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     Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Instituto de HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História Social

    PELAS MARGENS DO ATLÂNTI CO:

    Um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir

    das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas,Rio Grande do Sul (século XIX)

    Versão final

    Jonas Moreira Vargas

    Tese de Doutorado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação emHistória Social do Instituto deHistória da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do grau deDoutor em História.

    Orientador: Prof. Dr. João LuísRibeiro Fragoso

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2013 

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     PELAS MARGENS DO ATLÂNTI CO:

    Um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas,

    Rio Grande do Sul (século XIX)

    Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social doInstituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como requisito

     parcial para a obtenção do grau de Doutor em História.

    Banca Examinadora:

     _____________________________________________Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso

     _____________________________________________Prof.ª Dra. Maria Fernanda Vieira Martins (UFJF)

     ___________________________________________Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (UFF)

     _____________________________________________Profª Dra. Helen Osório (UFRGS)

     _____________________________________________Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ)

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2013

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    RESUMO

    A presente tese tem como objetivo principal estudar as estratégias sociais e econômicasdas mais ricas famílias dos proprietários das charqueadas de Pelotas, no Rio Grande doSul, ao longo do século XIX. O charque (carne-seca) constituiu-se em alimentofundamental na dieta dos escravos das  plantations  açucareiras e cafeeiras e das

     populações pobres das cidades litorâneas do Brasil. Portanto, trata-se da análise de umgrupo de empresários escravistas cuja produção era destinada principalmente aoabastecimento do mercado interno. Os proprietários das charqueadas, que tambémtinham nos couros, nos sebos e nas graxas importantes gêneros de exportação, foram osempresários mais ricos do sul do Brasil. A tese também estuda os mercados do gado, aexpansão dos charqueadores em busca de fazendas de criação na fronteira rio-grandense

    e no próprio lado uruguaio, a sua participação nas guerras do Brasil com as repúblicas platinas e a sua atuação no comércio marítimo de longo curso. Tanto na primeirametade do oitocentos, quanto na segunda metade do mesmo, um grupo de famíliastendeu a reunir os principais recursos materiais e imateriais naquele contextosocioeconômico, vindo a aumentar o seu prestígio e compor, juntamente com outrasfamílias, a elite regional ou  provincial . Esta elite charqueadora concentrava riqueza,

     poder político e  status  social e alguns de seus membros também alcançaramreconhecimento nacional. Neste sentido, ao dar este salto, estas poucas famílias tinhamentre os seus parentes alguns indivíduos que podiam tornar-se mediadores conectando a

    esfera de atuação local com o mundo exterior, seja economicamente, seja politicamentefalando. Contudo, os charqueadores escravistas de Pelotas, reconhecidos na época comoa aristocracia do sebo, não conseguiram resistir ao fim da escravidão, vivendo um

     período de auge de pouco mais de duas décadas, para sofrer uma derradeira crise nosanos 1880. Portanto, esta tese busca oferecer um modelo de análise das elites locais e

     provinciais que possa incentivar novos estudos regionais e que auxilie a compreendermelhor os sistemas econômico e político no Brasil oitocentista.

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    ABSTRACT

    This thesis aims to study the social and economic strategies of the richest families ofcharqueadas (livestock ranches) owners in Pelotas, Rio Grande do Sul, during the

    nineteenth century.  The charqui (dried meat) is a very important food in the diet ofslaves of sugarcane and coffee plantations and also of the poor people from the coastalcities of Brazil. Therefore, this work is an analysis of a group of slavery businessmenwhose production was primarily intended to supply the internal market. Thecharqueadas owners, who also had leather, tallow and grease as important products toexport, were the richest businessmen in southern Brazil. This thesis also studies thecattle markets, the expansion of these farmers, who used to seek farms in the border ofRio Grande do Sul and in the Uruguayan side, their participation in wars between Braziland Rio de la Plata Republics and their role in the long-distance maritime trade. Both inthe first and second half of the nineteenth century a group of families tended to gatherthe main material and immaterial resources in that socioeconomic context whichincreased their prestige and composed, with other families, the regional  or  provincialelite. This elite of charqueadas concentrated wealth, political power and social statusand therefore some of its members have also achieved national recognition. In thissense, by making this leap these few families had among their relatives someindividuals who could become brokers by connecting the local sphere with the outsideworld, both economically and politically. However,

     

     proslavery farmers of Pelotas, whowere recognized at the time as the aristocracy of tallow, could not resist to the end ofslavery, living in a peak period of just over two decades and then undergoing a final

    crisis in the 1880s. Therefore, this thesis seeks to provide a model for local and provincial elite analysis which can encourage new regional studies and help to betterunderstand the economic and political systems in the nineteenth century in Brazil.

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    AGRADECIMENTOS

    Começo agradecendo ao professor João Fragoso pela orientação precisa, pela

    constante disponibilidade, pelo apoio e pela autonomia concedida durante estes quatro

    anos de Doutorado.

    Sou grato aos professores Antônio Carlos Jucá de Sampaio e Carlos Gabriel

    Guimarães pelas sugestões, indicações de fontes documentais e bibliográficas e por

    compartilharem seus conhecimentos comigo ao longo destes anos, além de comporem a

    Banca de qualificação e de defesa da tese.

    Também agradeço às professoras Maria Fernanda Martins e Helen Osório por

    fazerem parte desta mesma Banca e serem importantes interlocutoras deste trabalho.

    Sou muito grato ao professor Nuno Gonçalo Monteiro pela orientação durante

    o estágio doutoral no Instituto de Ciências Sociais, na Universidade de Lisboa, pelo

    empréstimo de bibliografia, indicação de fontes e pelos preciosos conselhos.

    Agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro a esta tese ao longo da pesquisa e à

    CAPES por disponibilizar a minha permanência em Lisboa, no período do estágio

    doutoral.

     No ano de 2009, quando morei no Rio de Janeiro, fiz amigos para toda a vida.

    Maria Fernanda Coutinho, Letícia Guterrez, Rafaela Balsinhas, Moacir Maia, Geórgia

    Tavares, Joana Medrado, Daniela Carvalho, Adriana Setemmy, Carlos Eduardo Costa,

    Renata Moreira, Mariana Guglielmo, Francisco Aimara Ribeiro (grande “Chico”), entre

    muitos outros, foram grandes companheiros e ainda são, pois sei que vamos sempre nos

    reencontrar. Deste mesmo grupo, Glaydson Matta e Marcelino Lyra tornaram-se

    grandes amigos, dividindo comigo seus conhecimentos etílicos, historiográficos e

    futebolísticos. Também desta turma agradeço imensamente ao Pablo Porfírio por

    ensinar a todos, e em particular a mim, o significado da palavra “amigo” e por tornar a

    nossa morada no Rio, nos tempos da dona Diva, mais divertida! Naiara Damas me

    cativou desde a primeira vez que a conheci e, como se fosse minha irmã, a carrego no

    meu coração aonde quer que eu vá. Leandro Andrade e Siméia Lopes tornaram-se

     pessoas tão importantes na minha vida que foram meus companheiros até na travessia

    do Atlântico! Juntamente com Carlos Augusto Bastos, posso dizer que formamos uma

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     pequena família no Rio, em Lisboa e em qualquer lugar. Nada que eu escreva pode ser

    suficiente para dizer o quanto aprendi com todos vocês, o quanto me ajudaram nestes

    quatro anos e o quanto os estimo.

    Em Lisboa, conheci pessoas que tornaram minha estadia no Velho Mundo

    muito mais agradável. Yurgel e Mara Caldas tornaram-se grandes amigos. Juntamente

    com José Eudes Gomes, Cássia Silveira, Tiago Ribeiro, Sarita Motta, Daniela

    Gonçalves, Daniel “Zangado” Precioso, deixo o meu muito obrigado por aquela época.

    Durante estes quatro anos também pude compartilhar da companhia de outros

    grandes amigos como Marcelo Vianna, Camila Merg, Edison Garcia, Daniel Caon,

    Henrique Almeida, Mauro Messina, Ricardo de Lorenzo, Luísa Brasil, Eduardo

    Houston, Tales Albarello, entre outros. Letícia Marques, Carol Becker, Gislaine Borba,

    Marcos Luft também formaram outro grupo com quem vivenciei muitos momentos de

    alegria.

    Amigos e colegas estudiosos de Pelotas me ajudaram bastante compartilhando

    seus conhecimentos, indicando e emprestando bibliografia e fontes documentais, ou

    seja, auxiliaram um canoense a conhecer melhor a cidade das charqueadas. Sou muito

    grato aos historiadores Caiuá Al-Alam, Natália Pinto, Thiago Lemões, Cláudia

    Tomachewski, Róger Costa, Adhemar Lourenço, Mariana Gonçalves, Mateus Couto,Bruno Pessi e Dúnia Nunes. Entre os colegas historiadores e de outras áreas também

    sou muito grato a Fábio Pesavento, Manoela Pedroza, Leandro Oliveira, Márcio

    Kuniochi, Mariana Thompson Flores, Thales Pereira, Thiago Araújo, Vinícius Oliveira,

    José Iran Ribeiro, Paulo Moreira e, em especial, a Márcia Volkmer, Gabriel Berute e

    Carla Menegat, por me indicarem e passarem bibliografia e fontes documentais diversas

    durante esse tempo. Aos professores Roberto Guedes, Robert Slenes e Carla Almeida

    sou grato às sugestões e comentários realizados aos trabalhos que apresentei emdiferentes eventos acadêmicos. Aproveito este espaço para agradecer aos funcionários e

    estagiários de todos os arquivos e bibliotecas em que pesquisei.

    Da turma de Santa Maria, também agradeço a Luís Augusto Farinatti que além

    de me despertar a atenção para a importância dos charqueadores tornou-se grande amigo

    e companheiro de pesquisas, possibilitando a minha aproximação com um outro grupo

    de historiadores. Entre os mesmos devo fazer referência a Marcelo Matheus, vulgo

    “ português”, sujeito extraordinário, que compartilhou comigo os seus conhecimentos

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    sobre escravidão e que, juntamente com a Clarissa, me deu morada por vários dias em

    Copacabana. Também sou grato à amizade de Leandro “Castelhano” Fontella,

    companheiro na conquista do Bi-campeonato da Libertadores, em 2010, pelas trocas de

    textos e pela indicação de fontes. Do mesmo grupo de amigos agradeço a Max Ribeiro e

    André Corrêa pelos debates historiográficos embalados pelo bom e velho Heavy Metal.A este mesmo grupo de pesquisadores também sou grato pela companhia nas longas

    viagens em busca de documentos e arquivos no lado de cá da fronteira (e de vinho

     barato no outro lado do rio Uruguai). Do nosso grupo de pesquisa na UFSM, também

    sou grato aos jovens Leandro Oliveira e Amanda Both, sempre solicitos e interessados

    em nos ajudar e contribuir com a sua empolgação.

     Na Unicentro, em Guarapuava, fiz amigos que marcaram minha vida nesta reta

    final da tese. Além da gremistíssima Dani Carvalho, compartilhei da companhia de

    Tiago Bonato, Thiago Reisdorfer, Marcelo Silva, Milton Stanczyk, Francisco Ferreira,

    Luciana e Jó Klanovicz. Sempre irei lembrar dos poucos dias que passei com vocês.

    Também sou muito grato à dona Maria, ao Sr. Luís, à Camilinha, à Cristiane e

    à Vovó (que hoje também são a minha família) pelos domingos, mates, churrascos e por

    terem tornado minha vida em Santa Maria mais feliz.

    Aos meus irmãos Juliano e Jean agradeço pelo simples fato de fazerem parte daminha vida e sempre me apoiarem. À minha mãe Sílvia e à minha avó Edi não agradeço

    apenas pelo carinho e apoio que tem me dado nos últimos anos, mas também pelo

    exemplo de força no dia-a-dia, pela capacidade de estarem sempre felizes e pela

    simplicidade com que levam suas vidas...

    Por último agradeço à Tassiana que esteve ao meu lado sempre, nos invernos e

    verões, nos dias de trabalho e de descanso, deste lado do Atlântico e do outro também.

    Desde o início foi minha companheira nas bibliotecas e nos arquivos, me desviou da

    tese nas melhores horas e mesmo sem querer me ensinar, me ensinou muita coisa a

    respeito da vida. Sua companhia trouxe a calma e o equilíbrio que eu precisei para

    cumprir esta etapa acadêmica e me serviu de inspiração para tudo… Esta tese também

    tem um pouco de ti.

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    SUMÁRIO

    LISTA DE ABREVIATURAS .................................................................................. 11

    LISTA DE TABELAS............................................................................................... 12LISTA DE GRÁFICOS ............................................................................................ 14

    LISTA DE FIGURAS ............................................................................................... 15

    INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 16 

    CAPÍTULO 1 - A INSERÇÃO ECONÔMICA DAS CHARQUEADAS DEPELOTAS NO MERCADO INTERNO BRASILEIRO (1780-1835) ..................... 41

    1.1 - A DIVERSIFICAÇÃO DAS CULTURAS E O REVIGORAMENTO DAAGRO-EXPORTAÇÃO NO COLONIAL TARDIO ............................................... 47

    1.2 - A CRISE DAS OFICINAS DE CARNE-SECA DO NORDESTE E AENTRADA DO RIO GRANDE DO SUL NO RAMO DOS NEGÓCIOS................ 59

    CAPÍTULO 2 - A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS ESCRAVISTASEM PELOTAS E NO RIO DA PRATA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS EMERCANTIS ATLÂNTICAS .................................................................................. 73

    2.1 - O SEGREDO DAS CARNES : ESPECIALISTAS E ESTRANGEIROS NAS

    PRIMEIRAS FÁBRICAS DO EXTREMO SUL DA AMÉRICA ............................ 78

    2.2 - A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS PLATINOS E PELOTENSEA PARTIR DAS REDES INTRA-IMPERIAIS E TRANS-IMPERIAIS .................. 87

    CAPÍTULO 3 - UMA ALDEIA ESCRAVISTA: A PRIMEIRA GERAÇÃO DECHARQUEADORES E A SUA ELITE (1790-1835) ............................................. 106

    3.1 - UMA CIDADE NEGRA NO SUL DO BRASIL: TRÁFICO ATLÂNTICO,REDES MERCANTIS E A ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE NASPRIMEIRAS DÉCADAS DO OITOCENTOS....................................................... 113

    3.2 - UMA ELITE LOCAL NO MUNDO ATLÂNTICO: FAMÍLIAS E REDESMERCANTIS ENTRE PELOTAS E OS DEMAIS PORTOS DO BRASIL .......... 130 

    3.3 –  CAPITÃES, COMENDADORES E COMPADRES DE PARDOS: AORGANIZAÇÃO SOCIAL NO EM TORNO DAS PRIMEIRASCHARQUEADAS ................................................................................................. 135

     

    CAPÍTULO 4 - UMA CIDADE ATLÂNTICA: A POPULAÇÃO PELOTENSE,SUA ESTRATIFICAÇÃO SOCIOECONÔMICA E A IMIGRAÇÃO

    ESTRANGEIRA DURANTE O AUGE E A DECADÊNCIA DASCHARQUEADAS ESCRAVISTAS (1850-1890) ................................................... 154

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    4.1 - ESTRUTURA SOCIAL E ECONÔMICA DA SOCIEDADE PELOTENSEA PARTIR DA ANÁLISE DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM ...................... 155

    4.2 - UMA CIDADE ATLÂNTICA: PERFIL SOCIO-OCUPACIONAL DE UMESPAÇO URBANO REPLETO DE ESTRANGEIROS ........................................ 168

    4.3 - OS MUITOS DEGRAUS DA PIRÂMIDE : POR UMA ESTRATIFICAÇÃOSOCIAL E ECONÔMICA DA POPULAÇÃO PELOTENSE ............................... 181

    CAPÍTULO 5 - “A CONFUSÃO QUE, ENTRETANTO, É ORDEM”: ASUNIDADES PRODUTIVAS, O MUNDO DO TRABALHO NASCHARQUEADAS E O TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS ....... 192

    5.1 - POR DENTRO DA CHARQUEADA: AS ETAPAS DE PRODUÇÃO DOCHARQUE, DOS COUROS E DOS DEMAIS PRODUTOS ................................ 193

    5.2 - O PERFIL DOS TRABALHADORES CATIVOS E SUA DISTRIBUIÇÃO NAS UNIDADES PRODUTIVAS ........................................................................ 206

    5.3 - DAS CHARQUEADAS PARA OS CAFEZAIS? O TRÁFICO INTER-PROVINCIAL E A CONCENTRAÇÃO DE ESCRAVOS NA ELITECHARQUEADORA PELOTENSE ....................................................................... 222

    CAPÍTULO 6 - SENHOR E PATRÃO: OS CHARQUEADORES, AADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS E O MUNDO DO TRABALHO NASCHARQUEADAS ................................................................................................... 238

    6.1 - A CABEÇA DO SENHOR, AS MÃOS DO CAPATAZ : ASTRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADASESCRAVISTAS NA SEGUNDA METADE DO OITOCENTOS ......................... 241

    6.2 - APRENDENDO A SER SENHOR: A ADMINISTRAÇÃO DOSESCRAVOS NA PRIMEIRA GERAÇÃO DE CHARQUEADORES ................... 263

    CAPÍTULO 7 - OS MERCADOS DO GADO, A EXPANSÃO AGRÁRIA NAFRONTEIRA E A GUERRA COMO RECURSO ECONÔMICO ...................... 284

    7.1 - NA TRILHA DOS LATIFÚNDIOS : A EXPANSÃO AGRÁRIA RUMOÀ REGIÃO DA FRONTEIRA COM O URUGUAI .............................................. 288

    7.2 - PELAS MALHAS DO PARENTESCO: O MERCADO DO GADOPARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS ........................................................ 293

    7.3 - ENTRE DEPUTADOS E GENERAIS  OU DE COMO A GUERRATAMBÉM SE CONSTITUIU EM UM RECURSO ECONÔMICO PARA OSCHARQUEADORES DE PELOTAS .................................................................... 305

    7.4 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ANUNCIADA: A TABLADA

    PELOTENSE ........................................................................................................ 321

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    CAPÍTULO 8 - AS CHARQUEADAS, OS MERCADOS ATLÂNTICOSE OS SEUS INTERMEDIÁRIOS  ........................................................................ ... 326

    8.1 - EM “ BOCAS DESGRACIADAS ”: CHARQUEADORES, SALADEIRISTASE OS CIRCUÍTOS MERCANTIS ATLÂNTICOS DAS CARNES ....................... 327

    8.2 - PELAS “MARGENS” DO CAPITALISMO: OS MERCADOSATLÂNTICOS DOS COUROS E DO SAL .......................................................... 346

    8.3 - NO RASTRO DOS “ BROKERS ”: O FUNCIONAMENTO DOMERCADO EM PELOTAS E OS CHARQUEADORES NO ALTOCOMÉRCIO MARÍTIMO ..................................................................................... 353

    CAPÍTULO 9 - OS BARÕES DO CHARQUE : PERFIL E NÍVEIS DERIQUEZA, MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE E TRANSMISSÃODE PATRIMÔNIO ENTRE OS CHARQUEADORES ....................................... 372

    9.1 - ALGUNS MUITO RICOS, OUTROS NEM TANTO: HIERARQUIASDE RIQUEZA E INVESTIMENTOS ECONÔMICOS ENTRE OSCHARQUEADORES DE PELOTAS .................................................................... 372

    9.2 - NOVILHOS QUE VIRAM DINHEIRO: OS RENDIMENTOS DAEMPRESA CHARQUEADORA ESCRAVISTA .................................................. 388

    9.3 - “O MAIOR LEGADO QUE LHES DEIXO”: A TRANSMISSÃO DEPATRIMÔNIO ENTRE OS CHARQUEADORES ............................................... 399

    9.4 - “ENGOLIDOS SEM PIEDADE”: OS CHARQUEADORES E AMOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE .............................................................. 412

    CAPÍTULO 10 - “A ARISTOCRACIA DO SEBO”: PODER POLÍTICO,NOBREZA, EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA NAS FAMÍLIAS DAELITE CHARQUEADORA PELOTENSE ........................................................... 420

    10.1 - EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA ENTRE AS FAMÍLIASCHARQUEADORAS DE PELOTAS ................................................................... 422 

    10.2 –  GOVERNANDO A SOCIEDADE : OS CHARQUEADORES NA ELITEPOLÍTICA LOCAL E REGIONAL ...................................................................... 435

    10.3 - O IMPÉRIO DOS MEDIADORES: UMA CONTRIBUIÇÃO PARAO ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DO ESTADO IMPERIAL E DOFUNCIONAMENTO DO SISTEMA POLÍTICO MONÁRQUICO ...................... 448

    CONCLUSÃO ........................................................................................................ 468

    ANEXOS ................................................................................................................ 478

    FONTES PRIMÁRIAS ........................................................................................... 480

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 483

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    ABP  –  Arquivo do Bispado de Pelotas

    ACRJ  –  Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro

    AHRS  –  Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

    AHI  –  Arquivo Histórico do Itamarati

    AHU  –  Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)

    ANRJ  –  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

    ANTT  –  Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa)

    APERS  –  Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

    BNRJ  –  Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

    BPP  –  Biblioteca Pública Pelotense

    CV  –  Coleção Varela

    MCSHJC  –  Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa

    MJN – 

     Museu João Nunes (São Gabriel)

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1.1  –  População livre e escrava por capitanias (1819) ..................................... 62

    Tabela 3.1  –  Estatísticas populacionais em Pelotas (1814  –  1858) ............................ 114

    Tabela 3.2 - Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em

    dezembro de 1833 .................................................................................................... 116

    Tabela 3.3  –  Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em

    dezembro de 1833 (População dividida por nacionalidade, cor, condição jurídica,

    freguesia, distritos e fogos) ...................................................................................... 117

    Tabela 3.4  –  Comparação da população escrava, razão de africanidade e sexo

    de Pelotas com outras regiões de plantations brasileiras (1829-1840). ....................... 122

    Tabela 3.5  –  Estrutura de posse de escravos em Pelotas a partir dos inventários

     post-mortem (1800-1835) .......................................................................................... 115

    Tabela 4.1 - Distribuição das riquezas inventariadas por faixas de fortuna

    (1850-1890) (em libras esterlinas) ............................................................................ 157

    Tabela 4.2  –  Perfil do patrimônio dos inventariados em Pelotas (1850-1890) (%) .... 161

    Tabela 4.3  –  Concentração dos rebanhos vacuns nos inventários e posse de

    fazendas fora de Pelotas (157) ................................................................................... 165

    Tabela 4.4  –  Concentração dos plantéis de escravos entre os inventariados

    (1850-1885) ............................................................................................................. 167

    Tabela 4.5  –  Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras

    esterlinas (%) ............................................................................................................ 185

    Tabela 5.1  –  Número de escravos e razão de sexo por período (1831-1885) .............. 217

    Tabela 5.2  –  Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885) .......... 218

    Tabela 5.3  –  Africanidade e sexo nos plantéis dos charqueadores (1831-1885) .......... 219

    Tabela 5.4  –  Africanidade e sexo entre escravos adultos e idosos (1831-1885) .......... 220

    Tabela 5.5  –  Concentração de riqueza entre os charqueadores de Pelotas a

     partir dos inventários post-mortem, em libras esterlinas (%) ...................................... 225

    Tabela 5.6  –  Escravos negociados por escritura em Pelotas (1850-1884) ................... 227

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    Tabela 7.1  –  Hierarquia de fortunas, rebanhos vacuns, títulos de nobreza e altos

    cargos políticos a partir da análise dos inventários de 51 charqueadores  –  

    (1845-1900)/ em libras esterlinas e percentuais (%) .................................................. 303

    Tabela 8.1 - Gado bovino abatido nas charqueadas e saladeros da América do Sul

    (1857-1862) .............................................................................................................. 335

    Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas)

     por períodos (359) ..................................................................................................... 373

    Tabela 9.2 - Faixas de fortuna em libras esterlinas (1810-1900) ............................... 377

    Tabela 9.3  –  Composição do patrimônio dos charqueadores com fortunas

    acima de 50 mil libras (%) ....................................................................................... 378

    Tabela 9.4  –  Estimativa média de rendimentos em uma safra com abate de 20 mil

    novilhos (década de 1860) ........................................................................................ 396

    Tabela 9.5  –  Relação entre riqueza, posse de estâncias e longevidade da família

    nos negócios com o charque (1810-1900) ................................................................. 405

    Tabela 10.1  –  Relação entre Riqueza, Nobiliarquia, Alta política e Educação

    entre as famílias charqueadoras de Pelotas (1845-1900) - em libras esterlinas .......... 441

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    LISTA DE GRÁFICOS E DIAGRAMAS

    Gráfico 3.1  –  Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas

    (1790-1835) .............................................................................................................. 138

    Gráfico 3.2  –  Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas com as

    classes subalternas a partir dos registros de batismo de livres (1812-1825) ................ 146

    Gráfico 4.1  –  Distribuição do número de inventários em urbanos e rurais Pelotas

    (1850-1890) .............................................................................................................. 159

    Gráfico 4.2  –  Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885)  –  em mil réis ....... 166

    Gráfico 5.1  –  Preço dos escravos adultos (de 15 a 50 anos) e sadios nas charqueadas

    de Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas) ........................................................... 216

    Gráfico 6.1  –  Processos criminais envolvendo escravos de charqueadores pelotenses

    (1830-1888) .............................................................................................................. 254

    Gráfico 7.1  –  Número de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890) …..285

    Gráfico 7.2 - Presença de propriedades rurais pertencentes a charqueadores de Pelotas

    nos inventários e nos livros de notas (1820-1900) ..................................................... 291

    Gráfico 8.1  –  Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890

    (em arrobas) .............................................................................................................. 328

    Gráfico 8.2 - Preço da arroba de charque exportado em réis ($) ................................. 334

    Gráfico 8.3  –  Charque platino e rio-grandense comprados pelo Rio de Janeiro e os

    totais exportados pelo Rio Grande do Sul (1850-1886)  –  (em toneladas) ................... 343

    Gráfico 8.4  –  Unidades de couro e arrobas de charque exportadas pelo Rio Grande

    do Sul (1845-1889) ................................................................................................... 347

    Gráfico 8.5  –  Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) .......................... 348

    Diagrama 8.1  –   Vínculos de parentesco entre os 12 charqueadores mais

    ricos de Pelotas (1850-1900) ..................................................................................... 368

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1  –  Localização de Pelotas no espaço fronteiriço do cone sul americano

    (século XIX) .............................................................................................................. 19 

    Figura 3.1  –  Sesmaria do Monte Bonito e Sesmaria de Pelotas

    (início do século XIX) .............................................................................................. 109 

    Figura 4.1  –  Mapa da Província do Rio Grande do Sul (1875) .................................. 163  

    Figura 5.1 - Abate em campo aberto ......................................................................... 198 

    Figura 5.2 - Abate na mangueira realizado pelo capataz ........................................... 198 

    Figura 5.3 - Escravos carregando a rês para a cancha ............................................... 199 

    Figura 5.4 - Empilhamento das mantas de charque nos saladeros platinos ................ 199 

    Figura 5.5 - Mantas de charque nos varais (século XX) ............................................ 199  

    Figura 5.6 - Processo de salgamento dos couros nos galpões de um saladero

    (século XIX) ............................................................................................................ 200 

    Figura 5.7 - Representação artística de uma charqueada em Pelotas (1825)

     por Jean Baptiste Debret .......................................................................................... 200 

    Figura 5.8 - Ambiente de trabalho em um saladero platino no século XIX ................ 200 

    Figura 7.1  –  Regiões alvo dos investimentos realizados pelos charqueadores em

    estâncias e campos de criação fora de Pelotas (1810-1900) ....................................... 292

    Figura 8.1  –  Litoral sul e fronteira fluvial entre Brasil e Uruguai ............................... 331  

    Figura 11  –  Charqueadas em funcionamento no Rio Grande do Sul (1920) ............... 469  

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    INTRODUÇÃO

     No dia 30 de outubro de 1860, o charqueador Domingos José de Almeida escreveu ao

    tenente-coronel Manuel Antunes da Porciúncula lamentando a morte do amigo Antônio

    Vicente da Fontoura  –   chefe do Partido Liberal em Cachoeira, no Rio Grande do Sul.

    Fontoura havia sido assassinado durante as eleições gerais daquele mesmo ano, num processo

    eleitoral que causou a morte de muitos outros votantes no restante do Brasil. 1  Num tom

    irônico, Domingos definia o que havia ocasionado tantos crimes:

     Nas províncias do Norte jorrou o sangue com profusão, e nada menos era de

    esperar-se com a muito bem pensada reforma eleitoral, que nulificando influênciaslegítimas, entregou esse tão melindroso assunto à polícia e à Guarda Nacional paracriar caciquinhos locais, dividir e o Governo audaz nomear comissários ad hoc com pomposo título de representantes da Nação: tudo corre as mil maravilhas.2 

    A Lei eleitoral de 1855, também conhecida como a “lei dos círculos”,  foi responsável

     por implementar o voto distrital, eliminando o antigo sistema de candidatos em lista, o que

    favoreceu, assim, a eleição de líderes paroquiais em detrimento de indivíduos com influência

     política de âmbito mais regional.3 No entanto, para Domingos, os caciques locais que agora

     possuíam mais chances de se elegerem deveriam reservar-se ao seu espaço de atuação local e

    não se envolver em assuntos reservados às “influências legítimas” da província. Domingos já

    havia sido deputado provincial em 1835. Chefe liberal em Pelotas, a leitura de sua

    correspondência revela que ele mantinha profundo contato com outros deputados provinciais

    e gerais, além dos presidentes de província, demonstrando que era um líder político conhecido

    e influente.4 Numa carta escrita a outro amigo, em setembro de 1859, Domingos rememorava

    1 FREITAS, Bruno C. N. Pedras no Telhado: Política e Sociedade nas eleições distritais de 1860. In: Anais doXXV Encontro Nacional de História. Fortaleza: Anpuh, 2009. Ver também BARBOSA, Silvana.  A política progressista: Parlamento, sistema representativo e partidos nos anos 1860. In: CARVALHO, José Murilo; NEVES, Lúcia M. B. Pereira das. Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 293-324.2  Carta de Domingos J. de Almeida para Manuel Antunes da Porciúncula, 30.10.1860 ( Anais do ArquivoHistórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, 1978, CV-751). Grifos meus.3 De fato, grandes políticos foram derrubados de suas posições de prestígio ao perderem as eleições nos seusrespectivos distritos para líderes locais sem grande expressão. Em 1860, uma nova reforma eleitoral diminuiu onúmero de distritos criando círculos eleitorais com três deputados ao invés de apenas um (CARVALHO, JoséMurilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política Imperial. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 176-180).4

     A coleção de cartas (pertencentes à Coleção Varela) foi publicada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande doSul e reúne missivas escritas entre as décadas de 1830 e 1860. A grande maioria delas abarca o período daRevolta Farroupilha (1835-1845), quando Domingos ocupou importantes cargos políticos na República Rio-grandense (Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, 1978).

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    o seu apoio à Independência “que com penosos sacrifícios ajudei a conquistar em 1822 para

    nossa Pátria”.5 Portanto, na lógica de Domingos, quando o Império quisesse negociar o apoio

    das elites no sul do país para a realização de algum projeto era a homens como ele que deveria

    se dirigir e não às notabilidades de aldeia.

    Mulato e filho de moleiros, Domingos era natural de Diamantina, em Minas Gerais.6 

    Residindo na Corte, partiu para o Rio Grande do Sul com o objetivo de comprar uma tropa de

    mulas e vendê-la nas feiras de Sorocaba. Contudo, conforme ele próprio, acabou gostando da

    nova terra e decidiu estabelecer-se em Pelotas.7 Comerciante ativo, Domingos logo contraiu

    matrimônio com Bernardina Barcellos, moça pertencente a uma das famílias mais ricas e

     poderosas de Pelotas e que era proprietária de muitas charqueadas. Não demorou muito o

     próprio Domingos arranchou-se nas terras do sogro e ergueu a sua própria fábrica de carne-

    seca (charque). Concentrando comendas honoríficas e patentes de capitão de ordenanças, os

    laços parentais com os Rodrigues Barcellos lhe ofereceram um prestígio social e político

    enorme.8 Na nova ordem imperial, esta família ainda teve 3 deputados provinciais, 1 deputado

    geral e 2 presidentes de província.

    Portanto, a trajetória de Domingos era a de um migrante de modestas posses que,

    depois de inserir-se na elite local por meio de um bom casamento e pelos seus negócios, não

    se via mais como os outros “caciquinhos locais” que insistiam em querer influir na vida

     política e econômica regional, representando-a na Corte. Usando uma expressão de Carlos

    Bacellar, pode-se dizer que Domingos, ao agir desta forma, começava a adquirir “consciência

    de elite”.9 Mas não era de qualquer elite. Era de uma elite que sentia-se como legítima em

    representar a província fora dela. Uma elite que ultrapassava a simples visão de mundo

    localista. Em suma, era uma elite regional.10  Mas Domingos e seus parentes não estavam

    5 Carta de Domingos para Bernardo Pires. Pelotas 17.09.1859 (Anais do AHRS, v. 3, 1978, CV-673).6 MARQUES, Letícia R.  Domingos José de Almeida e José Mariano de Matos: A questão dos negros e mulatosna Revolução Farroupilha (1835-1845). Anais do XXVI Encontro Nacional de História . São Paulo, USP, p.1-15. Na realidade não existe um consenso entre os autores a respeito da cor da pele de Domingos. Paraconsiderações sobre a mesma questão e uma posição mais inclinada a considerar que o charqueador era mulato,ver o mencionado texto de MARQUES, Letícia. Op.cit. 7 Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão. Pelotas, 07.12.1859. (Anaisdo AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, CV-686).8 MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José deAlmeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX).   Dissertação deMestrado em História, UFRGS, 2009.9

     BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhoresde engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997, p. 177-186.10 DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado Nacional. In: In: JANCSÓ, István. Brasil:a construção do Estado e da Nação.   São Paulo/ Ijuí: Hucitec/ Unijuí, 2003; VARGAS, Jonas M. Entre a

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    sozinhos. Neste sentido, os indivíduos e famílias que compartilhavam de uma postura

    semelhante viam-se como os mais capazes em intermediar as relações entre o governo central

    e a província, incluindo no interior desta última os inúmeros chefes locais. Contudo, tais

    negociações eram bastante complexas e estavam permeadas por uma relação de cooperação e

    conflito, uma vez que os líderes provinciais (elite regional) precisavam dos chefes de aldeia

    (elites locais) para fortalecer suas redes sociais e clientelares e vencer as eleições para os seus

     partidos políticos.11 

    O sentimento de superioridade compartilhado por Domingos, pelos Rodrigues

    Barcellos e outros charqueadores, comerciantes e estancieiros que compunham a elite regional

    não decorria apenas da sua posição política e de seu prestígio social. A “consciência de elite”

    também era consequência da riqueza alcançada pelos mesmos, entre os quais estavam os

    charqueadores pelotenses –  objeto principal desta tese. Estes empresários escravistas foram os

     proprietários mais ricos do Rio Grande do Sul no século XIX. Concentrando milhares de

    cativos e abatendo milhões de bovinos, a cidade de Pelotas destacou-se como o grande

    complexo charqueador do Império do Brasil (Mapa 1). O charque e os couros foram os

     principais produtos da pauta das exportações rio-grandenses durante quase todo o século XIX.

    O primeiro deles foi fundamental na alimentação dos escravos das  plantations  brasileiras,

    integrando os mercados do sul com os do sudeste e nordeste do Brasil, além de incluir

    menores remessas para Cuba e Lisboa. O segundo foi um artigo demandado em larga escala

     pelas indústrias europeias e norte-americanas e conectava o Rio Grande mais fortemente ao

    mercado internacional.

     No Rio Grande do Sul, as primeiras charqueadas instaladas nos fins do século XVIII

    surgiram da necessidade de suprir estes novos mercados. Contudo, ela inseria-se numa

    conjuntura muito mais ampla e que caracterizou a economia atlântica durante o período

    colonial tardio.12 A notável ampliação do número de  plantations açucareiras tanto no sudeste

    e no nordeste brasileiro, quanto no Caribe, provocou a entrada de centenas de milhares de

    escravos africanos nas mencionadas plantações criando uma elevada demanda por alimentos.

     Neste contexto, não apenas Pelotas como também Montevideu e Buenos Aires, destacaram-se

    paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul.  SantaMaria: UFSM/Anpuh-RS, 2010.11  GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX.   Rio de Janeiro: UFRJ, 1997;VARGAS, Jonas. Op. cit.12

     Para uma análise da economia rio-grandense neste período ver OSÓRIO, Helen. O império português no sulda fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Uma outra interpretação arespeito do mesmo período pode ser vista em MENZ, Maximiliano. Entre impérios: formação do Rio Grandena crise do sistema colonial português (1777-1822). São Paulo: Alameda, 2009. 

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    É neste sentido que Pelotas inseria-se no  tasajo trail atlântico estudado por Andrew

    Sluyter.15  Para o autor, esta rota mercantil de charque que ligava o Rio da Prata à Cuba

    conectava duas regiões e duas atividades produtivas na qual a escravidão era fundamental,

    criando um circuito mercantil lucrativo no qual a mercadoria principal, o tasajo, era fabricado

    “por” e “para” trabalhadores cativos. Além disso, Mandelblatt insistiu para que se deixe de

    ver os escravos no mundo atlântico somente como trabalhadores e como mercadorias,

     passando a pensá-los também como consumidores.16  Seguindo estas premissas, pode-se

     perceber a ligação do charque com a manutenção do tráfico atlântico e da escravidão a partir

    de uma tripla relação. Ao mesmo tempo em que a mão de obra cativa foi essencial para a

    montagem das charqueadas e saladeros no Rio da Prata e em Pelotas (aumentando a demanda

     por escravos na região), estas fábricas abasteciam as plantations atlânticas com um alimentorico em proteínas e de baixo preço. Além disso, o produto também acompanhava as

    tripulações dos negreiros que cruzavam o Atlântico garantindo os suprimentos dos escravos

    no retorno de suas viagens. Neste sentido, Sluyter afirmou que o tasajo trail   ajudou a

    sustentar os mais proeminentes fluxos mercantis de açúcar e escravos que definiram a própria

    compreensão do mundo atlântico.17 

    Em Pelotas, as charqueadas foram fruto de investimentos de comerciantes que viram

    uma oportunidade de obter lucros com a expansão deste comércio durante o colonial tardio.

    Além do mais, a crise da produção de charque no nordeste da América portuguesa,

    ocasionada pelas duras secas nos anos 1770 e 1790, abria um espaço no mercado para novos

    investidores, como demonstrou Helen Osório em trabalho pioneiro.18 Portanto, ao contrário

    dos comerciantes de grosso trato estudados por João Fragoso, que investiram sua riqueza em

    terras e escravos tornando-se senhores de engenho no agro fluminense19, o capital aplicado

    nas charqueadas não possuía interesses voltados para a busca de prestígio social, mas sim, o

    lucro oriundo das atividades mercantis. Nesta conjuntura, Pelotas atraiu comerciantes de

    15 SLUYTER, Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1,2010, p. 98-120. Como será visto ao longo desta tese, Pelotas foi o principal polo charqueador da província, oque não significa que o charque não fosse fabricado em outras localidades do Rio Grande do Sul. Se antes daGuerra dos Farrapos as charqueadas de Porto Alegre e das margens do Rio Jacuí deviam fabricar pouco mais de25% do charque rio-grandense, é provável que nos anos 1860 e 1870 Pelotas respondesse por quase 90% docharque fabricado na província. Pa uma análise das outras regiões charqueadoras ver MARQUES, Alvarino daFontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987.16 MANDELBLATT, Bertie. A Transatlantic Commodity: Irish Salt Beef in the French Atlantic World. HistoryWorkshop Journal, n. 63, 2007, p. 21.17

     SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 101.18 OSÓRIO, Helen. Op. cit.19 FRAGOSO, João L. R.. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil doRio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 143-177.

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    diversos lugares e as inversões de capital nestas fábricas exigiu a entrada de centenas de

    escravos africanos, tornando-a uma cidade negra. Num censo de 1833, por exemplo, 51% de

    sua população era escrava (mais de 2/3 deles eram africanos), sendo que somente 36,1% dos

    seus habitantes foram classificados como brancos.20 

    Após a década de 1820, quando a experiência com a triticultura açoriana entrou em

    declínio, a hegemonia dos pecuaristas e charqueadores consolidou-se de vez. Neste contexto,

    os empresários pelotenses constituíram-se nos principais produtores de alimentos do sul do

    Império. Segundo João Fragoso, os complexos agropecuários voltados para o abastecimento

    do mercado interno, como as charqueadas no Sul, as lavouras de subsistência no Rio de

    Janeiro e São Paulo e a produção agropecuária em Minas, formavam um “mosaico de formas

    de produção não-capitalistas”, cuja significativa capacidade de acumulação endógena, tornava

    a economia destas regiões fundamentais na reprodução das  plantations e do próprio sistema

    escravista agro-exportador. O abastecimento do Rio de Janeiro “implicava a criação de uma

    ampla rede intracolonial” na qual o Rio Grande inseria-se e “que vem a negar a ideia de

    autarquia da  plantation”.21  Além do sudeste, o charque pelotense também abastecia a

    escravaria e a população pobre de Pernambuco e Bahia  –   regiões que, somadas, perfaziam

    mais da metade das exportações rio-grandenses ao longo de todo o período.

    Portanto, este circuito comercial fez surgir distintas elites mercantis e agrárias nas

    diferentes regiões do Brasil. No Rio Grande do Sul, junto aos comerciantes de grosso trato e

    aos estancieiros da região da campanha, os charqueadores pelotenses ocuparam o topo da

    hierarquia social.22  No entanto, se comparado ao número de criadores de gado e ao de

    comerciantes existentes na província, os charqueadores pelotenses formavam um diminuto

    grupo. Ao longo do século XIX, o número de charqueadas a funcionar em Pelotas, não ao

    mesmo tempo, foi de 43 estabelecimentos.23 Se em 1822, havia 22 charqueadas no município,

    em 1850, este número atingia a casa dos 30, em 1873, chegava a 35 e em 1880, 38. As 11

    charqueadas de 1900 indicam que o declínio do setor coincidiu com o fim da escravidão e a

    queda da monarquia  –  cujos charqueadores, nesta época uma aristocracia nobilitada e que,

    20  Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833.  Biblioteca Públicade Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém literário, 1994, p. 98).21 FRAGOSO, João L. R.. Op. cit. 1998, p. 143-177.22 Sobre os comerciantes ver BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro:negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011.

    Sobre os estancieiros ver FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedadeagrária na fronteira meridional do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010. Para ambos os grupos no períodocolonial ver OSÓRIO, Helen. Op. cit.23 MARQUES, Alvarino da Fontoura. Op. cit., p. 99-102.

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    como se verá, concentrava significativo poder político e econômico, também funcionaram

    como uma espécie de sustentáculo do Império luso-brasileiro na fronteira sul.

    A valorização do estudo das atividades econômicas não exportadoras teve importantes

    contribuições nas pesquisas de Maria Yedda Linhares e Ciro Flamarion Cardoso.24  Ao

    criticarem a “visão plantacionista” da história brasileira, os autores estimularam uma nova

    geração de pesquisadores que se voltaram para a análise das estruturas econômicas internas

    daquela sociedade. Neste sentido, Linhares defendeu o desenvolvimento de um programa de

     pesquisa “com um aprofundamento sistemático das análises demográficas e a multiplicação

    dos levantamentos regionalizados, alinhando-se, para tanto, fragmentos de fontes e

    ‘inventando’ outras”. Tratava-se, portanto, de “reconstruir a história agrária  –  como história

    econômica e social do mundo rural, sintetizada nas suas diferentes paisagens agrárias”.25 

    Seguindo esta linha de orientação, nos anos 1980 e 1990, novos trabalhos vieram

    contribuir para um melhor conhecimento da paisagem agrária brasileira, da escravidão, da

    economia de abastecimento e do próprio mercado interno tanto no século XVIII quanto no

    XIX.26  Utilizando-se de uma metodologia serial e assentados sobre vasta gama de fontes

     primárias manuscritas, estes estudos inspiravam-se na história regional francesa, que tinham

    como expoentes Ernest Labrousse, Pierre Goubert e Emmanuel Le Roy Ladurie, por

    exemplo.27  Tais  estudos  demonstraram, entre outros aspectos, a importância das produções

    destinadas ao mercado interno, a disseminação da escravidão para muito além da

    24 Ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História do Abastecimento: uma problemática em questão(1530-1918). Brasília: Binagre, 1979; LINHARES, Maria Yedda. Subsistência e sistemas agrários na Colônia:uma discussão. In: Estudos Econômicos. N. 13, 1983, p. 745-762; CARDOSO, Ciro F. O trabalho na Colônia. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil.  Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 69-88.CARDOSO, Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.25 LINHARES, Maria Yedda.  A pecuária e a produção de alimentos na colônia. In: SZMRECSÁNYI, Tamás(Org.). História Econômica do Período Colonial. São Paulo: ABPHE/FAPESP, 1996, p.112.26

     Como, por exemplo, FRAGOSO, João. Op. cit.; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios dacarestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880). Rio deJaneiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992; MOTTA, Márcia M. M.. Pelas Bandas d’Além: fronteirafechada e arrendatários-escravistas em uma região policultora (1800-1888).   Niterói: ICHF/UFF, 1989;SAMPAIO, Antônio C. Jucá. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução econômica naprodução de alimentos (1850-1888). Rio de Janeiro: UFF, Dissertação de Mestrado, 1994; CASTRO, Hebe M.da C. Mattos de. A Margem da História: homens livres pobres e pequena produção na crise do trabalhoescravo.  Niterói: ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1985; FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho emCampos dos Goitacazes (1850-1920).  Niterói: ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1986;   BARICKMAN,Bert. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860.   Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2003.27  Nos anos 1970, o diálogo com a historiografia francesa também teve importante contribuição na área dademografia histórica, o que favoreceu um maior conhecimento das estruturas econômicas internas. Ver, por

    exemplo, MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo:Pioneira/USP, 1973. Para um balanço historiográfico ver BACELLAR, Carlos; BASSANEZI, Maria Sílvia;SCOTT, Ana Sílvia V. Quarenta anos de demografia histórica. Revista Brasileira de Estudos Populacionais,São Paulo, v. 22, n. 2, jul./ dez., 2005, p. 339-350.

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    agroexportação, a diversidade dos grupos sociais existentes em espaços fora das plantations, a

    existência de uma elite de comerciantes de grosso trato no Rio de Janeiro e a reiteração de

    uma hierarquia social excludente nas mais distintas realidades históricas. Pode-se dizer,

     portanto, que houve um notável redimensionamento da importância do mercado interno, do

     papel das variadas realidades regionais, de suas produções e relações sociais para o

    entendimento da realidade sócio-econômica brasileira. 

    Desde que estas pesquisas tiveram início nos anos 1970, não existe um trabalho que

    tenha investigado de maneira mais aprofundada o papel dos charqueadores e de suas famílias

    dentro deste circuito mercantil de acumulação endógena e das transformações sofridas por

    esta elite ao longo do oitocentos. Para além dos conhecidos relatos de viajantes e das histórias

    da cidade de Pelotas escritas na passagem do século XIX para o XX, a obra de Fernando

    Henrique Cardoso, anterior às mencionadas pesquisas indicadas anteriormente, surgiu como

    uma primeira incursão mais sistemática ao estudo da sociedade e da economia da província,

    apresentando uma atenção especial às charqueadas pelotenses.28 A principal contribuição do

    autor foi demonstrar o equívoco das interpretações até então vigentes sobre a pouca

    importância da escravidão na sociedade rio-grandense, assim como a ideia de “democracia

    racial” que vigoraria nas relações sociais entre senhores e cativos . Inaugurando um debate

    acadêmico, sob a inspiração dos relatos de Louis Couty (1881), Cardoso defendeu que as

    charqueadas entraram em crise devido à irracionalidade econômica dos charqueadores que

    mantiveram o trabalho escravo em seus estabelecimentos enquanto os saladeiristas platinos se

    utilizavam de trabalhadores assalariados. Desta forma, a análise da escravidão nas

    charqueadas serviu para sustentar parte de suas teses.

    A influência do trabalho de Cardoso entre os historiadores rio-grandenses das décadas

    de 1970 e 1980 foi marcante, tendo o sociólogo, por meio de seu livro, pautado os interesses

    de pesquisa e o próprio debate nas décadas seguintes. Dialogando com o autor, Berenice

    Corsetti deu prosseguimento aos estudos referentes à produção do charque. Utilizando fontes

    documentais inovadoras para a época, como os inventários  post-mortem, Corsetti buscou

    relativizar algumas teses de Cardoso e comprovar outras empiricamente. Sua principal

    contribuição foi demonstrar que, ao contrário do que Cardoso defendia, os charqueadores

    haviam investido capitais em inovações técnicas e que também realizavam uma divisão do

    28 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedadeescravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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    trabalho escravo no interior das fábricas.29 No entanto, a pesquisa de Corsetti diz mais sobre o

    comércio e a produção do charque do que sobre os próprios charqueadores, que interesses os

    dividiam e que tipo de estratégias sociais os mesmos realizavam diante da instabilidade

    econômica que periodicamente afetava o setor.

    Contemporânea a Corsetti, a obra de Mário Maestri Filho dialoga menos com Cardoso,

    mas mantém a mesma preocupação voltada em demonstrar a significativa importância do

    trabalho escravo na economia rio-grandense. Pesquisando principalmente fontes impressas,

    Maestri busca investigar os diferentes tipos de resistência escrava e as violências a que os

    mesmos estavam sujeitos no trabalho das charqueadas.30  Nos anos 1990, o autor orientou

    outras importantes pesquisas que buscaram aprofundar o uso da mão de obra cativa nos

    mesmos estabelecimentos. Destes trabalhos, o de Ester Gutierrez foi o que abrangeu

    interesses mais amplos. Seguindo métodos e fontes documentais utilizados por Corsetti, a

    autora reconstituiu o complexo espacial e a distribuição geográfica das charqueadas, buscando

    traçar uma história dos estabelecimentos ao longo do período, assim como da importância da

    escravidão nos mesmos.31 Mais recentemente, Denise Ognibeni deu continuidade à pesquisa

    sobre as charqueadas, dedicando um espaço para analisar os charqueadores enquanto grupo

    social, observando seu cotidiano, o mundo do trabalho e escapando de uma análise exclusiva

    do processo de produção e comercialização do charque.32 

    29  CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.  Niterói: ICHF/UFF,Dissertação de Mestrado, 1983. Para uma crítica as teses de Fernando Henrique Cardoso e a continuidade nodebate sobre a racionalidade e a irracionalidade econômica dos charqueadores, ver MONASTÉRIO, LeonardoM.  FHC errou? A economia da escravidão no Brasil meridional.  In: História e Economia RevistaInterdisciplinar da Brazilian Business School. São Paulo: Terra Comunicação Editorial, v.1, n. 1, 2005, p. 13-28.30 MAESTRI FILHO, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismogaúcho. Porto Alegre: EST, 1984.31

     GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.  Pelotas:UFPel, 2001. Na mesma época, ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995. Na mesma linha teórico-metodológica,Jorge Euzébio Assunção aprofundou as questões levantadas por Maestri, elaborando um perfil social dos cativos pelotenses a partir dos inventários  post-mortem. Nos últimos anos, a escravidão em Pelotas, mas nãoespecificamente nas charqueadas pelotenses, vem sendo objeto de estudo de alguns historiadores. Ver, porexemplo, COUTO, Mateus de Oliveira. A pia e a cruz: a demografia dos trabalhadores escravizados emHerval e Pelotas (1840-1859).  Passo Fundo: UPF, 2011; PINTO, Natália Garcia. A benção compadre:experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850).  Dissertação de Mestrado.Unisinos, 2012; PESSI, Bruno. Entre o fim do tráfico e a abolição: a manutenção da escravidão em Pelotas,RS, na segunda metade do século XIX (1850-1884). Dissertação de mestrado em História, USP, 2012.32 OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento.  PortoAlegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005. Mesmo que não tenha as charqueadas como objeto específico

    de trabalho, não é possível falar sobre o tema sem citar a pesquisa de Helen Osório. Sua contribuição para a presente tese foi identificar que boa parte das charqueadas instaladas na passagem do século XVIII para o XIXfoi financiada com o capital mercantil e que muitos comerciantes também exerciam a atividade charqueadora(OSÓRIO, Helen. Op. cit.).

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    Portanto, a abordagem oferecida nesta tese a respeito dos charqueadores é um tanto

    distinta das mencionadas pesquisas. Mais do que uma análise da escravidão nas charqueadas e

    do processo de produção e comércio do charque, objetivei realizar uma história social das

    charqueadas, dos charqueadores e de suas famílias ao longo do século XIX, estudando as suas

     práticas socioeconômicas, políticas e culturais, além de buscar definir os fatores de

    hierarquização no interior do grupo e os critérios de distinção que colocavam um conjunto de

    famílias numa posição elevada diante das demais (o que as qualificava para tornarem-se

    membros das elites regionais, ultrapassando o espaço local de influência). Para a realização

    deste trabalho incorporei novas metodologias e fontes documentais, inserindo Pelotas num

    espaço socioeconômico muito mais amplo. Além disso, os problemas de pesquisa que

    nortearam esta tese foram outros e dizem mais respeito a uma história das elites que, mesmo periféricas, fizeram a economia atlântica mover-se ao longo do oitocentos, do que uma análise

    autocentrada na sociedade e economia rio-grandense. A tese também pode ser lida como um

    capítulo da história internacional da produção e do comércio das carnes preparadas e a

    diversidade de elites proprietárias que podiam se constituir no interior destes sistemas

    econômicos atlânticos. Tendo em vista que os grandes estudiosos do tema praticamente não

    fazem referência ao complexo charqueador pelotense, esta tese também busca inseri-lo no

    interior do mencionado sistema.33

     

    Como parti de problemas de pesquisa distintos dos historiadores que estudaram as

    charqueadas em Pelotas, estive longe de me preocupar em dar prosseguimento ao debate

    acerca da “racionalidade x irracionalidade” no uso do trabalho escravo nos estabelecimentos ,

    uma vez que a lucratividade das empresas escravistas no oitocentos já está mais do que aceita

    na historiografia internacional.34 Neste sentido, não considerei o uso da escravidão africana

    como o pecado original das charqueadas e a sua extinção como uma explicação exclusiva de

    sua crise final. Desta forma, esta tese não pretendeu continuar investigando a história das

    33 SLUYTER, Andrew. Op. cit.; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.; RIXSON, Derrick. The history of meattrading.  Nottingham: University Press, 2000; PERREN, Richard. The meat trade in Birtain (1840-1914). London: Routledge & Kegan Paul, 1978; PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the developmentof the International Meat Industry since 1840. Aldershot: Ashgate, 2006. A exceção é Stephen Bell (BELL,Stephen. Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande doSul before 1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4 (1993); BELL, Stephen.  Innovacón, desarollo ymedio local. Dimenciones sociales y espaciales de la innovación. Revista Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84),2000. Os autores uruguaios e argentinos que trataram da história dos saladeiros, tratados ao longo desta tese,também referem-se ao complexo charqueador pelotense.34

     Para um balanço geral, assim como as contribuições de Robert Fogel e Stanley Engerman, ver GRAHAM,Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX . In: EstudosEconômicos, n. 13, 1983, p. 223-257. Ver também LIBBY, Douglas. Trabalho escravo e capital estrangeirono Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984; MONASTÉRIO, Leonardo. Op. cit. 

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    charqueadas enfatizando-as como estabelecimentos decadentes e arcaicos, fatalmente

    condenados a extinção. Ora, mesmo com todos os reveses apontados por Cardoso e outros

    historiadores, mesmo com todos os problemas infraestruturais, os charqueadores pertenceram

    a elite mais rica, poderosa e prestigiosa do extremo sul da América luso-brasileira e ocuparam

    o topo da hierarquia social por agregarem recursos materiais e imateriais valorizados na sua

    realidade histórica. Portanto, aquela sociedade deve ser entendida nos seus próprios termos e

    não se deve exigir da sua elite um comportamento a-histórico. É importante frisar isto, porque

    muitos trabalhos, ao privilegiarem a ideia de uma crise inevitável e de uma fatalidade

    anunciada, acabaram permeando as suas conclusões neste sentido, o que resultam em análises

    teleológicas onde os charqueadores foram apenas espectadores da ascensão capitalista que

    irreversivelmente os fez desaparecer enquanto elite.35 

    A ausência de uma pesquisa mais aprofundada sobre os charqueadores pelotenses

    inviabiliza um entendimento mais complexo dos circuitos mercantis que vinculavam

    diferentes regiões do centro-sul do Império, (mas também do mercado marítimo de cabotagem

    que conectava o Rio Grande ao nordeste brasileiro), uma vez que não permite conhecer

    melhor as elites que se constituíram a partir destas atividades. Penso que compreender como

    as hierarquias sociais reproduziam-se nas margens mais “ periféricas” do Império e como as

    elites afastadas dos centros decisórios desenvolviam estratégias para obter ganhos dentro

    deste sistema, auxilia na compreensão do próprio sistema econômico e político brasileiro no

    oitocentos. Portanto, esta tese não almeja contribuir somente com o estudo da elite

    charqueadora pelotense. Com as questões e hipóteses levantadas ao longo dos capítulos

    objetivo oferecer um quadro analítico mais amplo e que estimule um olhar mais atencioso

     para outras elites regionais brasileiras, além de buscar entender como as elites econômicas

    agrárias e mercantis integravam-se nos distintos mercados internos e externos que marcaram o

     período.

     Nas últimas décadas, a historiografia brasileira vem oferecendo um maior espaço para

    que investigações deste tipo sejam empreendidas. Refiro-me ao revigoramento da história das

    elites a partir do tratamento coletivo das mesmas, ora enfatizando as estratégias familiares, ora

    combinando-as com a análise das trajetórias individuais. Muitos destes estudos têm como

    35  Esta visão é muito comum entre os historiadores que trabalharam com o processo de industrialização e aconsolidação da república no Rio Grande do Sul. Neste sentido, a monarquia aparece como um estágio a ser

    superado pela república e a economia escravista como uma etapa a ser ultrapassada pelo capitalismo. Ver, porexemplo, PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha: frigoríficos, charqueadas, criadores.  PortoAlegre: Movimento/IEL, 1980; LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. 

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     premissa o fato de que as relações sociais e políticas mantidas pelos agentes históricos

    envolvidos também devam ser levadas em conta quando se estuda a economia nas sociedades

     pré-industriais. O já citado trabalho de João Fragoso sobre a elite mercantil da praça carioca

    (1790-1830) além de motivar muitos debates, também incentivou outras pesquisas sobre os

    comerciantes no centro-sul do país, com destaque para o período colonial.36 Muitos dos novos

    estudos sobre as elites mercantis caracterizaram-se por dar uma ênfase importante aos laços

    de matrimônio e parentesco entre os comerciantes e na diversificação dos seus negócios,

    demonstrando como estas mesmas relações eram fundamentais nas economias pré-

    capitalistas.37  Alguns trabalhos, a partir de diferentes matizes teórico-metodológicos,

    investigaram as diversas relações entre as elites mercantis e a elite política na Corte.38 E outro

    grupo de historiadores vem demonstrando que para compreender melhor as elites devemoslevar em conta as suas relações com as camadas subalternas da sociedade (escravos, peões,

    índios, votantes pobres e soldados) que formavam a sua base de poder local. 39 

    Se em qualquer sistema econômico a influência do campo político deve ser

    considerada, nas sociedades pré-industriais esta relação é ainda mais significativa.40  Neste

    sentido, um estudo da economia brasileira no oitocentos deve atentar para as estruturas

     políticas no qual a mesma estava imersa. Nas últimas décadas, as críticas feitas à teoria da

    dependência aplicada à história econômica chegaram à história política, redimensionando uma

    36 Ver, por exemplo, SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais econjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650  –   c. 1750).  Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003;PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade doSetecentos. Tese de Doutorado em História, UFF, 2009; OSÓRIO, Helen. Op. cit.; BERUTE, Gabirel. Op. cit.37  De acordo com João Fragoso, “a importância das relações familiares adquire maior peso quando noslembramos que em um ambiente pré-capitalista, caracterizado pela instabilidade das flutuações econômicas e pelas poucas opções de negócio, as estratégias extra-econômicas interferem de maneira decisiva nos processosde enriquecimento” (FRAGOSO, João L. R. Op. cit., 1998, p. 331). 38  GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade

    Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866).  São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997; GUIMARÃES,Carlos Gabriel. A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial.  São Paulo: Alameda,2012; FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V.  As elites nas últimas décadas da escravidão - asatividades econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial,1850-1880.  In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão.  BeloHorizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 143-164; GAMBI, Thiago Rosado. O Banco da Ordem: política e finanças noImpério brasileiro (1853-1866). Tese de Doutorado em História, USP, 2010. Neste sentido, eles seguiram umcaminho aberto por LENHARO, Alcir. As tropas da moderação (o abastecimento da Corte na formaçãopolítica do Brasil –  1808-1842). Rio de Janeiro: SMC, 1993.39 Ver, por exemplo, FRAGOSO, João L. R. Principais da terra, escravos e a república: o desenho da paisagemagrária do Rio de Janeiro Seiscentista. In: Revista Ciência & Ambiente. Santa Maria: UFSM, n. 33, 2006, p.97-120; GIL, Tiago; HAMEISTER, Martha.  Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma obra emtrês movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII).   In: FRAGOSO, João, ALMEIDA,

    Carla; SAMPAIO, Antônio C. J. (org.). Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regimenos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 265-310;FARINATTI, Luis Augusto. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. Op. cit.40 FRAGOSO, João; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit., p. 153.

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    série de questões historiográficas em nível internacional. Os antigos modelos de compreensão

    das estruturas políticas dos impérios coloniais e da formação dos estados nacionais vem sendo

    revisados a partir de uma profunda contribuição teórica e empírica.41 No Brasil, cada vez mais

    tem sido aceito o papel das elites regionais no processo de independência e da formação do

    Estado imperial brasileiro.42 A partir destes novos estudos já não é mais possível pensar nas

    elites regionais como passivas diante do processo de consolidação do estado monárquico ou

    como forças centrífugas prontas a impedir o mesmo. Além disso, as novas pesquisas

    compartilham, por meio de contribuições distintas, do princípio da negociação  entre o

    governo central e as elites regionais, da mediação política entre ambos os níveis de poder e da

    convergência de interesses entre os diversos proprietários de terra espalhados pelo Brasil,

    como fatores importantes no mencionado processo. Neste sentido, parto da premissa de que aselites regionais também devam ser compreendidas nas suas estruturas socioeconômicas

    internas e na sua interação social com os sistemas econômicos e políticos mais amplos, na

    41  GREENE, Jack. Negociated Authorities. Essays in Colonial Political and Constitutional History.Charlottesville and London. University Press of Virginia, 1994; HESPANHA, Antônio M. As vésperas doLeviathan: Instituições e poder político (Portugal século XVII). Coimbra: Livraria Almedina, 1994;MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.).  Optima Pars: elites ibero-americanas doAntigo Regime. Lisboa: ICS, 2005; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 1998; PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009. No Brasil, para o período colonial, ver ART. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Mariade Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.42 Ver, por exemplo, GOUVÊA, Maria de Fátima.  Política provincial na formação da monarquia constitucionalbrasileira: Rio de Janeiro (1820-1850).  Almanack Braziliense.  São Paulo, n. 7, mai-2008, p. 119-137;DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens no federalismo no Brasil do século XIX.  São Paulo:Globo, 2005; MARTINS, Maria Fernanda Vieira. “A velha arte de governar”: um estudo sobre política eelites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; GRAHAM,Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da História: o Império do Brasil em perspectiva teórica. Almanack , n. 4, 2º sem. 2012, p.53-61; SODRÉ, Elaine L. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). Tese de Doutorado em História. PUC-RS,

    2009; BIEBER, Judy. O sertão mineiro como espaço político (1831-1850). Revista Mosaico, v. 1, n. 1, p. jan./ jun., 2008, p. 74-86; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial brasileiro:Minas Gerais - Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; RIBEIRO, JoséIran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos militares doExército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de Doutorado em História. PPGHIS-UFRJ, 2009;ARAÚJO, Dilton de Oliveira. O tutu da Bahia (Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850) .Tese de Doutorado em História, UFBA, 2006; RESENDE, Edna M. Ecos do Liberalismo: ideários e vivênciasdas elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena (1831-1840).  Tese deDoutorado em História, UFMG, 2008; KLAFKE, Álvaro. O Império na Província: construção do Estadonacional nas páginas de O Propagador da I ndústria Rio-grandense (1833-1834). Dissertação de mestrado emHistória, UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004; COMISSOLI, Adriano. A serviço de sua majestade: administração,elite e poderes no extremo meridional brasileiro (c.1808 - c.1831). Tese de Doutorado em História. PPGHIS-

    UFRJ, 2011; PIMENTA, João Paulo G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as origens doEstado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003. Ver também as coletâneas de textos organizados por JANCSÓ, Istvan. Op. cit.; COSTA, Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império aoutro: estudos sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX.  São Paulo: FAPESP, 2007.

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    qual as suas atividades se inseriam, uma vez que poucas são as pesquisas que buscam

    estabelecer um diálogo entre uma abordagem econômica com outra mais política.

    É na esteira destas novas pesquisas que a presente tese se insere. A escolha das

    famílias charqueadoras deu-se pelo fato das mesmas ocuparem o topo da elite econômica da

     província. No entanto, as suas relações sociais e políticas com outros setores da sociedade e as

    diferentes esferas de ocupação em que os membros das mesmas estavam inseridos também

    auxiliavam na manutenção da sua própria posição na hierarquia social. Daí a importância de

    investigar que tipo de relações os charqueadores mantinham com comerciantes, estancieiros e

     políticos, isto quando os mesmos não pertenciam as suas famílias.

    Portanto, o presente estudo oferece uma análise especial dos charqueadores pelotenses

    que, assim como o mencionado Domingos José de Almeida, não se viam mais como simples

    caciques locais. Sua influência em termos políticos e econômicos estava um patamar acima

    destes, os colocando como membros das elites regionais. O critério inicial utilizado para a

    seleção destas famílias foi a riqueza. Contudo, investigando profundamente a vida das

    famílias charqueadoras mais afortunadas verificou-se que as mesmas também concentravam

    os principais cargos políticos, a maior parte dos títulos de nobreza e foram as que mais

    investiram na educação superior de membros do grupo. Neste sentido, o leitor verificará que

    tanto na primeira metade do oitocentos, quanto na segunda metade, um grupo com cerca de 8

    a 10 grandes famílias ocupava o topo da hierarquia social local, apresentando um alto grau de

     parentesco entre si. Neste sentido, as principais famílias de charqueadores aqui investigadas

    ocuparam o topo da hierarquia social pela notável forma como concentraram os recursos

    materiais e imateriais não apenas da sociedade em que viveram como também no interior do

     próprio grupo de charqueadores.

     No que diz respeito ao seu patrimônio econômico, foi possível verificar que estas

     principais famílias não se reservavam aos seus negócios na charqueada, destacando-se tanto

    no comércio marítimo de longo curso, quanto na criação de gado em grandes estâncias na

    região da campanha ou no norte do Uruguai. Além disso, muitas delas também atuaram no

     prestamismo local vindo a tornar-se credoras de outros pequenos proprietários. Tal

    incremento de atividades econômicas e a diversidade de investimentos assemelhavam-se com

    as práticas dos comerciantes de grosso trato estudadas por Fernand Braudel na Europa dos

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    séculos XVI ao XIX e que caracterizou o perfil daquela elite mercantil. 43  No caso dos

    charqueadores, o investimento em grandes estâncias e embarcações marítimas tinha como

    objetivo aumentar os seus lucros nos três níveis econômicos no qual o charque estava

    inserido, ou seja, na criação, na produção e no comércio. Portanto, os charqueadores mais

    ricos ao apresentarem uma maior capacidade de aproximação dos mercados de gado e dos

    mercados marítimos potencializavam a sua capacidade de acumular riqueza, diminuíam os

    riscos advindos destes negócios e reproduziam a desigualdade de recursos no interior do

    grupo.

    A concentração de poder, riqueza e  status  social contribuía para que estas famílias

    adquirissem uma “consciência de elite”  que foi amadurecendo ao longo do oitocentos,

    atingindo seu ápice na segunda metade do século. Tal fenômeno social conferia um

    sentimento de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos

    casamentos de seus filhos e na sua política sucessória. A engenharia matrimonial praticada

     pelas mesmas combinava uma endogamia envolvendo membros do próprio grupo com uma

    exogamia que buscava genros europeus ou de elites de outras províncias. Além disso, uma

     preocupação com a educação dos filhos e com os seus matrimônios refletia-se numa política

    sucessória distinta dos demais charqueadores de menor fortuna no que diz respeito à

    transmissão da charqueada e a escolha dos primogênitos enquanto sucessores da função

    empresarial do pai. Favorecidos por uma grande presença de estrangeiros na cidade, os

    charqueadores também passaram a compartilhar de uma cultura europeizada e de um estilo de

    vida mais urbano, onde demonstraram interesse pelas artes, pelos espaços de sociabilidade e

     pela caridade. Foi a partir destes fatores que as mesmas foram vistas pelos seus

    contemporâneos como uma espécie de aristocracia da terra, devido a sua posição social e o

    estilo de vida que levavam no final da monarquia.

    Sua posição social nas últimas décadas do século também foi fruto de um melhor

     preparo para suportar os reveses que marcaram a segunda metade do oitocentos. Ao drenarem

    as escravarias dos charqueadores de menores posses, assim como o seu patrimônio por meio

    de vultosos empréstimos com hipotecas, estas famílias mais ricas também conseguiram

    resistir melhor às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1870. Contudo, elas

     próprias não foram capazes de encontrar uma saída satisfatória para o problema da mão de

    obra na localidade. A fase de apogeu dos charqueadores pelotenses e a permanência das

    43 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas.  São Paulo:Martins Fontes, 1996.

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    famílias neste ramo de atividades durou muito pouco tempo, parecendo ter sido um traço

    estrutural das elites regionais no período. O resultado disto foi que, no início do século XX, as

     principais famílias charqueadoras abandonaram os negócios com o charque vindo a dedicar-

    se a outros negócios.

    A presente tese norteou-se a partir de distintos referenciais teóricos e metodológicos.

    Tratando-se de um estudo sobre elites, inspirei-me nos problemas de pesquisa e nas perguntas

    colocadas por alguns historiadores nos seus respectivos trabalhos sobre o tema e, a partir dos

    mesmos, busquei a minha própria agenda de investigação e aquilo que mais se adequava ao

    contexto no qual a elite charqueadora estava inserida. Os estudos de Lawrence Stone e de

     Nuno Monteiro me possibilitaram perceber a importância dos sistemas sucessórios, das

     práticas matrimoniais, do estilo de vida e educação, da influência das elites na política, mas,

     principalmente, da mobilidade social intra-elite.44 No que diz respeito à sociedade brasileira,

    tomei como referência o tratamento metodológico oferecido por João Fragoso e Maria

    Fernanda Martins em suas respectivas pesquisas, qual seja, a de combinar uma análise

    quantitativa no sentido de configurar um perfil social do grupo estudado e das estruturas

    sociais que conformavam a sua posição com outro mais qualitativo, focado na análise das

    redes de relações sociais entre as elites econômicas e políticas estudadas pelos autores. 45 

    Assim como estes autores, busquei realizar um estudo prosopográfico da elite

    charqueadora pelotense. Tendo como modelo as considerações teóricas oferecidas por

    Stone46, não me reservei apenas a reunir dados estatísticos e oferecer uma análise quantitativa

    dos mesmos. Seguindo a aplicação prática daqueles preceitos realizada pelo autor, busquei

    compreender os diferentes investimentos realizados por esta elite, que tipo de interesses elas

     perseguiam, qual a importância que davam à educação, em que patamar encontravam-se suas

    44  STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985;MONTEIRO, Nuno G. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo.  Lisboa: ICS, 2012;MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal(1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Csa da Moeda, 1998; MONTEIRO, Nuno. G. Casamento, celibato ereprodução social: a aristocracia portuguesa nos séculos XVII e XVIII.  Lisboa, Análise Social, v. 28, 1993, p.921-950; MONTEIRO, Nuno M. (Org.). História da vida privada em Portugal. Época Moderna. Lisboa:Temas e Debates, 2011; MONTEIRO, Nuno G. 17 th and 18 th century Portuguese Nobilities in the EuropeanContext: a historiographical overview. E-JPH, v. 1, n. 1, summer 2003, p. 1-15.45  FRAGOSO, João. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; FRAGOSO, João & MARTINS, Maria

    Fernanda. Op. cit. Tal procedimento já havia sido por mim realizado em VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.46  STONE, Lawrence.  Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, 2011, p. 115-137[tradução]. Sobre outras considerações teórica e aplicações práticas do método ver também HEINZ, Flávio M.(org.). Por uma outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

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    riquezas e níveis de poder, qual o seu estilo de vida e se a mesma apresentou um ethos

     próprio.47 

    Embora esta pesquisa não aplique métodos da demografia histórica, também fui

    influenciado pela obra de Carlos Bacellar e o tratamento que o autor ofereceu ao estudar os

    senhores de engenho do oeste paulista dando ênfase nas principais famílias da sua elite

    econômica. Conforme o autor:

    A partir do momento em que as famílias de senhores de engenho tomaramconsciência de que constituíam um grupo à parte do restante da sociedade, buscaraminstituir critéri