Tese - Futebol e Torcidas

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  • Alexandre Nicolau Luccas

    FUTEBOL E TORCIDAS: UM ESTUDO

    PSICANALTICO SOBRE O VNCULO

    SOCIAL

    Mestrado Psicologia Social

    PUC/So Paulo

    1998

  • Breve Histria do Futebol 13

    NDICE

    Apresentao ....................................................................................................................

    08

    Captulo I: Breve Histria do Futebol ........................................................................... O Futebol Moderno ..................................................................................................... Origens do Futebol ...................................................................................................... O Futebol no Brasil .....................................................................................................

    12131628

    Captulo II: As Torcidas Organizadas de Futebol ....................................................... A Concepo Unilateral: a Torcida Organizada como contexto centralizador de

    violncia ...................................................................................................................... Os hooligans ........................................................................................................... A violncia e as Torcidas Organizadas de Futebol no Brasil .................................

    A Concepo Ampliada: a Torcida Organizada como contexto de formao de identificaes e laos sociais .......................................................................................

    39

    404145

    51

    Captulo III: Delimitao do Objeto de Estudo e Finalidade da Investigao ..........

    62

    Captulo IV: Metodologia ...............................................................................................

    66

    Captulo V: Referencial Terico .................................................................................... A Constituio do Espao Psicolgico na Modernidade ............................................. As Matrizes do Pensamento Psicolgico: breve histrico ........................................... A Psicanlise ............................................................................................................... Psicanlise e Vnculo Social ........................................................................................

    Totem e Tabu .......................................................................................................... Psicologia de Grupo e Anlise do Ego ................................................................... O Futuro de Uma Iluso ......................................................................................... O Mal-Estar na Civilizao ....................................................................................

    71737881858599

    114123

    Captulo VI: Entrevistas ................................................................................................. Entrevista 1 .................................................................................................................. Entrevista 2 .................................................................................................................. Entrevista 3 .................................................................................................................. Entrevista 4 ..................................................................................................................

    141142150165177

    Captulo VII: Concluses ...............................................................................................

    193

    Bibliografia ......................................................................................................................

    214

  • Breve Histria do Futebol 14

    Apresentao

    Desde a poca da graduao comecei a me interessar por elaborar um trabalho no qual

    pudesse pensar, de maneira a articular, duas reas de grande interesse pessoal: o futebol e a

    psicanlise. A primeira rea de interesse, o futebol, uma paixo. No s para mim como

    tambm para grande parte da populao brasileira e, por que no dizer, mundial. O futebol

    entra em nossas vidas de maneira, muitas vezes, desconhecida. Participa daquele grupo de

    fenmenos, junto com a opo religiosa, a opo amorosa e a opo poltica, que no requer

    maiores interrogaes. Basta, e isso que a cultura espera de cada um de ns, que tenhamos

    um time para o qual torcer ao longo do ano. requisito fundamental na constituio da

    subjetividade do brasileiro, uma identidade no campo esportivo, algo que nos apresenta

    perante os outros de um grupo de relaes significativas e nos inscreve de uma determinada

    maneira neste mesmo grupo.

    O corinthiano, o so-paulino, o palmeirense, o santista e o ponte-pretano, entre outros,

    so identidades bastante especficas. Esta simples identificao com uma histria do clube,

    suas conquistas e suas caractersticas particulares, falam muito sobre o sujeito em nossa

    cultura. O futebol , enfim, um universo extremamente amplo e complexo de relaes sociais.

    Estud-lo, significou ir em direo contrria a grande parte da recomendao de nossa

    sociedade. uma rea de interesse que carecia, e ainda carece, de maiores e mais

    aprofundados estudos. A pesquisa bibliogrfica realizada por ocasio deste trabalho nos

    mostra esse quadro de maneira bastante explcita. Algumas reas de conhecimento, como a

    Sociologia e a Antropologia, vm, nestes ltimos anos, estabelecendo uma determinada

    pensabilidade sobre o fenmeno. No entanto, existe pouqussimo estudo produzido pela rea

    da Psicologia.

    A segunda rea de interesse, a psicanlise, guardava maiores dificuldades ainda do que

    a primeira. Procurei a Psicologia Social acreditando ser o campo onde melhor pudesse estudar

    o futebol, pela tradio que ela possui no estudo dos fenmenos psicossociais. No entanto,

    pretendia realizar o trabalho atravs de um referencial terico psicanaltico. Tal pretenso

  • Breve Histria do Futebol 15

    levou-me a me deparar com questes extremamente importantes que necessitavam de uma

    resposta: de que forma a psicanlise poderia apresentar uma contribuio ao campo da

    Psicologia Social?; como estabelecer um dilogo possvel entre estas duas reas,

    aparentemente to distintas?; entre outras.

    A tarefa de responder a estes questionamentos tornou-se um pouco mais facilitada pela

    criao do Ncleo de Pesquisa em Psicanlise e Sociedade do Programa de Estudos Ps-

    Graduados em Psicologia Social da PUC/SP. Ingressei no referido Ncleo desde seu incio e

    l encontrei outros pesquisadores que, apesar da diversidade temtica, possuam uma

    preocupao comum: estabelecer uma dialogia possvel entre a Psicanlise e a Psicologia

    Social. Os estudos realizados no Ncleo, sob a coordenao do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco

    Filho e da Prof. Dra. Miriam Debieux, contriburam de maneira decisiva para este trabalho.

    Desta forma, restava ainda encontrar um objeto de estudo para que pudesse delimitar

    melhor um campo de investigao pertinente ao Mestrado. Enquanto estava s voltas com este

    problema, aconteceu a famosa batalha campal do Pacaemb, uma guerra entre duas torcidas

    organizadas de futebol, a Mancha Verde e a Independente. As propores que tal

    acontecimento assumiu na mdia especializada e na opinio pblica, motivaram diversos

    trabalhos nas reas da Sociologia e da Antropologia. Passei a estudar tais trabalhos e a me

    interessar profundamente em desenvolver uma compreenso, no campo da Psicologia, para

    este fenmeno das torcidas organizadas de futebol, de forma a contribuir com as referidas

    reas de conhecimento.

    Foi assim, portanto, que o tema surgiu para este trabalho. Procurei delimit-lo no

    sentido de me aprofundar em alguns de seus aspectos, mais precisamente em relao aos

    determinantes da insero dos sujeitos em um grupo com tais caractersticas. O cumprimento

    dessa tarefa tornaria possvel uma posterior retomada do fenmeno sob outros aspectos, tais

    como: o universo do futebol e suas funes dentro da cultura brasileira, e outras anlises mais

    amplas. Tenho bastante claro que tal delimitao, alm de necessria, est ainda longe de

    esgotar o fenmeno.

    Procurei neste estudo compreender os fatores envolvidos e os elementos determinantes

    das escolhas que os sujeitos realizam quando se associam s torcidas organizadas de futebol.

    A compreenso foi construda atravs do referencial terico, fornecido exclusivamente por

  • Breve Histria do Futebol 16

    Freud, sobre o vnculo social. importante ressaltar ainda que, devido ao acontecimento

    motivador deste estudo comportar em si a problemtica da violncia, tivemos que dedicar

    algum espao do presente trabalho para pensar este problema.

    Isto posto, essencial elucidar os momentos e os procedimentos, atravs dos quais

    desenvolvi esse trabalho de dissertao. Quanto sua estruturao, foram produzidos os

    seguintes captulos e contedos:

    1. o primeiro captulo Breve Histrico do Futebol rene uma apresentao das

    discusses existentes sobre a histria do futebol: a diversidade de origens atribudas ao

    futebol, por vrios estudiosos, anteriores a fundao da Football Association; a

    institucionalizao do futebol como esporte pelos ingleses e seu desenvolvimento nesta

    sociedade; e a histria deste esporte no Brasil, nas suas diferentes fases de evoluo;

    2. o segundo captulo As Torcidas Organizadas de Futebol um relato sobre a histria

    da prtica torcedora no mundo, atravs de uma caracterizao histrica e social do

    fenmeno. Apresento, neste captulo, a discusso de alguns aspectos fundamentais que

    envolvem as torcidas organizadas: uma caracterizao do hooliganismo ingls, fenmeno

    que tm sido utilizado como adjetivo da prtica de torcidas organizadas; e uma reflexo

    sobre o fenmeno da violncia associada tambm a um nico grupo dentro da sociedade,

    quais os usos ideolgicos de tal relao. Aps estas discusses, apresento a histria da

    evoluo das torcidas organizadas no Brasil e uma caracterizao antropolgica de seu

    instrumental simblico;

    3. no terceiro captulo Delimitao do Objeto de Estudo e Finalidade da Investigao

    apresento os princpios norteadores desta dissertao e os objetivos pretendidos com a

    pesquisa;

    4. no quarto captulo Metodologia procuro explicitar os fundamentos metodolgicos nos

    quais se apia a presente pesquisa e os procedimentos que foram utilizados para a coleta

    de dados e, posteriormente, para a anlise;

  • Breve Histria do Futebol 17

    5. no quinto captulo Referencial Terico apresento uma discusso acerca do espao que

    a Psicanlise ocupa entre as psicologias objetivando delimitar e inscrever este trabalho no

    campo das preocupaes sociais. Em seguida, desenvolvo uma apresentao dos trabalhos

    sociais de Freud, procurando explicitar seu mtodo de investigao e sua compreenso do

    vnculo social, que ser a referncia terica para a anlise das entrevistas.

    6. no sexto captulo Entrevistas apresentamos as entrevistas, de forma a fundamentar a

    anlise e as concluses do captulo seguinte.

    7. O stimo e ltimo captulo Concluses traz algumas concluses, a partir de todo o

    material coletado durante a dissertao. Estas concluses abrangem o universo de relaes

    que o futebol mantm com as torcidas e com a sociedade mais ampla. Incluem tambm

    uma anlise das representaes que os sujeitos entrevistados possuem sobre a torcida, o

    futebol e a sociedade.

  • Breve Histria do Futebol 18

    Captulo I

    Breve Histria

    do Futebol

  • Breve Histria do Futebol 19

    O Futebol Moderno

    Quando pensamos em futebol a primeira imagem que nos vem cabea a de uma

    poca romntica e inocente, um tempo em que grandes jogadores tais como: Pel, Tosto,

    Grson, Coutinho, Pepe, Garrincha e Jairzinho entre tantos outros podiam desfilar

    absolutos, com toda sua classe, elegncia e inteligncia, pelos gramados. poca na qual a

    prtica do futebol se encontra associada beleza esttica presente em verdadeiros

    espetculos para o deleite de um pblico familiar e tradicional.

    Um tempo que passou e deixou os amantes deste esporte com muitas saudades. O

    passado sempre belo. No raro ouvirmos ou vermos nos comentrios esportivos esta

    referncia ao passado como um tempo absolutamente idneo, isento de qualquer mcula. A

    referncia , por assim dizer, sempre muito saudosista. Um saudosismo que busca expresso

    atravs de um apelo esttico e romntico. Mesmo os momentos de maior tenso, como por

    exemplo a tradicional rivalidade e as consequentes brigas homricas entre os brasileiros e os

    argentinos, so lembrados como eventos isolados e permeados por um romantismo. O futebol

    era exatamente assim: um esporte romntico!

    Era; no mais. O presente e a realidade nos apresentam diversos problemas. Esta

    constatao nos entristece e voltamos nossos entristecidos olhos em direo ao cenrio atual

    deste esporte. Vamos nos deparar com uma cena composta de transaes comerciais de

    jogadores (os escravos do sculo XX) envolvendo grandes volumes de dinheiro, escndalos

    polticos, corrupo em todos os nveis, tentativas de moralizao do esporte esbarrando em

    intensas manobras polticas e lobbistas, desmandos e muita violncia, dentro e fora de campo.

    Diante de um sentimento inevitvel de tristeza por uma beleza perdida no passado,

    procuramos um refgio. Pensamos em nosso time de corao, nas suas glrias e nas suas

    derrotas. Todos temos que possuir um time para o qual torcemos. um imperativo social

    mais forte at mesmo do que as opes polticas. Somos praticamente induzidos a escolher

    algum time para que possamos nos apresentar perante a sociedade. uma identidade que

  • Breve Histria do Futebol 20

    todos os brasileiros normais devem possuir. Desde o seu nascimento o brasileiro est sujeito

    a esta impostura social.

    Pensamos nas Copas do Mundo, e comeamos a nos dar conta da imensa popularidade

    deste esporte. Podemos perceber a popularidade mundial deste esporte. Quase todos os pases

    do globo terrestre, com pouqussimas excees, possuem seu selecionado nacional e esto

    inscritos na FIFA (Federation International Football Association). Existem mais pases

    filiados esta entidade que dirige e organiza o futebol no mundo, do que filiados prpria

    ONU (Organizao das Naes Unidas). O futebol , sem sombra de dvida, o desporto mais popular em todo o mundo. , como o afirmou Lawrence Kitchin no distante ano de 1966, o nico idioma global para alm da cincia. Para fazermos uma idia do que levou este desporto a ocupar a primazia no panorama mundial, basta vermos que quando a FIFA iniciou as suas actividades em 1904, o fez graas adeso de somente sete associaes nacionais, todas elas europias. Contudo, em 1986 o nmero de membros ascendia j a 150, originrios de todas as partes do globo. Podemos pois concluir que o futebol, enquanto desporto organizado hoje jogado na grande maioria das naes do planeta, e -o a um nvel suficientemente elevado para que as equipes nacionais sejam reconhecidas pela FIFA como qualificadas para poderem disputar o Campeonato do Mundo1

    Passados mais de dez anos da constatao acima sobre o nmero de selecionados

    nacionais inscritos FIFA, vamos encontrar muitas alteraes neste nmero. Algumas

    incluses e excluses foram originadas pelas transformaes na geopoltica mundial. Este

    perodo foi decisivo no panorama mundial. Nele assistimos ao desmembramento da Unio das

    Repblicas Socialistas Soviticas em diversas repblicas, como tambm unificao das

    Alemanhas Oriental e Ocidental.

    Alm destas mudanas, outras ocorreram no mbito das tentativas de popularizao do

    futebol em pases de extrema importncia poltica e econmica no mundo. O Japo resolveu

    aderir ao futebol e o fez de uma forma bastante profissional e empresarial. O investimento foi

    massivo e a popularidade do futebol em terras nipnicas logo atingiu nveis extraordinrios. A

    importao dos maiores nomes do futebol mundial com a promessa de grandes retornos

    financeiros atraiu a ateno da sociedade e, logo, os japoneses ficaram extremamente atrados

    pelo esporte. O retorno de grande parte deste investimento acontecer na Copa do Mundo de

    2002, em que eles dividiro a tarefa de sediar a Copa em conjunto com a Coria.

  • Breve Histria do Futebol 21

    A prpria Copa do Mundo de 1994, vencida pelo Brasil, foi uma tentativa de

    popularizar o futebol nos Estados Unidos da Amrica, talvez o nico dos poucos pases de

    Primeiro Mundo em que o esporte no bem visto. Isto , o futebol no o principal esporte

    para a sociedade norte-americana. Eles valorizam muito mais o basketball, o baseball e uma

    verso de football. a segunda tentativa que se faz no sentido de popularizar a prtica do

    soccer, mas eles ainda esto engatinhando. O campeonato nacional deles tem poucas equipes,

    pouco pblico, pouca popularidade e poucos investimentos. A expectativa ainda de

    crescimento.

    A atual geopoltica do futebol no mundo, sob o comando da Federation International

    Football Association FIFA , est dividida por seis associaes de dimenses continentais,

    que respondem por 182 pases. So elas:

    Conmebol, integra 10 pases da Amrica do Sul e foi fundada em 1916; UEFA (Union Europene de Football Association), integra 49 pases da Europa e foi

    fundada em 1954;

    Asian Football Confederation, integra 39 pases da sia e foi fundada tambm em 1954; Confdration Africaine de Football, integra 50 pases da frica e foi fundada em 1957; Concacaf (Confederacin Norte-Centroamericana y del Caribe de Ftbol), integra 29

    pases da Amrica Central, Caribe e Amrica do Norte e foi fundada em 1961; e

    Oceania Football Confederation, integra 8 pases e foi fundada em 1966.

    Este futebol, acima caracterizado, tem sua origem localizada (pelos mais diversos

    historiadores) na Inglaterra de 1863, ano em que foi fundada a Federao Inglesa de Futebol,

    o primeiro rgo dirigente e responsvel pela elaborao das primeiras regras do jogo. No

    entanto, estes apenas 134 anos no do conta de explicar a paixo mundial exercida pelo

    futebol, teremos que nos aprofundar em sua histria.

    1 MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, p. 5.

  • Breve Histria do Futebol 22

    Origens do Futebol

    A histria da origem do futebol, na verdade, muito mais antiga e diversa. Ela to

    antiga e diversa quanto a histria do esporte que, por sua vez, to antiga quanto a presena

    do homem no planeta. A histria do esporte ntima da cultura humana, pois por meio dela se compreendem pocas e povos, j que cada perodo histrico tem o seu esporte e a essncia de cada povo nele se reflete.2

    Em um breve sobrevo nos estudos de antroplogos, socilogos e historiadores,

    poderemos encontrar vrios relatos que atestam a antiguidade da relao entre o homem e

    uma bola. Alm disso, tais relatos apontam para uma diversidade, algumas vezes conflitante,

    de origens atribudas ao futebol moderno. Apesar desta diversidade vamos poder descobrir

    que desde o princpio da civilizao, localizando aqui os primeiros agrupamentos humanos, os

    homens desenvolveram o hbito de chutar um objeto arredondado. O antroplogo Johan

    Jakobs3 encontrou vestgios, em uma gruta na Nova Guin, de que o homem das cavernas j

    possua este hbito.

    Neste mesmo lugar, territrio africano, descobriu-se uma evoluo para a prtica de

    um jogo semelhante ao futebol. O jogo de futebol na Nova Guin comea com uma das

    equipes em desvantagem no placar e o objetivo da disputa empatar o jogo. Quando isto

    ocorre o jogo termina e o conflito entre as tribos se encerra.4 O jogo, portanto, aqui,

    realizado com o objetivo de eliminar as diferenas, exclui-se atravs dele a existncia de

    vencedores ou vencidos entre as tribos que concorrem.

    Outros registros do esporte, em diversos lugares do mundo, apontam para uma

    diversidade de caractersticas que esta prtica assume. Relatos que so, algumas das vezes,

    conflitantes. Vamos poder encontrar, por exemplo, na China e no Japo, dois registros da

    prtica de um jogo com bola muito semelhantes em alguns aspectos e muito diferentes em

    outros mais importantes.

    2 TUBINO, M. O que esporte. So Paulo: Brasiliense, 1993, p. 12. 3 Veja-se RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis/RJ: Ed. Vozes, 1984, p. 25. 4 HELAL, Ronaldo. O que sociologia do esporte. So Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 67/68.

  • Breve Histria do Futebol 23

    Entre os sculos XXVI a.C. e XXV a.C. os chineses praticavam um jogo de bola com

    os ps nomeado de Tsu-Chu ou Ts Ts, que significa golpe na bola com o p. A bola era

    feita a partir da bexiga ou da pele de algum animal e depois era recheada com crinas de

    cavalo, serragem ou algum vegetal mais resistente.

    Em um dos trabalhos5 que historia a prtica do Ts Ts, afirma-se que era praticado

    como um ritual de guerra. Aps os combates, a tribo que havia vencido praticava um jogo

    ritual onde a cabea do chefe inimigo ou as cabeas dos seis guerreiros mais valentes da

    aldeia derrotada eram chutadas. Este ritual sagrado era praticado a partir da crena de que

    haveria a assimilao pelos ps (base do corpo, lugar da vida) das caractersticas dos

    guerreiros derrotados. Alm desta assimilao, o ritual era uma forma de absoluto respeito e

    reverncia s vtimas, j que lhes era vedada a vergonhosa condio de prisioneiros. As

    caractersticas assimiladas eram as que estavam presentes nas cabeas dos escolhidos como

    mais valentes ou do chefe da tribo: inteligncia, coragem, fora, habilidade, liderana e

    respeitabilidade.

    Outro estudo6 conta que o Tsu-Chu era praticado por soldados do imperador Xeng-Ti

    (sculo XXV a.C.). A relevncia, neste estudo, do jogo de bola como uma prtica militar e

    disciplinar, caracterstica do esporte que tambm aparecer em outros momentos e lugares. A

    prtica consistia em conduzir a bola com os ps ou mos at uma meta. Os soldados

    organizavam-se em dois grupos opostos e para atingir o objetivo usavam de violncia. Os atos

    de violncia aparecem aqui como sendo inerentes ao jogo e, talvez, pelo seu uso constante

    entre os dois grupos de jogadores adversrios, ele servia de preparao blica.

    Neste mesmo perodo, no Japo, era praticado um jogo de bola com os ps, o Kemary

    ou Kemari. Aqui, tambm, os relatos que encontramos apontam para diferenas e

    semelhanas. Em um dos trabalhos a relevncia dada ao aspecto cerimonial e no outro o

    Kemari apontado como uma prtica de lazer; em ambos os casos, no entanto, guardam-se

    algumas semelhanas.

    5 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 84. 6 RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis / RJ: Editora Vozes, 1984, p 26.

  • Breve Histria do Futebol 24

    O Kemary (Ke = jogo e Mary = ps) apresentado como um cerimonial de forte teor

    pedaggico e intensa e reconhecida qualidade esttica7, praticado desde o sculo XXVI a.C.

    at os dias de hoje. Um cerimonial que consiste numa espcie de controle da bola; na

    realizao de, para traduzir por um termo bem prximo a nossa cultura, embaixadinhas.

    um ritual de autoconhecimento, automeditao, autocontrole e auto-aprendizagem. Todos

    estes domnios servindo para a autodisciplina. De extrema delicadeza, sua plasticidade elegante, a indumentria refinadamente nobre e a marcao de seu ritmo acompanha as melodias tpicas do folclore japons que, discreta e suavemente ao fundo, ambientam a coreografia.8

    Em outro trabalho, o Kemari apresentado com uma caracterstica mais ldica. No existia nenhuma manifestao de violncia nem preparao para a guerra. Predominava um clima de lazer. Ocorriam inmeras interrupes para a confraternizao dos jogadores durante os jogos. As regras, tambm, permitiam o uso indiscriminado dos ps e mos. O campo era bem amplo. Media, aproximadamente, 20 metros de comprimento. Cada ngulo recebia uma rgida demarcao, feita atravs de uma variedade de tipos de rvores9

    Outra forma ancestral de futebol encontrada na Amrica pr-hispnica. Desde o

    sculo XVI a.C. h registros da prtica do Tlachtli. O jogo era um espetculo sagrado: uma

    cerimnia que transcendia em seu significado e representava a atualizao do combate

    cosmolgico fundamental para a sobrevivncia da humanidade10. Para o povo asteca, o cu

    noturno representava o cenrio da eterna guerra entre a luz e a escurido. Em sua cosmoviso,

    eles compreendiam que o Sol se alimentava das estrelas, a partir do que, poderia iluminar o

    mundo. O campo de bola era o cu, e os anis (local onde a bola deveria entrar) representavam os lugares de onde sai e se pe o Sol. A marca onde se assinala o centro do campo de bola simbolizava o lugar do cu onde o Sol sacrificava diariamente a Lua e as estrelas, chamado de Itzompan (lugar dos crnios), representado por uma caveira. A linha central que divide o campo do jogo de bola representava o limite que separava as foras opostas em luta: a luz e a escurido, o dia e a noite.11

    Os jogadores utilizavam-se de todas as partes do corpo, principalmente os quadris,

    para golpear a bola em direo dos anis. Duas equipes competiam: uma representava o sol (a

    luz, o dia) e a outra representava a lua (a noite, a escurido). Ao final da cerimnia, um dos

    jogadores era decapitado como oferenda aos deuses.

    7 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 85. 8 Ibid. 9 RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis / RJ: Editora Vozes, 1984, p. 26. 10 LEMOS, M. T. T. B. Tlachtli, o jogo de bola na Mesoamrica. In Pesquisa de Campo, Revista do Ncleo de Sociologia do Futebol, UERJ, n 1, junho de 1995. APUD MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, pp. 85/86. 11 Id. p. 86.

  • Breve Histria do Futebol 25

    ... Ainda h dvidas se o jogador decapitado era da equipe vencedora ou perdedora. No final do jogo, o jogador, diante do juiz (sacerdote), ajoelhava-se e tinha a cabea decapitada. O sangue escorria como serpente pelo seu corpo, oferta divina aos deuses. Seu corpo era puxado, dando voltas no campo, ensanguentando o espao para diviniz-lo.12

    Ao longo do tempo o Tlachtli perde este carter sagrado, cosmognico e ritual. ... os mexicanos dessacralizam o espetculo do sagrado e o jogo de bola chegou a ter um carter decisivo para as resolues de problemas polticos, militares e econmicos que surgiam nos diversos calpullis ou senhorios.13

    Aproximando-nos agora do continente europeu, onde hoje localizamos o bero da

    modernidade no apenas a do futebol , vamos encontrar tambm diversos registros de

    formas ancestrais de futebol nas civilizaes clssicas da Antiguidade Ocidental. Os registros

    vo apontar para duas direes principais: o jogo de bola como atividade ldica que evolui

    para uma prtica militar e disciplinar e o jogo de bola como atividade ritualizada e sagrada.

    Num dos estudos vamos encontrar o relato de que os soldados romanos de Csar

    adaptaram um jogo de bola que era praticado pelo gregos o Epyskiros. Originalmente este

    tido como prtica ldica da nobreza e aristocracia gregas, mas a adaptao pelos soldados

    invasores o torna uma prtica militar. Os soldados de Csar jogavam o Harpastum.

    Adaptaram este jogo de uma forma bastante interessante. Alguns pesquisadores vo nos

    apontar que (...) os romanos se aproximaram do esporte moderno, na medida em que os jogadores se posicionavam dentro do espao de jogo, como defensores, meias de ligao e atacantes. Sabe-se que os romanos dominaram a Bretanha. Por este fato, alguns pesquisadores afirmam que eles introduziram o jogo na Inglaterra, que considerada o bero do futebol moderno.14

    Em outro trabalho, o Epyskiros e o Harpastum so apresentados como formas

    ancestrais de futebol, que visavam integrar a tica (ethos) e a moral (mores) tanto da

    sociedade grega como da sociedade romana. O Epyskiros aparece na Grcia do sculo IV a.C.

    e o Harpastum aparece em Roma quase trs sculos depois. Ambos eram jogados de forma

    mais ou menos equivalente. Uma bola de couro cru tinha que ser conduzida principalmente

    com os ps e, eventualmente, com o auxlio das mos pelos jogadores at a cidade do

    oponente. Quem alcanava esta meta era declarado vencedor. Era praticado, quase que

    exclusivamente, pela nobreza e pelas aristocracias das emergentes culturas grega e romana.

    12 LEMOS, M. T. T. B. Tlachtli, o jogo de bola na Mesoamrica. In Pesquisa de Campo, Revista do Ncleo de Sociologia do Futebol, UERJ, n 1, junho de 1995. APUD MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, pp. 86/87. 13 Id., p. 87. 14 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 32.

  • Breve Histria do Futebol 26

    Ao longo do tempo foi ganhando contornos mais populares e tornou-se parte integrante das

    festividades. Na Grcia, o Epyskiros foi modalidade olmpica e, nas ocasies das festas (bacanais) em homenagem ao deus do vinho, Baco, podia ser praticado pela gente do povo. Por esta razo, o jogo, agora dionisaco (Dionsio Baco), torna-se livre, solto, espontneo e belo Baco Lber, tambm, e assim conhecido, porque, pelo vinho, torna-se livre de preocupaes, de amarras racionais. Mas, praticado pela gente do povo, o jogo torna-se, por outro lado, bem mais vigoroso e, s vezes, at mesmo violento. Isto porque simbolizava a glorificao bquica, celebrada por Jpiter: sob a forma de leo. Baco lutou contra os gigantes que tentaram escalar o cu e, por isso, recebeu de Jpiter a torcida incomparvel Evoh! Evoh! Valor, filho meu, valor!.15

    Da Grcia ele transferido para a civilizao romana. Esta transferncia, segundo

    MURAD, de carter cultural. Teria ocorrido atravs dos Bacanais. Os Bacanais tambm

    teriam acontecido em Roma e com eles o jogo de bola ganhou novos contornos. No entanto,

    por seu carter liberador, ele logo foi alvo de sanes e proibies pelo Senado romano. Vai

    ressurgir apenas no sculo XIV atravs da nobreza italiana e ser conhecido como gioco del

    calcio. Ressuscitado como ritual de lazer para a nobreza, ganha os contornos de uma

    organizao mnima, que nos lembra a modernidade do esporte. O gioco del calcio, na Idade Mdia, era jogado por dezenas de pessoas, em cada um dos lados. Quando se queria organizar melhor a atividade, dando traos mais finos competio, o nmero de atletas era limitado entre 25 e 30 nobres por equipe. Havia, portanto, uma depurao quantitativa e, ao mesmo tempo, uma seleo por classe social. O nmero de jogadores considerado ideal era o de 27, assim distribudos: 15 corredores, 5 sacadores, 4 dianteiros e 3 zagueiros. (...) O gioco del calcio jogado num campo de 120m por 180m, com duas balizas de madeira em cada extremidade. A meta a de fazer a bola (de couro e cheia de ar) passar por cima das traves.16

    Com relao s razes britnicas da origem do futebol, os pontos de vista dos

    investigadores sobre o assunto no so inteiramente condizentes. Alguns propem que o

    futebol teria se originado da prtica do gioco del calcio italiano. No sculo XVII, bem mais

    popular e agressivo, foi levado para a Inglaterra pelos partidrios de Carlos II, exilados na

    Itlia, quando houve a restaurao do trono.17 Outros historiadores vo propor que formas

    diversas de jogo de bola eram praticadas na Inglaterra muito antes do sculo XVII. No

    apenas na Inglaterra, mas tambm em quase todo o continente europeu.

    Reconhecidamente, o futebol moderno tem origem na Inglaterra; a prtica do jogo do

    qual ele teria se originado, contudo, parece no ser exclusiva deste pas. Na Idade Mdia

    encontram-se registros de jogos de bola populares muito semelhantes ao futebol, com uma

    15 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 89. 16 Id., pp. 90/91. 17 Id., p. 90.

  • Breve Histria do Futebol 27

    diversidade de nomes, que eram praticados no apenas na Inglaterra, como tambm nos pases

    continentais europeus.

    Eram jogos populares extremamente violentos que aconteciam junto s festividades

    religiosas. Por sua popularidade, capacidade de aglutinar grande nmero de pessoas e pela

    violncia que os marcavam foram alvo de diversas proibies por parte dos vrios

    governantes reais ao longo de toda Idade a Medieval. Na Idade Mdia, porm, o futebol era um dentre uma variedade de nomes usados na Gr-Bretanha para se designar uma classe de jogos populares jogos de gente comum que eram, se quisermos estabelecer uma comparao, sem regras, rudes e selvagens. Outros nomes por que era designado eram o camp ball, o hurling e o knappan. Entre as variantes continentais incluam-se o la soule em Frana, o rouler la boule e o la souile na Blgica e o gioco della pugna em Itlia.18

    A diversidade de pases praticantes do futebol atesta o fato de sua origem ser muito

    mais ampla do que a crena do senso comum e tambm aponta direes possveis para

    explicar a popularidade do esporte no mundo. No entanto, para podermos acompanhar o

    desenvolvimento do futebol de sua antiguidade at a modernidade, precisamos circunscrever

    um determinado local, onde possamos focalizar o desenvolvimento das relaes sociais,

    polticas e culturais humanas, enfim que esto envolvidas em tal atividade.

    Este local, porque tambm possui, segundo os estudiosos, maior quantidade e

    qualidade de registros sobre este esporte, a Inglaterra. Dizem alguns que a primeira bola

    chutada na Inglaterra foi a cabea de um odiado invasor dans19.20

    A verso moderna do futebol, portanto, vai encontrar a sua origem na Inglaterra. Era

    um esporte praticado por grupos sociais completamente despossudos de qualquer

    organizao formal. Era um esporte popular, no sentido que a palavra povo adquire na Idade

    Mdia. Apresenta-se como uma tradio inventada possuindo as caractersticas de um

    momento de pura expresso de violncia interna e externa aos grupos sociais e tambm

    caractersticas educativas e recreativas.

    18MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, p. 9. 19 Dans o termo em francs utilizado para designar os brbaros originrios da atual Dinamarca. 20 SANTOS, Joel Rufino dos. Histria poltica do futebol brasileiro. So Paulo: Brasiliense, 1981, p. 12.

  • Breve Histria do Futebol 28

    O jogo vai aparecer nos festivais religiosos, de uma forma dbia. Aparece tanto como

    um ritual religioso quanto como um esporte. Apesar disso, a sua prtica tinha um componente

    fundamental na violncia entre as faces em disputa. Participavam desta disputa as crianas,

    os jovens, os adultos, os homens e as mulheres.

    Em vrias de suas verses medievais football, campball, hurling e knappan a

    bola era movimentada, atirada e dominada com os ps e tambm com o auxlio de outros

    instrumentos, tais como mos e tacos. O nmero de jogadores participantes era extremamente

    varivel, dependendo de regras que eram definidas por cada grupamento social, podendo, em

    alguns locais, ultrapassar at mesmo o nmero de mil jogadores de cada lado.

    A igualdade entre os lados em disputa no parecia ser um fator importante e as regras

    no existiam na forma escrita. Sua transmisso era oral e, alm disso, eram especficas a cada

    lugar. Os jogos eram disputados tanto nas ruas das cidades quanto em campo aberto. Apesar

    das variaes locais, todos estes jogos populares tinham uma caracterstica em comum: eram

    jogos-luta em que se permitiam e/ou toleravam as vrias formas de violncia fsica tpicas da

    poca medieval. Neste jogo vingam-se disputas privadas, de modo que todos, at os mais humildes, tiram partido. Ningum fica de fora, todos apoiam um ou outro lado, e assim podemos s vezes ver quinhentos ou seiscentos homens nus a baterem-se no meio dum pasto, ... ningum deixa de alinhar por um dos lados, pelo que podemos ver irmo a bater em irmo, amigo contra amigo, armados de bastes, pedras e punhos para baterem nos companheiros, os cavaleiros irrompem por entre as tropas apeadas, cada um armado com o maior cacete que conseguiu encontrar, mais prprio para o abate de bois e cavalos do que para um jogo de homens ... depois de desferido o golpe, todos se juntam em molhada, atacando-se com os desmedidos bastes sem pouparem cabeas, rostos nem qualquer outra parte do corpo. Os homens apeados juntam-se refrega, vibrando de fria a ponto de esquecerem de que tudo isto um jogo, e combatem at ficarem sem flego. ... um jogo em que no pode haver espectadores, todos tm de ser actores, pois assim manda o costume e a cortesia do jogo, pois se aparecer algum tendo como nica finalidade assistir disputa ... se der consigo no meio das tropas feito jogador, apanha com uma ou duas Gastonadas se estiver a cavalo ou uma boa dzia de murros se estiver a p, sendo esta a cortesia oferecida aos estranhos, apesar destes nada poderem esperar daqueles homens.21

    Por sua extrema violncia e capacidade de aglomerar as pessoas, o jogo, durante a

    Idade Mdia, foi alvo de diversas proibies por parte das autoridades. Existem muitos

    documentos atestando mortes ocorridas durante estes jogos ao longo dos anos medievais. De

    1314 at 1615 foram publicados os mais variados decretos reais de proibio ao jogo que, no

    entanto, continuava a ser disputado. Algumas pessoas foram aprisionadas por sua prtica. A

    21 MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, p. 31.

  • Breve Histria do Futebol 29

    ttulo de ilustrao, em 1314, em Londres, uma proibio, elaborada pelo interino do rei

    Eduardo II, foi publicada visando impedir a realizao dos jogos de futebol dentro das

    cidades. Manifesto para a Preservao da Paz... Atendendo a que o nosso Senhor o Rei se dirige s regies da Esccia, na sua guerra contra os inimigos e nos ordenou em especial que mantivssemos estritamente a paz... E atendendo a que existe grande tumulto na cidade por motivo de certas desordens que ocorrem em grandes jogos de futebol realizados nos espaos do domnio pblico, dos quais muitos males podem eventualmente surgir Deus nos defenda ordenamos e proibimos, em nome do Rei, sob pena de priso, que tal jogo daqui e diante seja praticado dentro da cidade.22

    Por estas razes, s vezes, o futebol entra para a clandestinidade. Torna-se

    eventualmente um esporte marginalizado diante da impossibilidade legal da bola rolar durante

    os festivais religiosos e nos terrenos urbanos. No entanto, apesar de sua ilegalidade eventual,

    o futebol sobrevive. Comear a ser jogado dentro das escolas e universidades. Para poder ser

    praticado no interior do ambiente educacional ele, necessariamente, sofrer um refinamento e

    ganhar contornos diferenciados, assumindo uma postura cuja prtica requer o respeito s

    regras e aos cdigos. , assim, apropriado pelo Estado de maneira militar e disciplinar.

    conferido aos praticantes do futebol o mesmo status que possuam os militares da poca:

    gentleman. O futebol se torna, assim, um esporte de gentlemen.

    Neste momento que o futebol, a partir de uma aceitao social mais ampla das regras

    definidas nos interiores das escolas e universidades, transforma-se em um esporte de elite.

    Inmeras e diferentes regras foram surgindo nas vrias instituies de ensino.

    Entre 1810 e 1840, a multiplicao das instituies de ensino que aderiram ao novo

    jogo, bem como a consequente proliferao de regras, impuseram a necessidade de

    regulamentao. Universitrios de Cambridge, aps uma srie de reunies realizadas na Old

    Freemansons Tavern, fundam no histrico ano de 1863, a Football Association. Definem um

    pequeno cdigo de regras bsicas para o esporte, que ir sofrendo alteraes ao longo dos

    anos, e definem as formas de disputa do jogo. A delimitao de onze jogadores em campo

    surge em decorrncia da quantidade de escolas e universidades que tinham este esporte sendo

    praticado em seu interior.

    22 RILEY, H. T. (ed.) Munimenta Gildhallae Londoniensis, Rolls Ser., n 12, Londres, 1859-62, Vol. III, Apndice II, excertos do Liber Memorandum, pp. 439-41, texto latino e anglo-francs, com traduo inglesa do anglo-francs. APUD ELIAS, Norbert. A busca da excitao. Lisboa/Portugal: Difuso Editorial, 1985, p. 258.

  • Breve Histria do Futebol 30

    O momento da apropriao disciplinar, estatal e da oficializao do futebol o mesmo

    momento de vrias das transformaes polticas, sociais e econmicas no mundo. Mudanas

    ocasionadas por acontecimentos tais como a Revoluo Francesa e a Revoluo Industrial. A

    Europa sai da Idade Mdia e entra na modernidade. O fim da sociedade de organizao

    feudal, abrindo espao uma sociedade de organizao capitalista, fez surgir profundas

    transformaes na economia, na poltica, na cultura e, principalmente, nas estruturas da

    sociedade. A institucionalizao de uma nova estrutura significou muito mais do que uma

    simples mudana no modo de produo. Trouxe consigo, tambm, uma desenfreada

    acelerao da concentrao da massa humana nos centros urbanos e uma busca pelas benesses

    materiais trazidas pela industrializao. Todas as instituies sociais transformam-se de

    acordo com as necessidades de produo impostas pelo novo regime econmico e poltico.

    Aprisionado no interior dos colgios e das universidades, o futebol adapta-se aos

    novos sistemas. Torna-se, assim, um esporte organizado e codificado por regras que visavam

    coibir a sua violncia original e se firma como um esporte terminantemente burgus. Ele

    surgiu na sociedade completamente despido de artifcios institucionais e, medida que

    ganhou popularidade, tornou-se vulnervel s articulaes polticas, econmicas e sociais, que

    as novas ordens mundiais exigiram. O futebol passa por mutaes: de jogo muitas vezes

    proibido na Idade Mdia passa a diverso burguesa, no incio do capitalismo e,

    posteriormente, ... transforma-se, por fora dos interesses do Estado ingls sabedor do xtase da massa , na maior tradio popular da Inglaterra que passa a definir cada vez mais um palco maior em que se representam as atividades fundamentais das vidas dos sditos e cidados.23

    No momento em que o futebol oficializado pela Football Association, ganha outros

    contornos sociais, diferentes daqueles que o caracterizavam como prtica de elite ou como

    prtica popular. No entanto, no fcil estabelecer o momento preciso em que o futebol

    adotado pela massa na Inglaterra. Segregado que foi nas escolas e nas universidades,

    desenvolveu-se primeiramente como um esporte amador, moderador de carter, disciplinador,

    burgus e de classe mdia. Na medida em que o futebol atinge a profissionalizao,

    rapidamente adequa-se novamente ao gosto popular.

    23 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 37.

  • Breve Histria do Futebol 31

    A popularizao do esporte vai acontecer aproximadamente a partir de 1870. A

    Football Association a responsvel direta pela codificao das regras do esporte e, assim, ele

    assume uma linguagem fcil e universal. O futebol vai ganhando contornos prprios para se

    tornar parte importante da cultura de massa popular.

    O futebol se transforma, aos poucos, numa instituio social slida, que se baseia em

    regras e ritualizaes tornadas universais. Como tal, foi capaz de aglutinar no mundo um

    grande nmero de adeptos aficcionados e apaixonados. Vejamos, por exemplo, o nmero de

    espectadores de uma Copa do Mundo. Segundo os clculos da FIFA, uma platia global acumulada de 31 bilhes de pessoas assistiu aos 52 jogos da Copa 5 milhes a mais que o Mundial da Itlia, em 1990. Foi a primeira vez, por exemplo, que o Vietn viu a Copa ao vivo.24

    O futebol, enquanto instituio social, adquire uma caracterstica extremamente

    interessante e que podemos encontrar denunciada nos mais diversos trabalhos dos

    pesquisadores consultados. O futebol apresenta-se como elemento independente das relaes

    nas sociedades onde se desenvolveu, a ponto de ser considerado, simplesmente, um esporte.

    Esta independncia estrutural esconde a histria de seu prprio desenvolvimento e procura, de

    certa forma, retomar a ancestralidade e presena do jogo em todas as culturas, apelando para

    um saudosismo e romantismo. Mas, procedendo desta forma, oculta e aliena as relaes

    sociais, polticas e econmicas que determinam o fenmeno.

    Por outro lado, a estrutura do futebol apresenta algo bastante incomum que o

    transforma num grande atrativo mundial. Uma atrao que se mostra relativamente

    independente do nvel do desenvolvimento dos pases e das caractersticas scio-polticas dos

    respectivos governos. Tal atrao deve ser buscada na incorporao de prticas fsicas

    burguesas e aristocrticas, de respeitabilidade s regras, aos adversrios, rbitros e cdigos.

    Na medida em que o futebol impe aos seus praticantes a iluso de igualdade, ele ultrapassa

    as fronteiras do esporte e ganha as massas populares, perpetuando-se definitivamente entre

    elas como o grande fenmeno do sculo.

    Sua estrutura, que determina uma linguagem universal e civilizada, escora-se nos

    seguintes aspectos:

    24 DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos. Esportes. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 259.

  • Breve Histria do Futebol 32

    1. igualdade numrica entre os adversrios e restrio para ambos os lados, do nmero de jogadores onze presentes no campo em qualquer momento do jogo; 2. estrita e clara demarcao do papel a desempenhar por jogadores e espectadores; 3. especializao no domnio da bola com os ps, peito e cabea e, no caso do guarda-redes, ainda com as mos. (...); 4. regulamentao e rgos dirigentes centralizados, as Federaes de Futebol dos diferentes pases (...); 5. um conjunto de regras escritas que exigem dos jogadores o auto-domnio em matria de contactos fsicos e uso da fora fsica e que probem o uso desta sob certas formas; 6. sanes claramente definidas, como por exemplo os livres e grandes penalidades aplicadas queles que violam as regras, e uma forma de punio mxima para graves e persistentes violaes das regras: a possibilidade de expulso de jogadores, a que se podem juntar perodos de suspenso e/ou multas em dinheiro; e 7. a institucionalizao de papis especficos sobre quem compete o controlo e a fiscalizao do jogo, isto , os papis de rbitro e fiscal de linha.25

    Dentro da moderna sociedade competitiva tal estrutura, como quaisquer outras,

    adquire um vis poltico e, desta forma, o futebol tambm dinamiza os conflitos sociais,

    escorado na aceitabilidade das regras do jogo e no esprito da competio esportiva.

    Fenmeno scio-cultural de grande importncia neste final de sculo, firma-se como uma das

    instituies sociais mais slidas do mundo.

    A aceitabilidade das regras, que tm incio com a fundao da Federao Inglesa de

    Futebol e continuidade com as transformaes sociais e econmicas, expande-se na medida

    em que o futebol comea a ser praticado no interior das fbricas inglesas. Praticado

    inicialmente pelo operrios como atividade de lazer, rapidamente apropriado pelo sistema

    que passa a incentiv-los e organizar, desta forma, os espaos. Na medida em que o futebol transpe os limites da exclusividade e da vaidade fsica burguesa, ultrapassando os muros das escolas pblicas e das universidades, rapidamente deixa de ser uma atividade amadora. O futebol profissionalizado atinge o corao das massas proletrias e o marco fundamental da popularizao do jogo foi o deslocamento de uma brincadeira amadora burguesa para uma atividade ldica proletarizada de reivindicaes econmicas.26

    As fbricas inglesas passam a incentivar o esporte, contribuindo para sua

    profissionalizao, abrem espao para que seus operrios joguem, utilizam o jogo, inclusive,

    como doutrina no espao de lazer. Abrem, assim, dentre outras possibilidades, perspectivas

    para a melhoria da qualidade de vida do jogador / trabalhador, proporcionando-lhe

    respeitabilidade, em razo de sua habilidade fsica. A indstria se torna a mola propulsora na

    popularizao do futebol. altamente provvel que os jogadores de futebol tendessem a ser

    recrutados entre os operrios habilidosos.27 O futebol, na sua verso moderna, foi criado,

    mantido e incentivado pelas fbricas e indstrias do mundo inteiro.

    25 MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, pp. 32/33. 26 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 38. 27 Ibid.

  • Breve Histria do Futebol 33

    Os britnicos criaram a tradio de construir, nos arredores e at mesmo no espao

    interno das fbricas, campos para a prtica de futebol. Na exata medida em que os Grmios

    dos trabalhadores se organizavam, crescia o interesse, de ambas as partes proprietrios e

    trabalhadores , no incentivo do esporte. Associando esta prtica poltica proliferao das

    indstrias britnicas e, tambm, europias, no mundo inteiro, vamos ter a forma precisa como

    o futebol, em sua verso moderna, se propagou pelos quatro cantos do planeta. O futebol neste contexto histrico de grandes transformaes recebe caractersticas prprias e universais, gerenciadas por lgicas racionais, regras e cdigos, de modo que sua introduo em territrios fronteirios ou nas demais sociedades, se fez, na maioria das vezes, por expatriados ingleses e at por intermdio de fbricas de administrao britnica. O esporte breto entra na cultura brasileira atravs de um filho de britnicos Charles Miller que estudou na Europa e trouxe o jogo para o Brasil e, em terra frtil, proliferou entre as massas populares.28

    O futebol, portanto, apesar da variedade presente nas verses sobre a sua origem e

    apesar, tambm, do saudosismo com o qual fazem-se as referncias a ele, um esporte

    extremamente representativo e ilustrativo das formas pelas quais as relaes sociais se

    estabelecem. As sociabilidades possveis aos sujeitos numa sociedade esto todas elas

    expressas atravs dos mais diversos significados que a prtica do jogo possui.

    Explorando a diversidade de verses sobre sua origem foi possvel perceber aspectos

    do esporte futebol como um ritual sagrado, ou como uma diverso medieval e, logo,

    violenta, ou como uma prtica disciplinar, entre tantos outros antes escondidos por trs de

    mscaras saudosistas. Aspectos que nos possibilitam repensar o tom romntico e saudosista

    com o qual, atualmente neste momento de novas transformaes nas relaes estabelecidas

    dentro do futebol o esporte significado pelos cronistas esportivos, dirigentes e esportistas.

    Assim sendo, da mesma forma como fizemos em relao Inglaterra, vamos proceder em

    relao ao Brasil.

    28 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 39.

  • Breve Histria do Futebol 34

    O Futebol no Brasil

    necessrio fazer uma considerao antes de relatarmos as verses conflitantes sobre

    a origem do futebol no Brasil. Quando se estuda o tema futebol encontra-se um material

    extremamente vasto e abrangente produzido no meio acadmico, no mbito especfico deste

    esporte, apenas na Europa. H grande quantidade e qualidade de material sobre o futebol nos

    pases e culturas europias. No entanto, quando queremos pensar este esporte no Brasil, suas

    influncias dentro da cultura, economia, poltica e sociedade brasileira, ou mesmo sua

    histria, iremos encontrar, comparativamente, um nmero reduzido de estudos e trabalhos

    acadmicos. As cincias humanas brasileiras, apenas muito recentemente, tm voltado suas

    preocupaes em direo ao futebol. Por estas razes, o exame que se segue sobre a histria

    dele em nosso pas se apresenta, como toda a histria, com algumas lacunas. No entanto,

    objetivo aqui preencher algumas das lacunas deixadas pela histria oficial ou, pelo menos, a

    que aceita como tal do futebol em terras brasileiras. O esporte contribui para desvendar as facetas histricas, sociolgicas, psicolgicas, antropolgicas e polticas de uma sociedade, abrindo-se possibilidade de caminhar, simultaneamente, na descoberta de segredos diversos. (...) Ele envolve inmeros interesses de cunhos ideolgicos, econmicos, religiosos, entre outros.29

    A histria oficial da origem do futebol no Brasil nos conta que o paulistano do Brs,

    Charles Miller, o responsvel direto pela introduo da instituio do futebol. Nascido em

    1874 e filho de ingleses e escoceses, foi, aos nove anos de idade, estudar na Inglaterra.

    Retornou ao Brasil em 1894 trazendo em sua bagagem duas bolas para a prtica de futebol, de

    fabricao inglesa, da marca Shoot, dois uniformes completos, uma bomba de ar, uma agulha

    e um pequeno livro contendo as regras bsicas tais como haviam sido definidas poucos anos

    antes pela Federao Inglesa de Futebol alm das experincias que teve como jogador de

    futebol nas escolas inglesas pelas quais passou. Excelente jogador, habilidoso no trato da bola e artilheiro implacvel. Em 25 partidas oficiais de seu colgio, na Inglaterra, marcou 41 gols, uma admirvel mdia de 1,64 gol por jogo. Foi convocado entre os melhores atletas para jogar no time do Southampton, uma espcie de seleo regional. Chegou a disputar, tambm, uma partida, na qual teve brilhante atuao, contra a famosa equipe do Corinthian, que, anos depois, inspirou a criao do Corinthians Paulista.30

    29 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 39. 30 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 95.

  • Breve Histria do Futebol 35

    De volta ao Brasil, aos 20 anos de idade, com os instrumentos necessrios para a

    prtica do jogo e o gosto por ele adquirido durante sua estada na Inglaterra, comeou a formar

    amizades e abrir caminhos para a prtica do esporte nos tradicionais clubes dos ingleses que

    haviam na cidade de So Paulo. Rapidamente, o esporte ganhou alguma popularidade entre a

    elite da poca.

    Charles Miller organizou e participou do primeiro jogo, vencido pelo seu time, o

    So Paulo Railway. Trabalhou incansavelmente, como um verdadeiro apaixonado, pela

    implantao, difuso e estruturao do futebol. Primeiro, atuou durante muito tempo como

    jogador. Depois atuou como rbitro por mais alguns anos at falecer em 1953, aos 79 anos de

    idade. Uma vida inteiramente dedicada ao esporte.

    A histria acima no est completa e tampouco a nica verso sobre a origem do

    futebol em nosso pas. certo que Charles Miller atribuda a responsabilidade direta pela

    introduo do futebol no pas, ao menos no que concerne s verses oficializadas e

    institucionalizadas deste esporte. No entanto, existem outras verses que nos falam da

    influncia que os ndios tiveram no esporte, de um desenvolvimento marginal do futebol nas

    grandes cidades e que nos fornecem concepes alternativas sobre qual teria sido realmente o

    primeiro jogo de futebol realizado em terras brasileiras. Histrias que no podem ser

    minimamente negligenciadas devido ao seu carter explicativo da influncia que o futebol

    exerce na cultura e das prprias transformaes que ele sofreu ao longo de pouco mais de cem

    anos em terras brasileiras.

    muito conhecido o fato mais amplo de que os ndios brasileiros influenciaram muito

    a cultura brasileira no que se refere ao gosto, extremamente popular, pelos jogos e brinquedos

    infantis de arremedo de animais. A popularidade destes jogos, s vezes no to infantis, como

    o jogo do bicho, atesta esta afirmao. O jogo do bicho, como conhecido, consiste em

    apostar dinheiro em nmeros que, cada grupo de quatro, correspondem a animais,

    predominantemente da fauna brasileira. Este jogo de azar, entranhado que est na cultura,

    encontra razes para sua imensa popularidade, entre outros fatores, nos resduos animistas e

    totmicos das culturas indgenas brasileiras, e ganha um grande reforo com os resduos

    animistas e totmicos das culturas indgenas africanas.

  • Breve Histria do Futebol 36

    No entanto, o que pouco conhecido o fato de que estes mesmos ndios

    influenciaram sobremaneira o mais legtimo esporte breto exatamente no instrumento que o

    principal objeto de toda a disputa a bola. Pode-se praticar o futebol e quaisquer condies

    climticas, geogrficas e espaciais e com qualquer quantidade de pessoas, mas nunca sem a

    bola. H ... uma contribuio ainda mais positiva do menino amerndio aos jogos infantis e esportes europeus: a bola de borracha por ele usada num jogo de cabeada. Este jogo brincavam-no os ndios com uma bola, provavelmente revestida de caucho, que aos primeiros europeus pareceu de um pau muito leve; rebatiam-na com as costas, s vezes deitando-se de borco para faz-lo.31

    Todas as bolas que apareceram nos diversos relatos sobre as origens do futebol eram

    feitas de pele animal e recheadas com algum material vegetal ou animal. As bolas utilizadas

    pelos ndios brasileiros era feita de borracha e era muito leve em comparao com as outras.

    Desta forma, no de se estranhar que a bola confeccionada pelos ndios tenha percorrido,

    atravs dos portugueses, toda a Europa. As prprias bolas que Charles Miller trouxe ao pas j

    possuam a borracha como um dos materiais utilizados em sua confeco. Eram bolas de

    couro, costuradas por fora, que tinham uma cmara de ar, feita de borracha, por dentro.

    Existem ainda registros mostrando a presena desta bola ou de alguma bola que deriva sua

    tecnologia desta nas prticas do futebol no oficial, em terrenos de vrzea e nas ruas das

    grandes cidades, quando o futebol j era prtica oficializada no Brasil.

    Alm da influncia dos ndios, outro ponto que merece destaque uma certa

    impreciso no que diz respeito a data e a quem trouxe o futebol para o Brasil. Talvez

    possamos acompanhar os estudiosos que designam Charles Miller como o responsvel por

    este feito, mas apenas no que tange introduo de uma instituio: algo muito mais amplo e

    abrangente do que a simples prtica do jogo de futebol. No entanto, antes de ele retornar ao

    Brasil, vindo da Inglaterra, j se encontram relatos de ocorrncias de jogos de futebol. A introduo do futebol no Brasil polmica. H inmeras verses. Alguns sustentam que os marinheiros ingleses chegaram ao Rio de Janeiro em 1872, com uma bola. L, teriam realizado as primeiras partidas. Outros insistem que o primeiro jogo ocorreu em So Paulo, em 1894. Ele teria reunido os operrios da Companhia de Gs e os ferrovirios da So Paulo Railway. Os ferrovirios venceram por 4 a 2.32

    31 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1963. APUD MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 92. 32 RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis / RJ: Editora Vozes, 1984, pp. 26/27.

  • Breve Histria do Futebol 37

    Sempre que aportavam, os marinheiros ingleses, em seus momentos de folga,

    praticavam o futebol. H registros de alguns jogos realizados por eles no ano de 1878 nos

    jardins da residncia da Princesa Isabel, a pedido dela que, segundo consta, adorava esportes.

    Tambm existem relatos mostrando a prtica de futebol por funcionrios das fbricas de

    origem britnica, que aqui existiam. Podemos inferir, portanto, que para alm da histria

    oficial, o futebol no Brasil apresenta uma histria marginal, que vai sendo construda pelas

    mais diversas influncias. Assim, poderemos inferir tambm que esta histria oficial

    fundamenta-se em alguns valores que precisam ser explicitados. uma histria que justifica o

    atual momento poltico do futebol onde se formam verdadeiros lobbies nacionais para

    defender um sistema e uma estrutura fracassadas33. Mas todo lado tem dois lados, e, paralelamente, a esta histria oficial, elitista e racista, vinha sendo gestado, no seio das camadas populares, um processo subterrneo, clandestino, de paixo, divulgao e prtica futebolsticas. Driblando com engenho e arte todas as interdies, por meio da vrzea, das peladas e da periferia, pretos, mulatos e brancos, pobres engendraram uma posio firme e marcante historicamente: a da apropriao e inverso do cdigo vigente, isto , a popularizao e democratizao do futebol. Este processo, entranhado na realidade brasileira, atravessar os anos da Belle poque, mais ou menos no anonimato (destaque para a fundao do Corinthians, em 1910, de origem realmente popular), e ver instalada e reconhecida sua vigncia, a partir da dcada de 20, mais precisamente, 1923, quando o Vasco da Gama foi campeo carioca campanha extraordinria, quase invicta, perdeu somente uma partida para o Flamengo, por 3x2, no chamado Jogo das Ps de Remo, onde os robustos remadores rubro-negros agrediam com as ps de remo os torcedores vascanos.34

    O futebol nasce elitista e racista em 1894, seis anos aps a Abolio da Escravatura.

    Praticado apenas pelos ingleses e seus descendentes, estudantes brasileiros do College

    Mackenzie, logo foi sendo praticado tambm por outros membros da elite. Em 1897, o alemo

    Hans Nobiling organiza um time e rompe com a exclusividade dos britnicos. Aos poucos

    foram se organizando os primeiros clubes e em 1902 aconteceu o primeiro Campeonato

    Paulista, com a participao de apenas cinco clubes. Todos eles formados apenas por

    jogadores amadores originrios da elite paulistana da poca. Nenhum jogador negro ou

    mesmo pobre atuava em algum clube.

    Esta situao que caracteriza o futebol como esporte elitista e racista permanece ao

    longo de mais de trs dcadas. Aos poucos, neste perodo, com o crescimento dos

    campeonatos, com a competitividade dos times e a criao de alguns outros times

    (Corinthians e Vasco, por exemplo) de origem popular, o futebol ganha outros contornos.

    33 Veja-se a este respeito o debate, na sociedade brasileira e, principalmente, no Congresso Nacional, que se prolongou por mais de um ano, em torno das proposies de modernizao do esporte contidas no que ficou conhecido como Lei Pel. 34 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 97.

  • Breve Histria do Futebol 38

    Depois que o Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, ganha o campeonato estadual, em

    1923, com um time formado por negros, mulatos e pobres, se inicia a fase mais clandestina do

    futebol. Os negros e os pobres, os trabalhadores das fbricas e outras pessoas do povo

    comeam a ser includos nos times para dar-lhes mais competitividade. Uma incluso, nesta

    poca, ainda bastante estigmatizada.

    Nestas trs dcadas o futebol acompanhou bastante de perto o crescimento urbano das

    cidades. medida que as vilas operrias iam se criando, times eram formados em centenas de

    pequenos campos de vrzea. Alheios aos campeonatos oficiais dos grandes clubes, foram

    conquistando a simpatia da sociedade e a admirao do pblico. Organizavam seus prprios

    campeonatos e da surgiram vrios times de origem mais popular. Jogadores eram formados

    nos campos de vrzea e eram chamados para atuar nos grandes clubes.

    Em 1933, o futebol profissionalizado. Isto precisou ser feito para conter o xodo de

    jogadores brasileiros para o exterior e para oficializar, atravs do vnculo empregatcio, a

    situao dos jogadores negros e pobres. Neste momento, a maior parte das figuras

    filantrpicas da elite nacional, que habitavam o comando do esporte, afasta-se. Deixam a

    administrao dos clubes nas mos dos industriais e comerciantes emergentes da poca. Com o surgimento do profissionalismo, o capitalismo industrial, tanto na Gr-bretanha quanto no Brasil, passou a atuar nas relaes sociais e o futebol penetrou nas culturas urbanas e industriais. (...) Desta forma, a administrao dos clubes por negociantes e industriais gerava a possibilidade do atleta habilidoso na arte da bola, trabalhar numa indstria e receber altos salrios, obter ganhos extras com os chamados bichos e, acima de tudo, adquirir prestgio.35

    A profissionalizao das relaes no futebol inaugura uma fase de transio em

    direo popularidade do esporte. Fase esta marcada por relaes extremamente paradoxais

    entre uma prtica elitista e racista e outra extremamente negra e popular. nesta fase,

    principalmente com o governo populista o Estado Novo de Getlio Vargas, que estas

    relaes paradoxais atingem o seu apogeu.

    Os jogadores negros e os de origem humilde passam, aos poucos, a serem aceitos nas

    equipes. Aceitao esta muito condicionada s suas habilidades e capacidades de contribuir

    para a competitividade de cada equipe. O investimento estatal, neste sentido, o da incluso das

    35 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997.

  • Breve Histria do Futebol 39

    diferenas sociais no esporte e consequente popularizao deste, toma um corpo ainda maior

    com a construo de estdios e a promoo da Copa do Mundo de 1950.

    Os maiores marcos deste perodo so as construes do Estdio Municipal Paulo

    Machado de Carvalho, o Pacaemb, no incio da dcada de 40 e do Maracan, o maior estdio

    do mundo, no final da mesma dcada, objetivando sediar o jogo final da Copa do Mundo de

    1950. A popularidade do futebol se propaga muito nesta poca, tambm por causa das

    transmisses radiofnicas. Este momento de transio vai ter seu fim marcado pela derrota

    brasileira na Copa do Mundo de 1950, atribuda natural inferioridade da mestiagem

    brasileira.

    Depois da Copa, com a popularidade j bastante estabelecida dentro da sociedade, o

    futebol vive um perodo de grandes revolues, que o projetam em nvel internacional. Tal

    feito acompanhado tambm da projeo de uma imagem do povo brasileiro, de nossa

    cultura, enfim, para o mundo. Entre 1950 e 1970 foram trs conquistas de Copa de Mundo,

    feito indito at aquele momento. Neste perodo tambm foram conquistados alguns

    campeonatos mundiais interclubes. O Santos Futebol Clube, de Pel e companhia, ganhou

    dois destes torneios na dcada de 60.

    Assim, o Estado, que j vinha investindo no esporte como um dos instrumentos que

    pudesse transmitir suas mensagens por todo o territrio nacional, aumenta sua participao. O

    futebol, como elemento aglutinador de paixes, foi objeto de altssimos investimentos por

    parte do Estado. A construo dos estdios continua em todos os importantes pontos do

    territrio nacional. O bicampeonato mundial, conquistado nas Copas de 1958 e 1962,

    confirma esta idia.

    Neste perodo ainda, mas j sob os mantos da ditadura militar, a partir de 1964, que o

    futebol vai encontrar outras formas de expressar sua sociabilidade. Torna-se um dos principais

    instrumentos ideolgicos do Estado. durante o governo militar que se desenvolvem idias

    que associam a imagem do brasileiro diretamente ao universo do futebol. O Brasil ser, por

    exemplo, concebido como o pas da bola e a ptria de chuteiras. Foi a poca da criao de

    alguns slogans, bastante denotativos da relao entre o brasileiro e o futebol e do uso

    ideolgico que o Estado fez desta relao. Slogans, tais como: A Taa do Mundo nossa,

  • Breve Histria do Futebol 40

    com brasileiro no h quem possa!, 120 milhes em ao, pr frente Brasil, do meu

    corao! e Ningum segura mais este pas!.

    Durante o final dos anos sessenta e os anos setenta, quando o Brasil conquista o

    tricampeonato mundial, o governo construiu estdios de grande porte em todos os pontos

    estratgicos do territrio nacional. Todos os Estados da Unio receberam seus estdios e a

    visita promocional dos diversos selecionados brasileiros para jogos internacionais. A antiga

    CBD Confederao Brasileira de Desportes recebe a misso de expandir o futebol e o

    poder poltico do governo militar. Para tanto, assume para si a organizao do calendrio dos

    campeonatos estaduais e a criao do Campeonato Brasileiro. Para contribuir com este projeto

    tambm criada a Loteria Esportiva, com o objetivo de arrecadar dinheiro para as despesas

    dos clubes e da prpria CBD com os campeonatos.

    Durante toda a dcada de 70, juntamente com os sucessivos fracassos brasileiros no

    futebol mundial, o calendrio dos campeonatos de futebol promovidos pela CBD sofreu

    inmeras e incontveis alteraes. suficiente referir que as regras das competies e o

    nmero de equipes participantes no se repetiram de um ano para o outro durante este

    perodo. Tais alteraes transformaram o campeonato nacional em um verdadeiro instrumento

    de manobras com finalidades polticas. A oposio ao governo criou, inclusive, um slogan

    bastante ilustrativo desta situao: Onde a ARENA vai mal, um time no Nacional! No

    campeonato de 1979 chegamos a ter a participao de 96 clubes de 70 municpios brasileiros.

    As frmulas de disputa dos campeonatos eram criadas, ano aps ano, muito mais a partir das

    necessidades polticas do que de outras. Esta situao sustenta-se por uma dcada e, no incio

    dos anos 80, comea a sofrer com as transformaes polticas da sociedade.

    A dcada de 80 marca a pior fase do futebol brasileiro, tanto no plano interno quanto

    em nvel internacional. No perodo da abertura poltica, as discusses, que antes eram

    proibidas de ir a campo ou mesmo de sair s ruas, tomam exatamente estes espaos. Ganham

    um determinado corpo justamente dentro das quatro linhas que demarcam o campo de futebol.

    A maior expresso deste momento histrico foi a Democracia Corinthiana, uma gesto na

    qual diretores e jogadores do clube participavam ativamente de todas as decises referentes ao

    futebol. A Democracia Corinthiana teve como expoentes jogadores do porte de Scrates,

    Casagrande e Vladimir, entre outros, alm do dirigente Adilson Monteiro Alves, depois eleito

    deputado estadual pelo PMDB. Procurando refazer as relaes sociais dentro da esfera do

  • Breve Histria do Futebol 41

    futebol, especificamente no interior do Sport Club Corinthians, foi tomada como exemplo

    para outros mbitos. Tornou-se modelo de administrao das relaes atravs da prtica de

    valores tais como liberdade e democracia. A conquista de diversos campeonatos tambm

    colaborou, e muito, para que esta administrao fosse tomada como um modelo.

    Ao mesmo tempo estouravam os escndalos em torno do futebol por todo o pas. A

    corrupo foi denunciada para a opinio pblica. Os maiores escndalos envolviam a

    corrupo de dirigentes e rbitros e jogadores para favorecer resultados polticos e, pior,

    manipulao de resultados de jogos da Loteria Esportiva. Foi a poca em que a sociedade

    ficou conhecendo a famosa Mfia da Loteria. Juntamente com estes fatos, que denunciaram

    as relaes criminosas estabelecidas no interior do futebol para monopolizar ganhos pessoais

    e polticos, a dcada de 80 tambm foi marcada pela especulao imobiliria e por um

    desenvolvimento urbano desorganizado, o que conduziu ao desaparecimento de

    aproximadamente dez mil campos de vrzea. O futebol marginal foi praticamente eliminado

    do cenrio urbano.

    Todos estes acontecimentos da dcada de 80 determinam novos cenrios para o

    futebol dentro da sociedade brasileira. Os grandes craques brasileiros vo para o exterior, os

    clubes no tem mais condio de competir com o mercado externo. Reinaugura-se, neste

    momento, uma prtica comercial entre clubes que hoje bastante comum, desejada e que

    envolve um nmero cada vez maior de atletas em transaes de cifras astronmicas. Toda a

    desestruturao vivenciada pelo futebol nesta dcada no conseguiu conter o xodo dos

    jogadores, principalmente, para a Europa.

    Assim, aos grandes clubes restou a possibilidade de iniciar um investimento massivo

    na estruturao e consolidao das categorias de base. A vrzea no revelava mais craques,

    mesmo porque havia sido praticamente abolida do cenrio urbano. Foi o perodo de maior

    expresso de tcnicos que investiam nos jovens valores e lhes davam oportunidade. O

    resultado de tais investimentos mostrou-se bastante satisfatrio e tcnicos como Tel Santana

    e Cilinho dominaram o imaginrio futebolstico daquele momento. Ficou muito famoso o

    time do So Paulo Futebol Clube formado, em sua maioria, por jogadores muito novos e que,

    no entanto, conquistaram vrios ttulos importantes. No tiveram maior expresso pelas

    sucessivas eliminaes do Brasil nos torneios mundiais.

  • Breve Histria do Futebol 42

    Acoplada idia da formao de categorias de base nos clubes, surgem por todo o

    espao urbano, dezenas de escolinhas de futebol. Grande parte dos craques do passado

    convidada a estruturar essas escolas nas quais possam ensinar as crianas a sua experincia e

    as suas concepes tticas e tcnicas. As escolas surgem tambm como alternativa a

    inexistncia dos antigos campos de vrzea, de onde eles mesmos haviam sido descobertos

    para o futebol. Os convites possuem duas origens distintas. Uma grande parte destes so

    originrios da iniciativa privada, independente at mesmo dos clubes de futebol. Alguns

    empresrios resolvem investir em grandes nomes do passado com objetivo de atrair a classe

    mdia e a alta para o esporte. Outra parte dos convites formulada por algumas prefeituras

    municipais que decidem bancar a formao de atletas para o futuro, sendo que este projeto se

    insere mais amplamente em alguns outros projetos de educao e de retirada de crianas

    carentes das ruas.

    No incio dos anos 90, outra revoluo tomou conta do futebol, mais uma vez

    expresso das polticas econmicas e sociais mais amplas. Os clubes de futebol deixam de ter

    a assistncia do Estado e o calendrio esportivo organizado pela CBF Confederao

    Brasileira de Futebol , ainda catalisador de interesses diversos, mostra-se um elemento

    impossibilitador do comparecimento do pblico aos estdios. O prejuzo cresce porque os

    bons jogadores vo embora e o pblico tambm. Os clubes passam a necessitar de

    reformulaes estruturais e inaugura-se a poca das ligas independentes de clubes que fazem

    valer o seu potencial poltico. poca, tambm, da entrada de capital privado externo criando

    os chamados clubes-empresa. Parcerias so firmadas com grande sucesso e o melhor marco

    deste momento histrico o convnio entre a Sociedade Esportiva Palmeiras e a

    multinacional Parmalat. Esta ltima traz para o Brasil a experincia bem-sucedida da

    administrao de vrios clubes de expresso europeus. Com os resultados regionais e

    nacionais que esta parceria obtm, os outros clubes so obrigados a se reformular para

    poderem competir e, assim, outras formas de parceria so criadas.

    Da competitividade que vai se estabelecendo aos poucos, ao longo dos anos, o melhor

    resultado a conquista do tetracampeonato mundial do selecionado brasileiro no ano de 1994.

    Conquista esta que nos reconduziu ao topo do ranking futebolstico mundial novamente.

    Somos o nico pas com quatro campeonatos mundiais em todo o mundo. O Brasil continua

    ocupando o primeiro lugar no ranking da FIFA, mesmo aps ter sido derrotado na final da

    Copa da Frana. Permanecemos como o pas do futebol.

  • Breve Histria do Futebol 43

    O futebol, portanto, participou ativamente, desde os primeiros momentos, da cena

    social brasileira. A atual referncia saudosista e romntica que se faz ao passado no se

    justifica pela histria deste esporte dentro da sociedade. A sua histria, como pudemos

    acompanhar permeada pelas mesmas desigualdades, excluses sociais e polticas diversas

    que vem caracterizando a sociedade nestes ltimos cem anos. O objetivo aqui era mostrar o

    futebol como um dos possveis elementos da sociabilidade do brasileiro e, como tal, ele no

    esconde as ambiguidades deste universo de possibilidades do ser humano.

    A referncia saudosista que se faz a uma beleza esttica perdida pura mistificao e

    tambm paradigmtica das relaes sociais burocraticamente disciplinadas. O futebol , e

    sempre foi, um espelho no qual esto refletidas as formas pelas quais as relaes sociais se

    estabelecem. A violncia dentro de campo e fora dele sempre existiu, desde o incio. A

    violncia como prtica de excluso e marginalizao social marca o esporte desde o seu

    incio, seis anos aps a abolio da escravatura no pas. As desigualdades sociais, diferentes

    em cada momento histrico, sempre encontraram reflexos no interior das relaes promovidas

    pelo futebol. Cobrir o espelho , portanto, mistificar os aspectos da realidade que ele nos

    evidencia.

    A independncia estrutural e institucional que est significada no futebol falseadora

    e encobridora das relaes de nepotismo, favorecimentos polticos, m administrao do

    dinheiro e corrupo que envolvem o esporte, da mesma forma como envolvem outras

    instituies sociais. Neste momento de transformaes estruturais pelas quais passa o futebol

    bastante paradigmtica a referncia saudosista ao passado.

    Analisando as relaes burocrticas, Jurandir Freire Costa, nos prope um olhar para

    as formas como elas se estabelecem no interior da sociedade e dominam as relaes, criando

    uma cultura cnica e perversa. Acompanhando este seu trabalho, apoiado que est nas anlises

    polticas de Hannah Arendt, vamos poder perceber a forma pela qual os burocratas mistificam

    o passado e, assim, procuram perpetu-lo e se eximir das responsabilidades que as novas

    mudanas impem.

  • Breve Histria do Futebol 44

    O passado da burocracia sempre um passado cindido em passado remoto e passado prximo. No passado remoto, distanciado do olhar e do testemunho atuais, o burocrata concretiza a fantasia de uma responsabilidade que nunca teve. Tal passado um mero expediente para desmoralizar o que se tenta fazer no presente. (...) Quanto ao passado recente, apenas um argumento retrico, usado para revalorizar o passado mistificado e afirmar a no responsabilidade pelo descalabro presente. De qualquer forma, a falcia passadista resulta em mais acusaes ao perseguidor, desta feita, sob o modo especioso de crtica em nome da tradio ou dos bons hbitos dos velhos tempos.36 A referncia que o autor aponta em relao a forma com que o burocrata lida com o

    passado nos serve perfeitamente para pensarmos o que fazem os burocratas do futebol, isto ,

    todos os envolvidos com o futebol: os cronistas esportivos, os jornalistas, os especialistas,

    comentaristas etc. Estes burocratas do futebol representam a mdia esportiva nacional e,

    atravs dela, colaboram na construo da imagem saudosista romntica do esporte.

    36 COSTA, Jurandir Freire. Psiquiatria burocrtica: duas ou trs coisas que sei dela. In ARAGO, L.T. (et al.) Clnica do social: ensaios. So Paulo: Escuta, 1991, pp. 56/57.

  • Breve Histria do Futebol 45

    Captulo II

    As Torcidas Organizadas

    de Futebol

  • Breve Histria do Futebol 46

    Pretende-se, nesta parte do trabalho, analisar-se alguns aspectos histricos e sociais

    importantes relativos criao e ao desenvolvimento das Torcidas Organizadas de Futebol.

    Antes disso, porm, critica-se o enfoque unilateral e restritivo que tem caracterizado muitos

    dos estudos sobre esses grupos, pelo fato de os apresentarem tendo, por motivao e

    finalidade, unicamente, a prtica da violncia.

    A Concepo Unilateral: A Torcida Organizada

    como contexto centralizador de violncia

    As torcidas de futebol, provavelmente, existem desde que existe o esporte. bastante

    pertinen