmo e coragem. Das
mulheres, esperava-se dignidade e fidelidade. Conforme observa Paul Bénichou,
“as princesas disputavam a posse dos reis ou dos grandes homens”
(Bénichou,1948: 27).
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E Marie de l’Incarnation acredita ser a esposa de “Sa Majesté”, designação
corrente no Carmelo para designar Deus. Nesse ponto, embora sob a ótica
mundana, identifica-se com Santa Teresa que escolheu um amor que durasse
eternamente.
Bernanos considera a honra uma espécie de manifestação carnal do amor de
Deus e o tema da honra cristã é recorrente em sua obra. Em Jeanne relapse et
sainte (1929), La grande peur des bien pensants (1931), Les Grands Cimetières
sous la lune (1938), Scandale de la vérité (1939) e Lettre aux Anglais (1942)
perpassa e define-se um conceito de honra cristã, que o autor considera mais
importante para o gênero humano do que a tradição helênica (EEC I: 572 ). O
autor declara: “car il y a un honneur chrétien. [...] Il est humain et divin tout
ensemble. [...] Il est la fusion mystérieuse de l’honneur humain et de la charité
du Christ” (EEC I: 572).
O conceito de honra para Santa Teresa d’Avila, a reformadora do Carmelo,
opõe-se à honra mundana e acrescenta outra dimensão à honra cristã,
ultrapassando-a. Madame de Croissy, a velha Priora, em agonia, precisa as
diferenças:
Dans l’humiliation où je me trouve, il m’est plus facile de comprendre qu’il en est de la règle de l’honneur mondain à l’égard des pauvres filles du Carmel comme de l’ancienne loi pour le Seigneur Jésus- Christ et ses apôtres. Nous ne sommes pas ici pour l’abolir, mais au contraire pour l’accomplir en la dépassant. (DC: 1600)
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Importa observar que dépasser - ultrapassar - não significa abolir. Uma
etapa pode ser superada, ultrapassada, mas não necessariamente abolida.
Portanto, Santa Teresa de Jesus, não invalida o conceito cristão, mas o cumpre e
vai mais além, transpondo seus limites.
A reformadora do Carmelo, em seus escritos, afirma, primeiramente, que a
verdadeira honra não consiste no que o mundo chama de honra (Ávila, 1995:
139), sendo os dois conceitos incompatíveis (Ávila, 1995: 493). O primeiro, uma
completa reversão de valores, consistiria em perder a vida e a honra segundo o
mundo para compartilhar a humilhação do Cristo (Ávila,1995: 141).
O grande obstáculo na conquista da verdadeira honra seria o amor próprio,
concretizado no que se chamava uma questão de honra - le point d’honneur.
Com perspicácia, a Doutora da Igreja observa que “acreditamos ter renunciado à
honra entrando no convento, ou iniciando a vida espiritual em busca da
perfeição, porém, se se toca em nossa honra pessoal , esquecemos que já a
confiamos a Deus” (Ávila, 1995: 70).
A maior honra consistiria em ser pobre. “A pobreza", para Teresa de Jesus,
é "... um bem que encerra todos os bens do mundo. A verdadeira pobreza é, em
si, uma honra imensa que por ninguém pode ser contestada" (Ávila,1995: 367-
368) que se traduz em desapego total não só dos valores mundanos: nascimento,
sangue nobre (Ávila,1995:495), como também da consideração do outro, “a
alma... não se preocupa em ser estimada ou não. [...] ela se aflige mais de ser
honrada do que de ser desonrada” (Ávila, 1995: 494-495).
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O desejo de ser desprezada, tema recorrente nos escritos de Teresa de Jesus,
pode ser sintetizado em uma de suas poesias, no qual encoraja suas filhas
espirituais a caminharem para o céu, "humildes e desprezadas"
(Ávila,1995:1089).
Humildade e desprezo da honra do mundo não caracterizam a personagem
Marie de l’Incarnation. Vale ressaltar, entretanto, que a cena se desenrola em um
contexto histórico-social que explica, sem justificar, seus desvios do ideal
carmelitano.
O texto de Bernanos, como observa Monique Gosselin, além de escrito em
estilo literário característico do século XVII, também faz reviver a moral dessa
época, através do código de honra da nobreza.
Se a Igreja valorizava, pelo menos teoricamente, a humildade, a moral do
século não considerava o orgulho um defeito e sim uma qualidade. Como
referido, os grandes não eram modestos e nem desejavam a obscuridade. O herói
corneliano nunca é humilde. Seu orgulho se afirma com altivez, insolência e
desmedida, valores remanescentes de uma sociedade feudal.
O conceito de honra para Marie de l’Incarnation identifica-se com estas
exigências de uma honra aristocrática e mundana. “La véritable humilité est
d’abord une décence, un équilibre” (DC: 1633). Equilíbrio, decência e dignidade
são os valores fundamentais desse sistema. Em todas as circunstâncias, há que se
manter calma, tranqüilidade e altivez.
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Marie de l’Incarnation dirige-se, com autoridade e firmeza, à Blanche,
transtornada pela visita do irmão: “Remettez-vous, Soeur Blanche” para acalmá-
la (DC:1632). Depois, exorta, em um misto de advertência e ordem: “Tenez-vous
fière” (DC:1633). Blanche deve corrigir não apenas o porte que se encurvara,
mas agir com altivez, moldar-se às exigências e obrigações impostas por seu
nascimento ilustre. Tenez-vous droite, ordem recebida por todas as meninas bem
nascidas, seria a expressão prevista na situação e não tenez-vous fière. Marie de
l’Incarnation joga com o significante fière, produzindo essa multiplicidade de
sentidos.
O discurso de Marie de l’Incarnation apresenta várias peculiaridades. Trata-
se de um posicionamento sobre o código de honra ligado a um grupo social que
raramente ultrapassa os limites da família. Esses valores persistem e são
tolerados no convento. Com perspicácia, Madame de Croissy observara:
Et pour tout résumer d’un mot qui ne se trouve plus jamais sur nos lèvres, bien que nos coeurs ne l’aient pas renié, en quelque conjoncture que ce soit, pensez que votre honneur est à la garde de Dieu. (DC: 1601)
Entretanto, mesmo em relação aos valores da nobreza, há uma desmedida,
Hybris gerada pelo orgulho, que faz com que a personagem Marie de l’
Incarnation exorbite constantemente seu lugar. Ao ser-lhe concedida a palavra no
Capítulo, em uma deferência excepcional que lhe faz a Priora, ela argumenta:
Mes Soeurs, Sa Révérence vient de vous dire que notre premier devoir est la prière. Mais celui de l’obéissance n’est pas moins grand et doit être accompli dans le même esprit, c’est-à-dire dans un profond abandon de nous-mêmes et de notre jugement propre. Conformons-nous donc, non seulement de bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence. (DC:1615)
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Para refutar o discurso de sua superiora, ela o repete: “Sa Révérence vient
de vous dire que notre premier devoir est la prière”. É importante notar que a
personagem não se inclui entre as destinatárias do discurso, pois diz vous dire e
não nous dire. E passa a argumentar, mostrando seu desacordo.
A proposição é ambígüa. É preciso obedecer à Priora. Entretanto, é preciso
também obedecer ao convite ao martírio. Nesse dilema, resta conformar-se à
vontade expressa da Priora, representante de Deus: “Conformons-nous donc, non
seulement de bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence”. O
raciocínio deve ser entendido no contexto do Carmelo, onde a obediência é
considerada virtude primordial. Pois, para a reformadora, Deus pode ser
encontrado mesmo no meio das panelas e a obediência é preferível ao sacrifício.
“O caminho da obediência é o que mais rapidamente conduz à perfeição” (Ávila,
1995: 633).
Há uma contestação camuflada nessa aparente submissão. Conformar-se
significa submeter-se a contragosto. É preciso amoldar-se à maneira de ser da
Priora. "Conformons-nous... aux volontés de Sa Révérence". A expressão
prevista seria conformar-se com a vontade de Deus de quem a Priora é a
representante. O emprego do plural "aux volontés de Sa Révérence" possui um
sentido ambígüo e insinua que a ordem da Priora origina-se de um ponto de vista
pessoal, o de suas vontades, que não coincidiria necessariamente com a de Deus.
Embora convoque a uma obediência "non seulement de bouche, mais de coeur",
na realidade, Marie de l’ Incarnation contesta, parcialmente, a ordem da Priora e
de um certo modo a invalida.
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Lembro que coeur faz ressoar também o tema da coragem, no campo
semântico do martírio, “conformons-nous... de coeur” assume um sentido
primeiro de conformemo-nos de coração, mas faz ressoar seu oposto, nesta
situação, o qual seria tomemos a forma da coragem, ou seja, do martírio.
Se Rodrigue, personagem principal de Le Cid, seria o protótipo literário dos
valores da nobreza francesa, o modelo discursivo de Marie de l’ Incarnation,
segundo Bernanos, pode ser aproximado daquele de Polyeucte (1643) de Pierre
Corneille, em sua atração desmedida pelo heroísmo.
Polyeucte, recém-convertido, destrói as imagens dos ídolos pagãos, desafia
a autoridade romana e permanece inabalável diante das súplicas de Pauline, sua
mulher, que tenta salvá-lo da morte.
Este procedimento era desaprovado pela Igreja que sempre aconselhou a
prudência e a não provocação.
Os valores de um grupo social, a nobreza, evidenciam-se no confronto entre
Marie de l’Incarnation e os revolucionários que investigam possíveis abusos
contra a liberdade humana no espaço conventual.
A perquirição do Comissário e de seu auxiliar tem como resultado destacar
o sentido de honra para Marie de l’Incarnation. A honra falaria mais forte do que
o medo, o temor. Assim, a sub-Priora declara ao Comissário que procura
encontrar religiosas enclausuradas a contragosto, para libertá-las: “Monsieur,
sachez que chez la plus pauvre fille du Carmel, l’honneur parle plus haut que la
crainte.” (DC:1640).
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Exprimindo-se por uma máxima, gênero literário valorizado pelos escritores
mundanos do século XVII, Marie de l’Incarnation emprega o registro de sua
classe social, ao opor a honra ao temor.
Ao contrariar as ordens da Priora, Marie de l’Incarnation mostra-se altiva,
arrogante e insolente diante do Comissário, pondo em risco a segurança de toda a
comunidade. Age de modo individualista e não como humilde carmelita que
deveria ser (DC: 1681).
É necessário, em primeiro lugar, tentar responder à seguinte indagação:
como se caracteriza sua visão do mundo? Em Dialogues, o discurso manifesta-se
cheio de certezas, não admitindo a dúvida nem a possibilidade de diálogo.
Caracterizada pela desmedida e pela rigidez, a visão do mundo de Marie de
l’Incarnation apresenta-se tradicional e rigorista. Sua maneira de agir poderia
mesmo ser qualificada de jacobina, se tal adjetivo não fosse reservado, naquele
momento histórico, aos mentores do Terror revolucionário de 1792 e 1794.
Ainda segundo a ótica de Marie de l’ Incarnation, os lugares no mundo
estão previamente marcados pelo nascimento, pelo sangue, pela linhagem, e não
existiria possibilidade de mudanças nem transformações. Suas exigências e
intransigências tornam impossível aceitar as transformações do mundo. Diante
das mudanças operadas, ela declara preferir a morte a aceitá-las:
Vivre n’ est rien, c’est cela que vous voulez dire. Car il n’ est plus que la mort qui compte lorsque la vie est dévaluée jusqu’ au ridicule, elle n’a pas plus de prix que vos assignats. (DC: 1681).
111
Cair no ridículo, ser ridículo, equivalia a uma degradação em um sistema de
valores em que essa era a mais eficiente das armas. “Est-il croyable qu’un
gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer les voeux?" (DC: 1647).
O ridículo, o grotesco, deveria ser evitado a todo custo.
E seria risível demonstrar emoção de forma excessiva. Dor, alegria, ódio,
amor e medo, sentimentos inerentes ao coração humano, poderiam ser revelados,
mas de maneira contida, sem exageros. Decência resumiria a atitude a ser
mantida a todo custo. Oferecer-se em espetáculo, sob o efeito de uma forte
emoção, constituiria uma prova de mau gosto, seria ridículo.
Assim, Marie de l’Incarnation, mesmo durante a profanação da capela do
convento, acompanhada do canto da Carmagnole, permanece digna e
aristocraticamente calma: “Allons! Allons! Mes filles, soyez calmes. Pour l’
instant il n’est d’ autre prière possible que celle-là.” (DC:1654).
Atitude análoga, assumem os nobres presos, à espera da guilhotina. A
indicação cênica (régie) indica que eles são “très énervés mais qui le laissent
paraître le moins possible et se reprennent dès qu’il le faut” (DC: 1693). Para
isso, até jogam baralho. Um dos nobres, ao ser chamado para a execução,
despede-se da mulher amada, prevê uma gorjeta para o carcereiro e acrescenta:
“et vous présenterez mes civilités au Marquis de la Force. Je le vois là-bas qui
sommeille et je n’oserais pas le réveiller pour si peu” (DC: 1693).
A expressão si peu é a litotes irônica e lírica com a qual o condenado se
refere à morte iminente e à separação da mulher de quem gostaria de beijar as
mãos, se este gesto galante não soasse ridículo em espaço inadequado. “Adieu,
Héloïse. Je vous baiserais bien les mains si la chose n’était ici ridicule”
(DC:1695) (grifo meu).
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A secreta satisfação de considerar-se superior e o desprezo pela vida
revelam-se na réplica do aristocrata, acusado por um dos seus, de não amar a
vida: “Nous avons joui d’ elle, et elle jouit de vous. Nous l’avons possédée, et
c’est elle qui vous possède” (DC: 1696).
Marie de l’Incarnation compartilha esse sistema de valores e acrescenta-lhe
a atração pelo martírio, considerada como a expressão de um amor que deseja a
morte. É importante salientar que seu amor se manifesta de modo contido e frio.
Essa maneira de ser e agir coaduna-se com a personagem histórica que lhe serviu
de inspiração. Ao tentar justificar a não retomada da vida conventual, Madame
Philippe arguia ter tido uma vocação “d’ appel” - de chamado e não “d’ attrait” -
atração (Bush,1988:14). Nenhuma semelhança com os êxtases amorosos de
Teresa de Jesus que exclamava: “Ansiosa de verte/deseo morir” (Ávila,
1995:1082).
Ao propor e, de certo modo, impor o voto de martírio a uma comunidade
pouco entusiasmada com a possibilidade concreta de morrer, declara:
Je me félicite de vous voir accueillir cette proposition aussi froidement que le Seigneur m’ inspire de la faire. (...) Nous devons donner notre vie avec décence. La donner même à regret, ou du moins avec une arrière-pensée de tristesse, ne saurait nullement offenser la décence. Ce serait, au contraire, y manquer gravement et grossièrement que de nous monter la tête entre nous avec de grands mots et de grands gestes. (DC:1684-5) (grifos meus)
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Os valores perseguidos são a decência e a dignidade. Devem ser evitados: o
exagero, a exibição dos sentimentos. O ideal de uma moral nobre e clássica seria
viver a litotes na literatura e na vida de todos os dias. Litotes que, em grego,
significa simplicidade, é a figura discursiva que melhor caracteriza a atitude
reservada e violenta de Marie de l’Incarnation. “Elle est toujours
extraordinairement simple et naturelle” (DC: 1684), diz o texto.
Sua atitude diante da vida imita a do herói e a do santo que se despojam dos
bens sem os usufruir ou para melhor usufruí-los.
O herói e o santo se assemelham, numa função mistificante, praticando em
si próprios a grande e magnífica destruição que constitui o ideal de uma família
espiritual. Diferem, entretanto, no que toca às provas que lhes são impostas por
Deus. O herói não duvida de seu destino e até vai ao encontro das perdas e do
sofrimento, enquanto o santo se submete ao despojamento que lhe é imposto e o
aceita.
Marie de l’ Incarnation atua no domínio do heroísmo, desejando o martírio
em um movimento individual, ainda que o preço a pagar seja a destruição, uma
espécie de potlatch. Potlatch seria um dom ou uma destruição com
características sagradas, que exigiria do favorecido o desafio de uma retribuição
equivalente. Enfocarei não a estrutura potencialmente violenta do dom (Mauss,
1960: 173), mas a destruição improdutiva, conceito desenvolvido em Saint Genet
comédien et martyr (Sartre,1952) e em La part maudite (Bataille, 1967).
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Segundo esses estudos, algumas elites praticam o potlatch, sob o aspecto do
dispêndio improdutivo. Elas não produzem, não consomem e desejariam tudo
destruir em um rito sacrificial.
Considerado como a suprema glória, o potlatch exige requisitos: para
destruir riquezas é necessário antes de tudo possuí-las. Enfocado desse modo, o
dispêndio inútil é o contrário do instinto de conservação. Trata-se de um não à
vida e de uma atração pela morte.
Aparenta-se ao potlatch o que Sartre chama de sophistique du non: uma
identificação total entre uma elite e um processo de destruição, que ninguém
aproveita do ponto de vista social. O supremo requinte consistiria em aniquilar
um bem, sem dele aproveitar-se. Mas o aristocrata possui, em alto grau, o bem
sacrificado, pois, segundo essa ótica, o prazer supremo consistiria em recusar o
prazer.
Os aristocratas inutilizaram o ouro, aplicando-o nas paredes das igrejas
(Sartre,1952:190). O ouro inútil seria uma metáfora do trabalho humano, dos
prazeres da vida sacrificados e destruídos, não por amor aos pobres, mas por
amor a Deus.
Como justificativa, fala-se de honra e principalmente de suprema renúncia:
viver é morrer; morrer é viver; a recusa é aceitação. E Sartre cita o espanhol São
João da Cruz, poeta maior, que cantou o despojamento total
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Para venir a gustarlo todo no quieras tener gusto en nada. Para venir a saberlo todo no quieras saber algo en nada. Para venir a poseerlo todo no quieras poseer algo en nada. ... Para venir a lo que gustas has de ir por donde no gustas.
(São João da Cruz, Monte Carmelo)
Tal é a visão de Sartre, coerente com sua visão do mundo. O que não
invalida suas observações pertinentes, quando afirma que esta sophistique du non
agrada, não apenas aos místicos, mas também aos aristocratas em geral, e,
sobretudo aos conservadores. A Sophistique du non não constitui uma ação;
muitas vezes, é apenas uma retórica, e não é isto que mudará o curso do mundo.
Os nobres, durante a Revolução Francesa, não queriam mudar a História,
um conceito dinâmico e burguês; preferiram perder a vida a renunciar aos
privilégios. A morte física pouco lhes importava diante da destruição de um
mundo, de um regime com o qual se identificavam e que fazia parte de suas
existências.
A personagem Marie de l’Incarnation, em sua visão do mundo
individualista e exaltada, despreza a vida que não mais corresponde aos padrões
rígidos e intransigentes da classe privilegiada. Deseja o martírio, que lhe será,
posteriormente, negado, e deve, no momento, submeter-se à autoridade de uma
superiora que representa o ponto de vista comunitário, burguês, astucioso,
pragmático, flexível e que, surpreendentemente, a conduzirá ao martírio.
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4.2.2. A reversão de Valores
Par ma coiffe! Le Carmel n’est un pas un ordre de chevalerie, que je sache” ! Bernanos
Como qualificar o discurso que se opõe aos princípios aristocráticos?
Classificá-lo apenas como um discurso burguês seria por demais simplista. No
século XVIII, às vésperas da Revolução, a sociedade francesa compreendia dois
grandes grupos, havia os nobres e os plebeus - les roturiers - que se subdividiam
em burgueses, artesãos e camponeses. A burguesia é diversa e múltipla. Talvez o
único ponto em comum entre a grande, a média e a pequena burguesia seja o fato
de não ser nobre. E a nobreza também possuía subdivisões: nobreza de sangue,
de toga, pequena, grande nobreza, etc.
Contra todas estas discriminações será proclamado em 1789: “todos os
homens nascem iguais”. O nobre adquiriu nobreza, em alguma longínqua
ocasião, em que foi recompensado pelo bel prazer do rei ou por lealdade e
coragem. Sua superioridade advém de possuir um nome com grande extensão no
tempo e conhecer o que faziam seus antepassados na época das Cruzadas.
Orgulhava-se o fidalgo de ter nascido distinto, filho d’ algo, de alguém célebre,
conhecido por suas posses ou suas façanhas. Ser nobre, ao contrário do que se
queria fazer crer, não é possuir uma essência inata, mas uma questão de tempo e
de memória, apenas.
Assim pensava Arouet de Voltaire, em 1726, ao acreditar pertencer à
nobreza por suas qualidades intelectuais e permitir-se responder ao Cavalheiro de
Rohan que zombara de sua nobreza recente e de seu nome: “J’ aime mieux être le
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premier du mien que le dernier du vôtre” (Peyrefitte, 1985). Voltaire foi
espancado, preso na Bastilha e pressionado a deixar a França, refugiando-se na
Inglaterra.
Cito este episódio emblemático, por ter Voltaire se iludido a respeito de
seus amigos da alta estirpe e remeto à leitura das Mémoires do Duque de Saint-
Simon que desperdiçava parte do seu talento contestando a nobreza de seus
pares.
Reiteradas a insolência, a arrogância da aristocracia e a multiplicidade e
diversidade da burguesia, indago: que nome atribuir ao discurso que contesta o
princípio aristocrático? Qualificá-lo de pragmático não seria abrangente e
limitaria o seu emprego. Classificá-lo como novo não corresponde à realidade,
pois os valores que se afirmam e se fazem ouvir sempre existiram, embora
ocultados por uma moral heróica oficial. Princípio democrático também não
engloba o conjunto de valores que se opõem à moral aristocrática. Resta-me
empregar a expressão discurso burguês, embora considere o sentido pejorativo
que atualmente lhe é atribuído. Enfatizo que o termo é utilizado no sentido de
valor plebeu, daquele que não é nobre, de quem acredita em mudanças, em que
não há mérito em nascer nobre e principalmente crê que todos os homens nascem
iguais.
O discurso burguês representado em Dialogues, principalmente, por Mère
Lidoine, a nova Priora, oriunda da pequena burguesia, denuncia as incoerências e
exageros do código de honra da nobreza. E vai revelar a rigidez e as contradições
de um discurso distorcido pela exaltação, pela desmedida e que se manifesta
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entre as religiosas no desejo do martírio: “Il n’est pas question pour nous de
martyre, je ne veux pas que vos têtes s’echauffent là-dessus. Nous risquons
d’être jetées à la rue, rien de plus. [...]. Voilà de quoi refroidir vos imaginations”
(DC:1627) (grifos meus).
A Priora usa toda a autoridade que o cargo lhe confere para ordenar: “Je ne
veux pas”. A força brutal da expressão deve ser avaliada em um meio em que
predominam as perífrases corteses e as fórmulas antiquadas de polidez. O
emprego da forma verbal na lª pessoa do singular explica-se pela gravidade da
situação e é reforçado por: “Nous risquons d’ être jetées à la rue, rien de plus”.
"Rien de plus", nada mais, coloca um ponto final na ordem expressa da
Superiora, não admitindo réplicas ou contestações.
A oposição s’échauffer x refroidir revela o que deve ser evitado;
s’échauffer, perder o controle, deformar a realidade por causa dos sentimentos
exaltados e refroidir contém a idéia de equilíbrio, predominância da razão. A
linguagem popular emprega freqüentemente “não esquenta”, “é uma pessoa
esquentada” e também o “fica fria”, no sentido de “veja os problemas de um
modo racional”, “mantenha a calma”.
Em um registro voluntariamente coloquial, a Priora, serena e modesta,
procura preservar as religiosas contra o fanatismo do ideal que seria desejar o
martírio, quando o problema que se coloca é o de serem expulsas do convento,
que a ameaça existente é ficar sem teto, ser jogada na rua, nada mais.
Ela dialoga com um discurso não explícito, mas em circulação - o dos
valores aristocráticos. Responsável pela comunidade diante de Deus e diante das
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autoridades civis, tentará todos os meios lícitos para preservá-la. Seu
comportamento visa o poder civil e as religiosas. Quanto à lei, conformar-se-á
com os decretos, sem discutí-los (DC:1647) e quanto às religiosas, procurará
mantê-las equilibradas e dentro da realidade, opondo à exaltação do desejo de
martírio, o equilíbrio e a humildade. A humildade consiste em conhecer o seu
lugar e representa o oposto do orgulho. Enquanto Blanche procura seu lugar no
mundo e Marie de l’Incarnation extrapola o seu, Mère Saint-Augustin sabe
exatamente qual é o seu lugar. Sua força e equilíbrio decorrem deste
conhecimento. A propósito do desejo de martírio, ela declara:
Ce n’est pas à nous de décider si nous aurons ou non, plus tard, nos pauvres noms dans le bréviaire. Je prétends bien n’être jamais de ces convives, dont parle l’ Evangile, qui prennent la première place et risquent d’ être envoyées à la dernière par le Maître du festin. (DC:1663)
Ter o nome inscrito no breviário, ser um santo canonizado, reconhecido
publicamente pela Igreja, é uma alusão recorrente em Bernanos. Convém ser
humilde e procurar não os primeiros lugares nos banquetes, como os grandes
deste mundo, mas sim os últimos lugares, pois “quem se exalta será humilhado e
quem se humilha será exaltado” (Lc: 18,14). Aqui se estabelece um diálogo em
surdina com outro texto do Evangelho “os últimos serão os primeiros”
(Mt:19,30), que prenuncia uma reversão total no desenrolar previsto da ação.
O tema da graça, da escolha misteriosa de Deus, que chama alguns e recusa
outros, está presente nessa postura contrária à visão exaltada de Maria de
l’Incarnation que representa, no momento, a quase maioria da comunidade.
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Referindo-se ao desejo do martírio, a Priora afirma falar como todo o
mundo, usando o sentido mais comum das palavras:
Je donne au mot son sens ordinaire, je parle le langage de tout le monde. [...] Par ma cornette! Lorsque nous aurons nommé bonheur ce que le commun des hommes appelle malheur, en serons-nous bien avancées? (D.C:1664) (grifos meus)
Em um discurso coloquial, intercalado por uma expressão popular - "par
ma cornette", a Priora assume uma posição em favor da Doxa, saber comum. A
acumulação de "sens ordinaire, tout le monde, le commun des hommes" faz
ressoar a Declaração dos direitos do homem e do cidadão que proclama a
igualdade fundamental do homem. Segundo estes valores, quem decide é a
maioria, composta de pessoas comuns. Importa a quantidade de vozes e não a
posição social de quem pleiteia.
Esta é a grande mudança em relação ao princípio aristocrático, em que o
poder emanaria de Deus, que se faz representar pelo rei, que por sua vez delega
poderes aos nobres.
No seu discurso, Mère Lidoine alude aos valores comumente aceitos,
exprime a opinião geral, a Doxa, em oposição aos valores de uma elite.
Continuando sua exposição, a Priora denuncia a fatuidade de desejar o
martírio: “Désirer la mort en bonne santé, c’ est se remplir l’ âme de vent,
comme un fou qui croit se nourrir à la fumée du rôti” (DC: 1664). Ela refuta a
sophistique du non, e evidencia o vazio e um certo ridículo contido no jogo de
palavras e na reversão dos valores: o viver é morrer, morrer é viver etc. E
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desqualifica, de modo definitivo, qualquer ação que precipitasse o martírio e, até
mesmo, o simples desejo de martírio.
O efeito provocado por esse discurso é previsível: todas as religiosas
abaixaram a cabeça, em sinal de submissão aparente. Após observar a reação da
Comunidade, sobretudo das freiras mais jovens e, portanto, mais seduzidas pela
idéia do martírio, a Priora muda de tom e de tática:
J’avais besoin de vous remettre un peu d’aplomb, mes filles. Vous ne teniez plus au sol, vous deveniez si légères qu’un coup de vent dans vos jupes aurait suffi pour vous élever au ciel et vous perdre dans les nuages, comme le ballon de Monsieur Pilâtre. (DC: 1664)
O discurso da Priora é extremamente hábil. Após falar com toda a
autoridade que lhe confere seu cargo, ela faz apelo ao sentimento, à emoção. Ela
possui um Logos, mas, por tática, dissimula-o, ao empregar um registro
coloquial, expressões familiares, visando convencer e conseguir a adesão não
apenas formal, mas de coração, daquelas que considera suas filhas. Denuncia a
ilusão de desejar e provocar o martírio, em termos concretos e familiares, e alude
a um acontecimento da época. Um vento mais forte nas saias - "dans vos jupes" -
seria suficiente para que elas voassem e se perdessem nas nuvens "comme le
ballon de Monsieur Pilâtre". Hoje, o nome de Pilâtre de Rozier é desconhecido,
mas, por volta de 1783, este pseudo-cientista fazia experiências com a
eletricidade e balões diante de um público elegante, constituído sobretudo de
mulheres, encantadas com as lições de física experimental do jovem professor
(Darnton,1984: 188). A alusão de Bernanos não é inocente e reforça a idéia de
que desejar o martírio é alimentar uma quimera, uma ilusão, como os
extraordinários jogos de luz utilizados por Pilâtre de Rozier em 1783, em Paris.
122
Prudente na direção de sua comunidade religiosa, a Priora se mostra
igualmente hábil e correta em relação ao poder civil. Tendo já declarado que
tentaria todos os meios lícitos para preservar seu convento, tanto do ponto de
vista espiritual quanto material, ela se mostrará conciliante, porém digna. Procura
viver o espírito da regra carmelitana que, antes de enfrentar a violência, tudo faz
para desarmá-la.
Ao se submeter ao decreto que proíbe a emissão de novos votos religiosos,
a Priora age com uma correção exemplar. Dá a César o que é de César. Diante da
reação apaixonada de Marie de l’Incarnation, que esperaria uma atitude de
desobediência ao poder civil, ela replica não poder arriscar a segurança de toda a
comunidade e infringir uma ordem, em benefício de uma única pessoa, mesmo
em se tratando de Blanche de la Force. Prevalece o critério democrático da
maioria: “Je ne puis risquer de sacrifier à Mademoiselle de la Force la sécurité
de toutes mes filles” (DC: 1648).
Inconformada, Marie de l’Incarnation apela para um sentimento de honra
mundano e alude às últimas vontades de Madame de Croissy. A Priora relembra
em que consiste a verdadeira honra, para uma carmelita, e alude à possibilidade
de um desígnio particular para Marie de l’Incarnation. A argumentação que se
segue pertence a uma outra ordem: “Mère Marie, je ne veux rien dire de trop,
mais vous parlez de l’honneur comme si nous n’avions pas depuis longtemps
renoncé à l’estime du monde” (DC:1648). A Priora sabe muito mais do que faz
transparecer e deixa sem resposta a pergunta que é uma afirmação: “Que
pourrions-nous désirer de mieux que de mourir?" (DC: 1649).
123
O silêncio também é uma resposta. A verdade intuída não pode ser
demonstrada pela lógica e Mère Saint-Augustin se cala, indicando que o mais
importante não foi dito. Silêncio que dialoga com a atitude de Cristo, diante de
Pilatos: “E Jesus se calava” (Mt: 27,14).
O discurso de Mère Lidoine percorre vários registros de linguagem: alterna
uma linguagem coloquial com expressões populares e, quando necessário,
exprime-se com elevação e grandeza. Além disto, tem a habilidade de esconder a
própria habilidade em argumentar, em convencer.
Para convencer, a Priora emprega diversos recursos que serão assinalados
ao longo desta análise e que consistem em: argumento da autoridade pura e
simples, considerações de ordem espiritual, apelo à emoção, razões de ordem
prática e de sobrevivência e a tática de conceder a última réplica ao interlocutor.
O confronto entre os dois sistemas de valores, aristocrático e plebeu,
representados no texto por Marie de l’Incarnation e Mère Saint- Augustin, pode
ser exemplificado no diálogo que se segue :
Mère Marie: Est-il croyable qu’un gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer les voeux?
La Prieure: Croyable ou non, ce décret doit vous paraître assez clair.
Mère Marie: Votre Révérence est-elle décidée à s’y conformer?
La Prieure: Oui (DC:1647)
Ao finalizar a discussão densa e contida, Mère Lidoine explicita suas razões
de prudência e de obediência civil: uma cerimônia no Carmelo dificilmente
passaria despercebida em uma cidade cheia de espiões. E a menor indiscrição
lhes faria perder a cabeça. A inserção no momento histórico e na cidade de
124
Compiègne marca a mudança de registro finalizada com o intencionalmente
prosaico: “La moindre indiscrétion nous ferait couper le cou” (DC:1649).
O Carmelo não mais é visto como uma cidadela inviolável e, de certo
modo, invisível. Os muros da clausura, tornados transparentes, exporiam as
religiosas ao olhar ameaçador do outro.
A Priora enfrenta um conflito que se desenrola em dois planos: o
circunstancial, com as medidas hostis da Revolução contra os religiosos e o
espiritual, agravado pelas visões do mundo antagônicas, no interior do Carmelo.
A proibição de emitir novos votos atingiu particularmente duas noviças, as
personagens Blanche de la Force e Constance de Saint-Denis.
Diante do dilema: obedecer a Deus e arriscar a segurança da Comunidade,
ou curvar-se diante de uma ordem arbitrária, a Superiora assume o conflito, mas
tenta, primeiramente, resolvê-lo de modo prático.
Se a Assembléia Nacional interditara a profissão de votos religiosos e se
Blanche se revelara incapaz de superar o medo, o mais prudente seria considerar
seu período de noviciado insatisfatório e despedi -la.
A Priora age dentro das normas, pois o noviciado é um tempo de
preparação imposto pela Igreja aos candidatos à vida religiosa, com uma duração
mínima de doze meses e no máximo de três anos. Durante esse período, o
canditado pode desistir ou ser julgado inapto à vida religiosa ou àquela
determinada Ordem ou Congregação.
125
Diante da reação humilde e desesperada de Blanche, a Priora decide refletir
mais sobre o assunto. Despedir Blanche era uma solução oficial e parcial: restava
solucionar o problema dos votos de Constance de Saint-Denis.
Importa observar que, antes de tentar resolver o problema da proibição de
emitir votos religiosos, a Priora já o tinha dirimido através da linguagem ao
empregar uma grande habilidade ou a inteligência astuta, a Mètis grega.
Segundo Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne (1974), a civilização grega,
caracterizada pela Mètis, cala freqüentemente a seu respeito. Não há tratados nem
sistemas filosóficos sobre os princípios da inteligência astuta, como há tratados
sobre a lógica. A astúcia, a mètis, presente no universo mental dos gregos,
precisa ser descoberta no jogo das práticas sociais e intelectuais, em que sua
presença se revela de modo às vezes obsessivo. Os dois helenistas estudam a
etimologia de mètis. Como substantivo comum, mètis significaria uma forma de
inteligência, uma certa prudência. Como nome próprio, Mètis teria sido a
primeira mulher de Zeus, filha do Oceano e mãe de Atena. Sua atividade cessa ao
ser engolida por Zeus que, receoso de ser suplantado por um possível filho,
conserva a Astúcia dentro de si e torna-se a própria astúcia. Há deuses colocados
sob o signo da astúcia: Atena, Hermes, Afrodite, Hefesto, e os que não a
possuem como Apolo e Dionísio.
Mètis, a astúcia, seria, portanto, mais uma categoria mental do que uma
noção. Ela é uma forma de inteligência e de pensamento; um modo de conhecer;
implica um conjunto complexo, mas muito coerente, de atitudes mentais, de
comportamentos intelectuais que combinam o faro, a sagacidade, a previsão, a
126
maleabilidade de espírito, o fingimento, o desembaraço, a atenção vigilante, o
senso da oportunidade, habilidades diversas e uma experiência longamente
adquirida (Detienne & Vernant, 1974:10).
O agir da Priora revela habilidade e astúcia, sua mètis, ao recitar o Hino de
Santa Teresa d’Avila antes de ler o decreto da Assembléia Nacional. Observarei,
primeiramente, a indicação cênica - régie - que antecede o Hino.
Chapitre. Toutes les religieuses sont solennellement rassemblées. Avant de lire le décret, la Prieure récite avec ses filles l’hymne de Sainte Thérèse d’Avila:
Je suis vôtre et je suis en ce monde pour vous. Comment voulez-vous disposer de moi? Donnez-moi richesse ou dénuement, Donnez-moi consolation ou tristesse, Donnez-moi l’allégresse ou l’affliction Douce vie et soleil sans voile Puisque je me suis abandonnée tout entière Comment voulez-vous disposer de moi?
La Prieure: Je dois vous donner lecture du décret de l’Assemblée qui suspend jusqu’ à nouvel ordre les voeux de religion.
No tocante a "Chapitre" - Capítulo ou sala do Capítulo - deve ser
esclarecido que se trata de um espaço, no interior do Carmelo, onde se reúnem as
religiosas para deliberar e tomar decisões. A Priora comunica as diretivas do dia.
Tudo o que é importante decide-se, oficialmente, nesse espaço consagrado à
autoridade.
Outra indicação teatral já havia descrito a sala do Capítulo “Comme toute
les salles communes, celle-ci est petite et voûtée. Au mur un très beau crucifix.
Sous le crucifix le fauteuil de la Prieure.Le long des murs, un banc où s’assoient
les religieuses” (DC:1614).
127
Nessa sala comum, destaca-se "un très beau crucifix. Sous le crucifix le
fauteuil de la Prieure". A oposição "fauteuil - banc" -poltrona - banco -
representa a hierarquia religiosa. As religiosas sentam-se em um banco. Há que
se notar o apelo cinematográfico da indicação que, no quadro espaço-temporal,
destaca três planos: no alto, o crucifixo; abaixo, a poltrona da Priora; e a uma
certa distância, o banco das religiosas, anônimas.
Nesse espaço organizado sob o signo da autoridade espiritual, "Toutes les
religieuses sont solennellement rassemblées". As religiosas são aquelas que
pronunciaram votos numa religião. Várias hipóteses tentam explicar a etimologia
da palavra religião. Originária do latim religio (veneração, atenção escrupulosa),
religião pode ter sua origem no verbo religare e este sentido é muito conhecido.
Pode também significar juntar e sua origem etimológica seria o verbo legere:
reunir, no sentido próprio, e ler, no sentido figurado.
As religiosas, religadas a um poder sobrenatural, reúnem-se em
comunidades, para melhor atingir seu objetivo. Elas sabem, principalmente, ler,
descobrir o sentido não evidente dos seres e das coisas (Kristeva,1969:181).
Em Dialogues, trata-se de uma reunião solene. Solennellement, de acordo
com sua etimologia, solennelle, radical en do latim annus, exprime um
acontecimento, um fato que ocorria apenas uma vez por ano. O emprego do
advérbio solennellement destaca o caráter oficial e excepcional da reunião
capitular.
Antes de ler o Decreto - domínio civil -, a Priora recita o Hino -domínio
espiritual -. No conflito entre a horizontalidade - a marcha da História - e a
128
verticalidade - a aspiração para o alto -, destaca-se a mètis, a astúcia da Priora.
Ela se adapta ao imprevisto das circunstâncias e diante dos acontecimentos sabe
pilotar seu navio com arte e segurança.
A inteligência astuta exerce-se em diversos planos, mas sempre de modo
prático: a habilidade do artesão, do sofista, a prudência do político ou a arte do
piloto dirigindo seu navio. Não existem regras imutáveis. Cada dificuldade exige
a procura de uma solução, de uma saída.
À rigidez aristocrática opõe-se a maleabilidade burguesa. A astúcia é um
valor não-nobre. O fidalgo julgaria aviltante ser astuto. Somente quem está em
situação inferior precisa empregar ardis, ser esperto. Quem exerce o poder,
aquele que é ou se julga superior emprega a condescendência, a autoridade ou a
arrogância.
Diante do impasse, ameaçada pelo Terror, Mère Lidoine na condição de
autoridade, recorre, então, à astúcia, através da linguagem.
O verbo réciter, do latim recitare, tem como raiz o verbo latino cio:
empurrar, agitar, provocar, excitar. Recitar significa ler em voz alta um
documento em uma sessão pública. Recitar não é simplesmente repetir palavras.
Significa pedir socorro, provocar emoções, despertar sentimentos. Todas essas
idéias são evocadas no texto. As religiosas conhecem o Hino, tantas vezes
repetido. Sua recitação solene, na sala do Capítulo, é um pedido de socorro e uma
ação que se concretizam no dizer. O Hino constitui uma promessa de união
espiritual e um compromisso que se realizam no momento em que é pronunciado.
129
A idéia de que existem atos que podem ser realizados pela palavra não
constitui uma novidade. A criação do mundo, relatada no livro do Gênesis,
decorre da palavra de Deus: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Gênesis,1,3).
E esta fórmula repete-se na narrativa da criação, centralizada no verbo dizer e
seguida do verbo ver: "E viu Deus que isso era bom” (Gênesis, 1,18). A idéia da
palavra criadora é tratada por Aristóteles principalmente na Poética.
A palavra cria, constitui uma ação e pode tornar-se uma realidade
autônoma. Na tragédia clássica francesa o dizer equivale a um fazer. Roland
Barthes, ao analisar Phèdre, a tragédia da palavra, conclui:
O que é que torna tão terrível a palavra? Primeiramente, porque ela é um ato; a palavra é poderosa. Mas é sobretudo porque ela é irreversível: nenhuma palavra pode ser retomada (...) sua criação é definitiva (Barthes,1960:119)
Quando a personagem Phèdre de Racine revela sua paixão incestuosa por
Hippolyte, torna-se culpada pelo fato de ter falado, dado corpo a um sentimento.
O silêncio constituía sua liberdade; seu falar coincide com o fazer.
Esta noção está presente no pensamento grego antigo, embora não seja tão
evidente em nossa época, na qual a ação concreta é mais valorizada. Existiria
uma gradação de importância crescente em pensar, falar e agir. Assim, no
Confiteor, o cristão se acusa de ter pecado "por pensamento, palavras e obras".
Recitado na 1ª pessoa do singular do Indicativo Presente, o Hino de Santa
Teresa realiza o que enuncia. Renovou os votos das religiosas e permitiu que
Blanche de la Force e Constance de Saint-Denis professassem, apesar da
proibição da Assembléia Nacional.
130
Expressão de um amor intenso, síntese do espírito carmelitano, o cântico
congrega todas as religiosas. É também o ponto de convergência, em que os
discursos antagônicos encontram um denominador comum: o abandono total à
vontade de Deus. O discurso da alma enamorada de Deus e os termos nos quais
se exprime a paixão humana muitas vezes coincidem.
O místico, ao comunicar sua experiência de união com Deus, recorre
freqüentemente a uma linguagem erótica, transgressora e poética, a “lingua
nova”, a “logothesis" (Barthes, 1994:1043). E tentaria produzir na linguagem
efeitos relativos ao que não está na linguagem. Os místicos aspiram a um gozo
além do plano físico, a uma fusão, a uma comunhão que pode utilizar, como
metáfora, o amor humano. Neste sentido, pode ser entendida a afirmação de que
somente os corações religiosos conhecem a verdadeira linguagem das grandes
paixões.
A procura de um amor eterno, infinito, não submetido à usura do tempo,
poderia concretizar-se no Carmelo. Santa Teresa dizia procurar um amor que
durasse para sempre.
A alma diz-se seduzida por Deus e a distância que a separa do Ser amado
aumenta seu desejo em lugar de diminuí-lo. O profeta Jeremias sintetiza o
sentimento da alma envolvida no jogo de sedução do qual Deus é o grande
parceiro: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir; foste mais forte do
que eu, e pudeste mais" (Jeremias, 20,7).
131
Além de ser um canto de amor, o Hino constitui os termos de um contrato
de casamento. Convém lembrar que o ministro do sacramento do matrimônio não
é o sacerdote e sim os nubentes através de um consentimento mútuo.
A alma, enamorada de Deus, reafirma o dom total de si própria e destaca o
domínio de sua ação: “Je suis en ce monde pour vous”. "Ce monde", este mundo,
possui uma conotação espaço-temporal, inscreve-se na História e se opõe ao
reino de Deus. “Meu reino não é deste mundo”, diz o Cristo (Jo, 18:36). A alma
reitera que ela vive neste mundo, de modo provisório, e anseia encontrar Deus
em uma outra vida, em um outro mundo. E viver, de acordo com a tradição
judaico-cristã, baseada, entre outros, em Platão, seria um exílio.
O Hino de Santa Teresa é a expressão dessa espiritualidade carmelitana. Ao
ser recitado, estreitou os laços que uniam as religiosas entre si, possibilitou a
renovação dos votos proferidos e a emissão de novos votos. A habilidade da
Priora tornou possível obedecer a Deus, sem provocar o poder civil, através da
mètis, da astúcia.
A Priora lê o decreto. Ler não é recitar. Ler vem de lex, do latim legere. As
autoridades civis tomaram uma decisão através de um decreto, determinação
escrita com força de lei. Sozinha, a Superiora cumpre o dever de seu cargo de
modo objetivo e neutro. Trata-se de uma obrigação externa, civil. Não julga.
Justo ou não, o decreto deve ser obedecido e a Priora a ele se submete para
proteger a Comunidade. Neste momento, toda uma habilidade entra em ação para
conseguir um objetivo: a sobrevivência das religiosas como indivíduos e como
entidade religiosa.
132
No estudo consagrado à mètis grega, há exemplos das táticas de
sobrevivência: a raposa finge estar morta e o ouriço fecha-se em si mesmo. É a
atitude oposta do herói que desafia a morte e se expõe ao perigo.
Precisa-se, um pouco mais, a grande oposição entre os valores, aristocrático
e burguês, o emprego da astúcia para sobreviver. Não se trata de covardia, mas
de simples bom senso. Agindo com habilidade e tendo superado o dilema entre o
sagrado e o profano, através da linguagem, a Priora, após ler o decreto, permite-
se um discurso pessoal. Depois de algumas considerações preliminares que
fazem apelo à generosidade, à vocação carmelitana baseada na humildade e na
modéstia, a Priora, cônscia de sua responsabilidade, recusa a desmedida, a
hybris.
Primeiramente ela adverte:
Car en toute conscience des devoirs de ma charge, je dois vous dire que je ne saurais tolérer plus longtemps une certaine exaltation qui - si élevés qu’ en soient les motifs - ne nous en distrait pas moins des modestes devoirs de notre état. (DC:1652) (grifo meu)
A advertência contra a exaltação, contra a desmedida fundamenta-se,
também, no ideal carmelitano: há que se ter a justa medida em tudo o que se faz.
Somente o amor de Deus pode ser desmedido.
Prudente e reservada, a religiosa deve cumprir o seu dever e desconfiar de
tudo o que possa afastá-la da oração, mesmo que se trate do martírio. Conta-se
que, enquanto a Santa Inquisição deliberava se as visões e êxtases de Teresa
tinham origem divina ou demoníaca, a Santa varria os corredores do convento,
133
observando que a mulher que ocupa as mãos não perde a cabeça. Somente o
trabalho pode afastar os delírios de uma imaginação desregrada.
Após ter advertido, a Priora ordena: “Ma volonté bien réfléchie est que
cette communauté continue de vivre aussi simplement que par le passé”
(DC:1652).
O valor dessa ordem deve ser avaliado dentro do espírito da regra do
Carmelo. Santa Teresa d’Avila introduziu um novo elemento no processo de
ascese mística: a obediência, na tentativa de neutralizar as teorias do livre exame,
as teorias de Erasmo que circulavam na Espanha. Sob o signo da obediência,
reafirma a autoridade da Igreja, numa época em que o poder espiritual abrangia
também o poder temporal.
As religiosas despojaram-se, voluntariamente, da liberdade através do voto
de obediência e devem obedecer à Priora, representante de Deus e intérprete da
Lei. As relações estabelecidas entre Deus, as religiosas e a superiora são
sintetizadas em Dialogues: “C’ est à Dieu qu’ elle appartient, mais Votre
Révérence en reste l’usufruitière de par la charge à laquelle nous l’ avons
volontairement et librement désignée”, pondera uma das carmelitas (DC:1711) (
grifo meu).
A Priora responde diante de Deus e diante do poder civil pelas religiosas.
Este esquema repete, no convento, a mesma estrutura da monarquia francesa de
direito divino, como a de Luís XIV. O rei só prestaria contas a Deus, mas é
responsável pelo seu povo - os súditos -, que lhe devem obediência.
134
É importante constatar a diferença existente entre a personalidade da Priora
e o exercício de seu cargo. Mère Lidoine se caracteriza como uma velha
religiosa, um pouco repetitiva e sem grandes pretensões: “Une vieille femme un
peu terre à terre, un peu radoteuse.” (DC: 1664). Conciliante e bondosa, ela
representaria a sabedoria, o aspecto positivo da velhice. Entretanto, age de
modo autoritário, porque está investida de poder que lhe confere a hierarquia da
Ordem do Carmelo.
As religiosas devem obedecer à vontade de Deus expressa através das
ordens da Priora e esta tem plena consciência dos deveres de seu cargo: “c’est
moi qui répondrai de vous toutes et je suis assez vieille pour savoir tenir mes
comptes en règle” (DC: 1699).
Porém, antes de determinar sua ordem, a Priora tentara, ao assumir o
superiorato, convencer as religiosas utilizando uma linguagem metafórica que
ilustra, reitera e sintetiza sua maneira de pensar. Primeiramente. ela aconselhou:
Je vous répete que nous sommes de pauvres filles rassemblées pour prier Dieu. Méfions-nous de tout ce qui pourrait nous détourner de la prière, méfions-nous même du martyre. [...]. Lorsqu’ un grand Roi, devant toute sa cour, fait signe à la servante de venir s’ asseoir avec lui sur son trône, ainsi qu’ une épouse bien-aimée, il est préférable qu’ elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses oreilles, et continue à frotter les meubles. (DC: 1615) ( grifos meus )
A Priora não diz "si un grand roi" mas “lorsqu’un grand Roi". O emprego
da conjunção lorsque - quando, indica uma realidade, uma circunstância atual. O
grande Rei acena: o Terror revolucionário fazia vítimas. Não se trata de uma
hipótese, mas de uma probabilidade cada vez mais próxima. A idéia do martírio
não é afastada, mas designada metaforicamente como "l’ invitation du grand
135
Roi". Mister se faz agir com prudência e uma certa reserva. "Il est préférable qu’
elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses oreilles, et continue à frotter les
meubles". "Frotter les meubles" que significa esfregar os móveis para fazê-los
brilhar, vai ao encontro do costume praticado por Santa Teresa de trabalhar
manualmente. A palavra chave é o advérbio d’abord, primeiramente. Desconfiar
de tudo o que é extraordinário, seguir a rotina, continuar a trabalhar como se
nada tivesse acontecido e, somente depois, admitir a possibilidade da exceção, do
extraordinário. O senso comum e, sobretudo a humildade recomendam duvidar
da imaginação e do amor próprio que falseiam muitas vezes a realidade.
O bom senso caracteriza o espírito do Carmelo. Conta-se que Santa Teresa
teria prescrito comer carne a uma religiosa que dizia ter visões. A ordem foi
executada e as visões cessaram. Esse equilíbrio, esse respeito pela natureza do
homem, revela-se em uma humildade que é sinônimo de verdade. É preciso
vencer e não forçar a natureza, dizia Madame de Croissy (DC: 1582).
Importa também estar consciente de que confiar em Deus não significa estar
protegido contra o sofrimento nem contra as mudanças violentas. Numa época de
transformações sociais e de rupturas, tudo é aleatório, mais do que nunca:
(...) ne comptons jamais que sur cette espèce de courage que Dieu dispense au jour le jour, et comme sou par sou.. C’ est ce courage-là qui nous convient, qui s’ accorde le mieux à l’ humilité de notre état. (DC: 1652)
136
Mère Lidoine explicita seus argumentos: somos pobres servas de Deus e a
coragem que nos convém é aquela que é concedida, dia a dia, e “comme sou par
sou” expressão que revela uma das características de quem se definiu: “je ne suis
pas de celles qui jettent leur bien par la fenêtre” (DC: 1716).
Trata-se de privilegiar a economia, a boa administração dos bens materiais,
de ter consciência de seus limites e de não se envergonhar de saber calcular. Ao
ser-lhe dito que Madame de Croissy, tal como as aristocratas, não sabia fazer
contas e que desse fato retirava mesmo uma certa vaidade, Mère Saint-Augustin
replica que calcular é o seu forte (DC:1620).
Face às restrições impostas pela Revolução, ela calcula aquilo de que
dispõe, antes de começar a contar com rendas futuras. Há uma oposição entre a
atitude burguesa, que sabe calcular, e o desprezo aristocrático do dinheiro que, de
uma certa forma, fazia parte da mentalidade reinante no Carmelo.
Os nobres afetavam desprezar o dinheiro, o lucro, e julgavam ser o trabalho
indigno de sua classe social. Atitudes que lhes apressaram a decadência e a ruína.
Mère Saint-Augustin se opõe a esse discurso aristocrático, sob todos os
aspectos. Em relação à coragem, posiciona-se a favor, não do heroísmo exaltante,
mas da difícil coragem de enfrentar o dia a dia, o quotidiano, o dever obscuro.
“Car il y a plusieurs sortes de courage, et celui des grands de la terre n’est pas
celui des petites gens, il ne leur permettrait pas de survivre” (DC: 1615). Aos
poderosos, convêm as virtudes heróicas; aos pequenos, as virtudes sem brilho: a
boa-vontade, a paciência, o espírito de conciliação e, sobretudo, a humildade.
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Significativamente, a astúcia não é mencionada, mas escondida. É preciso não
esquecer que Zeus engoliu Métis, incorporando-a.
As razões de Mère Lidoine podem ser resumidas em um silogismo: existem
as grandes e as pequenas virtudes. As grandes virtudes convêm aos poderosos e
aos ricos; as pequenas virtudes convêm aos pequenos e aos humildes. Ora, nós
somos pequenas. Logo, somente nos convêm as pequenas virtudes.
O tema das pequenas virtudes encontra-se, também, em La peste de Albert
Camus. O Dr. Rieux, personagem principal do romance, ao propor como herói,
Grand, herói insignificante e apagado (Camus,1947:129) e ao definir a
honestidade como fazer seu trabalho, posiciona-se a favor do dever quotidiano,
feito com exatidão, e das virtudes escondidas e sem brilho. Cuidar dos doentes,
dizia o médico, era fazer seu trabalho. E Mère Lidoine afirma: “La prière est un
devoir, le martyre est une récompense” (DC:1615), fazendo ressoar a
afirmação da velha Priora: "Notre affaire est de prier, comme l’affaire d’une
lampe est d’éclairer" (DC: 1584). No dilaceramento da depuração, já referida,
Camus, em 1945, recusa publicar, em Combat, um artigo violento e injusto de
Bernanos, e argumenta que o heroísmo e a santidade constituem exceções e não
são accessíveis ao comum dos homens.
Em 1948, Bernanos pode escrever: “Si la force est une vertu, il n’y a pas
assez de cette vertu pour tout le monde” (DC: 1649). A intransigência do autor
cedeu lugar à humildade que possibilita aceitar as limitações individuais e as
diferentes reações diante do perigo, diante da morte.
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Assim, a Priora evidencia, também, que desejar a morte não significa trilhar
o único caminho que leva a Deus. Não há infâmia em defender-se, em tentar
evitar a morte por todos os meios legais.
Mère Marie de Saint-Augustin denuncia igualmente a tentação de
onipotência que se insinua no Carmelo: a de preocupar-se com problemas que
não dizem respeito à comunidade: “Cela ne nous regarde pas”, (DC: 1662)
afirma, no seu sadio individualismo burguês. Individualismo que não significa
egoísmo, mas bom senso e humildade. Cada coisa virá a seu tempo. Não é
prudente imiscuir-se em assuntos que escapam ao campo de ação destinado a
cada um. O problema do outro é o problema do outro.
Este pragmatismo se exprime freqüentemente por uma Doxa, constituída de
provérbios, frases feitas e clichês não desprovidos de certo senso de humor.
Aspecto subestimado pela crítica bernanosiana em geral, o humor marca a
ruptura da tensão e a volta à vida quotidiana.
O apelo à sabedoria popular, ao consenso social, é um dos recursos do
discurso da Priora, que se humilha, voluntariamente, ao empregar um registro
coloquial e, às vezes dialetal, em um espaço onde seria esperado um registro
culto e formal. Monique Gosselin, ao estudar o emprego das máximas
aristocráticas e provérbios populares em Dialogues, assinala, entre outras, a
tensão entre uma visão espiritual aristocrática e uma espiritualidade do
despojamento que se confrontam e se complementam, sem se anularem
(Gosselin,1983:241).
139
Ao enumerar estas máximas e provérbios justapostos e modificados: “Chien
qui aboie mord mie - paroles vides mauvaises raisons - mieux vaut douceurs que
violence et une seule once de miel prend plus de mouches que sentier de
vinaigre” (DC: 1615), a Priora emprega um recurso que pode ser comparado à
atitude de Ulisses fazendo-se passar por desprovido de eloqüência diante de seus
compatriotas, para mais facilmente convencê-los.
Os argumentos da Doxa, vulneráveis, ambíguos, prestam-se a uma réplica
inevitável. A todo provérbio ou máxima, pode ser oposto um outro provérbio ou
máxima. Consciente dessa limitação, a Priora cessa de utilizar esses meios e após
ordenar a fidelidade ao quotidiano e à simplicidade, muda o registro e, superada
a oposição entre os valores aristocráticos e os valores burgueses, atinge outro
domínio: o da transcendência.
Mère Saint-Augustin passa a contemplar o escândalo da Paixão do Cristo.
Lorsqu’ on les considère de ce jardin de Gethsémani où fut divinisée, en le coeur Adorable du Seigneur, toute l’ angoisse humaine, la distinction entre la peur et le courage ne me parait pas loin d’ être superflue et ils nous apparaissent l’ un et l’autre comme des colifichets de luxe. (DC:1653) (grifos meus)
Somente o homem contempla. Mais do que simplesmente olhar, é
necessário considerar, olhar com atenção, contemplar a agonia do Cristo. A
tortura moral no Jardim das Oliveiras, resgatou o medo, a angústia e reverteu
todos os valores. O medo, inconfessável e inadmissível, foi colocado no mesmo
nível da coragem. Aceitar o medo e a humilhação subseqüente, eis o caminho dos
pequenos e dos pobres. Sobretudo, insistir na diferença entre o medo e a coragem
140
seria compactuar com os resíduos de uma moral aristocrática que sobreviveria no
Carmelo.
A Priora restabelece o conceito da verdadeira honra, lembrando a fidelidade
à vocação escolhida: seguir o Cristo na vergonha, na ignomínia e no medo. "Vous
savez très bien que c’est dans la honte et l’ignominie de sa passion que les filles
du Carmel suivent leur maître." (DC:1648).
Sua exposição oscila sempre entre um clímax e um anticlímax. Depois da
evocação da Agonia do Cristo, do escândalo de sua Paixão, a reversão dos
valores é traduzida em outro registro, mais coloquial. A distinção entre o medo e
a coragem seria comparável a "colifichets de luxe" - pendurucalhos. Esta palavra
possui um sentido pejorativo e significa: pequeno objeto de fantasia, sem grande
valor e também enfeites de um gosto duvidoso. Em conseqüência, o sentimento
de honra segundo os critérios mundanos, o desejo do martírio, o medo do medo,
seriam apenas vãos enfeites de uma moral aristocrática, inúteis em um convento.
A espiritualidade da Priora denuncia a vaidade de provocar o martírio e
valoriza o abandono total à vontade de Deus. Estar na mão de Deus não significa
uma imunidade contra o sofrimento, contra a dor. A lógica divina não coincide,
necessariamente, com a lógica humana. “...nous oublions trop aisément que rien
ne nous assure contre le mal, que nous sommes toujours dans la main de Dieu”
(DC:1614). E o Evangelho prega a reversão de valores (Sermão da Montanha,
Mt 5,1-10), facilmente esquecida em tempos prósperos e de tranqüilidade.
A fraqueza, na obra de Bernanos, pode dar acesso ao sagrado, e o opróbrio
pode transformar-se em glória. A ruptura das normas, a humilhação e a morte
141
podem vir a ser outro caminho, caminho que não se escolhe, mas no qual se é
colocado. O texto de Bernanos dialoga com o célebre texto de Pascal "Grandeur
de Jésus-Christ: les trois ordres" (Pascal, 793) e com as Epístolas de São Paulo
onde o tema da fraqueza transformada em força é recorrente. “Mas Deus
escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; Deus escolheu
as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes” ( I Coríntios, I, 2).
No Carmelo, um espaço onde fermentam conflitos latentes, duas ordens de
valores enfrentam-se, coexistem e complementam-se: a moral espiritual
aristocrática e a de Mère Marie de Saint-Augustin, baseada no despojamento
total, agindo no mesmo domínio, com meios de ação diferentes. Convém
ressaltar que Bernanos expõe os diálogos, mas não toma partido. Cada leitor faz a
sua leitura, cada espectador se posiciona, diferentemente, diante da problemática
apresentada.
Ao sentimento exacerbado de honra, ligado a uma classe social, ao desejo
do martírio, à sophistique du non, à desmedida, é contraposta a aceitação do
humilde dever quotidiano que é a oração e o trabalho. Sobretudo, trata-se de ter a
sabedoria e a humildade de distinguir entre o que se deve aceitar perder e a
renúncia para preservar o que pode e deve ser salvo. A difícil distinção entre o
essencial e o acidental.
Marie de l’Incarnation deseja o martírio individual e procura arrastar toda a
Comunidade em sua hybris. Representaria um certo discurso aristocrático, aquele
que expressa o sentimento exacerbado da honra, o desprezo pela vida e a
renúncia aos prazeres deste mundo. A intuição impulsiona suas decisões. Sua
142
meta consiste em atingir o supremo gozo de não gozar. O martírio, um magnífico
potlatch, afigura-se-lhe um meio de abolir o tempo, a espera e a ausência que a
separam do Eterno.
A Priora representa a moral burguesa, com seus valores peculiares: a
austeridade, a astúcia, o pragmatismo, o bom senso, a dignidade do homem, a
liberdade de escolha. Ela se considera não a esposa, mas a serva de Deus. O
priorizado é o serviço. Seu ideal é ser ancilla Domini.
Cada personagem possui sua verdade, resultado de um olhar sobre o
mundo. As duas visões do mundo completam-se no grande jogo de tentar ler,
decifrar o mundo. E é ainda a Priora que define a aparente oposição: “Nous
paraissons un peu différentes, nos voies ne sont pas tout à fait les mêmes, et
pourtant nous nous comprendrons toujours très bien, s’il plaît à Dieu”
(DC:1617-1618). Representam duas maneiras de amar a Deus.
Em relação ao bem comum, também as atitudes são divergentes. Marie de
l’Incarnation procura realizar seu ideal, sem levar em consideração as fraquezas e
peculiaridades do grupo a que pertence. A Priora, ao contrário, cônscia de seus
deveres, preocupa-se com a comunidade como um todo, constituído de diferentes
elementos, uns mais fortes, outros mais fracos. Com muita sabedoria, faz a
importante distinção: se a responsável diante de Deus e da sociedade fosse Marie
de l’Incarnation, de bom grado ela pronunciaria o voto de martírio, em suas
mãos: “Si vous étiez à ma place, ce serait aussi un grand bonheur pour moi de
prononcer ce voeu du martyre, et de le prononcer entre vos mains.” (DC: 1665).
143
Estas duas maneiras de ser podem ser encontradas em todos os domínios:
Marta e Maria, D. Quixote e Sancho Pança, o sonho e a realidade, a morte e a
vida. Nem sempre as duas atitudes se apresentam nitidamente separados. Há um
pouco de Marta em cada Maria e um pouco de Maria em cada Marta.
E o Carmelo acolhe os diferentes discursos. Cada um fala a sua linguagem,
cada um segue o seu caminho, mas existe um denominador comum que é a
procura do Eterno.
Os valores aristocráticos e burgueses coexistiam no Carmelo, mas havia
uma predominância do princípio aristocrático do código de honra, a valorização
do fanatismo do martírio, da destruição improdutiva - potlatch -. As rupturas e
transformações ocasionadas pela Revolução Francesa repercutem no Carmelo. E
a primeira grande mudança ocasionada foi a eleição para Priora da burguesa
Marie de Saint-Augustin, preferida à aristocrática Marie de l’Incarnation. Esta
eleição anunciou o fim do Antigo Regime, a instauração dos valores burgueses, a
ruptura com o passado e sobretudo uma renovação.
Os conflitos existentes no Carmelo intensificam-se com a presença de
Blanche de la Force, nobre e covarde, à procura de sua identidade, de seu lugar
no mundo.
144
4.3. Onde está Blanche?
Qu’importe pour quoi nous sommes faits puisque Dieu peut nous faire, défaire et refaire à mesure? Bernanos
Blanche de la Force, nascida logo após o tumulto da multidão em pânico,
provocado pela explosão dos fogos de artifício, é um ser marcado pelo medo e
pela angústia. Ela “oferece o exemplo limite desta articulação do sobrenatural
sobre o real da angústia.[...] Ela é angústia” (Renard,1989: 243).
Frágil e desamparada, Blanche assume o código de honra de sua classe
social, mas exagera seus deveres na tentativa de não desmerecer seus ancestrais,
de respeitar o nome de seu pai, de ser de la Force. E, pelo medo, sente-se
desonrada.
Seu conflito desenvolve-se em dois planos: interiormente, o que ela exige
de si mesma, de acordo com o que imagina ser seu dever, e no plano exterior - as
obrigações que lhe são realmente impostas.
Dialogues inicia-se com uma indagação: “Où est Blanche?”. Esta pergunta
formulada por seu irmão, o Cavalheiro de la Force, assume outras conotações e
informa o problema fundamental de Blanche: ela não sabe qual o seu lugar no
mundo e desconhece sua identidade.
O conhecimento da identidade pessoal e social e do lugar que lhes
correspondem estão interligados. Em seu ensaio sobre a abjeção, Julia Kristeva
analisa a situação do exilado, do excluído que se indaga onde está, em vez de se
perguntar quem ele é. Em vez de se interrogar sobre o seu ser, ele se interroga
145
sobre o seu lugar. Isto porque o espaço que o preocupa apresenta-se-lhe divisível,
dobrável e catastrófico. O lugar onde está confere-lhe uma certa identidade, a
única que lhe parece concedida (Kristeva,1980:15).
Onde está Blanche? Onde está “esta alma que se procura, se revolta e foge,
sem cessar, de si mesma. [...] Onde está realmente Blanche? Em que tempo e em
que espaço se movem sua alma e seu espírito?”, interroga-se o cenógrafo da
versão da ópera de Francis Poulenc, representada na estação teatral de 1994-
1995, na França (Coutance, 1994).
Antes de tentar seguir Blanche em suas errâncias, mostrarei como sua
personagem se caracteriza e depois analisarei onde ela está ou procura ficar,
mostrando a interação das duas questões.
Quem é Blanche? Ao se referir a Blanche, o Cavalheiro emprega um tom
que faz pensar no início dos contos de fadas:
Elle est venue au monde comblée de tous les dons de la naissance, de la fortune de la nature. La vie était pour elle comme remplie à pleins bords d’un breuvage délicieux qui se changeait en amertume dès qu’elle y trempait les lèvres. (DC: 1634)
Como não pensar na estória da princesa que recebera todos os dons das
fadas madrinhas, mas fora amaldiçoada pela excluída da festa? E se fada procede
etimologicamente de fatum - destino, teria a multidão, pisoteada na noite dos
fogos de artifício, representado o papel de uma Erínia vingadora? Anatole
France, em Le Livre de mon ami (1996), reafirma a crença difundida pelos contos
infantis que cada ser humano teria uma fada madrinha, responsável pelos dons
maravilhosos ou terríveis que nos acompanharão ao longo de toda a vida.
146
Blanche de La Force, ao nascer, recebera dons especiais e um defeito - o
medo - infamante para sua classe social, o que a torna um ser contraditório e
inquietante.
A imagem da personagem Blanche é construída através do diálogo entre o
Marquês, seu pai, e o Cavalheiro de la Force, seu irmão. Suas posições divergem
a respeito da personalidade e da conduta de Blanche. O irmão exprime inquietude
diante do medo incontrolável, da singuralidade de Blanche enquanto o pai tenta
minimizar tais receios:
Le Chevalier: Oh! Ce n’est pas pour sa sécurité que je crains, vous le savez, mais pour son imagination malade. Le Marquis: Blanche n’est que trop impressionnable, en effet. Un bon mariage arrangera tout cela. Allons! Allons! Une jolie fille a bien le droit d’être un peu craintive. [...] Le Chevalier: Croyez-moi: ce qui met la santé de Blanche en péril, ou peut-être sa vie, ne saurait être seulement la crainte. Ou alors, c’est la crainte refoulée au plus profond de l' être, c’est le gel au coeur de l’arbre... Oui, croyez-moi. Monsieur, l’humeur de Blanche a quelque chose qui passe l’entendement ordinaire [...] Le Marquis: Ouais! Vous parlez comme un villageois superstitieux. L’attachement que vous avez toujours eu pour votre soeur égare un peu votre jugement. Blanche me paraît le plus souvent naturelle, et parfois même enjouée. Le Chevalier: Oh! Sans doute, il arrive qu’elle me fasse illusion à moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours la malédiction dans son regard.... [...]
147
O diálogo prossegue entre o Marquês e o Cavalheiro, do qual seleciono
apenas os julgamentos sobre Blanche:
Le Chevalier: Vous voulez dire qu’elle en aura été une fois de plus quitte pour la peur ... Quitte pour la peur! Quand il s’agit de Blanche. Le rapprochement de ces deux mots fait frémir... Une fille si noble et si fière! Le mal est entré en elle comme le ver dans le fruit...
[...]
Le Chevalier: J’ignore si la bizarrerie de sa nature pourrait entraîner Blanche à quelque action blâmable, du moins selon l’idée qu’elle se fait des devoirs d’une fille de qualité, mais je sens bien qu’elle n’y survivrait pas. (DC:1570-71) (Grifos meus)
As qualidades que são atribuídas a Blanche: juventude, beleza, nobreza e
altivez, constituem dons gratuitos, efêmeros e ambivalentes. A altivez e a
nobreza representam atributos questionáveis. A nobreza é um simples acaso. Não
há mérito em nascer nobre. E a altivez, considerada pela aristocracia uma
qualidade e não um defeito, representava, durante a Revolução Francesa, uma
ameaça, uma séria indicação para a guilhotina.
A afirmação do Cavalheiro de que Blanche teria uma imaginação doentia:
"son imagination malade", é contestada, parcialmente, com um eufemismo:
"Blanche n’est que trop impressionnable". E uma moça bonita teria o direito de
ser um pouco medrosa, afirma o velho Marquês.
E ao constatar que o medo de Blanche não se trata de um simples receio,
mas de um temor profundo, como "le gel au coeur de l’arbre", o Cavalheiro é
censurado pelo Marquês que considera sua linguagem exagerada, análoga à de
um camponês supersticioso.
148
A linguagem do velho Marquês, contida e equilibrada, é a de um nobre do
Antigo Regime, a do Cavalheiro, colorida, cheia de imagens, um pouco
excessiva, é a linguagem do período que antecedeu a Revolução Francesa.
Segundo o Marquês de la Force, Blanche parece "le plus souvent naturelle,
et parfois même enjouée". Importa notar que Blanche parece natural. No seu
esforço para demonstrar uma normalidade que não possui, provoca um efeito
contrário, um mal-estar naqueles que não se enganam com sua atitude enjouée -
amável, alegre. A etimologia de enjouée (en + jeu) revela um outro sentido:
entrar no jogo, na acepção de respeitar as convenções estabelecidas, o conjunto
de regras a serem observadas. Blanche joga conscientemente um jogo, tenta
dissimular o medo que a humilha, porém é traída pelo olhar "il arrive qu’elle me
fasse illusion à moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours
la malédiction dans son regard".
O emprego das palavras le sort - feitiço, magia -, e la malédiction -
maldição, intensificado pelo advérbio toujours - sempre - poderia indicar uma
infelicidade à qual se foi condenado pelo destino, uma situação da qual se é a
vítima. O cavalheiro insinua a possibilidade do cumprimento da maldição, a
ameaça proferida durante o incidente da carruagem jogada contra o povo (4.1.1.).
As palavras pronunciadas possuiriam, no imaginário humano, força e
possibilidade de se tornar realidade. O dizer tornou-se ação.
Blanche se caracteriza, principalmente, pela desmedida. Seu
comportamento foge à normalidade: "l’ humeur de Blanche a quelque chose qui
passe l’entendement ordinaire". A expressão quelque chose não revela pobreza
149
de linguagem. Trata-se de uma imprecisão voluntária, uma decisão de
permanecer vago, por motivos táticos. O Cavalheiro não quer revelar tudo o que
sabe e prefere manter-se na generalidade. Seu julgamento sobre Blanche é
matizado de inquietude e lucidez.
A excentricidade, a anomalia da natureza de Blanche "la bizarrerie de sa
nature" justificaria todos os temores. Tanto o melhor quanto o pior podem ser
esperados de sua parte. Esse leque de possibilidades imprevisíveis e inquietantes
encontraria, talvez, um obstáculo na exagerada concepção que ela se faz de seus
deveres de nobre. A tensão entre o sentido da honra, "les devoirs d’une fille de
qualité" e sua vulnerabilidade, prenuncia um desenlace trágico: "mais je sens
bien qu’elle n’ y survivrait pas".
Ao aparecer, pela primeira vez em cena, Blanche revela perturbação,
vulnerabilidade e esforço em se dominar, verificáveis na indicação cênica e no
diálogo que se seguem:
Les traits de Blanche sont profondément altérés, mais elle a eu visiblement le temps de se reprendre, et s’ efforce de parler avec enjouement.
Blanche: Monsieur le Chevalier est trop bon pour son petit lièvre...
Le Chevalier: Ne répétez pas à tout propos une plaisanterie qui n’a de sens que pour nous deux.
Blanche: Les lièvres n’ont pas l’habitude de passer la journée hors de leur gîte. Il est vrai que je transportais le mien avec moi. mais une simple glace entre cette foule et ma craintive personne m’a paru un moment, je vous assure, une proctection bien dérisoire. Je devais avoir l’air très ridicule.
Le Marquis fait signe à son fils de se taire. (DC: 1573) (Grifos meus)
150
Embora seu rosto esteja profundamente alterado, Blanche se controla e
admite ser temerosa, em uma tática defensiva: adiantar-se em aceitar um defeito
minimizado. Ela se intitula "un petit lièvre", uma lebrezinha. Trata-se de uma
brincadeira afetuosa entre os dois irmãos, e o Cavalheiro sente-se constrangido
pelo fato de Blanche repeti-la diante do pai.
Reminiscência, talvez, de leituras integrantes da cultura francesa, como as
fábulas de La Fontaine ou referência à Doxa que considera a lebre medrosa. Este
animal representa, em certos imaginários, o mesmo papel do cordeiro cristão:
animal manso, inofensivo, herói e mártir por excelência (Durand,1969: 362).
O nome próprio Blanche, que também pode ser empregado como adjetivo,
remete a imaculado, inocente, e seria uma personificação da pureza.
Blanche representa uma personagem. Isto é, joga continuamente durante
toda a cena, procurando esconder sua perturbação através das palavras, o que
provoca certo constrangimento.
Nas duas primeiras cenas do primeiro quadro, reaparece a importância da
carruagem e do vidro (4.1.1.) considerados como uma proteção segregadora. O
Marquês procurara tranqüilizar-se, quanto à segurança de Blanche,
argumentando que sua carruagem é sólida, os velhos cavalos, tranqüilos, o
cocheiro, fiel, e os dois lacaios, velhos e corajosos soldados.
Entretanto, Blanche, retida pela multidão “au carrefour de Bucy”
(DC:1569), julga insuficiente o espaço-abrigo da carruagem. Um simples vidro a
separá-la da massa popular, que compra e vende na feira da encruzilhada de
151
Bucy, parece-lhe uma proteção irrisória, como se revelara ilusório e ineficaz no
acidente dos fogos de artifícios. A multidão executa a ação silenciosa de reter a
carruagem. Não há registros nem de ameaças verbais nem de violências físicas.
As ruas de Paris, espaço aberto, amedrontavam Blanche; o incidente
ocorrido inspira-lhe pavor. Horas depois, ela confessa, o sentimento
experimentado: “...j’ étais glacée jusqu’au coeur” (DC: 1579).
A caracterização da personagem, dominada pelo medo, completa-se quando
o jogo de representar é interrompido, o frágil equilíbrio se rompe e ela grita,
aterrorizada por uma sombra.
A casa paterna, o palacete do Marquês de la Force, espaço semi-aberto, não
representava para Blanche o abrigo desejado. O sobrenome de la Force
constituía, ao mesmo tempo, um motivo de legitímo orgulho e de humilhação.
“Par quel miracle serais-je née tout à fait indigne de tant d’hommes de bien,
justement réputés pour leur valeur?" (DC: 1578), tortura-se Blanche, assumindo
um ônus que não lhe era exigido.
Blanche refere-se a si mesma como "ma craintive personne", admitindo ser
timorata, temerosa, o que não constituía uma desonra. Na casa paterna, que
participa do mundo e portanto, ameaça e, ao mesmo tempo, protege, Blanche
oscila entre admitir o medo e minimizá-lo, preocupada em salvar as aparências,
sob o olhar benevolente dos que a amam.
Admitindo que não consegue viver em sua casa, em seu meio, enfim, no
mundo, Blanche resolve cessar o jogo de fazer de conta que é forte, que é digna
152
de ser de La Force. Decide conquistar o seu espaço e entrar para o Carmelo,
espaço fechado, que sua imaginação apresenta como um refúgio. O claustro
parece-lhe o único lugar onde ela poderia recuperar a honra e o respeito pessoal.
Blanche propõe uma troca com Deus, enfatizando suas renúncias. Mas, ao
tentar negociar com Deus, Blanche age segundo o valor burguês da permuta e
não com a generosidade atribuída ao aristocrata. Há orgulho e ingenuidade em
sua atitude. Ela espera resolver, humanamente, seu problema, longe de um
mundo que seus nervos não podem suportar.
Blanche luta para entrar no Carmelo. Há que se fazer aceitar como
postulante, aquela que pede. Sua nobreza pode lhe facilitar o caminho, mas não
constitui um fator decisivo. Há que ter caráter, força e sobretudo vocação - ter
sido chamada. Madame de Croissy, já velha e bastante doente, mas perspicaz e
clarividente, percebe as ilusões de Blanche quanto ao Carmelo e tenta desfazê-
las, durante uma longa entrevista. Deixando de representar, de jogar, a postulante
reconhece com sinceridade: “Je n’ai pas d’autre refuge, en effet.” (DC: 1587).
Admitida na Ordem, ela acredita-se protegida e julga que nada pode atingi-la
dentro dos muros do claustro.
Blanche fugiu do mundo, mas este está presente dentro do claustro e
manifesta-se nos critérios de julgamento, semelhantes aos valores sociais da
época. Ali também a coragem era valorizada e o medo, desprezado.
Medo, receio, angústia, pavor, terror não são sinônimos, embora designem
situações análogas e apresentem vários pontos em comum. A angústia é
experimentada diante de algo impreciso, interno, porém ameaçador. O medo
153
resulta do conhecimento de um perigo real e externo, bem delimitado (Freud,
1951: 97). Pavor e terror não podem ser empregados indiferentemente. O pavor
emudece e paralisa, enquanto o terror não exclui a possibilidade de agir.
Antes de entrar para o convento, Blanche angustiava-se diante do mundo
que não conhecia, experimentava medo e terror diante de sombras e deixou-se
dominar pelo pavor imobilizante ao se ver ameaçada pela multidão, protegida
somente por um vidro.
No espaço fechado do convento, o medo de Blanche torna-se mais visível e
sem disfarces. O olhar do outro, nem sempre benevolente, acentua sua fraqueza
revelada em diferentes circunstâncias: ao recusar fechar a porta de sua cela antes
de dormir e principalmente ao fugir da vigília mortuária da antiga Priora (DC:
1608).
Seu medo aumenta e transforma-se em pavor. O episódio da perquirição
mostra Blanche paralisada e sem voz, depois de emitir um grito dilacerante
(DC:1638). A personagem é mostrada como apavorada (effrayée), aterrorizada
(terrifiée), com um olhar desvairado (hagard).
Sua angústia mortal, terrível tristeza e imenso cansaço se fossem
enumerados sucessivamente poderiam remeter a um caso patológico.
Esse comportamento e maneira de ser provocam o desdém mal disfarçado
da maioria das religiosas, sintetizado em um cruel jogo de palavras: “Blanche de
la Force... Sans méchanceté, Soeur Blanche, on devrait plutôt vous appeler
Blanche de la Faiblesse.” (DC: 1670). A restrição "sans méchanceté", mera
154
fórmula de delicadeza, suaviza, mas não anula, a falta de piedade e a dureza em
relação a Blanche e revela o quanto uma casta predominava no Carmelo. O
sobrenome de la Force impõe-se mesmo quando Blanche já se chama de
l’Agonie du Christ, confirmando o que a velha Priora afirmara: que não lhe seria
exigido o esquecimento de sua grande nobreza. O que se revelaria uma faca de
dois gumes, pois a exigência de ser corajosa continua a ser-lhe feita, mesmo no
espaço consagrado ao espiritual, ao transcendente.
Os sentimentos de rejeição de uma grande parte da comunidade religiosa
em relação a Blanche são sintetizados por Marie de l’Incarnation: “J’ ai honte de
penser qu’ une fille de grande naissance puisse, le cas échéant, manquer de
coeur” (DC: 1599).
A expressão manquer de coeur significa não ter coragem. Coeur, usado no
sentido de coragem, é recorrente na linguagem do século XVII. Avoir du coeur
significa ser corajoso.
Mais do que por ser medrosa, Blanche é menosprezada por sua falta de
firmeza e de coerência de atitudes, o que poderá constituir uma ameaça à sua
comunidade religiosa. “...ce manque de caractère peut devenir un péril pour la
Communauté.” (DC: 1617).
Os sentimentos de angústia, medo, e terror experimentados por Blanche
intensificam-se e atingem o clímax na última noite de Natal passada no Carmelo
já invadido e despojado. Ao ouvir ressoar o canto da Carmagnole, sob os muros
do convento, Blanche deixa cair a estátua representando Jesus Menino. Mais uma
vez, faz-se sentir a ação da massa popular, embora invisível, através do canto
155
revolucionário. O texto assinala o efeito produzido em Blanche: “Terrifiée, avec
l’expression d’une stigmatisée” (DC: 1656).
A nova Priora, inicialmente, subestimara a fraqueza de Blanche e acreditava
ter tempo de transformá-la em uma verdadeira filha de Santa Teresa d’Ávila. O
processo revolucionário, entretanto, pressionava cada vez mais as religiosas,
visando acabar com os conventos.
Considerando que Blanche se revelara incapaz de superar o seu medo,
levando em conta a fraqueza de seu caráter, tendo em vista o bem comum e
usando do direito que lhe conferia seu cargo, a Priora decidiu julgar seu período
de noviciado insatisfatório e despedi-la, isto é, devolvê-la à sua família (4.2.2 ).
Ao entrar para o Carmelo, Blanche acreditara ser possível, como referido,
mediante uma troca com Deus, vencer sua fraqueza e seu medo. Durante algum
tempo iludiu-se a respeito de si mesma e julgou poder enfrentar as dificuldades.
Suas palavras soam falsas e mesmo arrogantes e não convencem o irmão, que
tentou persuadi-la a voltar ao palácio da família de La Force, pois o Carmelo já
não constituía uma fortaleza intransponível.
Ao tomar conhecimento da decisão da Priora, Blanche, humildemente,
declara já não ter a veleidade de poder superar seu medo e que arrastaria onde
quer que fosse sua desonra, como um condenado aos trabalhos forçados os seus
grilhões. Com imenso esforço, ela declara:
C’ est vrai que je n’espère plus surmonter ma nature.[...] Oh! Ma mère, partout ailleurs je traînerai mon opprobre ainsi qu’un forçat son boulet. Cette maison est bien le seul lieu au monde où je puisse espérer l’offrir à Sa Majesté, comme un infirme ses plaies honteuses. (DC: 1658)
156
Blanche já não é mais a aristocrata disposta a todos os sacrifícios para
recuperar uma honra mundana. Assume sua angústia mortal, seu medo, sua
covardia, e esperaria poder oferecê-los a Deus no Carmelo. Oferecer, remete a
oferenda e a sacrifício. Ela quer oferecer o que tem e sobretudo o que é,
considerando-se uma enferma, no sentido de não ter forças, de ser fraca.
A Priora perturba-se diante da angústia de Blanche, vislumbra um desígno
especial de Deus e suspende sua decisão.
Os acontecimentos precipitam-se. A Revolução invade o Carmelo, através
de cantos, barulhos, ruídos, desfiles e perquirições que se amiúdam.
Sentindo-se ameaçada dentro do recinto que julgara inviolável, e tornado
inseguro, Blanche sucumbe ao medo e refugia-se no “séchoir” - secadouro (DC:
1682). Reservado à secagem de roupas, o secadouro comumente localiza-se no
sótão, na parte superior das construções. Blanche escondera-se ali, como uma
criança, e preocupara Mère Marie de l’Incarnation que a procurava em silêncio:
“... je ne savais où la chercher” (DC: 1682).
As ações de Marie de l’Incarnation, que a velha Priora antes de morrer,
tornara responsável por Blanche, revelam-se contraditórias. Se, por um lado,
procura-a, e após localizá-la, habilmente, faz cessar os comentários sobre sua
ausência, alegando um motivo honroso, por outro lado, precipita sua fuga do
convento, ao insistir no pronunciamento do voto de martírio. Esse voto, para a
preservação do Carmelo e salvação da França, obrigaria as religiosas, não a
provocar o martírio, mas a evitar qualquer medida para impedi-lo, “... comme un
malade refuse la médecine qui le sauverait ...” (DC: 1685).
157
Incapaz de se opor publicamente ao que quer que seja, cansada de lutar
contra seu terror, Blanche pronuncia o voto de martírio com voz forçada e muito
clara e depois, abandona o Carmelo, foge (DC: 1688).
Blanche refugia-se no mundo, outrora tão temido, abdica de toda e
qualquer consideração humana e acredita-se protegida por ter atingido o mais
alto grau de abjeção: “Où je me trouve, qui penserait à me chercher? La mort ne
frappe qu’en haut.” (DC:1701), declara a Marie de l’Incarnation que viera buscá-
la.
Nada mais esperando nem do outro nem de si mesma, ela grita com a
violência inesperada dos fracos:
La peur n’offense pas le bon Dieu. Je suis née dans la peur, j’ y ai vécu, j’ y vis encore, tout le monde méprise la peur, il est donc juste que je vive aussi dans le mépris. Voilà longtemps que je le pense. Le seul être qui aurait pu m’ empêcher de le dire, c’ était mon père. Ils l’ ont guillotiné voilà peu de jours. (DC:1702) ( grifo meu)
A morte do pai liberou a voz de Blanche. Nada a impede de proclamar sua
miséria. Já não há mais troca nem oferenda, apenas a aceitação de uma fraqueza
da qual não se sente responsável. Blanche faz mesmo questão de declarar sua
vergonha de ter sido espancada em sua própria casa, onde desempenha o papel de
criada (DC: 1702). Nada resta da aristocrata orgulhosa de sua linhagem.
Nas ruas de Paris, um paralelo com a situação inicial, Blanche, despojada
de tudo o que possa significar segurança, começa a dominar, pouco a pouco, seu
medo. Embora demonstre, algumas vezes, terror em seu rosto (DC: 1705), já não
se encontra paralisada pelo pavor. Ela se comunica com o povo, fala, indaga.
158
No convento, Blanche era considerada uma criança - une enfant (DC,
1640), etimologicamente, aquela que não fala. Seu sobrenome - de la Force - e o
nome escolhido ao professar os votos - de l’Agonie du Christ - pesados demais,
sufocavam-na.
Como uma voz anônima, Blanche pode informar-se da sorte das carmelitas
encarceradas. O processo de libertação coexiste com sua covardia. Ela nega
conhecer até mesmo a cidade de Compiègne e fornece uma identidade social
fictícia (DC:1705). Esta negação poderia fazer ressoar a de São Pedro, quando o
Cristo foi aprisionado.
Embora revele sinais, mesmo físicos, de medo e de terror, ela os supera
com uma "résolution désespérée" (DC: 1705) e dirige-se à casa da atriz Rose
Ducor, que lhe fora sugerida, como abrigo, por Marie de l’Incarnation.
A reversão de valores evidencia-se. No Antigo Regime, os atores eram
desprezados e discriminados, socialmente. Nem mesmo tinham o direito de
serem enterrados em cemitérios religiosos, lugar sagrado. Durante a Revolução,
Rose Ducor, uma atriz, tem coragem de proteger os que estão ameaçados. Sua
casa, espaço semi-aberto, revela-se protetor.
A revolta motiva a ida de Blanche à casa da atriz. Ela quer impedir a morte
decretada das carmelitas e indigna-se com a alegria e aceitação demonstradas por
Marie de l’Incarnation:
Mourir, mourir, vous n’avez plus que ce mot à la bouche! Serez-vous tous jamais las de tuer ou de mourir? Serez-vous jamais rassasiés du sang d’autrui ou de votre propre sang? (DC: 1707)
159
Blanche tornou-se a figura da revolta e do horror. Ela quer viver e recusa a
morte. Esta aversão diante do sofrimento antevisto seria, talvez, uma atualização
da agonia do Cristo no Monte das Oliveiras (Mc:14-33). Blanche de la Force age
com a força do nome recebido ao nascer e vive o mistério do nome que escolhera
ao tornar-se religiosa: de l’Agonie du Christ. Há uma crença de que o nome
escolhido ao entrar no convento norteará o caminho espiritual a ser trilhado.
Blanche vivenciou sua própria agonia e revive a agonia do Cristo.
As últimas palavras que pronuncia, no texto, são um grito de protesto: “Je
ne veux pas qu’elles meurent! Je ne veux pas mourir” (DC: 1707).
Depois de tentar mudar os acontecimentos, Blanche foge, volta às ruas de
Paris, espaço aberto, que lhe parece o lugar mais seguro. Ela volta ao mundo,
outrora temido, recomeça sua errância e não mais falará, até o canto final.
A procura de um lugar pode ser esquematizada no quadro que se segue:
Espaço Aberto (Ameaça)
Espaço Semi-Aberto (Insegurança)
Espaço Fechado (Refúgio)
Ruas de Paris →
Palacete →
Convento
Palacete →
Convento →
“Séchoir”: secadouro
Palacete →
Casa da Atriz →
Cadafalso ↓
Lugar mais exposto = refúgio
160
Como já referido, as dezesseis Carmelitas do Carmelo de Compiègne,
condenadas pelo Terror Revolucionário, foram executadas em 1794. E, segundo
o texto de Bernanos, baseado na novela de Gertrud von le Fort, a personagem
Blanche de la Force termina o canto de suas irmãs que o ruído da guilhotina
calara uma a uma.
Imprevisivelmente, aquela que não queria morrer, que fugira, que tinha
medo, sob a ação da Graça Divina, contra as humanas previsões, dirige-se para o
cadafalso. O texto acentua que Blanche se exprime através do canto, porém de
modo mais claro, mais resoluto do que o das outras religiosas e deixando
entrever algo de infantil que remete à sua verdadeira natureza: “une nouvelle voix
s’élève, plus nette, plus résolue encore que les autres, avec pourtant quelque
chose d’enfantin” (DC: 1719).
Ao deixar transparecer algo de infantil, Blanche afirma a ação da Graça que
se enxertou em sua natureza, transformando-a, sem anulá-la.
A transformação de Blanche revela a força do dogma da Comunhão dos
Santos, a circulação da Graça Divina entre os membros do Corpo Místico de
Cristo. Cumpre-se o que Constance de Saint-Denis previra: "On ne meurt pas
chacun pour soi, mais les uns pour les autres, ou même les uns à la place des
autres, qui sait?" (DC:1613).
Importa salientar que, segundo a fé cristã, Deus age através dos
acontecimentos e pessoas. Deste modo, a massa humana, sempre presente e
atuante na vida de Blanche, antecipa o desenlace: “Brusque mouvement de foule.
Un groupe de femmes entoure Blanche, la pousse vers l’échafaud, on la perd de
161
vue” (DC: 1719). O grupo de mulheres participa, inconscientemente, do plano de
Deus, precipitando os acontecimentos e auxiliando a vontade de Blanche, movida
pela Graça. E tudo é graça, como dizia o humilde Curé de Campagne (OR:
1259), repetindo a expressão de Santa Teresa de Lisieux.
Em sua errância, Blanche intensificou sua angústia e seu medo ao
acrescentar-lhes sucessivas rupturas, informadas pelo sentimento essencial de
exílio, na busca incessante de seu lugar no mundo, uma manifestação da procura
de sua identidade. E cada lugar conquistado revelou-se inadequado e perigoso.
Apesar de parecer aniquilada, Blanche tornou-se capaz de reviver pois “a
abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu)” (Kristeva, 1980: 22).
Ela participara da Agonia do Cristo, ao recusar a morte e também o acompanha
ao subir, livremente, ao cadafalso. Blanche, finalmente, encontrou seu lugar.
A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos, que admitia, em
carta a Jorge de Lima: “Je suis vraiment, comme vous le dites, un exilé.” (CORR
II 248).
162
5. BERNANOS, O EXÍLIO ?
Tout monde est un exil pour ceux qui philosophent. C’est encore un voluptueux, celui pour qui la patrie est douce. C’est déjà un courageux, celui pour qui tout sol est une patrie. Mais il est parfait, celui pour qui le monde entier est un exil. Hugues de Saint Victor
Todo exílio é doloroso, ainda que para alguns se apresente, aparentemente,
dourado, o que não é o caso de Bernanos.
Exílio não deve ser confundido com desterro, degredo, deportação,
expatriação, proscrição, ou outros parassinônimos. Desterro é o lugar onde vive
aquele que está fora de sua terra. O degredo consiste na pena de desterro que a
justiça impõe a criminosos. A deportação refere-se sobretudo à execução da
sentença condenatória de expulsão de um lugar, enquanto expatriar emprega-se
nos casos de banimento da pátria. Proscrever refere a existência de um edital,
voto escrito ou sentença de condenação. Os editais de degredo eram escritos em
tábuas que se afixavam em lugares públicos.
O exílio não é uma punição desonrosa. Banimento e desterro o são. Na
monarquia absoluta, o rei podia exilar um ministro, mas não banir. Os dois
verbos exilar e banir exprimem uma sanção pronunciada contra alguém, porém
não são sinônimos. Banir possui uma carga semântica mais forte do que exilar,
mas pode ser empregado no sentido figurado, de forma atenuada: banir uma
preocupação. O verbo exilar, ao contrário, restringe-se à acepção de afastamento
de algum lugar. Costuma ser empregado na forma pronominal ou na voz passiva.
163
Deleuze afirma que não há conceito simples; todo conceito seria, pelo
menos, duplo ou triplo e teria um contorno irregular, dificilmente demarcável.
Trata-se de um problema de articulação, de recorte e de desbaste (Deleuze &
Guattari, 1991:21).
Assim, a noção de exílio aqui adotada ultrapassa a idéia de um simples
deslocamento geográfico, um afastamento temporário. Cito, a título
paradigmático, o célebre exílio de Ulisses, a viagem sem retorno de Enéias e o
ostracismo de Ovídio, exilado por Augusto na longínqua Dácia, atual Romênia. E
como exemplo da atualidade, assinalo uma vertente na literatura romena que se
intitula uma literatura de exílio, na qual figuram, entre muitos outros, os nomes
de Emil Cioran e Eugène Ionesco.
Examinarei o conceito de exílio, considerando rapidamente seus aspectos
filosóficos e religiosos. Em seguida, analisarei a obra de Georges Bernanos sob
esse ângulo, demonstrando as diferentes formas de exílio que se apresentam:
numerosas e sucessivas mudanças de domicílio, rupturas marcantes, exílio
voluntário, exílio interior, o que sugere uma forma de nomadismo ou errância.
A origem do conceito de exílio, do ponto de vista filosófico, encontra-se,
como se sabe, em Platão. Segundo os ensinamentos do filósofo que tanta
influência exerceu sobre o pensamento cristão, a alma é imortal, provém da
esfera do divino. Existiu antes de prender-se a um corpo e continuará a existir
após a morte. O corpo seria uma prisão, um túmulo para a alma. Platão exprime
essa teoria em duas palavras: SOMA = SÈMA. O corpo - soma - é um túmulo -
sèma - para a alma que sofre como se estivesse doente. De acordo com essa
164
teoria, a finalidade da vida terrestre é o retorno da alma a seu estado original
(Platon, 1954: 1213).
Considerado sob o ponto de vista religioso, a origem do exílio essencial,
para a mística judáica (Kabala), situava-se em Deus, exilando-se de si mesmo no
ato da criação, e nos consecutivos exílios vividos pelo homem em sua dimensão
histórica ou pessoal. José Augusto Seabra escreve:
Era em Deus mesmo que para os kabalistas se situava a origem do exílio de que Israel fez a experiência trágica, desde o Exílio no Egipto aos sucessivos exílios da Diáspora. Esta abriu-se tanto mais à mística kabalista quanto ela correspondia à sua própria vivência de uma errância. Mas o Exílio de Israel não é apenas um acontecimento histórico e sim, como a Redenção, algo que tem a ver com o mistério do ser, do homem e de Deus mesmo, desde o início da criação. Ele é o símbolo místico de tudo quanto existe e da Divindade que o criou. (Seabra, 1996)
O exílio seria também uma missão e não apenas um sofrimento e é sob esse
enfoque que a Kabala procura explicar os sucessivos exílios, conseqüências das
expulsões motivadas pela intolerância religiosa , através dos séculos. A expulsão
dos judeus da Península Ibérica, em 1492, ao provocar a dispersão, pode ser
considerada sob esse ângulo.
O conceito de Platão sobre a alma exilada, difundido principalmente por
Santo Agostinho, e a mística judáica, raiz do cristianismo, influenciaram o
pensamento religioso cristão que privilegia, entretanto, a Queda e a Redenção do
Homem e sobretudo o mistério da Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (João, 1,14).
As três correntes afins, Platonismo, Kabala e Cristianismo confluem e
alimentam um pensamento eclético em que, teologicamente, todos se sentem
165
exilados, prisioneiros do próprio corpo e vivendo exilados, em um vale de
lágrimas, como o atesta o belo hino à Virgem Maria, o Salve Rainha.
Essa concepção pessimista da vida influenciou de tal modo o pensamento
cristão, predominante na Idade Média, que necessário foi esperar o Século das
Luzes para que a idéia de felicidade fosse recuperada e considerada uma idéia
nova na Europa (Lins, 1993:23). Séculos de cristianismo privilegiaram a imagem
de um Cristo padecente; enfatizava-se a permanência do sofrimento, enquanto o
direito à alegria e aos prazeres dessa terra eram minimizados ou, prudentemente,
esquecidos.
O tema do sofrimento inerente à vida humana, do qual o exílio essencial
seria uma das conseqüências, apresenta-se como tema constante de nossa cultura.
O exílio é um tema recorrente do pensamento e da criação dos tempos modernos e contemporâneos. Ele está no centro de muitas obras, de inspiração religiosa ou não, tocadas, de uma forma ou de outra, pela mística judaica. (Seabra, 1996).
Nessa acepção, todo homem seria um exilado. Apesar das diferenças, existe
um denominador comum entre as diversas concepções que consideram o exílio
uma condição do ser humano nesse mundo. O exílio definiria a condição do
homem nessa terra. Emmanuel Levinas confirma essa especulação, em um
evidente diálogo com o Deuteronômio ( 6,12):
La condition - ou l’incondition - d’étrangers et d'ésclaves en pays d’Égypte, rapproche l’homme du prochain. Les hommes se cherchent dans leur incondition d’étrangers. Personne n’est chez soi. Le souvenir de cette servitude rassemble l’humanité. (Levinas, 1972: 108)
166
Segundo se depreende da reflexão de Levinas, as razões definitivas do
exílio seriam transcendentais, porém as causas que o determinam relacionam-se
com circunstâncias sócio-econômicas, com a História.
Em que sentido pode ser empregada a palavra exílio para caracterizar a
obra de Bernanos? Distinguirei diferentes formas de exílio: uma errância - as
inúmeras mudanças de casa e de país. E um exílio total - no tempo e no espaço -
o que permitiria talvez o emprego da expressão um exílio no exílio, revelado em
sua obra.
Antes de propor uma leitura da obra de Bernanos, sob este ângulo, julgo
pertinente extrair de sua biografia elementos esclarecedores e referências
cronológicas.
Há alguns anos atrás, a crítica universitária, de inspiração estruturalista em
sua vertente mais radical, rejeitaria referências biográficas. Hoje, voltou a ser
considerada importante e mesmo indispensável uma biografia sem biografismos.
Isto porque o escritor, independente de sua vontade, está ligado à História, à
sua estória. E quem conta um conto, conta o seu conto, diz a sabedoria popular.
A biografia importa, na medida em que esclarece o texto, e este adquiriria valor
testemunhal quando o narrador, ao fazer a enunciação na primeira pessoa do
singular, assume um discurso aparentemente autobiográfico. O que não garante a
autenticidade do testemunho, que pode ser mera ficção. A vida do escritor, no
fundo, não tem a menor importância, exceto se deixou marcas em seus textos,
como é o caso de Georges Bernanos.
167
Em se tratando da relação vida e obra, as declarações de Bernanos são,
aparentemente, contraditórias. Se, por um lado, afirma : “Je ne suis pas l’homme
de mes livres, mais du moins je ne mens pas à mes livres, ma vie ne dit rien, ma
vie se tait” (EEC I: p.877), declara também: “Mon oeuvre, c’est moi-même, c’est
ma maison" (EEC II :16). Como ler essas declarações? O que interessa é apenas
o texto escrito, e por que não a personagem do escritor produzida pelo texto? Por
outro lado, se Bernanos e sua escritura constituiriam algo indivisível, a razão
derradeira, o que realmente importa? As duas interpretações parecendo-me
válidas, opto por recortar na vida de Bernanos os fatos e as circunstâncias que
julgo esclarecedores e que corroboram minha hipótese de leitura da obra
bernanosiana sob o ângulo do exílio.
Minha pesquisa biográfica baseia-se, entre outros, em dois livros que se
completam: Georges Bernanos à la merci des passants, (1986), de Jean-Loup
Bernanos, filho mais novo do escritor. Exaustivo trabalho biográfico, o autor
retraça um perfil do pai, com a necessária distância e objetividade, atingindo o
objetivo proposto - o olhar do filho depurado pelo tempo e matizado pela
emoção; e Georges Bernanos (1989), de Max Milner, professor universitário e
eminente especialista bernanosiano. Trata-se de uma documentada síntese
biográfica que procura analisar, imparcialmente, a complexa obra do autor de Les
grands cimetières sous la lune. Refiro as fontes consultadas, reconhecendo, de
antemão, que posso ter assimilado informações, extraídas das obras
mencionadas e que já não poderia, rigidamente, demarcá-las.
168
Considerando as suas inúmeras e sucessivas mudanças de casa, região e
país, procurarei responder à pergunta: Onde estava Bernanos?
A leitura de uma biografia de Georges Bernanos revela seus constantes e
inúmeros deslocamentos. Os motivos evocados são quase sempre de saúde ou de
ordem econômica, excetuando o exílio no Brasil, por razões ideólogicas.
Julgo pertinente considerar vários exílios dentro de um grande Exílio.
Bernanos era monarquista em pleno regime republicano; católico, em um mundo
ateu; patriota quando muitos se rendiam à Alemanha. A solidão, a independência,
a valorização de um modelo heróico, enraizado na Idade Média feudal, não
revelariam uma estrutura de exílio? Qualquer que seja a leitura destes fatos, há
que se reconhecer a existência de uma inadequação ao momento presente;
Bernanos está sempre ailleurs.
Uma tentativa de classificar as diferentes formas de romantismo
anticapitalista, de Michael Löwy e Robert Sayre, em Romantismo e política,
qualifica Georges Bernanos de "romântico restitucionista". “O tipo
restitucionista [...] aspira à restituição - ou seja, à restauração ou a recriação
desse passado no presente...”. Em sua maioria literatos, como Chateaubriand,
Vigny, Lamartine e Hugo, entre outros, o romântico restitucionista volta-se para
uma Idade Média idealizada. “Tal concentração do ideal no passado medieval,
sobretudo em sua forma feudal, talvez se explique, por um lado, devido à sua
relativa proximidade no tempo (comparada às sociedades antigas, pré-históricas
etc.)” Georges Bernanos pode ser considerado um caso exemplar do
restitucionismo. “Em seu universo romanesco a única atitude válida é a
169
aceitação da necessidade de uma luta absurda e perdida de antemão, para
restaurar o paraíso perdido.” (Löwy & Sayre, 1993: 41-46).
Ao se exilar, Bernanos difere da atitude predominante entre os católicos que
confiam na Providência Divina e normalmente não se expatriam. O judeu e o
protestante, pertencentes a minorias raciais e religiosas, tentam mudar os
acontecimentos e muitas vezes se exilam.
No século XX, Jacques Maritain e Georges Bernanos constituem exceções
no meio católico. Maritain, convertido de origem protestante, emigra para os
Estados Unidos em 1940 e publica À travers le désastre, difundido na França por
Edmond Michelet.
Bernanos exilou-se no Brasil, onde escreveu a maior parte de seus Écrits de
Combat, uma violenta e apaixonada acusação contra o poder temporal da Igreja e
contra as classes conservadoras. E o protesto vindo de dois grandes escritores
católicos não é um mero acaso (Cf. 2).
Ler a obra de Bernanos através da ótica do exílio esclareceria seus aspectos
aparentemente contraditórios e permitiria melhor compreender as rupturas que
pontilharam sua existência e deixaram marcas em sua escritura.
Delimitei o exílio bernanosiano stricto sensu à sua estada no Brasil - 1938-
1945 - e o conceito de exílio lato sensu à sua visão trágica do mundo.
Para Bernanos, a visão trágica do mundo caracteriza-se pela presença
multiforme de Satã e a ausência aparente de Deus. E para vencer esta presença é
preciso resistir, lutar, submeter-se à vontade divina e, principalmente, superar a
170
tentação do desespero: “La plus haute forme de l’ espérance, c’ est le désespoir
surmonté” (EEC II: 1263).
A visão trágica de Bernanos, a impossibilidade de viver em um mundo em
que Deus se esconde (Goldmann,1959) concretiza-se em mudanças, rupturas e
sobretudo em estar sempre longe. "Où sommes-nous ? me demandera-t-on.
Heureux l’artiste qui peut répondre, qui aurait le droit de répondre: Que vous
importe? Nous sommes loin.” Bernanos (EEC I: 1097) (Grifo meu).
As rupturas e continuidades da obra bernanosiana constituíram o tema de
um Colóquio realizado em 1988, em Nancy, e serão enfatizadas no recorte de
sua peregrinação que se segue.
Georges Bernanos (1888-1948) nasceu em Paris, cidade que ele amava
quando estava longe, no dizer de Jean- Loup Bernanos, mas o cenário da maior
parte de seus romances será Fressin, em Pas-de-Calais, onde sua família passava
as férias.
Quando a Primeira Guerra Mundial foi deflagrada, ele se alistou e foi
aceito, embora tivesse sido reformado em 1910.
Após a guerra, trabalhou como inspetor de uma companhia de seguros.
Durante suas viagens de trem no leste da França, de 1920 a 1925, redigiu,
lentamente, seu primeiro grande sucesso literário, Sous le soleil de Satan,
publicado em fins de março de 1926, ano em que também veio a lume Saint
Dominique, obra hagiográfica. Bernanos, provavelmente, começou a amadurecer
171
a idéia do romance, logo após o Armistício em 1918. Em todo caso, oito anos
decorreram entre o final da guerra e sua publicação.
Em entrevista concedida a Frédéric Lefèvre, redator de Les Nouvelles
Littéraires, periódico caracterizado pela imparcialidade política e aceitação de
verdadeiros talentos, Bernanos declara: “Je crois que mon livre est un des livres
nés de la guerre” (EEC I: p.1039). Esta afirmação pode ser estendida ao conjunto
de sua obra, nascida da guerra. Cito o notável artigo de Joseph Jurt sobre o
assunto, Un univers né de la guerre (1998) antes de fazer minha leitura e reiterar
a pertinência dessa afirmação.
No pós-guerra, 1926 foi um ano marcado pelo aparecimento de grandes
obras literárias: La Tentation de l’Occident de Malraux, Les Faux-Monnayeurs
de Gide, Les Bestiaires de Montherlant. Georges Bernanos publica Sous le soleil
de Satan, graças aos esforços de seus amigos. Robert Vallery-Radot, Henri
Massis e François Le Grix convenceram a Editora Plon a publicar o romance na
coleção Le roseau d’or, dirigida por Maritain. Foi ainda Massis quem teria
pedido a Daudet que escrevesse sobre a obra. Saudado por Léon Daudet, um
fazedor e também demolidor de reputações, inclusive literárias, como o
romancista do pós-guerra, Bernanos conheceu a consagração de um dia para o
outro.
Artigos, declarações e entrevistas multiplicaram-se. A primeira edição
esgotou-se rapidamente, providenciou-se uma segunda edição, o que é muito
significativo em termos editoriais. Autores existem que experimentam um
172
sucesso efêmero, porém, não ultrapassam uma primeira edição esgotada,
dificilmente seguida de uma outra.
Uma pergunta impõe-se: quem lia Sous le soleil de Satan em 1926? Joseph
Jurt, ao pesquisar, exaustivamente, a recepção de Bernanos pela crítica
jornalística de 1926 a 1936, inferiu que a maior parte das leituras, favoravéis ou
hostis, eram predominantemente ideológicas. Dissociar valor estético e ideologia
constituía uma exceção.
Durante os anos loucos, Bernanos antecipa a consciência trágica dos anos
30. Sua obra estaria em desacordo com a idéia de gratuidade, característica da
literatura dos anos 20. Essa falta de adequação às idéias em voga, à l’air du
temps, não impediu um imenso sucesso literário, talvez mesmo o justifique.
Anos mais tarde, o escritor dirá com certa ironia: "...car je n’ai pas
l’honneur d’ être un écrivain méconnu, mes livres se vendent - ce qui prouve
qu’un grand nombre de gens les lisent sans les comprendre, ou peut-être, hélas!
Les achètent sans les lire." (EEC I: 896).
Após o êxito de Sous le soleil de Satan, Bernanos resolve abandonar a
Companhia de Seguros em que trabalhava e se dedicar à sua obra literária. Essa
decisão foi tomada, principalmente, devido à saúde de sua mulher que precisava
passar dois anos à beira mar. Esta escolha, condená-lo-á aos trabalhos forçados
literários até o fim de sua vida. Envelhecido e doente, vivia, exclusivamente, da
remuneração do seu trabalho de escritor, paga por seu editor a cada página
escrita. Os problemas financeiros acompanharam-no durante toda a sua
existência.
173
Outra conseqüência do êxito obtido foi a mudança de domicílio. Instalou-se
durante o verão em Ciboure e em seguida em Bagnères-de-Bigorre, localidade
próxima a Tarbes, não mais sendo obrigado a residir em Paris ou no Leste da
França.
Esses deslocamentos revelaram-se, a posteriori, as primeiras etapas de uma
longa errância, justificados, aparentemente, por problemas monetários e pela
busca de um clima ameno, favorável à saúde de sua família. Jean-Loup Bernanos
menciona uma trintena de mudanças que sua mãe enfrentou ao longo do
casamento. Sem pretender arrolar todas as mudanças de casa, região, país ou
continente, empreendidas por Bernanos, procurarei destacar as que considero
mais importantes e significativas para a leitura proposta.
Tendo abandonado um emprego seguro, Bernanos acreditou-se livre para
escrever com tranqüilidade. Os acontecimentos provariam o contrário. Em 27 de
agosto de 1926, o arcebispo de Bordeaux publicou uma declaração condenando
as posições doutrinais da Action Française e acusando seu diretor, Charles
Maurras, de paganismo.
Movimento de extrema direita, L’Action Française marcou a primeira
metade do século XX francês sob todos os aspectos: religioso, intelectual e
político, e ainda hoje se manifesta, entre outros, no jornal quotidiano lepenista
Présent.
Fundada em 1898 por Maurice Pujo e Henri Vaugeois, L’Action Française
prega a doutrina da restauração monarquista, sob a influência de Charles Maurras
que preconizava o nacionalismo integral. Para Maurras, ser patriota equivaleria,
174
obrigatoriamente, a ser monarquista. Dispondo, a partir de 1908, de um jornal
quotidiano do mesmo nome, L’Action Française exerceu grande influência no
meio católico de extrema direita, sobretudo sobre os estudantes e sua ação se
estende a uma grande parte da burguesia.
Ao apogeu de 1918 seguiu-se a condenação pontifical em 5 de setembro de
1926, em que o Papa Pio XI ratifica a tomada de posição do arcebispo de
Bordeaux.
Diante das reações violentas e para esclarecer as controvérsias, o Sumo
Pontífice pronuncia uma nova condenação da Action Française em 20 de
dezembro do mesmo ano. Colocado publicamente no Index, uma das proscrições
máximas da Igreja, por um decreto da Congregação do Santo-Ofício, em 29 de
dezembro, esse movimento será definitivamente condenado, em março de 1927.
A reprovação formal, pela Igreja, da Action Française transtornou
Bernanos. Embora já se tivesse afastado do movimento em 1919, julgou ser uma
questão de honra defender Charles Maurras e o movimento ao qual estava ligado
desde a juventude, quando, Camelot du Roi, se batia nas ruas do Quartier Latin.
Les Camelots du roi eram um grupo de monarquistas de extrema direita,
filiados à L’Action Française, reputados pela violência de seus métodos de ação.
Vendiam jornais e promoviam tumultos no Quartier Latin e na Sorbonne.
Elementos de diferentes classes sociais faziam parte de suas fileiras. Uma das
últimas manifestações do grupo, registradas pela imprensa, data de 6 de
fevereiro de 1934 e Sartre denuncia em Le Mur o fanatismo e a intransigência
desta associação.
175
Bernanos, dividido entre o dever do católico de submeter-se a Roma e o
senso pessoal de honra, opta, dentro dos limites compatíveis com a obediência,
pela solidariedade à pessoa de Charles Maurras. Essa escolha contraditória
apresentaria analogia com o dever de fidelidade feudal que ligava pessoalmente o
vassalo ao suzerano. Bernanos acreditava que uma vez empenhada a palavra, um
homem - ou um povo “doit la tenir, quel que soit celui auquel il l’a engagée”
(EEC II: 969).
A contradição reside no fato de que, desde o final da guerra, Bernanos
discordava da nova orientação política da Action Française, julgando-a infiel a
seus ideais primeiros, passiva demais e jogando o jogo do poder. A essa
discordância acresce-se o fato de que Bernanos admirava Maurras, porém não era
seu amigo pessoal. Nada, entretanto, o impediu de lançar-se numa defesa
desesperada daquele que considerava um verdadeiro mártir, defensor da
integridade da pátria e sobretudo da Igreja Católica, na França. Bernanos
enfocava o problema de um ponto de vista exclusivamente religioso, o que não
era exatamente a ótica de Maurras, ateu notório, mas defensor da Igreja, por
patriotismo. Essa diferença de motivações constituiu o cerne de um mal-
entendido que, posteriormente, transformou-se em ruptura.
O julgamento da Action Française representou uma etapa decisiva na vida
de Bernanos. Durante anos, a dilaceração foi a tônica de seus sentimentos. Mas
superou a provação e, livre das limitações de um partido, pôde escrever, mais
tarde, entre outras obras-primas, Les Grands Cimetières sous la lune (1938),
Journal d’un curé de campagne (1936) e Dialogues des Carmélites (1949).
176
Ao deter-me sobre essa condenação, meu objetivo consistiu em salientar a
importância da crise pessoal provocada em Bernanos e sobretudo da célebre
ruptura de 1932, início de uma série de rupturas, as inúmeras partidas sem voltas
que balizaram a existência de Georges Bernanos.
No meio do turbilhão de idéias provocado pela condenação da Action
Française, em um ambiente entristecido por doenças e luto, Bernanos redige, em
menos de um ano, seu segundo romance, L’Imposture, lançando-o em novembro
de 1927. O projeto inicial chamar-se-ia Les Ténèbres, porém as circunstâncias
obrigaram-no a publicar, separadamente, dois romances que, na realidade,
constituem uma unidade. Bernanos declara, amargurado: “Personne n’est obligé
de savoir - mais moi je le sais - quel roman eût été L’Imposture et la Joie si le
temps m’avait été laissé de fondre les deux volumes en un seul, soit.” (CORR II:
26).
Poucos meses depois de terminar L’Imposture, ele muda-se, em julho, para
Clermont-de-l’Oise, uma pequena cidade ao Norte de Paris. Seus biógrafos
referem que ele escrevia não em casa, mas em um café, na cidade vizinha de
Mouy-sur-Oise, para onde se dirigia, de bicicleta, em um pequeno deslocamento,
todos os dias. As mudanças, o amor ao movimento são constantes que se
revelarão ao longo de sua vida.
O hábito, comum entre os franceses, de trabalhar em cafés, não significa
apenas a fuga dos inevitáveis barulhos familiares. O escritor gostava dos trens,
dos albergues e, principalmente, dos cafés. Precisava dos ruídos da vida para
escrever. E o ambiente de um café sinistro parecia-lhe a garantia de um contacto
177
com a realidade e uma proteção contra um excesso de fantasia e de irrealidade.
Confessa essa particularidade a uma correspondente: “...et moi j’ écris dans le
seul café vraiment sordide que j’ ai pu trouver sous ce ciel béni” (CORR I: 65),
que contraria o imaginário tributário de um certo romantismo que se tem,
freqüentemente, do autor, que necessita de silêncio e paz para deixar fluir a
inspiração. E Bernanos precisava de ruídos para escrever e precisava publicar
para garantir seu ganha-pão.
O recorte efetuado nos dados biográficos de Bernanos permite-me uma
interpretação. Nasceu em Paris, porém, escolheu como cenário de quatro
romances: Sous le soleil de Satan, (1926), Journal d’un curé de campagne
(1936), Nouvelle histoire de Mouchette (1937) e Monsieur Ouine (1946), a
localidade de Fressin, o paraíso de sua infância. E não se trata de um simples
cenário, mas de uma relação vital com a terra, com a região de Artois: a energia
tradicionalista, o ritmo das estações e as formas de que se revestem as pessoas e a
natureza.
Atribuiu a suas personagens nomes próprios característicos da região;
descreveu os caminhos, o clima e o ambiente da terra de Artois como alguém que
realmente aí viveu e sobretudo a amou.
Este assunto foi estudado, entre outros especialistas, por Monique Gosselin,
em Bernanos et le pays d’Artois, e por Yves- Marie Hilaire em Bernanos et l'
Artois (cf. Anais do Colóquio Bernanos et le monde moderne, 1989). Refiro as
fontes para uma possível consulta, observando, entretanto, que a ligação do
178
escritor com a paisagem de sua infância ultrapassa um simples apego ou
enraizamento. Essa terra, que não era o torrão natal, fazia parte de seu ser.
Considero significativo que, em sua errância, anos mais tarde, Bernanos não
tenha retornado a esses sítios. Procurou regiões mais ensolaradas, climas mais
amenos. Como se não fosse possível voltar ao oásis da infância, tornado mítico e,
provisoriamente, inatingível. Comprova-se, assim, uma característica
bernanosiana - a procura de um ailleurs, o estar longe do que se ama.
A errância ou nomadismo, as rupturas com os lugares, refletem-se também
no interior dos textos de Bernanos e foram analisadas por Michael Kohlhauer em
Traverses, sursauts; appartenances. Modernité du roman bernanosien
(Kohlhauer, 1998: 57).
Bernanos escreveu em 1939, de Vassouras, a um amigo:
Pour moi, l’oeuvre de l’artiste n’est jamais la somme de ses déceptions, de ses souffrances, de ses doutes, du mal et du bien de toute sa vie, mais sa vie même, transfigurée, illuminée, réconcililée [...]
Voyez-vous, je crois qu’il ne s’agit pas de se préférer à son oeuvre ou son oeuvre à soi, mais d’être assez simple pour s’aimer dans son oeuvre, ainsi que Dieu dans sa création. (CORR II: 250)
Antes de tentar considerar a vida transfigurada, iluminada e reconciliada
de Bernanos, mister se faz assinalar as etapas vividas pelo autor. Não se pretende
aplicar o método lansoniano de descobrir a vida na obra ou a obra na vida. Trata-
se de sugerir, não uma solução ou saída, mas de propor um caminho a percorrer.
179
Em 1928, Bernanos lança Une nuit e Dialogue d’ombres, obras menores,
escritas em 1922, que passaram relativamente despercebidas. Em compensação,
o ano de 1929 revelou-se particularmente fecundo. Publicou Jeanne, relapse et
sainte e obteve o prêmio Femina com um romance que mostra uma certa
evolução espiritual, La Joie. O tema da Comunhão dos Santos, a circulação da
graça divina entre os membros do Corpo Místico de Cristo, que poderia constituir
um fio condutor de leitura da obra de Bernanos, perpassa, de maneira implícita,
Sous le soleil de Satan; apresenta-se em L’Imposture com conatações sombrias e
tenebrosas e revela-se de maneira clara e luminosa em La Joie.
A evolução das posições de Bernanos, a este respeito, aparece no diálogo
explícito de La Joie com a doutrina de Santa Teresa de Lisieux, praticada por
Chantal, a principal personagem feminina. Perturbadora em sua luminosidade, a
heroína defende-se do mal com uma única arma, a simplicidade, “une
foudroyante simplicité” (OR: 611).
Bernanos dizia a respeito dessa obra: "Tous les gens qui m’aiment, aiment
ce livre", relatou D. Letícia Redig de Campos, em comunicação no Colloque
Bernanos e o Brasil (1998).
La Joie, alegria, refere-se ao latim gaudium e significa sobretudo um
sentimento agradável e profundo experimentado pela consciência, podendo até
mesmo coexistir com o sofrimento. Nessa acepção, alegria não significa,
necessariamente, prazer. Bernanos define, alhures, o sentido da palavra alegria:
“La joie vient d’une part trop profonde de l’âme, pour que ses racines ne
plongent pas dans la tristesse, qui est le fonds de l’homme depuis qu’il a perdu le
180
paradis" (CORR II: 54). E o próprio texto do romance confirma a importância
desse sentimento em sua visão do mundo: “... la joie suffit, la joie de Dieu, dont
nous sommes avares” (OR: 603).
Consagrada pela crítica e pelo público, La Joie é, raramente, considerada
uma obra autônoma. Ora releva-se a intenção primeira, confirmada pelo escritor,
ora enfatiza-se a unidade temática da trilogia Sous le soleil de Satan, L’Imposture
e La Joie. Caracteriza-os: a presença do mal e a luta da alma diante de Deus,
solucionados à luz da Comunhão dos Santos e sobretudo a presença de
personagens emblemáticas - os sacerdotes.
O sacerdote era considerado um ser à parte, misteriosamente escolhido por
Deus. Cercava-o uma aura de mistério, provocando respeito e admiração ou ódio
e agressividade; em todo caso, nunca a indiferença.
A figura do sacerdote, vivendo no mundo sem ser do mundo, a serviço dos
homens, domina o universo romanesco de Bernanos na trilogia inicial e trava
uma luta com o demônio, o anjo decaído. Já se observou que o pecado da carne
não se apresenta relevante, na obra bernanosiana.
Ao contrário de François Mauriac e suas personagens atormentadas pela
luxúria, Bernanos enfatiza o pecado do espírito, o orgulho e as sutis e profundas
manifestações de que pode se revestir.
Qualquer que seja a leitura que se faça dos romances citados, impõe-se
constatar a presença de sacerdotes, suas lutas com o invisível e a ação da Graça
Divina alterando o jogo da vida.
181
Não é por acaso que no ano de 1929, Bernanos publicou La Joie e Paul
Claudel encenou Le Soulier de Satin, redigido durante o período de 1919 a 1924.
Os dois escritores abordam, cada um a seu modo, uma só temática: renúncia,
despojamento, primazia do espiritual e triunfo da Graça sobre a natureza.
Bernanos (1888-1948) e Claudel (1868-1955) possuem em comum,
malgrado as diferenças de geração e divergências pessoais, o fato de pertencerem
à burguesia, pequena burguesia em ascensão, no caso de Bernanos, média
burguesia no de Claudel. Ambos eram franceses, escritores e católicos.
Participaram de um renascimento espiritual, que coincidiu com a Belle Époque,
afirmou-se na década de 20 e conheceu uma idade de ouro nos anos 30. O que
explicaria certa recorrência dos temas encontrados em suas obras.
A recepção feita a La Joie, mais calorosa do que a acolhida dispensada a
L’Imposture, mas sem o entusiasmo quase unânime do consagrado Sous le soleil
de Satan, indica que os críticos e o público começavam a desejar que Bernanos
superasse a evocação do estreito e sufocante ambiente clerical e abordasse outros
temas.
Em 1929, ele interrompe provisoriamente sua produção romanesca e
envolve-se no turbilhão da luta política: pronuncia conferências e escreve artigos,
obstinando-se em defender L’Action Française, apesar dos desentendimentos e
mal-entendidos se acumularem de parte a parte. O período de 1929 a 1934 foi
marcado por atitudes contraditórias, dificuldades financeiras, problemas de
saúde, mudanças de domicílio e sobretudo pela grande ruptura com Charles
Maurras.
182
Reitero que julgo as referências acima aludidas uma manifestação de uma
problemática interna e nunca o fundamento da explicação. Os dados biográficos
esclarecem e objetivam as hipóteses levantadas e funcionam como um
procedimento auxiliar e parcial, a ser controlado e enriquecido por abordagens
diferentes (Goldmann, 1959:19).
A questão que norteia esta etapa da pesquisa é: Onde estava Bernanos de
1929 a 1934?
Durante esse período, ele colabora, eventualmente, no jornal de Charles
Maurras, ao mesmo tempo que encoraja o grupo da revista Réaction, de extrema-
direita, dissidente da Action Française. Em abril de 1931, publica La Grande
Peur des Bien-Pensants, uma espécie de biografia de Édouard Drumont, escritor
e jornalista conhecido por suas idéias anti-semitas e chamado de "meu velho
mestre", por Bernanos. Essa filiação espiritual constrange a maioria dos
admiradores do escritor, que preferem enfatizar a importância de Léon Bloy e de
Charles Péguy, na evolução do pensamento bernanosiano.
Teria sido Bernanos anti-semita? Os críticos bernanosianos tentam
distinguir o anti-semitismo da tradicional aversão francesa pelo judeu, detentor
do poder econômico. Neste sentido, Bernanos não poderia ser acusado de
racismo. E a partir do terror nazista, ele repudia o termo anti-semitismo. Mas em
1944, no Brasil, escreve, em um artigo intitulado Encore la question juive, essa
declaração surpreendente: “Ce mot me fait de plus en plus horreur, Hitler l’ a
déshonoré à jamais” (EEC II: 614). Como se, outrora, noutro contexto, tivesse
sido possível honrar o anti-semitismo.
183
Bernanos permaneceu fiel à memória de Drumont de quem se considerou
sempre discípulo. Essa fidelidade à pessoa revela um sentimento feudal que
remonta à Idade Média. Trata-se de uma questão de honra, de um vínculo que
não poderia ser rompido sem desonra. Além disso, voltar-se para Drumond
poderia representar a procura de sua família intelectual, cuja escolha nunca é
aleatória e sobretudo um retorno em busca de certezas, à época em que tudo se
apresentava claro e seguro, em contraste com o momento atual: incerto, doloroso
e conturbado.
A evocação de Drumond por Bernanos pode ser, de certo modo, explicada e
compreendida; mas torna-se extremamente difícil justificar da mesma maneira a
participação do escritor no jornal de direita, Le Figaro, a partir de novembro de
1931. A amizade que o unia a Robert Vallery-Radot, diretor literário, não
convence totalmente, tendo em vista que Le Figaro representava tudo o que
Bernanos sempre denunciou: o poder do dinheiro, as elites elegantes, mundanas e
bem-pensantes. O proprietário e diretor do quotidiano, o milionário François
Coty, conhecido perfumista, intervinha na orientação do jornal, imprimindo-lhe
uma orientação favorável ao fascismo.
L’Action Française desencadeou, no início de 1932, uma violenta
campanha, para destruir Coty. Bernanos, mais uma vez, acha-se na obrigação de
defender aquele que considera injustiçado e tenta esclarecer a opinião pública.
Maurras toma a iniciativa da separação, dizendo adeus ao antigo Camelot du Roi.
Bernanos concretiza a ruptura, anunciada desde 1919, com a célebre carta A
Dieu, Maurras, publicada em maio de 1932.
184
As conseqüências dessa separação não se fizeram esperar. L’Action
Française desenvolveu uma das mais torpes campanhas visando desmoralizar o
antigo aliado. Georges Bernanos foi ridicularizado, caluniado e exposto à
execração pública. Sua vida foi submetida a uma rigorosa devassa e suas faltas
reais, exageradas ou inventadas, foram divulgadas pela imprensa. O ódio e o
ressentimento de seus primeiros amigos não desapareceram com o tempo.
Quarenta anos após sua morte, em 1988, um jornal que se intitula La
Restauration Nationale - Centre de Propagande Royaliste et d’Action Française,
qualifica Bernanos de "incoerente e instável" e acrescenta que para ele não há
nem amnésia nem anistia.
Se os inimigos enfatizavam suas contínuas flutuações, os acontecimentos
pareciam confirmar esse julgamento desfavorável. Em junho de 1932, afasta-se
do Figaro, por discordar da sua orientação ideológica, retornando em outubro do
mesmo ano para defender sua equipe dos virulentos ataques da Action Française.
Ao se convencer que suas sugestões para transformar o Figaro em um
instrumento de luta por grandes ideais caiam no vazio, o escritor separa-se,
definitivamente, do polêmico jornal.
Esses cinco anos, de 1929 a 1934, foram marcados por grandes perdas, o
amadurecer de uma renovação literária, dificuldades financeiras e mudanças de
domicílio - o que configura um processo de despojamento e errância. Bernanos
perde: reputação, amigos, saúde, dinheiro e torna-se cada vez mais solitário.
Os ataques à sua honra e à sua credibilidade, a perda dos antigos
companheiros da Action Française amarguraram-no profundamente. Em 1930,
185
morre sua mãe. Além dos danos morais, em 1933, Bernanos sofreu um acidente
de moto que o deixou, para sempre, dependente de muletas. Com o tempo, a
limitação física foi superada, e o escritor pode referir-se a seu acidente como a
execução de parte dos desígnios da Providência a seu respeito.
Do ponto de vista literário, vários projetos foram desenvolvidos
simultaneamente: Un Mauvais Rêve, Un Crime e os primeiros capítulos de M.
Ouine, embora nenhum romance tenha sido concluído e publicado.
A vida errante se acentua: Vésenex, Toulon, La Bayorre. Sua situação
financeira tornou-se insustentável. As dificuldades acumularam-se a tal ponto
que todos os pertences do escritor foram leiloados para pagamento de três meses
de aluguel atrasados antes de sua partida para Palma de Maiorca.
Em 1934, viaja para a ilha de Maiorca, à procura de melhores condições de
vida: “Je suis venu ici parce que la vie est matériellement moins difficile qu’en
France. Un point c’est tout.” (CORR II: 19).
O período vivido em Maiorca, de 1934 a 1937, pontilhado por cinco
mudanças de domicílio, coincide com uma grande transformação em sua vida.
“Cette expérience d’Espagne a été, peut-être, l’événement capital de ma vie.”
(EEC II: 969) avaliará o escritor em 1945, já no Brasil.
A evolução de seu pensamento político tornada pública em Les Grands
Cimetières sous la lune (1938), poderia parecer brusca e repentina. Ao contrário,
ela foi progressiva e correspondeu a uma tomada de consciência, revelada na
correspondência enviada a amigos.
186
Enquanto esteve absorvido pela redação de Journal d’un curé de campagne
(1936), Bernanos não prestou muita atenção aos problemas políticos espanhóis.
Terminado o romance, ele começa a refletir sobre o que acontecia no país e a ver
os massacres cometidos à sua volta. E revolta-se contra a repressão da direita
espanhola e, sobretudo, com a cumplicidade da Igreja. "Le personnage que les
convenances m’ obligent à qualifier d’ évêque-archevêque avait délégué là-bas
un de ses prêtres qui, les souliers dans le sang, distribuait les absolutions entre
deux décharges." (GCL: 422).
Essa mudança provocou uma grande surpresa nos leitores, porque o
escritor, no início, manifestara admiração e entusiasmo pelo movimento
franquista, comprovada pela presença de seu filho mais velho, Yves, de 16 anos,
nas fileiras da Falange.
Vários fatores podem explicar essa adesão primeira: sua formação católica,
o amor pela ação e todo o seu passado de Camelot du Roi e militante da Action
Française. Pouco a pouco, a surpresa, o horror e a reprovação o dominam. Seu
filho, Yves, começa a discordar dos métodos empregados pela Falange, pensa
em desertar e acaba fazendo-o. Jean-Loup Bernanos relata que o irmão, antes de
partir para o Brasil, teria manifestado o desejo de voltar à Espanha para lutar ao
lado dos republicanos. Não o fez, mas a mudança foi radical.
O horror presenciado em Maiorca inspirou a Bernanos além de Les Grands
Cimetières sous la lune, Nouvelle Histoire de Mouchette, (1937), seu último
romance. O objetivo do autor é, além de denunciar, ensinar o leitor a ver, a ler, a
decifrar os acontecimentos e não apenas comover e provocar emoção. Denuncia
187
o processo de degradação, que faz do adversário um trapo ensopado de gasolina,
contorcido pelo fogo, depois de ter sido abatido como um animal, nos grandes
cemitérios sob a lua .
Ele não ignora os excessos do campo oposto e os menciona, além de
declarar: “L’ armée républicaine ne m’ inspirait, je l’ avoue, aucune confiance”
(GCL: 415). Os republicanos de todas as tendências - anarquistas, comunistas -
também matavam e torturavam, mas não em nome da honra, da ordem ou de
Cristo. Matavam em nome do ideário da Revolução Francesa: Liberdade,
Igualdade e Fraternidade. O grande escândalo consistia no fato de a Igreja
aprovar o Terror franquista, justificando-o em nome de valores religiosos e
morais. "Où que le général de l’episcopat espagnol mette maintenant le pied, la
mâchoire d’une tête de mort se referme sur son talon, et il est obligé de secouer
sa botte pour la décrocher” (GCL: 409 ).
Bernanos retorna à França em março de 1937 e publica, em 1938, Les
Grands Cimetières sous la lune, um divisor de águas em sua vida. Abandonado
pela direita, sem querer se filiar à esquerda, recusa todas as etiquetas. É um
homem pobre, solitário e livre e nisso consiste sua força.
A repercussão da denúncia do terror franquista, ao alienar os bem-
pensantes, atraiu, em compensação, as simpatias da esquerda. Simone Weil
escreveu-lhe, em 1938, uma longa carta da qual citarei um trecho:
188
Depuis que j’ai été en Espagne, que j’entends, que je lis toutes sortes de considérations sur l’Espagne, je ne puis citer personne, hors vous seul, qui, à ma connaissance, ait baigné dans l’atmosphère de la guerre espagnole et y ait résisté. Vous êtes royaliste, disciple de Drumont - que m’importe? Vous m’êtes plus proche, sans comparaison, que mes camarades des milices d’ Aragon - ces camarades que, pourtant, j’ aimais.” (CORR II: 203-204)
Apesar desse fervor da esquerda, Bernanos sente-se isolado. Abandona a
criação romanesca e dedica-se a seus Écrits de Combat. Os problemas
financeiros continuam. A experiência do terror franquista o faz compreender a
inexorabilidade da guerra que se anuncia.
Volta-se para a América do Sul, realizando seu velho sonho, muitas vezes
reiterado, de partir alhures... As razões de sua partida, ele as evocará, mais tarde,
já instalado no Brasil, em 1941:
J’ ai quitté mon pays en 1938. Je l’ ai quitté librement. Je n’ en ai pas été chassé. Je ne l’ ai pas fui non plus. (...) J’ ai quitté mon pays parce que la vérité y était devenue stérile, parce qu’ une parole libre y était aussitôt étouffée. (EE II :293)
Em 20 de julho de 1938, Bernanos, sua família e alguns amigos embarcam
para o Paraguai, com uma escala prevista no Rio de Janeiro. No Brasil, o escritor
foi acolhido entusiasticamente por Alceu Amoroso Lima, Augusto-Frederico
Schmidt e Aluisio de Salles que foram encontrá-lo a bordo do navio Flórida e o
convidaram a almoçar em Copacabana. Essa recepção calorosa determinará mais
tarde o estabelecimento, por sete anos, de Bernanos no Brasil.
O Paraguai representava, na época, para Bernanos, uma espécie de
Eldorado mítico. Criar uma colônia francesa no Paraguai constituíra, outrora, um
dos sonhos de Bernanos e de seus amigos Maxence de Colleville e Ernest de
189
Malibran. Estes dois realizaram em parte o projeto, visitando o país por volta de
1914, mas foram convocados para lutar na Primeira Guerra Mundial.
Bernanos, ao decidir se exilar, resolve viver o antigo sonho: "Je partais
pour le Paraguay, ce Paraguay que notre dictionnaire Larousse, d’accord avec
le Bottin, qualifie de Paradis Terrestre. Je n’ai pas trouvé là-bas le Paradis
Terrestre” (EEC I : 629).
O paraíso se revelou uma decepção. Dificuldades de visto de permanência,
vida cara, acolhida fria, levam-no a voltar ao Brasil, onde é acolhido com
entusiasmo.
Uma elite de intelectuais - Virgilio de Mello Franco, Alceu Amoroso Lima,
Raul Fernandes, Oswaldo Aranha, Joaquim de Salles - o acolhe e desdobra-se
para facilitar sua estada no Brasil e tornar o exílio mais suportável.
Amou o Brasil. Considerava-o uma segunda pátria espiritual. Mas não foi
um amor à primeira vista. Ele passou a amá-lo quando o compreendeu melhor,
ultrapassando clichés e preconceitos. Os brasileiros corresponderam a esse amor
desmitificando a imagem oficial de Bernanos, visto na França da época como
uma espécie de santo literário.
No Brasil, ele é evocado pelos que o conheceram como um homem que
ama a vida, os amigos e um bom vinho e não apenas como o atormentado
escritor que tinha se encontrado com o demônio, imagem predominante em
certos meios literários franceses da época.
190
Somente mais tarde, Bernanos pode entender o alcance de sua estada no
Brasil. Em 1946, na França, ele escreverá:
Depuis que je suis rentré dans mon pays, je comprends mieux qu’ autrefois que mon séjour au Brésil n’ a pas été un simple épisode de ma pauvre vie, mais qu’ il était inscrit depuis toujours dans la trame de mon destin. (CORR II: 615)
Acaso, destino, Providência Divina, pouco importa. Bernanos viveu no
Brasil durante sete anos, anos que o marcaram indelevelmente.
Seu itinerário, no Brasil: Rio de Janeiro, Itaipava, Juiz de Fora, Vassouras,
Pirapora, Barbacena e Paquetá, revelou-se uma verdadeira peregrinação pelo
interior do país, pelo sertão, à procura de uma utopia - um lugar tranqüilo, longe
das grandes cidades, onde ele pudesse trabalhar e sustentar sua numerosa família.
Pirapora, na época última estação da Central do Brasil, às margens do rio
São Francisco, representou para Bernanos um desafio para sua força e capacidade
de resistência. Lá ele encontrou, não a casa de seus sonhos, mas a que mais se
assemelhava à sua vida: “Les portes n’ y ont pas de serrures, les fenêtres pas de
vitres, les chambres pas de plafond. [...] Pour une maison ouverte, on peut dire
de cette maison qu’ elle est ouverte." (EEC I: 878-879).
A casa aberta, "la maison ouverte", parece tornar-se o símbolo da própria
vida o escritor que aceita o despojamento e afirma desejar estar, ele e seus livros,
à mercê dos que passam. Além da casa aberta, outras metáforas são empregadas
pelo escritor: a do pão comum - “Dieu veuille que je sois ce pain de ménage”
(EEC I: 869) e, dentro do mesmo campo semântico, a imagem de um forno
banal, comum.
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Un four banal c’ est le four de tout le monde. Je ne suis pas un homme de théâtre, je n’ ai pas le préjugé des fours, je voudrais pouvoir espérer que mon l’ oeuvre fût ce four où chacun vient librement cuire son pain. (EEC I: 874)
O texto fala de "four" - forno - lugar onde o pão é assado. Four, na gíria do
meio artístico e sobretudo na de teatro, significa fracasso. Forno ou insucesso,
qualquer uma das acepções pode ser aplicada à leitura que se faça de Bernanos.
Quem considera o tempo transcorrido e os espaços percorridos, entre Sous le
soleil de Satan e Dialogues des Carmélites, não pode deixar de surpreender-se
com um desenrolar entrecortado de rupturas e de partidas, sucessos e desastres.
É importante ressaltar que foi no Brasil que ele escreveu a maior parte de
seus Écrits de Combat - sua obra política.
Cada texto corresponde aproximadamente a um lugar, como se pode
verificar no quadro que se segue:
192
ITINERÁRIO OBRAS
Itaipava - novembro, 1938 - um mês
Início de Nous autres Français
Juiz de Fora - dezembro, 1938 - janeiro, 1939 - dois meses
Scandale de la vérité - 1939
Vassouras - fevereiro - julho, 1939 - cinco meses
Nous Autres Français - 1939
Pirapora - julho,1939 - maio, 1940 - oito meses
Les Enfants humiliés, publicado em 1949.
O último capítulo de M. Ouine.
Belo Horizonte e Rio de Janeiro - junho e julho, 1940
Artigos publicados na imprensa brasileira.
Barbacena - Agosto, 1940 - junho, 1945 - cinco anos
Lettre aux Anglais - 1942
La France contre les robots -1944
Le Chemin de la Croix-des-Âmes - 1943-1945.
Paquetá - uma temporada durante o ano de 1943-1944.
Artigos publicados na imprensa brasileira
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Bernanos mudava, freqüentemente, de casa após terminar um livro. Quando
são mencionadas as inúmeras e sucessivas mudanças do escritor, importa
ressaltar que não se trata apenas de um elemento curioso, anedótico, ou
meramente de registro biográfico. As repetições constituem um sintoma,
produzem sentidos. Outros diriam: revelam uma estrutura.
O romper, sistematicamente, com lugares, coisas ou pessoas significa
expressões plurais de uma grande ruptura, manifestações visíveis de sua visão
trágica do mundo.
Os anos de exílio, no Brasil - de 1938 a 1945 - foram extremamente
fecundos do ponto de vista intelectual, como pode ser verificado no quadro
acima.
Vale ressaltar: Les Enfants humiliés - uma espécie de diário, é um texto
escrito de 1939 a 1940 e publicado em 1949, após sua morte. E Lettre aux
Anglais é uma obra do exílio, que se apresenta, desde a escolha da forma de carta
ou cartas ligada à condição de um duplo exílio: geográfico e histórico.
Geográfico, porque escrito no Brasil, mas sobretudo histórico: a renúncia
definitiva a uma certa idéia da grandeza da França (Kohlhauer,1995).
O último capítulo de M. Ouine, considerado um dos textos mais estranhos
da literatura francesa do século XX, iniciado em 1931 foi terminado no Brasil em
1940. Publicado, primeiramente, no Rio de Janeiro, em 1943, e, posteriormente,
na França, em 1946, numa versão incompleta, conheceu a primeira versão
integral em 1955.
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Le Chemin de la Croix-des-Âmes, coletânea de artigos publicados na
imprensa brasileira de 1940-1945, conheceu uma primeira edição em quatro
volumes de 1943 a 1945, no Brasil, antes de ser reeditada em 1948, pela Editora
Gallimard.
O exílio de Bernanos no Brasil não deve ser considerado um todo
indivisível. Sua correspondência, abrangendo o período 1938- 1945, revela duas
etapas bem distintas: antes e após o Armistício de 1940.
Em um primeiro momento, apesar das dificuldades materiais, das desilusões
inevitáveis, e das freqüentes mudanças de domicílio, o tempo decorrido entre sua
chegada - setembro de 1938 - e a rendição da França em junho de 1940 - não
constituiu, a meu ver, um período de dépaysement, de estranhamento.
Acolhido com entusiasmo por uma elite intelectual e social, em tudo
parecida com o estilo da alta classe média francesa, Bernanos freqüentava
amigos que conheciam e amavam a França e tudo fizeram para que seu exílio lhe
fosse suportável.
Se Bernanos declarou, já de volta à França, que gostaria de morrer no
Brasil, os sentimentos confiados a seu Diário (1939- 1940) são mais comedidos:
“Je ne hais pas ce pays, je ne saurais dire que je l’ aime, je l’ aimerais s’ il
pouvait m’ aimer”1 (EEC II:
824). Durante algum tempo, ele se considerava um exilado recente, em um país
completamente estranho, “ce pays absolument étranger à mon âme” (EEC II:
824). Sentindo-se cada vez mais ligado à sua pátria, refuta de antemão a 1 Não fica claro, no texto, se o autor se refere ao Brasil ou, mais especificamente a Pirapora.
195
possibilidade de ser considerado un déraciné, um desarraigado; e o próprio nome
de exílio parece-lhe um exagero: “...ce mot d’ exil est trop grand pour moi” (EEC
II: 788).
O tom muda sensivelmente após a ocupação de junho de 1940. Sente-se
isolado, humilhado e procura mais do que nunca o conforto da amizade.
“Au point où je suis, l’amitié sera peut-être demain pour moi, ma seule
patrie” declara em 1941 (CORR II: 387). Seu artigo "Brésil, terre d’amitié" (EEC
II: 1121) revela o quanto esse sentimento lhe era precioso e indispensável.
Entretanto, mesmo a amizade revelou-se impotente diante da sensação de
exílio total, inscrito no tempo e no espaço, sentimento que o dominava. “Nous
avons connu quelque chose de pire que l’exil, ou plutôt l’ exil total, lorsque
résolus à aimer plus que jamais notre peuple, nous désespérions de le
comprendre.” (EEC II: 207). De Pirapora, ele escreve ao grande amigo, o poeta
Jorge de Lima: “J’ ai la sensation de traverser l’enfer. Dans la plus profonde
humiliation et avec une honte écrasante, je viens de reprendre la conscience de
mon pays.” (CORR II: 285).
À dor, à vergonha, à humilhação que o abatem, acrescenta-se o angustiante
sentimento de estar dividido, cindido: “Car une part de moi-même est restée de l’
autre côté de l’ eau, je pense à moi, je pense à cette créature délaissée, je pense
à elle, comme à un parent lointain.” (EEC I: 862). Bernanos fala de si mesmo
como de um outro, não com desprezo, mas com distância e estranheza. Suas
crises de angústia se sucedem, crises que o obrigarão, posteriormente, a procurar
um tratamento específico no Rio de Janeiro.
196
O desânimo inicial, entretanto, foi superado e Bernanos parte,
corajosamente, para o combate por uma França livre, com as armas de que
dispunha: sua voz e seus artigos. "Je travaille beaucoup. J’ écris pour les
journaux clandestins français, pour un journal de Beyrouth et pour la
Marseillaise du Caire." (CORR II: 512), escrevia na época. Falava também
pela BBC, de Londres, mesmo que esse recurso lhe fosse doloroso: “J’ ai
répugnance à parler personnellellement à la BBC. Il est douloureux pour un
Français de ne pouvoir parler à son pays que par l’ intermédiaire de l’
étranger” (CORR II:.341).
Escrevia sobretudo artigos em francês, que eram traduzidos antes de serem
publicados na imprensa brasileira. O fato de escrever em sua língua materna
reforça a idéia de testemunho.
Derrida afirmava, em suas aulas na EHESS, em 1995, que não se pode
testemunhar em língua estrangeira, o que configuraria uma ficção. Bernanos
testemunhava e fazia tudo o que podia para ajudar a Resistência francesa. “Ce n’
est pas que je me fasse illusion sur l’ aide que je puis apporter au chef de la
Résistance française, mais en ce moment, on offre ce qu’ on peut” (CORR II:
515).
O peso do exílio, apesar dos amigos poderosos e dedicados, fazia-se sentir:
solidão, doenças, dificuldades financeiras e as mudanças de domicílio que
pontilharam sua existência. Bernanos aceita o ônus do exílio sabendo que: “L’
exil est l’ exil. Je n’ ai jamais désiré que le mien fût un exil truqué ou doré”
(CORR II: 490).
197
A peregrinação através do sertão interrompe-se durante algum tempo: os
cinco anos passados em Barbacena, onde encontrou uma certa tranqüilidade.
Participava, ativamente, através de artigos e conferências, da vida intelectual do
país.
Sua ação enriqueceu o pensamento intelectual da época, contribuindo para a
evolução política de Tristão de Athayde que declarou: “Através de Bernanos,
então vivendo no Brasil, de Chesterton e Maritain. (...) iria evoluir numa direção
que é a de hoje” (Carpeaux, 1978: 57). Bernanos, sobretudo, impediu que os
intelectuais brasileiros adotassem Pétain, como já se tinham enganado com
Franco e os franquistas “endeusados como anjos, em luta contra os republicanos
demoníacos” (Carpeaux, 1978: 82).
A voz do autor de Les Grands Cimetières sous la lune incomodou,
profundamente, com suas denúncias, muitas vezes violentas e intempestivas, mas
contribuiu para a divulgação de idéias novas e acenou com outras perspectivas no
panorama intelectual da época, freqüentemente pouco informado ou mal
informado, sofrendo as conseqüências da ditadura Vargas.
Os anos passados no Brasil concorreram para a evolução de seu pensamento
político. Bernanos evoluiu, indubitavelmente, mas não mudou de ideologia.
Continuará católico e monarquista, porém, como observa Monique Gosselin, um
evidente amadurecimento permitir-lhe-á compreender melhor os que o cercam e
sobretudo a França, sua pátria.
Durante seu exílio no Brasil, Bernanos tomou plena consciência ao mesmo
tempo da universalidade e da especificidade da civilização francesa. No
198
momento em que a França decepcionava o mundo, ele pôde constatar que a
vocação histórica da França correspondia ao que o mundo dela esperava. E essa
constatação exacerbava seu sentimento de estar duplamente exilado: "L’immense
étendue de mer qui me sépare de mon pays peut toujours être traversée;
l’obstacle infranchissable, c’est le souvenir de l’Affront." (EEC II : 26).
Quando Bernanos parecia ter terminado sua errância, instalado em Cruz-
das-Almas, o General de Gaulle insiste em chamá-lo de volta à França. “Votre
place est parmi nous”, telegrafou-lhe, no dia 16 de fevereiro de 1945, o próprio
General.
Seus amigos brasileiros tentam convencê-lo a não voltar. Bernanos decide
partir e retorna à França em junho de 1945, onde conhecerá uma outra espécie de
exílio, paradoxal e doloroso, o exílio dentro da própria pátria. Desiludido, ele
constata que apenas mudou o cenário de seu exílio. “J’ai compris depuis six mois
que le poids de l’ exil est parfois moins lourd à porter sur une terre étrangère
que dans son propre pays”, escreve ele já de volta à França (EEC II: 1115).
Ao deixar, livremente, a França em 1938, Bernanos consumara uma
separação que não permitia volta. Pergunta-se Pierre Gille:
"Por que Bernanos teria voltado à França? Ele deixou um lugar onde tinha encontrado sua verdadeira pátria espiritual, para reencontrar um país do qual se sente separado por uma espécie de divórcio moral, consumado por sua partida desde 1938 e que os acontecimentos da guerra, provavelmente, pouco atenuaram. (EEC II: 1760).
199
No pós-guerra de 1945, o escritor representava um passado muito recente
que muitos queriam esquecer. A Resistência, que ele idealizara, tinha se
transformado em um partido político. A voz de Bernanos soava anacrônica e
incomodava aqueles que desejavam esquecer um passado muito recente, onde
nem sempre a Resistência e a Colaboração foram nítidas. Fiel a suas exigências,
recusou uma embaixada, um ministério, a Academia Francesa e declinou, pela
quarta vez, receber a Légion d’Honneur.
As dificuldades financeiras persistem. A casa que abriga o escritor e sua
numerosa família é descrita como fria, gelada, sem gás, sem eletricidade e sem
água encanada - um “château de la Misère”. As mudanças se sucedem.
Ele enfrenta, em 1945, não mais uma campanha difamatória, como em
1932, por ocasião de seu rompimento com Maurras, mas um muro de silêncio, o
imenso vazio que se constituiu a sua volta. “Ce n’ est plus maintenant la solitude
qui m’ entoure, c’ est le vide. Il me semble que rien ne me répond plus, ne me
répondra jamais”, escreve em janeiro de 1946 (CORR II: 601).
Sua correspondência revela a situação insustentável em que se encontra:
"Quant à la France, elle est inhabitable pour moi. J’ y étouffe. Le régime de la
libération - je veux dire le régime issu d’ elle - se trouve aujourd’ hui en pleine
décomposition." (CORR II: 747).
Em 1947, decide instalar-se na Tunísia, um outro sonho longamente
acalentado. Desde 1943, ainda em Barbacena, escrevera a um amigo:
200
Ce que je souhaite seulement peut-être, c’ est d’ aller m’ installer, avec les miens, dans quelque coin du Maroc, et d’ y vivre comme je vis ici, avec la possibilité pourtant d’ aller passer une semaine ou deux ici, ou là. (CORR II: 525)
O que prova que o último estágio do exílio não foi uma decisão súbita, mas
um desejo há muito existente.
Bernanos lamentará sempre ter deixado o Brasil: “Combien je regrette d’
avoir quitté le Brésil! Si j’ étais encore là-bas, j’ aurais du moins la certitude d’
être utile à mon pays” (CORR II: 751), escreve em 1948, ano de sua morte.
Uma pergunta impõe-se: Por que Bernanos não retornou ao Brasil, onde era
respeitado, possuía amigos dedicados e influentes que o receberiam de braços
abertos? Várias hipóteses podem ser levantadas. Parece-me, entretanto, baseada
nas partidas e rupturas que pontilharam sua vida, que ele nunca retornava aos
lugares, mesmo amados, por onde passara. Acredito ter encontrado uma
explicação, na longa passagem em que ele fala das paisagens de sua infância e
juventude:
Je n’ ai pas revu ceux de ma jeunesse, j’ en ai préféré d’ autres, je tiens à la Provence par un sentiment mille fois plus fort et plus jaloux. (...) Pourquoi évoquerais-je avec mélancolie l’ eau noire du chemin creux, la haie qui siffle sous l’ averse, puisque je suis moi-même la haie et l’ eau noire? (EEC I: 788)
Os lugares e as pessoas passariam a fazer parte de seu ser e não precisariam
ser revisitados para continuarem amados. Não se repete sucesso. Não se repete
fracasso. Não se volta ao que passou.
201
As dificuldades habituais enfrentadas na Tunísia - falta de dinheiro, luto,
foram acrescidas pela doença do escritor, atingido por um câncer no fígado.
Nessas condições precárias, Bernanos empreende a redação de sua última obra.
De novembro de 1947 a março de 1948, gravemente enfermo, Bernanos
dedica-se a esse texto, publicado, posteriormente, sob o título de Dialogues des
Carmélites. Transportado, às pressas, para a França, morreu no Hospital
Americano de Neuilly, em 5 de julho de 1948.
A leitura dos fatos mais marcantes da vida de Bernanos revela uma
errância, que procurei ressaltar ao longo desse capítulo. Ele mesmo se definiu
como uma espécie de viajante, de vagabundo “Jamais je ne me suis plus senti un
errant, un vagabond, un clochard” (CORR II: 275) (grifo meu).
E a errância informa a vida de Bernanos. Um longo e progressivo
despojamento tornou-o solitário e livre, uma voz e um olhar, um vagabundo.
Bernanos viveu a vida como um exilado. Durante toda a vida, procurou um
lugar onde pudesse trabalhar livremente. Tudo o que ele pedia era: “Un coin,le
plus éloigné possible, où je puisse le cas échéant nourrir ma pension de famille
de ce qui pousse dans mon jardin, ou broute dans mon pré” (CORR II: 650). Essa
aspiração, dialogando com os escritos de Rousseau, permaneceu um anseio, uma
utopia nunca concretizada.
No Brasil, ele parecia ter encontrado o que mais se aproximava daquilo que
buscava incessantemente; porém as circunstâncias e o que considerava ser o seu
202
dever impeliram-no a recomeçar uma errância que somente terminou com sua
morte.
Ler sua obra através da ótica do exílio esclareceria seus aspectos
aparentemente contraditórios e permitiria compreender suas rupturas, expressão
de uma Ruptura essencial: o homem, expulso do Paraíso Terrestre, procura Deus,
que se esconde, e só o encontra através da morte.
Dialogues des Carmélites, coincidentemente, apresenta a mesma
problemática: Blanche de la Force buscou um refúgio, um lugar onde recuperar
a honra, mas procurou, sobretudo, seu lugar no mundo, sua identidade. Sua
errância faz ressoar a peregrinação de Bernanos.
E não é certamente por acaso que o autor se identifica, às vésperas da morte,
com o destino das carmelitas, discípulas de Teresa d’Ávila, acusada de ser "uma
mulher inquieta e errante" (Auclair, 1960).
Quatro figuras femininas teriam ajudado Bernanos em sua meditação
derradeira: Madame de Croissy, a vencer o medo da morte; Marie de
l’Incarnation, a superar o sentimento de desonra experimentado no pós-guerra
(Bush,1988:18); Mère Lidoine, a entregar-se inteiramente à vontade divina; e
Blanche de la Force, a dominar o terror e a angústia, através da Comunhão dos
Santos.
Quem foi Bernanos? Certamente um autor contraditório. Os que o criticavam
consideravam-no um desadaptado. Seus admiradores diziam que o exílio lhe
convinha e que ele era feito para falar do alto e de longe. Os dois julgamentos
não se excluem e até confirmam sua visão trágica do mundo: “a impossibilidade
radical de realizar uma vida que valha a pena no mundo” (Goldmann,1959:117).
203
Proponho qualificar Bernanos como o errante. Sempre longe e sempre
presente, Bernanos, no final de sua vida reconhecia: "On y réussit mieux de loin.
C' est d' ailleurs pourquoi j' ai bien envie de reprendre le bateau" (CORR II:
676).
Retomar o barco, expressão empregada em seu sentido próprio, mas,
certamente, metáfora da vida, considerada a viagem na qual estamos todos
embarcados, como disse Pascal. De porto em porto, somos todos viajantes,
queiramos ou não.
Bernanos vivenciou a errância. E o mundo lhe foi um incessante exílio.
204
6. CONCLUSÃO
Une oeuvre est éternelle, non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle toujours la même langue symbolique à des temps multiples. Barthes
Dialogues des carmélites, obra escrita no pós-guerra de 1947-1948, é um
texto nascido dos conflitos e da guerra: da Primeira Guerra Mundial, do Terror
de 1793-1794 vivenciado por Bernanos na guerra civil espanhola e da Segunda
Guerra mundial. Os diferentes terrores destes diversos momentos históricos
dialogam, articulam-se e constituem manifestações do mesmo fenômeno, de um
único Terror. Terror foi conceituado como todo e qualquer regime pautado, não
pela lei, mas pela exceção, mesmo que esta pretenda ser necessária e provisória.
Todos os regimes de terror invocaram e invocam a manutenção da ordem geral
em, detrimento da liberdade individual.
Bernanos, em uma linguagem calcada no estilo do século XVII, reescreve
um fato histórico ocorrido no século XVIII, que se repete sob a forma de
paralelismo, na França do pós-guerra. A sociedade francesa, que vivera o
vergonhoso Armistício de 1940 e a Ocupação alemã, uma vez terminada a
guerra, preocupava-se com sua reconstrução. Mas, antes de reconstruir, era
necessário proceder a uma limpeza, à l’épuration.
Neste contexto histórico, discutia-se o que se passara durante os anos
negros- les années noires (1940-1944) e indagava-se qual a atitude que se deve
manter diante da força? A vida seria mais importante do que a honra? Quem
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colaborou com os alemães e sobreviveu? Quem fugiu? Quem resistiu ao poder e
morreu?
As carmelitas de Compiègne, em 1794, tinham-se defrontado com um
dilema análogo: como viver a fé em um momento de perturbação? Elas haviam
tentado resolver o problema, humanamente, através da astúcia da linguagem, o
que se revelou ineficaz. Condenadas à guilhotina, pelo Terror Revolucionário,
acederam a uma outra ordem, à da transcendência, através do martírio.
Bernanos aceitou escrever diálogos, para um filme, sobre este episódio e ele
se apaixonou pela idéia de examinar o martírio das carmelitas, à luz das questões
do século XX e das indagações que o atormentavam, às vésperas de sua morte.
Dialogues des carmélites permite diversas leituras ou, no dizer de Barthes,
sugere sentidos diferentes ao mesmo leitor. Minha leitura apresentou o contexto
histórico e político no qual a obra foi escrita (1947-1948) e as Figuras que atuam
como intertexto: a cidade de Compiègne, a Ordem do Carmelo e o convento das
carmelitas em Compiègne, espaços modificados pela Revolução Francesa.
O movimento revolucionário é visto, no texto, principalmente, como uma
troca de lugares. A ameaça referida no prólogo do texto: “... et nous roulerons
dans vos carrosses”, ao destacar os significantes rouler e carrosses, anuncia a
colisão de classes e a reversão dos espaços sociais. Rodar alude ao inevitável
movimento giratório da vida e carruagem seria uma metonímia dos privilégios
do poder, um dos sinais visíveis da nobreza. Nos movimentos da roda da fortuna,
os revolucionários ocupam os palacetes e conventos, os nobres são encarcerados,
condenados e executados. A rua e o anonimato tornam-se o melhor refúgio. As
206
mudanças são múltiplas e consistem em uma “reversão de situações, opiniões,
valores, sentimentos, linguagens. ” (Barthes,1980:38).
No Carmelo, a primeira grande mudança é a eleição para Priora da
burguesa Mère Lidoine, preferida à aristocrática Marie de l’Incarnation. Esta
escolha revela uma situação nova: a necessidade de contemporizar com as
autoridades revolucionárias e também a mobilidade social crescente, uma vez
que Mère Lidoine é filha de um vendedor de gado.
Foi analisado de que modo o princípio aristocrático e os valores burgueses
coexistem no denso espaço do convento, com o predomínio dos valores da
nobreza. A eleição da nova Priora possibilita, então, a manifestação de um
discurso plebeu, já existente, intensificado pela influência dos ideais
revolucionários sofrida, a contragosto, pelas religiosas. Esta modificação se
reflete na variedade de registros dos diálogos e na diversidade dos sentimentos
expressos pelas religiosas. O Carmelo mostrou-se permeável, às novas idéias,
antes de ser invadido e saqueado pela multidão e agredido pelas canções
revolucionárias. O século está presente no claustro e seus conflitos e seus muros
não são intransponíveis.
O mundo está presente no Carmelo, sobretudo, nos conflitos entre os
valores aristocráticos e burgueses, intensificados diante da contradição vivida por
Blanche de la Force, nobre e covarde. Blanche representa o elemento catalisador
da oposição entre o heroísmo exaltado de Marie de l’Incarnation e o senso
prático e comunitário da Priora.
207
A nova Priora opõe o equilíbrio e a humildade, valores antes subestimados,
às exigências do código de honra da nobreza. Ela restabelece o conceito da
verdadeira honra e explicita, a seu modo, a loucura da santidade. A aceitação do
medo torna-se, portanto, um valor, sentimentos humano, assumido pelo Cristo no
Jardim das Oliveiras, em sua agonia.
Blanche de la Force, Blanche de l'Agonie du Christ oferece o exemplo-
limite desta mudança de valores. Tendo atingido o mais baixo nível de auto-
estima, ela é a própria imagem da abjeção e da exclusão, antes de se tornar a
figura emblemática da vitória da fé, sobre o medo, propiciada pela Graça.
Blanche de la Force, em seus deslocamentos sucessivos, à procura de seu
lugar no mundo, em busca de sua identidade pessoal e social, concentra em si a
angústia e o terror diante da morte, dos quais seria a própria representação.
As carmelitas de Compiègne foram acusadas por Fouquier-Tinville,
promotor público, de conspirar contra a República e condenadas, sumariamente,
em 1794. Estas mulheres que escolheram o silêncio e o anonimato, ao serem
sacrificadas, alcançam a graça do martírio, negado a Marie de l’Incarnation e
concedido a Blanche. Graça imprevisível, porque: “Dieu choisit ou réserve qui
lui plaît” ( DC: 1718).
A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos, vivido sob a
forma de um certo nomadismo. Dialoga, sobretudo, com a visão trágica do
escritor, com o viver sob o olhar de um Deus presente, mas escondido.
“Il y a plusieurs sortes de courage, voilà ce que je pense maintenant.”
(DC:1578), dizia Blanche de la Force. Parafraseando-a, relembro que há várias
formas de exílio manifestadas no repouso, no silêncio, na errância.
208
7. BIBLIOGRAFIA
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BERNANOS, Georges. Oeuvres romanesques. Préface par Gaëtan Picon. Texte
et variantes établis par Albert Béguin. Notes par Michel Estève. Paris:
Gallimard, 1961 (Bibliothèque de la Pléiade).
------. Essais et écrits de combat I . Textes présentés et annotés par Yves Bridel,
Jacques Chabot et Joseph Jurt, sous la direction de Michel Estève. Paris,
Gallimard, 1971 (Bibliothèque de la Pléiade).
------. Correspondance. Recueillie par Albert Béguin et présentée par Jean
Murray, O. P. Paris: Plon, 1971. (2 v.)
------. Combat pour la vérité. Paris: Plon, 1971.
------. Combat pour la liberté. Paris: Plon, 1971.
------. Lettres retrouvées. Paris: Plon, 1983.
------. Essais et écrits de combat II. Textes établis, présentés et annotés par Yves
Bridel, Jacques Chabot, Michel Estève, François Frison, Pierre Gille,
Joseph Jurt et Hubert Sarrazin, sous la direction de Michel Estève. Paris:
Gallimard, 1995 (Bibliothèque de la Pléiade).
Todas as citações, salvo indicação expressa, referem-se às edições da
Bibliothèque de la Pléiade.
O corpus específico de minha análise é o Dialogues des carmélites, obra
publicada pela Bibliothèque de la Pléiade em 1961. Minha escolha justifica-se
pela confiabilidade do texto, rigor das notas, comentários e variantes. Esta edição
da Pléiade é a fonte mais segura de que se pode dispor, no momento, enquanto
209
não for estabelecido, através de uma edição crítica que está sendo preparada, um
texto com maior rigor ecdótico.
2. Períodicos, Anais, Coletâneas
"Etudes bernanosiennes" in: La Revue des Lettres Modernes. Paris: Minard. 20
volumes a partir de 1960. Consultei especialmente o nº 19 Confrontations
2.
Georges Bernanos 1888-1988. Nord’. Lille: Société de littérature du Nord,
nº11, juin 1988.
Paradoxes et permanence de la pensée bernanosienne.Etudes publiées sous la
direction de Joël Pottier. Paris: Amateurs de Livres,1989.
Bernanos et le monde moderne. Textes recueillis par Monique Gosselin et Max
Milner. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1989.
Annales Historiques de la Révolution Française. Paris: nº 297, juillet-septembre,
1994: nº3.
Georges Bernanos, Témoin. Textes publiés sous la direction de Pierrette Renard.
Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1994.
Georges Bernanos. Europe. Paris: nº 789-790, janvier-février. 1995.
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Lisboa: Imprensa Nacional, 1992.
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Toronto: Trintexte, 1984.
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p.913-919, 1994-1995.
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par Gille Lane. Postface de François Récanati. Paris: Seuil, 1970.
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Paris: Desclée des Brouwer, 1995.
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RESUMO
Esta tese assinala diferentes formas do Terror na História comtemporânea: no período revolucionário de 1792-1794, na guerra civil espanhola, na Ocupação alemã, no pós-guerra e na guerra fria na França, que se articulam e se exprimem em Dialogues des Carmélites, peça de teatro de Georges Bernanos, re-escritura do martírio das Carmelitas de Compiègne em 1794. O objetivo foi estudar o conflito entre o princípio aristocrático e os valores burgueses, solucionado na Transcendência. Angustiada, Blanche de la Force, personagem nobre e covarde, é um símbolo de contradição e torna-se elemento catalisador entre os diferentes valores. Sua errância, à procura de um lugar no mundo, equivalência de uma busca de identidade, dialoga com o exílio de Bernanos. A leitura da obra de Bernanos sob o ângulo do tema do exílio, diferentes exílios, esclarece algumas contradições e paradoxos.
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SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em Dialogues dês Carmélites, de George Bernanos. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. De Letras, 1998. 263 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.
RÉSUMÉ
Cette thèse signale différents moments de la Terreur dans l’Histoire contemporaine: la période révolutionnaire de 1792-1794, la guerre d’Espagne, l’Occupation allemande, l’après-guerre et la guerre froide en France, qui s’articulent, s’entrecroisent et s’expriment dans Dialogues des Carmélites de Georges Bernanos, pièce qui réécrit le martyre des carmélites de Compiègne en 1794. Le but en a été d’étudier l’antagonisme entre le príncipe aristocratique et les valeurs bourgeoises, résolu dans la Transcendence. Angoissée, Blanche de la Frce, personnage noble et lâche, est le symbole de cette contradiction. Son errance, à la recherche de son identité, rejoint celle des nombreux déplacements de Bernanos. La lecture de l’oevre de Bernanos à la lumière du thème de l’oevre de Bernanos à la lumière du thème de l’exil expliquerait alors les contradictions et les paradoxes de cet auteur
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SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em Dialogues dês Carmélites, de George Bernanos. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. De Letras, 1998. 263 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.
ABSTRACT
This thesis presents different forms of Terror in the Contemporary History: in the 1792-1794 revolutionary period, in the Spanish Civil War, during the German occupation, in the post-war period and during the Cold War in France. These different ‘terros’ articulate and Express themselves in Dialogues des Carmélites, a play by Georges Bernanos, re-script of the martydom of the carmelites of Compiègne in 1794. My aim was to study the conflict disclosed in the Carmel between the aristocratic principle and the bourgeois values, which was solved by transcendency. Blanche de la Force, a noble, coward anguished character is a symbol of contradiction and becomes a catalyst element between different values. Her wandering in search of a place in the world, equivalence of a serach for her own identity, interacts with Bernanos’ exile. The reading of Bernanos’ oeuvre through the exile’s point of view, through different exiles’ point of view, clarifes some of his contradictions and paradoxes.