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Waldemar Henrique
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1
Universidade Federal do Par
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia
ROBERT MADEIRO DIAS
Em guas e lendas da Amaznia: os outros brasis de Waldemar Henrique e
Mrio de Andrade (1922-1937)
BELM
2009
2
ROBERT MADEIRO DIAS
Em guas e lendas da Amaznia: os outros brasis de Waldemar Henrique e
Mrio de Andrade (1922-1937)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria Social da Universidade
Federal do Par, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de mestre em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo.
(IFCH-UFPA).
BELM
2009
3
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
(Biblioteca de Ps-Graduao do IFCH/UFPA, Belm-PA)
Dias, Robert Madeiro
Em guas e lendas da Amaznia: os outros brasis de Waldemar Henrique e Mrio de
Andrade (1922-1937) / Robert Madeiro Dias; orientador, Aldrin Moura de Figueiredo. -
2009
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Par, Instituto de Filosofia e Cincias
Humanas, Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia, Belm, 2009.
1. Amaznia - Histria. 2. Henrique, Waldemar, 1905-1995. 3. Andrade, Mrio de, 1893-
1945. 4. Histria social. 5. Modernismo. I. Ttulo.
CDD - 22. ed. 981.1
4
ROBERT MADEIRO DIAS
Em guas e lendas da Amaznia: os outros brasis de Waldemar Henrique e
Mrio de Andrade (1922-1937)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade
Federal do Par, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de mestre em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo.
(IFCH-UFPA).
Data de Aprovao:
Banca Examinadora:
Prof. Doutor Aldrin Moura de Figueiredo
(PPHIST-UFPA)
Prof Doutora Margarida de Souza Neves
(PUC-Rio) Departamento de Histria.
Prof. Doutora Maria de Nazar Sarges.
(PPHIST-UFPA)
Prof Doutora Magda Maria de Oliveira Ricci
(PPHIST-UFPA) (Suplente)
5
Agradecimentos
Agradeo primeiramente a Deus, este momento, esta etapa de minha vida. A
experincia do mestrado e todo percurso que me fez chegar a este momento de meus estudos,
o meu caminho como um historiador.
Meus agradecimentos vo de modo especial para os meus professores, que da
graduao ao mestrado estavam a ensinar o ofcio de pensar a histria. Professores e
professoras que da experincia proporcionada na relao professoraluno nos possibilitam,
cada vez mais, o entendimento da profisso na rea de Histria. Agradeo aos professores:
Magda Ricci, Leila Mouro, Edilza Fontes, Franciane Lacerda, Maria de Nazar Sarges,
Celeste, Mauro Cezar Coelho, Rafael Chambouleyron, Otaviano Junior, Paulo Watrin, ao
professor Alves e ao professor Maia, ao professor Alrio e ao professor Rangel, ao professor
Dcio Guzmn e a todos que, com seus estudos, suas pesquisas e aulas ensinam-nos a pensar
a Histria. O mestrado foi o momento fundamental desta maturao, de estudos e de leituras
com um olhar mais aprimorado. Devo agradecimentos, de modo especial, ao meu orientador
Aldrin Moura de Figueiredo. Agradeo tambm professora Francesca Focaroli, que apesar
da rpida passagem por nossa universidade, pde ajudar-me em dilogos muito proveitosos.
Meus agradecimentos ainda a Cludio Seabra, do Museu da Imagem e do Som (MIS),
pela precisa colaborao em meu acesso s fontes. Agradecimentos tambm a Sebastio
Godinho, amigo de Waldemar, pela oportunidade de dialogarmos. Agradeo ao Setor de
Documentao Arquivstica do Sistema Integrado de Museus (SIM), e a Nazar Lima, D.
Marisete, pelo material utilizado e pelo aceite possibilitando-me acesso constante aos textos
manuscritos de Waldemar Henrique.
Meus agradecimentos sinceros minha famlia, meu pai e minha me, meus irmos.
Meus parentes e amigos. s pessoas que estimam minha amizade, que do gestos de carinho e
apreo. Agradeo minha namorada Ftima Melo, leitora assdua, que est a me ajudar com
sua sensibilidade e nas revises de meus textos. Agradecimentos sero constantes na luta e na
perseverana de, cada vez mais, buscar a realizao de antigos e novos sonhos. Hoje um dia
especial.
Belm, 9 de junho de 2009.
6
Todas essas ousadas aves que voam para espaos distantes,
sempre mais distantes vir certamente um momento em que no
podero ir mais longe e vo pousar sobre um mastro ou sobre um
rido recife bem felizes ainda por encontrarem esse miservel
refgio! Mas quem teria o direito de concluir disso que diante delas
no se abre uma imensa via livre e sem fim e que voaram para to
longe quanto possvel voar? Entretanto, todos os nossos grandes
iniciadores e todos os nos precursores acabaram por parar e o gesto da
fadiga que pra no das atitudes mais nobres e mais graciosas: isso
vai acontecer tanto para mim como para ti! Mas que me importa e que
te importa! Outras aves voaro mais longe! Este pensamento, essa f
que nos anima, toma seu impulso, rivaliza com elas, voa sempre mais
longe, mais alto, se lana diretamente para o ar, acima de nossa cabea
e da impotncia de nossa cabea e do alto do cu v na imensido do
espao, v agrupamentos de aves bem mais poderosas que ns e que
se lanaram na direo para a qual nos lanamos, onde tudo ainda s
mar, mar, e sempre mar! Para onde ento queremos ir? Queremos
ultrapassar o mar? Para onde nos arrasta essa poderosa paixo que
para ns conta mais que qualquer outra paixo? Por que esse vo
perdido nessa direo, para o ponto onde at agora todos os sis
declinaram e se extinguiram? Dir-se- talvez um dia que ns tambm,
dirigindo-nos sempre para o oeste, espervamos atingir uma ndia
desconhecida mas que era nosso destino encalhar diante do
infinito? Ou ento, meus irmos, Ou ento?
Nietzsche, Aurora, Aforismo 575.
7
Resumo
Mrio de Andrade e Waldemar Henrique so conceituados artistas brasileiros. O
primeiro como intelectual de renomada importncia dentro do movimento modernista, da
agitada Semana de 1922 s inmeras pesquisas e estudos sobre msica e folclore. Foi um
intelectual formador de uma inteligncia do pensamento nacional. Waldemar Henrique foi o
autor de uma gigantesca obra musical, suas primeiras composies remontam a Olhos verdes, de 1922, no Rio de Janeiro recebendo a denominao de Valsinha do Maraj, e Minha Terra, de 1923. Na dcada de trinta o seu trabalho ampliou-se tematicamente estendendo-se a motivos de folclore negro, a danas dramticas regionais, a canes e lendas
da Amaznia. Seus estudos de msica assim confluram com o folclore e seu nome
constantemente lembrado pela associao que perdura entre seu trabalho artstico e a
Amaznia.
Este estudo fundamenta-se na noo de experincia da Amaznia, nestes dois intelectuais, em um momento de suas obras em que este lugar conflui pelo conjunto de lendas
que d suporte e constri a narrativa de Macunama, em Mrio de Andrade, e pela srie
musical inspirada no universo lendrio amaznico de Waldemar Henrique. Um, nascido e
criado nesses matos e rios, nos d conta de um olhar nativo, o outro, um viajante a conhecer
coisas novas e a perceber, como afirma, outros brasis. Semelhanas e diferenas de suas abordagens movem-nos a concluses sobre a prpria Amaznia.
Palavras-chave: Waldemar Henrique. Mrio de Andrade. Modernismo. Amaznia.
8
Abstract
Mrio de Andrade and Waldemar Henrique are conceptualized Brazilian artists. The
first one as intellectual of renowned importance inside the modernist movement, of the
agitated Week of 1922 at the countless inquiries and studies on music and folklore. He was an
intellectual forming of an intelligence of the national thought. Waldemar Henrique was the
author of a gigantic musical work, his first compositions raise it Olhos verdes, of 1922, in the Rio receiving the denomination of Valsinha do Maraj and Minha Terra, of 1923. In the decade of thirty his work was enlarged thematically stretching out to causes of black
folklore, to dramatic regional dances, to songs and legends of the Amazon region. His studies
of the music flowed together with the folklore, and his name constantly is remembered by the
association that lasts a long time between his artistic work and the Amazon region.
This study is based on the notion of experience of the Amazon region on these two intellectuals, at a moment of his works in which this place flows together for the set of
legends that gives support and builds the narrative of Macunama in Mrio de Andrade and
for the musical series inspired in the legendary Amazonian universe of Waldemar Henrique.
When it was born and created in these bushes and rivers, and in the city of Belm, the other,
an inveterate traveler to know new things and to realize, how it affirms other Brazils. Similarities and differences of his approaches move us to conclusions on the Amazon region
itself.
Key words: Waldemar Henrique. Mrio de Andrade. Modernisme. Amazon.
9
Sumrio
Agradecimentos p. 05
Resumo p. 07
Abstract p.08
Abreviaturas p.10
Introduo
A pesquisa p.11
A vida contada em livros p.18
Os horizontes p.24
PARTE I: No Domnio das guas: Waldemar Henrique e Mrio de Andrade em viagem Amaznia (1922-1927).
1.1- Waldemar Henrique e a Amaznia. p. 28
1.2- A Amaznia e a experincia de Mrio de Andrade. p.38
1.3- Viagens, expedies, as similitudes e a Amaznia. p.50
PARTE II: Do gosto puro da terra: dos sortilgios da Amaznia e da arte folclrica
(1928-1937).
2.1 O Brasil das Iaras e de Waldemar Henrique na capital da Nao. p. 62
2.2 O pssaro uirapuru e a pedra muiraquit: amuletos da Amaznia. p.75
Consideraes finais p. 88
Fontes p. 93.
Referncia bibliogrfica p. 97
Anexo1 Partituras de Foi Boto, Sinh! e Tamba-taj. p. 103. Anexo2 Biografias de Waldemar Henrique e Mrio de Andrade. p.107.
10
Abreviaturas
MIS Museu da Imagem e do Som.
MHEP Museu Histrico do Estado do Par.
CWH Coleo Waldemar Henrique.
SIM Sistema Integrado de Museus.
11
Introduo
A Pesquisa
Waldemar Henrique lembrado pelo constante ato de narrar, de contar causos, de
rememorar histrias, num modo todo particular de faz-lo. A generosidade desse rapaz me
fez aproveitar de um conhecimento folclrico, que eu ignorava quase completamente, antes de
conhec-lo, 1 escreveu Maria d Apparrecida, sua segunda grande intrprete. Esta ligao
com o folclore permeia a sua vida. Chamei-o de poeta das lendas. Um compositor, um
contador de histrias, que narra tanto de forma meldica, quanto lingustica, a
indissociabilidade da obra musical, num elo contnuo entre seu trabalho artstico e o folclore.
Vivemos folcloricamente, lembrou Ascenso Ferreira. Sua obra envereda por tantas histrias
e confunde-se prpria trajetria de sua vida. Assim, fui ressaltando as intenes do autor
individuando o elemento lendrio em sua obra. Na perspectiva da histria social no
adotamos sua obra sobre o postulado da inexplicabilidade, resultado da atividade de
criadores singulares, atemporais, cujas obras seriam validadas por critrios estticos
absolutos, mas inserida como um testemunho histrico.2 Por isso a afirmativa em meu
trabalho de especializao, de que Waldemar Henrique e Mrio de Andrade, por meio de suas
abordagens artsticas, expressam verdades nacionais, por revelarem as circunstncias que as
tornaram possveis na profcua leitura sobre o ser nacional; por compreendermos as suas
ideias em conexo s ideias da realidade histrica de seu tempo vvido.
Este trabalho dialoga com a literatura absorvendo o movimento da sociedade, por
meio da obra literria, destrinchando no a sua suposta autonomia em relao sociedade,
mas sim a forma como constri ou representa a sua relao com a realidade social.3 A
percepo de que a literatura vai alm de um movimento esttico possibilitou a compreenso
intrnseca de que ela uma manifestao cultural e, portanto, suscetvel a vises de mundo e
historicidade. O historiador social debrua-se sobre a anlise da fonte literria: textos de
literatos, cronistas, poetas, romancistas, enfim, intelectuais, cultural e socialmente integrados,
1 Museu Histrico do Estado do Par. Coleo Waldemar Henrique. Carta de Maria d Apparecida. (d app)
para Waldemar Henrique. Paris, fevereiro maro 1978. Pasta P005. 028.11. 2 CHALHOUB, S. e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A Histria Contada: captulos de histria social
da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. (p. 7). 3 Idem. Ibidem.
12
em amplitudes diferentes conscincia histrica do momento vvido. Como criadores de
ideias, pela essncia mesma do intelectual, so produtores e transmissores de ideias, de
smbolos, de vises de mundo.
Quando iniciamos esta pesquisa, nosso objetivo, de fato, era o estudo sobre as lendas
abordadas artisticamente pelo msico paraense Waldemar Henrique. Com seu avano, passou
a revelar interesse tambm pelo intelectual paulista Mrio de Andrade, a partir da leitura do
artigo O anti-heri e a Cobra Grande: fronteiras literrias do modernismo na Amaznia de
Aldrin Moura de Figueiredo. A Amaznia talvez seja, afinal, o principal mito geogrfico do
modernismo brasileiro, justificando no toa que duas das obras de fundao do
modernismo brasileiro vieram a pblico depois de seus autores terem visitado a regio:
Macunama de Mrio de Andrade e Cobra Norato de Raul Bopp (1898 - 1984). 4 Neste
estudo, Figueiredo sugeria que da experincia de construo da brasilidade, o Brasil tomava
a imagem e o sentimento 5 de um pas dual: o lugar do moderno e civilizado, em
contrapartida ao primitivo, o rstico e o arcaico revelando as fronteiras rgidas dos territrios
do moderno e os lugares do tradicional 6. Se a Amaznia era um palco de possibilidades
para se pensar o pas na busca do genuno, por sua vez, sua apropriao era estritamente,
como uma reserva de slidas tradies populares.
Nesse contexto, tornou-se frutfero o estudo que estvamos desenvolvendo sobre
Waldemar Henrique e seu trabalho folclrico e o olhar de Mrio de Andrade, direcionando
uma reflexo acerca das abordagens artsticas distintas sobre a Amaznia nestes dois
intelectuais. E compreendendo as leituras do rapsodo Mrio de Andrade e do maestro
Waldemar Henrique como distintas, levantamos a problemtica sobre o porqu, num
momento de efervescncia intelectual de propores nacionais, sob a gide do modernismo, a
Amaznia foi diferentemente incorporada nos seus trabalhos artsticos. Leituras e
experincias distintas que revelam o Brasil deles, de Mrio de Andrade, uma leitura envolvida
pelo vu da cidade, do moderno e civilizado e Waldemar Henrique entre lendas, rios e
caboclos. Ambos com atitudes e valores envolvem-se em mundos verbais que transcendem o
mero contar. Um Brasil deles e da cultura deles, em comportamentos e falas intensificadas,
atentos aos interstcios da potica do espao, do lugar de suas origens, justificando e
4 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. O anti-heri e a cobra-grande: fronteiras literrias do modernismo na
Amaznia. In: Josebel Akel Fares. (Org.). Diversidade cultural: temas e enfoques. 1 ed. Belm: Unama, 2006, v.
2, p. 190-191. 5 Idem. p. 189.
6 Idem. p. 190.
13
instigando a refletirmos sobre suas experincias frente Amaznia. O primeiro captulo
revela atitudes emocionais poderosas da experincia de Mrio de Andrade no Norte
brasileiro, contudo mesclada como elemento de contemplao e contato. Aos significados de
Amaznia, revelam-se em Waldemar Henrique experincia e cotidianidade, medo e
supersties da infncia e da juventude, e a crena em Matintaperera emblemtica. Vindo da
grande cidade, a experincia de Mrio de Andrade sobre a Amaznia diferente, inicialmente
pela prpria natureza de seu contato, como viajante, de passeio a p, a descrever e a observar
costumes. Contatos que se engajam e se fortalecem pela busca da brasilidade, revelando
significados, abordagens artsticas, apreenses culturais, mistrios e smbolos referentes
Amaznia.
Eduardo Moraes percorre a arquitetura da construo ideolgica elaborada pelos
modernistas, onde o folclore recebe um trato especial. Num primeiro momento, Moraes
reflete sobre a renovao esttica galgada pelo movimento, que buscava para o pas um
lugar no mundo civilizado. Depois, num segundo momento, discorre sobre o caminho
tomado pelos modernistas, que passam a ter como preocupao fundamental a questo da
brasilidade. 7 Segundo Moraes, o folclore foi soluo e fundamento doutrinrio modernista,
constituiu clula fundamental para dar ensejo ao discurso do nacional, de uma cadeia de
redues, que foi do nacional ao popular, do popular ao folclrico. Se o elemento nacional
o elemento folclrico, podemos pensar o que nacional, com as mesmas categorias com que
pensamos a coisa folclrica. 8 De forma que o folclore atinge o internacional com as mesmas
categorias que o elemento nacional. Fazer arte folclrica, extrada da inconscincia do
povo, fazer arte nacional. A Amaznia ganha ntidos contornos nesta nova arte e,
simbolicamente, suas lendas passam a pertencer ao povo brasileiro, lembrando o Brasil, a
Amaznia e seus smbolos: a floresta, as guas, as pororocas, as lendas, os ndios, a natureza,
a diversidade na fauna e na flora, o lugar e sua realidade constituinte. Qual a viso que
estamos formando no momento atual sobre nossa realidade? Num mundo de smbolos e
vises de nacionalidade este trabalho vem instigar um olhar sobre a Amaznia.
7 Para uma leitura sobre estas noes de continuidade e ruptura dentro do movimento modernista em So
Paulo, ver a tese BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tiet, Tejo, Sena: A Obra de Paulo Prado. Campinas:
Papirus, 2000. 8 Ver Moraes, E. J. Modernismo e Folclore. In: CNFCP Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
Folclore e Cultura Popular: as vrias faces de um debate. (Srie Encontros e Estudos), Rio de Janeiro, Funarte/CNFCP. 1992. (p.77). Para uma sobre o tema, ver tambm CHAUI, Marilena. Sobre o nacional e o popular na cultura. In. Cidadania cultural. So Paulo: Editora Perseu Abramo, 2006. (p. 15-64).
14
Recolhendo as situaes biogrficas de Waldemar Henrique e as situando quanto ao
momento de sua produo, atentando aos aspectos culturais e polticos, sociais e histricos,
conclu um estudo anterior intitulado O Tempo e o artista: Waldemar Henrique e o Brasil
Amaznico (1922-1937). Avanando, a pesquisa seguiu timidamente a partir de uma palestra
do msico, em que ele sugeriu que o boto e no Macunama era de fato o grande anti-
heri brasileiro. Em Fascnio e persistncia do boto no Folclore Amaznico, em 19719, o
tema central de sua palestra era o boto: tal como no meu tempo, ouo comentar sobre o
boto aquelas mesmas histrias. Portanto, justifica Fascnio, como envolvimento
supersticioso, e Persistncia, como constncia temtica, do Boto no folclore da Amaznia. 10
Enfatizando, o pianista, diz no haver nenhum outro personagem de nossa mitologia que
se oferece to fabuloso de assunto aventuras e desventuras, faanhas e sortilgios com a
desenvoltura do boto. 11 Na cano Foi boto, Sinh, por exemplo, podemos constatar seu
envolvimento com o tema.
Tajapanema chorou no terreiro
Tajapanema chorou no terreiro
E a virgem morena fugiu no costeiro.
Foi bto, sinh
Foi bto, sinh,
Que veiu tent
E a moa levou.
No tar dansar,
Aquele dout,
Foi bto, sinh...
Foi bto, sinh.
Tajapanema se ps a chorar,
Tajapanema se ps a chorar,
Quem tem filha moa bom vigiar.
O boto no dorme
No fundo do rio;
Seu dom enorme,
Quem quer que o viu
Que diga que informe
Si lhe resistiu,
O boto no dorme
9 HENRIQUE, Waldemar. Fascnio e Persistncia do boto no folclore amaznico. In: GODINHO. S. S Deus
sabe por que. Ed. Falangola. Belm-Pa. (p.69-77). Trata-se de uma palestra proferida no Curso de Folclore promovido pelo Departamento de Turismo de Braslia, em agosto de 1971. 10
Idem. (p. 69). 11
Idem, ibidem.
15
No fundo do rio. 12
A letra da cano aborda a lenda do boto. Segundo a crena local, nas noites de lua
cheia, o boto, transformado em um belo rapaz, abandona as guas dos rios e dirige-se aos
terreiros, e, nas festas e danas, seduz as virgens morenas expressando a planta taja-panema
por meio de seu choro, o aviso populao dos perigos que se aproximam. Esse poema
ressalta todo um universo de sociabilidade existente nas comunidades ribeirinhas, que
aproxima continuamente o caboclo e sua prpria natureza e o mundo natural de que faz parte.
Ali os tempos se misturam, na concepo do tempo individual e o social, o tempo da natureza.
Quem narra conhece profundamente os valores que regem e circundam as crenas referentes
s iniciativas do boto. Conhece as narrativas mitolgicas que giram em torno dessa figura
lendria.
Este narrador conhecedor dos valores, das crendices locais, e manifesta-as quando
associa o choro do taj-panema virgem morena. A ao de seduzir ou mundi a moa, no
tempo dos versos, j ocorreu. O tempo de um passado recente enfatizado no refro: Foi
boto, sinh, Foi boto, sinh. Expresso enunciativa, que por sua vez enuncia o boto. 13 A
histria se desenvolve em um momento decisivo da trama local e toda ela se emaranha na
conjuno da ao do boto e seu lugar: o rio. Sobretudo na cultura ribeirinha e na relao rica
e mgica entre o homem e o rio. Medo e supersties se mesclam na representao do
imaginrio caboclo e indgena, que se presentifica por meio da cano. Nela, o narrador
auxilia constantemente o leitor, sendo esclarecedor de todos os elementos que compem o
drama: a virgem, o boto, a planta, o choro; a crena de que o boto sofre um processo de
metamorfose, deixando as guas em busca de conquistas. O movimento da narrativa
climatiza-se no momento em que, quase em um dilogo com o leitor, sai de um passado
recente e toma-se ao tempo presente: Quem tem filha moa bom vigiar! o clmax da
letra, um aviso, uma orientao, um dilogo, uma fala direta e clara. Um efeito enftico e
justificado, desejado, expressa o decorrer da narrativa, atentando-se exatamente para a relao
que o narrador mantm com o leitor.
12
Letra transcrita em ORICO, Osvaldo. Vocabulario de crendices amaznicas. So Paulo: Companhia Editora
Nacional. 1937. (p. 44-45). 13
Esses refros foram constantes no enunciar da dana que se esta danando. Olha o cco, Sinh, Quebra o cco, Sinh, Vira o cco, Sinh; refros comuns nos ccos do Nordeste. ANDRADE, M. Msica de Feitiaria no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1983. (p.27)
16
Pela interveno direta do narrador na histria cria-se uma espcie de simulacro,
dando um efeito de realidade na trama, quase ou mesmo afirmando um cuidado especial e
necessrio do lugar. Aqui, o tempo fictcio dos personagens confunde-se ao extremo ao tempo
real, vivido pelos sujeitos ribeirinhos, representando e enunciando verdades sobre suas
sociedades e seus atores sociais. Servindo como motivos lendrios: a noite, o sol, os astros, os
pssaros, as plantas, todos os elementos, todos os fenmenos. Magiando, mundiando,
enfeitiando as virgens ribeirinhas, o boto o anti-heri amaznico de Waldemar Henrique;
ele o mais rico em faanhas e sortilgios, ele destronou os demais, 14 afirmou o pianista.
Ao boto dedicou pelo menos trs obras, como a cano Manha-nungara, que narra as
iniciativas do boto. Pela caiara, o grito de angustia de cunh fere a harmonia em mais
uma escapada do boto, que no dorme no fundo do rio, por isso, Quem tem filha moa
bom vigi!.
Do alto palmar duma jussra
Vem o triste piar da iumra.
Os tajs pelo terreiro esto chorando
E no rio, resfolegando,
O bto-branco boiou!...(-)
Sentada na rede, cunh est rezando
A reza que Manha-Nungra ensinou...
Tupan, quem foi que me enfeitiou?
Manha-Nungra!
O grito rolou pela caiara,
Mi - velha se espantou.
Embaixo, na treva do rio
Dois corpos em cio,
Lutando, enxergou.
E pelo barranco
De novo soou
O grito de angustia
Que a cria soltou:
-Manha-Nungra!
Letra de Nunes Pereira (1892-1985), Oswaldo Orico refere-se a este compositor, como
profundo conhecedor das coisas amaznicas, por isso, faz referncia s suas explicaes sobre
as aventuras do boto, esclarecendo a partir da Orico, que o caboclo tem razo em apont-lo
como um perigoso stiro fluvial, um fauno das guas. Sentindo o cheiro do corpo feminino
14
HENRIQUE, Waldemar. Fascnio e Persistncia do boto no folclore amaznico. In: GODINHO. S. S Deus sabe por que. Ed. Falangola. Belm-Pa. (p.69).
17
(odor di femina), logo se aproxima. E fica excitado si descobre o fluxo menstrual. Conta-se,
no interior, que quando as conhs (sic) se arriscam a viajar incomodadas, o boto logo
descobre o rastro, e agitado, chega e vira as canoas. 15 A imagem de um terreiro beira do
rio, acrescido da jussra (aaizeiro) e do piar da iumra (coruja), vem mente um cenrio de
seduo e medo, na presena dos encantados que habitam a natureza.
O boto seria o anti-heri no por que no tenha carter ou por que seja preguioso,
mas pelos truques de que se vale para possuir as virgens morenas. Quem tem filha moa
bom vigiar. A cano Manha-nungara (me de criao), simboliza esse ataque de boto, no
caso, menina cunh, que pergunta ao deus Tupan: quem foi que me enfeitiou?
As distines estavam em que o anti-heri no rapsodo parte de seu lugar de origem a
mata, o tradicional e arcaico , como muito j se afirmou, e se direciona para a cidade em
busca do muiraquit, amuleto que perdeu e que d sentido narrativa de Mrio de Andrade.
J em Waldemar, o boto recebe maior crdito exatamente no que se identifica a dinmica do
que mais representa a cultura amaznica, no s suas lendas, mas sua persistncia, suas
crenas, seus costumes, atitudes e hbitos, sempre prximos e envolvidos em cenrios de
florestas e homens ribeirinhos.
As possibilidades desta pesquisa estavam latentes, e na distino das leituras sobre a
Amaznia nos dois intelectuais-artistas, insurgiu-se uma importante temtica para anlise.
Waldemar Henrique e Mrio de Andrade leram a Amaznia, naturalmente apresentando
semelhanas e diferenas, e o trabalho de especializao fora analisar os pressupostos de suas
leituras. As concluses foram surgindo e uma potencialidade simblica da realidade
constituinte da Amaznia se revelava, atraindo cada vez mais a compreenso de como se
davam essas similitudes e distines em seus trabalhos artsticos, como no caso da rapsdia
de Mrio de Andrade e das msicas de Waldemar Henrique. A Amaznia presente nos dois
trabalhos conduziu-nos de maneira inusitada a uma concluso que j entendamos satisfatria:
a intensidade de seus elementos constituintes em comparao ao Brasil moderno na busca da
brasilidade.
15
ORICO, Oswaldo. Vocabulario de crendices amaznicas. So Paulo: Companhia Editora Nacional. 1937.
(p.45).
18
A Vida contada em Livros
Assim, imagino, esto expostas as categorias fundamentais que sustentam o raciocnio
deste trabalho. Antes de seguir, julgo necessrio um breve conhecimento sobre a produo
biogrfica acerca de Waldemar Henrique e de Mrio de Andrade. O msico paraense entre os
anos de 1933 e 1936 escreveu uma srie de msicas pautadas no imaginrio lendrio
amaznico. A lenda do boto narrada na cano Foi boto, Sinh e Matintaperera foram feitas
em parceria com Antonio Tavernard em Belm em 1933; a cano Uirapuru, Cobra
Grande e Tamba-taja so de 1934; em 1935 comps e gravou Manha-nungara e em 1936
o tema Curupira. Os motes de suas canes, embora de sua autoria, so fruto de inspirao
folclrica, e as suas abordagens artsticas so relevantes a uma escrita que se queria nacional.
O pianista singrou as guas da Amaznia e continuamente absorveu-as em seu fazer artstico,
tornando-se um msico de renomado prestgio. Nesta reflexo, vamos rascunhando os passos
de um jovem artista e paulatinamente conhecendo uma sociedade que se apresenta pelo seu
olhar. Os princpios de seu trabalho esto em Belm enraizados nos anos anteriores a sua ida
ao Rio de Janeiro, em 1933, particularmente a partir de sua parceria com Antnio Tavernard
(1908-1935). Pelos interiores amaznicos conheceu muitas lendas. Homem catlico, religioso,
no era menos afetuoso s questes de astrologia, de modo profundo envolvido pelos
nmeros, por clculos e previses de numerologia para amigos, como Dalton Trevisan, com
quem trocou algumas cartas, e que estava impressionado pelo servio inestimvel prestado
pelo pianista, com suas previses de meu futuro. 16 Waldemar tambm escrevia mantras e
era ambicioso na busca de seus sonhos; desejava ser um artista, assim viver e ter seu sustento.
Sair de Belm representava um vasto cabedal de possibilidades. Uma vida. Quando inquirido
sobre a possibilidade de ir Europa desenvolveu a reflexo:
Assim, de momento, querendo quebrar essa rotina de boi-preso,
reacendo meu entusiasmo e minhas ganas de retomar o caminho que encetei
em abril de 1933 desde Belm do Par em busca do Sonho e da vida.
H quase 28 anos, por tanto, sai de casa, deixei a famlia, o emprego
no escritrio de Antonio A. Sobrinho, o conforto, amigos, segurana, terra
querida, coisas gratas, facilidades, razes de homem com 28 anos de idade.
Inquestionavelmente, 1961 um ano de mudana. Pela 2 e ltima vez
(no chegarei aos 84 anos para esperar a 3) Saturno atravessa minha 1 casa
16
MHEP. CWH. Carta de Dalton Trevisan a Waldemar Henrique. Sem local, 27/10; 06/11;15/11, sem ano.
Pasta 067.
19
(EU) astrologia. Desata-se mais um elo da corrente. Preciso preparar-me,
nortear-me, fortalecer meus msculos para novo e mais dramtico salto, ou
melhor, para a mais incmoda mudana. Mudarei de tipo, (estou prximo da
idade provecta) de gnero, de conduta, de amizade, de profisso artstica, de
sensibilidade, de roupas, de hbitos, de lar. J estarei preparado? Quase,
quero crer.
No humbral desta derradeira e provavelmente a mais importante etapa
da minha existncia estou to pobre como em 1933 quando, para ir de vez para o Rio, vendi meu piano muito embora j agora despojado da mocidade e do estandarte ilusrio do compositor incipiente, mas apaixonado;
aos 28 anos, arrastei Mara e visionava o mundo.
Hoje estou mais prximo de mim, que do mundo.
O partir, hoje, parece-me mais uma obrigao, uma ordem ambiciosa,
do que um anhelo benfico. No busco mais nada. O resto vaidade.
Todavia, reagir contra este amolecimento, esta introspeco complexada,
este tmido modo de negar-me, parece-me natural. Ainda devo tentar situar-
me entre os vivos. No morri ainda. Esforar-me-ei por aceitar novos
encargos, com talento ou sem ele. Devo obrigar-me a agir, a atuar, a sofrer, a
amar, a viver at o dia determinado por Deus para minha morte. 17
No suspeitava, pela impossibilidade de sab-lo, que ainda viveria pelo menos trs
dcadas. Sob o peso de suas memrias, o msico recordava nesta carta um momento fulcral
de sua histria e que j no ambicionava. Naqueles anos trinta, viajava e desejava alcanar o
mundo; em sessenta, por sua vez, aproximava-se de si, refletindo sobre a vida, suas emoes e
atitudes. O tempo guardou-lhe saudades e frutos de um momento de gnese do seu trabalho
enriquecido no imaginrio ribeirinho, de predomnio na sua msica do carter folclrico.
Novo, envolveu-se por chulas, cocos, carimbs, batuques, valsas, festejos juninos, msica
lrica. Intitulou-se mensageiro da Amaznia, e em seu trabalho props um Brasil com traos
de identidade Amaznia. Claver Filho, por exemplo, em Waldemar Henrique: O Canto da
Amaznia, primeiro livro de natureza biogrfica acerca da vida e da obra do msico paraense,
reitera, em depoimentos, a constante associao entre o artista e o seu lugar, o seu trabalho
artstico e uma ideia da Amaznia, a cultura ribeirinha e o saber mitolgico local. A
Amaznia a parte predominante de toda a obra de Waldemar Henrique, no pde deixar de
afirmar o autor do livro, a qual nos chega com uma fora muito grande, atravs de canes,
lendas, bailados, ritmos, ambientao prpria, onde apesar do progresso, continua a ser uma
das maiores reservas de mitos, lendas e crendices do Brasil. O autor faz referncia logo a
seguir a Oswaldo Orico, quando fala do fascnio da mata virgem, dos mistrios que dormem
inviolados no fundo das guas verdes, das curiosidades da flora sunturia e da portentosa
17
MHEP. CWH. Carta de Hlia: Por que no vem para a Europa? Map e Claudiano idem: Por que no vens?Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1960.
20
avifauna, como fontes inesgotveis do povo caboclo que habita aquela regio. 18 Claver Filho
teve formao no jornalismo e o seu livro nos dizeres de Ary Vasconcelos uma injustia a
menos na histria da nossa cultura, pois Waldemar Henrique j tem sua vida contada, a obra
estudada em livro. 19
E, atualmente, em mais de uma obra, Ronaldo Miranda publicou um pequeno texto,
uma homenagem ao pianista. O livro Waldemar Henrique, compositor brasileiro tambm de
1978 , assim como o de Claver Filho, de carter biogrfico, e estabelece uma cronologia
sobre o msico, sua famlia, seus estudos. Ali est contida uma srie das Canes do
msico e um catlogo de sua obra. Apresentando o autor, Miranda o situa dentro da terceira
gerao nacionalista, semelhante ao que faz Vasco Mariz, ao lado de nomes como o de
Oswaldo de Souza (1904-1995), Radams Gnatalli (1906-1988), Camargo Guarniri (1907-
1993) e Jos Siqueira (1907-1985). Atento, afirma que o msico nunca foi somente um
harmonizador de temas populares, no se esquecendo de ressaltar com mais nfase que
maneira do populrio regional, tm sido escritas suas lendas e canes. Com o essencial ele
consegue o clima inegavelmente brasileiro, a nostalgia da terra. O livro trs um pequeno
depoimento transcrito, assim como diversos dados do artista, e exatamente a que reside a
sua importncia, pois ele possibilita o acesso a dados importantes do msico. Pequenos
trechos de jornais so transcritos, seis canes so brevemente comentadas. O livro de
carter estritamente biogrfico, indicando datas, fases e acontecimentos da vida do msico,
revelando a preocupao de Ronaldo Miranda de realizar um trabalho sem o carter
monogrfico, mas atento fundamentalmente s cartas, memrias, textos, evocaes,
msicas..., querendo conservar os documentos do artista e sua vida,20 incentivando ainda a
produo de um livro grosso, uma grande homenagem.
No muito distinto, o livro Waldemar Henrique da Costa Pereira, de Sebastio
Godinho, de 1994, surge noticiando principalmente a movimentao em torno do artista na
dcada de oitenta. A amizade de Sebastio Godinho por Waldemar Henrique nasceu quando
o maestro ainda dirigia o Teatro da Paz. O ento secretrio Diretor do Teatro da Paz passa a
desfrutar da condio de amigo do consagrado msico. O livro um conjunto amplo de
18
ORICO, Oswaldo. Vocabulario de crendices amaznicas. So Paulo: Companhia Editora Nacional. 1937.
(p.07). 19
FILHO, Claver. Waldemar Henrique: O canto da Amaznia. Rio de Janeiro, Funarte, 1978. (p.05). 20
Ver trecho da carta de Ronaldo Miranda endereada a Waldemar Henrique em 04 de dezembro de 1980,
transcrita no livro S Deus sabe porque, Cuidado com a papelada. No atire nada fora. necessrio que se faa um grande trabalho sobre WH. Cartas, memrias, textos, evocaes, msicas, silncios e caminhadas. Nada de
monografia. Um livro grosso, uma grande homenagem. (...) Atire fora somente os memorandos, os ofcios etc. A
vida do Maestro no. Cf. Godinho, S. S Deus sabe porque. Belm-Pa, Ed. Falangola. 1989. (p.229).
21
transcries de recortes jornalsticos, entrevistas, e um song-book organizado de modo
especial para o trabalho, de autoria do musicista Yuri Guedelha. Mas somente a obra S
Deus sabe porque, publicada em 1989, do mesmo autor, que oferece o mais amplo material
publicado acerca do artista, uma seleta de textos e fotobiografia, como o subttulo esclarece.
A edio comemorativo ao octogsimo quarto aniversrio do msico e compositor.
Discursos, palestras, contos, artigos, crnicas, registros, correspondncia, poesia, programas
de rdio, pareceres, pronunciamentos, teatro, saudaes e um ABC de Waldemar Henrique
compem a obra e enumeram os seus captulos. Reunindo textos de vrias pocas, o material
indito sobre o autor o mais extenso publicado. Ressaltando a importncia que estas obras
apresentam por disponibilizar um elevado acervo em particular sobre o artista, no mais das
vezes contm um recorte e um debate delimitado e influenciado pela convivncia e o interesse
de amigos.
Joo Carlos Pereira entra na lista dos bigrafos do msico paraense pela publicao de
um livro produzido a partir de vastos e contnuos momentos de conversa com o msico.
Encontro com Waldemar Henrique, de 1984 diferente dos demais pela possibilidade que
oferece de leitura e contato com o prprio Waldemar e suas memrias. Perguntas e respostas
encaminham uma histria e estabelecem uma cronologia acerca do artista. Trata-se de um
oportuno trabalho, no isento de lacunas, mas que rabisca suas memrias e nos proporciona
um olhar sobre o seu passado. 21
Assim, necessrio atentar a produo biogrfica 22
a respeito de Waldemar Henrique,
o carter nostlgico e fraterno que comporta. Justifica-se, de fato, que tal produo fora
produzida por amigos do msico, expressando um objetivo claro de ressaltar uma determinada
histria do mesmo; saudosa, disposta como documento histrico de sua prpria historicidade.
Mas, refletindo sobre o material e a trajetria que estabelece sobre o msico, um fator inicial e
fundamental perceber tal material como fonte para a pesquisa biogrfica e para o
entendimento histrico, com limitaes e restries que obedecem a determinados objetivos
por parte de seus idealizadores, que estabelecem uma viso e uma interpretao dos fatos. Por
outro lado, o material no est desconectado da noo de memria, que seletiva e saudosa
de tempos passados, no menos fincados s vicissitudes de sua trajetria, s permanentes e
recprocas relaes entre biografia e contexto, como argumenta Giovanni Levi.
21
Pereira, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Falangola ed. Belm-Pa, 1984. 22
Ver tambm o estudo de Martins acerca da produo biogrfica referente ao pianista Waldemar Henrique.
MARTINS, Michelly de Jesus. Waldemar Henrique, S Deus Sabe Porque: uma anlise antropolgica sobre a
construo da trajetria de um msico paraense. (dissertao de mestrado) PPGCS-UFPA, 2008.
22
Assim, o estudo que realizamos segue a perspectiva de escrever sobre Waldemar
Henrique e as vicissitudes de sua vida e seu fazer artstico a partir da documentao de que
dispomos, ressaltando na atmosfera histrica que o justifica a singularidade de sua trajetria
quanto Amaznia. Esse gesto precursor e moderno em Waldemar na captura da brasilidade e
da msica folclrica, da temtica Amaznia, carrega-lhe nos trajes de sua poca, atuando
como testemunho histrico de um momento social, poltico e cultural vvido.
Waldemar Henrique, compositor e folclorista, natural de Belm do
Par, tendo se dedicado com civismo e seriedade a recolha e divulgao de
selecionados documentos do folclore do norte brasileiro, conquistando um
lugar de relevo nos meios artsticos desta metrpole vem pelo presente
propor a esse departamento to patrioticamente dirigido por V.S que se
digne mandar examinar e publicar os referidos documentos musicaes pelos
quaes confio-os direitos mediante remunerao deste departamento. Trata-se
de material recolhido nas minhas viagens aos lugares mais primitivos e pelo
esforo das minhas observaes incluindo nesta proposta as minhas prprias
composies sobre as lendas da Amaznia e outros themas do nosso rico e
desaproveitado manancial folclrico.(...) Desde j reconhecido como
compositor e brasileiro ao descontinuo de V.S. e aos grandes benefcios que
haveis prestado ao desenvolvimento das nossas artes amparadas pelo vosso
departamento confio que dar V.S. ateno ao presente... 23
Waldemar Henrique recolheu, arquivou e divulgou um vasto material folclrico. Com
este documento, direcionado ao diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda Lourival
Fontes, o msico transparece o tom missionrio, que caracterizou o movimento folclrico no
Brasil, 24
nele expressando o seu contnuo desejo de divulgar a Amaznia, desejo edificado
cada vez mais em um eficaz sentido simblico do qual seu trabalho se reveste. No que pde, o
msico estudou o folclore de sua regio e incorporou-o em seu trabalho artstico, revelando
um Brasil dele, onde o folclore surgiu como fundamento doutrinrio para dar ensejo ao
discurso do nacional. A Amaznia, como j afirmamos, ganhou contornos mais envolventes e
suas lendas simbolicamente passaram a pertencer ao povo brasileiro, a Amaznia e seus
smbolos constituintes do Brasil.
Em Mrio de Andrade, a Amaznia mais absorvida no trabalho que ficou conhecido
como O Turista Aprendiz, dirio de viagem escrito pelo rapsodo a partir de suas viagens pelo
23
MHEP. CWH. Ofcio direcionado ao Sr. Lourival Fontes, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda,
sem data, sem local. 24
Sobre os estudos de folclore no Brasil ver VILHENA, Lus Rodolfo. Projeto e misso: o movimento
folclrico brasileiro 1947 1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundao Getlio Vargas, 1997.
23
Norte e Nordeste brasileiros. Alvo de muitos estudos, por sua vez, Mrio de Andrade tem seu
nome muito recordado pela produo do trabalho literrio Macunama. A bibliografia a seu
respeito confunde-se entre a biografia do autor e as interpretaes e contribuies na leitura
de Macunama. O trabalho de Cavalcante Proena, Roteiro de Macunama, por exemplo,
estuda os temas fundamentais que giram em torno da obra, e como Mrio de Andrade
reelabora seu livro a partir das narrativas de Koch-Grnberg, Capistrano de Abreu, Couto
Magalhes, entre outros. Proena atento aos aspectos que variam do uso da linguagem
indgena e popular, recheado em contos populares, provrbios, sobrevivncias do antigo falar
no Brasil. O trabalho denso fixando cada contribuio utilizada pelo modernista paulista.
Sobre Mrio de Andrade, podemos destacar tambm a importncia do estudo de Gilda
de Mello e Souza, que visualiza em Macunama um paralelo do romance arturiano e a busca
do Santo Graal. O Tupi e o Alade: uma interpretao de Macunama uma obra
fundamental por atentar aos aspectos terico-musicais, com os quais seu autor estava
envolvido no momento da produo da obra literria Macunama.
Tel Porto Ancona Lopez compe de modo muito importante uma relao sensata
sobre os estudos j realizados sobre o poeta paulista Mrio de Andrade. Ela autora no
somente de Mrio de Andrade: Ramais e Caminhos, de 1972, mas tambm de Mrio de
Andrade Txi e crnicas no Dirio Nacional, de 1976. Foi ainda organizadora de outras
duas importantes obras acerca do poeta modernista: uma edio de Macunama de 1988 e de
O Turista Aprendiz, de 1976, livro ao qual a primeira parte deste trabalho ir se dedicar,
atento at este momento principalmente nos escritos da primeira viagem de Mrio de
Andrade, no caso, a que fez para a Amaznia. Texto originado como dirio, a publicao
seguiu esta vontade do autor. Com esta publicao a autora prope no deixar no
esquecimento uma obra menor do autor de Macunama e se no o faz, justifica, sobretudo
afirmando um determinado humor no modernista, e determinados subsdios presentes na obra
que possam oferecer para compreenso global de seu trabalho. Analisando a viagem de Mrio
de Andrade Amaznia a partir de O Turista Aprendiz, observamos o contato e a emoo do
poeta chegando Amaznia, as guas barrentas e a floresta, a riqueza e a variedade da fauna e
da flora, a experincia e as lembranas, registradas e mantidas em dirio, dando subsdios para
se perceber outros significados da Amaznia no artista paulista. O verde das matas e o
colorido das aves desprendem-se de seus papis, os passeios, que tantas fotos sugerem, do-
lhe fibra num real geogrfico infinito de experincias. O dirio revestido de um carter
pessoal, cotidiano em emoes, em descries de lugares, de paisagens e encontros. um
24
texto, um documento que mostra o envolvimento, uma fonte reveladora de uma teia de
experincias, de situaes e significados na vivncia de quem o narra. Tomamos o dirio de
Mrio de Andrade como o crivo revelador e instigante das breves experincias que o seu autor
pde, de fato, viver, ter como contato no recorte de nosso trabalho, em particular, na
Amaznia. Dessa forma, estamos menos a crer na possibilidade de afirmar um determinado
humor e um discurso ficcional do dirio de viagem Amaznia, como sugere Tele-Porto,
mas sim, a afirmar e justificar em Mrio de Andrade, tal viagem como a busca da experincia
de viver a Amaznia e relatar-lhe, no o inslito, mas o sentido profundo de uma nova
experincia, de um novo horizonte.
Os horizontes
Waldemar Henrique e Mrio de Andrade nos permitem estudar a Amaznia de um
perodo, de uma inquietao que sabemos parte do momento atual. Em recente data, Belm
atuou como palco de um grande evento: o Frum Social Mundial 25
, evento de expressiva
repercusso onde vozes distintas dos mais diversos lugares foram escutadas em seus clamores
por um mundo melhor. Pelo menos 142 pases estavam representados, e um lugar-comum
parecia sobressair nas diversas falas justificando simbolicamente a escolha de Belm como
sede da nona edio do evento: a Amaznia. No panorama histrico do momento em que
vivemos, escrevemos uma Histria pela premissa preocupante dos impactos ambientais.
Observando a Amaznia atuar como um forte elemento de atrao para os argumentos
ambientalistas, este trabalho perscruta cada vez mais esta atrao no recorte histrico
estabelecido por esta pesquisa. Por sua vez, na escrita de uma histria do pas, nas abordagens
do artista modernista. Atrao, feito encanto e feitio, aquela Amaznia das extremidades
profundas do contato da mata; o caboclo e o rio que envolvem este olhar que se gesta e
acompanha o artista. Em Mrio de Andrade absorvido pelos mistrios de Macunama; Raul
Bopp pelos mistrios de Cobra Norato; Waldemar Henrique pelo feitio do som da natureza.
25
A nona edio do Frum Social Mundial ocorreu na Amaznia, do dia 27 de janeiro ao 1 de fevereiro de
2009 e teve como tema: Um outro mundo possvel, em referncia ao modelo de civilizao atual e crises que se propagam de maneira mundial, como na Carta de boas vindas do evento foi pontuado: a crise econmica, energtica, ambiental, cultural e a crise poltica. A Carta salienta a importncia amaznica e a preocupao do
prprio Grupo ou Conselho do evento quanto Amaznia e s ameaas que possam atingi-la pelo modelo
hegemnico.
25
Estas possibilidades de reflexo quanto s questes da contemporaneidade se tornaro,
cada vez mais, profundas e constantes em meus trabalhos e desde j, instigam reflexo em
consonncia com as inquietaes do tempo presente, nos fazendo colocar os trajes desta poca
na inquietao prpria do ofcio de pensar. Novos horizontes, mastros, recifes, que esto mais
alm, como um norte a percorrer e querer alcanar. Como um alm sempre a despertar novas
reflexes, a desvendar segredos, despontando as dimenses geogrficas, rumando para onde
outros sis ainda iro se pr, onde novas experincias, ainda ho de ser contadas. Um
horizonte geogrfico, um horizonte amaznico em florestas e significados, um horizonte de
experincias que justifica, cada vez mais, a presena do autor de Macunama na Amaznia.
Buscar os significados da Amaznia em Mrio de Andrade e Waldemar Henrique a
proposta da primeira parte deste trabalho. Significado no sentido utilizado por Raymond
Williams em O Campo e a Cidade, um sentido pessoal, de vivncia, de emoo, de
experincia de vida. De sutileza, de lembranas sociais, de memria. A bela poca de Belm
em Waldemar Henrique, depois a crise; as lendas, a cidade, o rio, as viagens, sua famlia, os
transeuntes da capital. Em Mrio de Andrade, o horizonte, acima de tudo, o horizonte, os
passeios, o rio, a flora e a fauna; as comidas, as pequenas cidades. O intelectual de gabinete
em viagem pela Amaznia, pelo Nordeste do pas. O Valle Amaznico, em toda a vastido
do seu amphiteatro, coberto de floresta. Clamyde verde, (...) Em todo o meandro aqutico,
labyrintho de furos, canaes, rios, affluentes, defluentes da corda mater que o Amazonas...,26
assim que inicia a descrio do lugar Raymundo Moraes em um dos seus livros,
esclarecendo como um vu de significados que se visualiza na Amaznia, associada
primeiramente natureza.
A segunda parte traz a questo: por que em um momento de efervescncia intelectual
de propores nacionais o modernismo a Amaznia foi incorporada de modo diferente nos
trabalhos artsticos de Waldemar Henrique e Mrio de Andrade? As duas partes em que
dividimos este trabalho se comunicam na elucidao desta problemtica. Este segundo
momento deixa claro como os movimentos de suas narrativas transparecem suas ideias, a
inteno de seus autores, se adentrando ou saindo da Amaznia. O personagem que d sentido
ao enredo de Macunama segue para outros ares, longe de sua civilizao. A cano Uirapuru
nos faz pensar no movimento inverso: a incluso de um indivduo externo ao meio
amaznico. A muiraquit, o Macunama, o uirapuru so elementos de atrao, smbolos de
cultura, produtores de significado e constituidores de temas, de modo como afirma em seus
26
MORAIS, Raimundo. Cartas da Floresta. Manos-Amazonas. Livraria Clssica J.J. da Camara, 1927. (p.09).
26
estudos Homi Bhabha. 27
As culturas esto em contato e, no momento propcio, o debate
nacional revelou-as em possibilidade. Este trabalho a compreenso de como dois, daqueles
tantos intelectuais dos anos vinte e trinta preocupados em escrever a histria do Brasil por
seus caracteres mais originrios, o fizeram absorvidos na Amaznia.
As experincias de Mrio de Andrade e Waldemar Henrique sobre a Amaznia so
diferentes: se do a partir de sensibilidades distintas quanto ao mundo natural, porm num
contexto de preocupaes nacionais reveladoras de outros brasis. Este trabalho apreende o
olhar destes dois intelectuais atentos Amaznia fundamentalmente pela experincia, que
trazem para o trabalho literrio, termo fundamental em E. P. Thompson, e a conexo de um
momento de suas prprias histrias pessoais e o fenmeno histrico, como preocupou-se
Raymond Williams. Os usos polticos da cultura envolvem o trabalho, e constantemente
parece lembrar o leitor desta importncia no momento vivido. Um sentimento de Brasil
resplandecendo pela busca da brasilidade. Os anos do recorte deste trabalho se justificam
entre 1922 e 1937, entre a Semana de Arte Moderna e o incio de um novo momento poltico
no pas. A Semana no exatamente como mito modernista fundante do pensamento moderno
no Brasil, mas como a viso agregada sempre por Mrio de Andrade mesma. 1930 um
momento de mudanas polticas, e a ida de Waldemar Henrique ao Rio de Janeiro em 1933
um marco em sua vida de artista, um momento que suas lembranas de velho no deixam
apagar. Realizou muitas apresentaes em duo com sua irm Mara, e tambm na companhia
de Benjamin Lima. Conheceu Mrio de Andrade, em 1935. Com um pequeno fragmento
datado de 1937, analisado na segunda parte deste trabalho, o msico apresenta um nmero de
suas canes amaznicas. Bertuzzi pronuncia-se em elogios ao nmero apresentado pelo
pianista. O Brasil das iaras e saracuras, d nfase a Waldemar Henrique, reflete a nsia do
que est em busca a intelectualidade nacional, instiga e revela as possibilidades de um tempo
vivido.
Apesar de datarmos nosso recorte inicial Semana de 1922, no h uma preocupao
em se deter neste evento. O estudo perceptvel ao debate que se aprofunda a partir deste
momento, explorando o primitivo, o debate paubraziliando-se. Este trabalho analisa a
presena de Mrio de Andrade na Amaznia e, de modo peculiar, tenta apresentar seu
envolvimento como um turista aprendiz de outros brasis. Espelho da conscincia histrica do
momento em que vive, este trabalho insere Waldemar Henrique no debate nacional e constata
as aproximaes temticas de seu trabalho e do autor de Macunama, interpretando a
27
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
27
Amaznia sob o crivo particular de suas experincias, de seus valores, de suas sensibilidades
e seus objetivos frente ao Brasil.
28
PARTE I
No Domnio das guas: Waldemar Henrique e Mrio de Andrade em viagem
Amaznia (1922-1927)
Por que triste o olhar do verdadeiro viajante? Como ningum, ele sabe que o mundo comeou sem o homem e se
acabar sem ele. (...) Sente que sua viagem no ter propriamente um retorno, sua explorao ficar sempre
inconclusa.
Claude Lvi-Strauss
1.1- Waldemar Henrique e a Amaznia.
Em meio s ilhas e rios, eis que lentamente, para os que chegam pelas guas, a cidade
se apresenta, um amontoado de casas, ruas, luzes, que destoam do globo verde que est ao seu
redor. Diferente de toda e qualquer vista anterior por estas partes da Amaznia, avistar aquele
ponto escolhido, de modo estratgico [um ponto elevado], anos antes por um grupo de
portugueses, que ambicionavam ocupar e proteger sua posse sobre a regio, gera um novo
sentido acerca da Amaznia e aos que chegam a Belm. A cidade surge em meio floresta,
um ponto de civilizao junto ao rio e massa verde. Foi frente a este contraste que todo
viajante ao adentrar a Amaznia, viu a Baa de Guajar e talvez tenha se instigado a refletir,
sentindo um novo significado na relao entre o homem e o mundo natural.
Um significado que vamos buscar em Waldemar Henrique e Mrio de Andrade a
partir de suas experincias com esta regio do Brasil. No paraense, uma vontade de narrar, de
contar causos, de rememorar histrias, mesclando-as cidade e aos imigrantes que iam e
vinham por Belm. E no paulista, o livro O Turista Aprendiz, dirio que revela o movimento
de penetrao na realidade amaznica, envolvendo-se em um conjunto novo de experincias,
instigando-o cada vez mais em seus anseios ao Brasil, e um sentimento renovado de folclore,
e uma vontade realada de contar histrias.
Paraso dos naturalistas, Henry Bates assim visualizou Belm no sculo XIX, e foi
lembrado em pronncio por Jos Verssimo na abertura do primeiro nmero do Boletim do
Museu Paraense de Histria Natural e Ethnografia, em 1895, por salientar a concordncia
com uma nova viso do papel da instituio de receber pesquisadores estrangeiros, bilogos,
29
zologos, lingistas e, destacadamente, etnlogos..., perspectiva animadora s portas do
vasto, rico e virgem laboratrio para as pesquisas cientficas. 28 Ponto inicial dos visitantes
este urbano espao de Belm, que formata os tantos significados da Amaznia.
Foi na capital do Estado do Par, que nasceu Waldemar Henrique da Costa Pereira, no
dia 15 de fevereiro de 1905, a cidade vivendo e manifestando os ares de modernidade, cercada
pelo rio e pela gigantesca floresta amaznica. Lugar com os traos caractersticos de lugar que
cresce e paulatinamente constri a cidade. Edificaes que se levantam, cenrios que se
transformam. Leon Righini, por meio de litografias, nos possibilita pens-la no sculo XIX e
atentarmos para a paisagem e o cotidiano citadino que se formava. Quando Waldemar nasceu
era do comrcio da borracha que a elite local retirava os necessrios recursos para o luxo e as
tantas modificaes urbanas que a cidade pde receber. O Intendente Antnio Lemos, se
tornou o mito mais expressivo dessa memria.29
A Amaznia que se revela em Waldemar
Henrique, ora de traos que remetem cidade e seus costumes, ora de vivncia que nos
remete mata, natureza. Significados que mudam na Amaznia.
Para este princpio de reflexo, a fala de Waldemar sobre a cidade sucinta. Na cidade
do Rio de Janeiro, em uma crnica para Revista Rio, de posse do jovem Roberto Marinho, em
dezembro de 1947, afirma:
Os bons tempos da borracha a libras d ouro j haviam passado, certo, mas Belm do Par continuava nadando em progresso.
Estamos em 1912...
Os navios da Iboth Line entram de Liverpool e Havre abarrotados de
preciosas cargas para ns.
Levam daqui coisas brutas e quase inteis ao nosso sistema de vida:
caroos, toros de pau, couros e essa inesgotvel hevea que a concorrncia do
Ceilo desgraadamente rebaixou. Felizmente, (dizem por ora), que o plantio
l transitrio. Isto nos salva e reanima a esperana de melhores preos.
A Frana e a Inglaterra so gentis em nos comprar aquelas coisas
brutas e eis que nos mandam fils, cartolas, perfumes, polacas, champagnes
e ricos leques de abanar.
Assim, Belm do Par nada em progresso; tem sua pera, suas
touradas, seus sales e quadrilhas. A elite masculina de flor lapela, mesmo
hipotecando terras, brilha no Moulin Rouge.
Nossa vida uma exposio permanente de novidades e formosuras
contaminadas de civilizao afoita: falncias e banquetes. 30
28
COSTA, Antnio M. D. de. Pesquisas Antropolgicas Urbanas no Paraso dos Naturalistas. 32 Encontro Anual da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais, 2008. 29
Ver o estudo SARGES, Maria de Nazar. Belm: riquezas produzindo a belle-epque. (1870-1912). Belm:
Paka-Tatu, 2002. 30
HENRIQUE. W. Pastorinhas... Pastorinhas... In: Godinho, Sebastio. S Deus sabe porque. Ed. Falangola. Belm-Pa. 1989. (p.143).
30
A Belm dos moldes de Antnio Lemos parece reverberar na memria do msico
paraense, rica por seus teatros e sua pera, suas touradas, seus sales e quadrilhas. Na sua
viso, Belm em nada saiu perdendo, exceto pelo fracasso da economia gomifera gerado pela
concorrncia do Ceilo. Frana e Inglaterra eram gentis e Belm imersa em progresso. Temos
que perceber no pianista, a cidade associada riqueza e ao luxo, que posteriormente entrar
em declnio. semelhana desta entrevista, seu trabalho no apresenta crtica social, seu
contedo poltico exatamente pela leitura que estabelece e sustenta sobre o Brasil. Seu
trabalho artstico tem os olhos voltados para a Amaznia e para o conhecimento que est na
cidade, que nela transita, e que de alguma forma muito forte na gnese da produo deste
artista. Waldemar Henrique recorda, em certa palestra, o quanto as lendas possuam um
sentido forte no espao urbano de seu tempo e o quanto isso destoa do momento mais
contemporneo. Seu trabalho reflete uma Amaznia profunda, como a podemos chamar,
caracterizada por uns como o Inferno Verde e por outros como o Paraso Verde. Uma
Amaznia de realidade densa, de mata e rios e o perigo eminente do encontro de tribos
indgenas hostis, mas uma Amaznia que est a circular nas mentes intelectuais urbanas.
Realidade semelhante ao que salienta Jacques Julliard, por sua vez lembrado pela
pesquisadora Angela de Castro Gomes; diz Julliard que as idias no circulam elas mesmas
pelas ruas; elas esto sendo portadas por homens que fazem parte de grupos sociais
organizados. 31 Na linha de Waldemar, o documento transcrito como uma memria e um
significado da Amaznia; ele no faz crticas polticas ou sociais, mas descreve a Belm do
progresso, alcanado porque mandam fils, cartolas, perfumes, polacas, champagnes e ricos
leques de abanar em troca de coisas brutas.
O saudoso olhar expresso na transcrio constata um determinado imaginrio do
princpio do sculo e revela uma imagem que se propaga do perodo, de riqueza e fartura,
distinto, por sua vez, do que em outro momento o mesmo Waldemar pde afirmar. Aqui, uma
imagem menos idealizada, mais cotidiana e concreta. Nasci ouvindo falar da queda da
borracha. A Amaznia estava cheia de surpresas, sem destino, nem leis. Homens de todas
raas iam e vinham, recolhendo restos do ouro negro, abandonando seringaes, blasfemando
contra tudo.... 32 O grandioso perodo da borracha se esvaa provocando tormento e
31
Angela de Castro Gomes cita Julliard a partir de Jean-Franois Sirinelli em Les intellectuels, in Ren Remond, Pour une historie politique, Paris, Ed. Du Seuil, 1988. p. 226 apud GOMES, Angela de Castro. Essa
gente do Rio... Os intelectuais cariocas e o modernismo. Est. Hist. Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 1993. (p. 2). 32
O texto que passaremos a analisar estava intitulado como Notas sobre A margem do Folklore Amaznico. E o principio com a seguinte anotao riscada: Do meu caderno de seguido de Folklore Amaznico de
31
preocupaes. provvel que tenha sido por longo tempo pauta de assuntos nos mais
diversos pontos da capital paraense, ora numa golada de caf, ora vendo os imigrantes passar.
Homens de todas raas que iam e vinham, percorrendo Belm compondo uma paisagem
peculiar da dinmica do Porto, a cidade, o rio e a floresta.
Fechavam os theatros de pera prosseguiu Waldemar Henrique Falliam os grandes
aviadores. S as mulheres do Mouling Rouge duvidavam da crise. Elas ficavam at o fim,
sem poder jamais rever as terras estranhas de onde vieram: Polnia, Frana, Hespanha, etc. 33
Uma profunda nostalgia parecia tomar conta das mentes e dos coraes. A Belm da Belle-
poque nos moldes de Antnio Lemos rica por seus teatros e sua opera, suas touradas, seus
sales e quadrilhas... 34 entrava em declnio. Das regies do Xingu, do Madeira, do Purus,
chegaram homens (esfumados) e seminus contando histrias trgicas de misria e solido,
descrevendo scenas de horror e barbarismo, referindo cheios de susto e crena (as lendas
encantadas da plancie). 35
A belle-epque e a reduo trgica da produo gomifera, revelam o trnsito de
homens de diversas procedncias que iam e vinham passando pela capital. Waldemar atenta
interesse para essa gente que chegava dos interiores contando histrias trgicas de coisas
sobrenaturaes, lendas indgenas, supersties, aluses, sonhos, cantigas, dores, feitios, tudo o
que o silncio apavorante da selva os deixou escutar. E ele revelava: Eu conheci esses
homens... E elles me contaram seus soffrimentos, suas correrias, seus desenganos, sua...
saudade. 36 A Amaznia possui em Waldemar Henrique diversos significados, da cidade e a
crise que enfrentava pela concorrncia econmica, dos transeuntes que iam e vinham pela
cidade e suas histrias, das peras, do Mouling Rouge, das cantigas populares, das festas dos
cabars urbanos, das andanas ao Maraj s comunidades ribeirinhas. Do conhecimento
folclrico de lendas da Amaznia e o carter quase real das figuras lendrias.
Em minha meninice o boto freqentemente aparecia nas conversas.
Quando amos banhar-mos no rio, l adiante o vamos boiando,
resfolegando, quase aproximando-se para brincar conosco. Ns o
afugentvamos por que sabamos das suas historias. Dizia-se que o boto
Waldemar Henrique. No estava datado, nem definia o lugar onde estava quando o escreveu. Encontra-se disponvel na sala de documentao do Museu Histrico do Estado do Par (MHEP). 33
Museu Histrico do Estado do Par. Coleo Waldemar Henrique. Manuscrito Folklore Amaznico de
Waldemar Henrique. s.l., s.d. 34
HENRIQUE. W. Pastorinhas... Pastorinhas... In: Godinho, S. S Deus sabe porque. Ed. Falangola. Belm-Pa. 1989. (p.143-46). 35
MHEP. CWH. Manuscrito Folklore Amaznico de Waldemar Henrique. s.l., s.d. 36
Idem.
32
preto, o Tucuxi, era bom, que salvava nufragos, que nos defenderia de
outros peixes, etc, mas o preferamos longe. Quanto ao outro, o boto branco
ou avermelhado, esse eu nunca vi. Talvez passasse o dia repousando para dar
conta de suas aventuras noturnas. 37
Quando recordou a parceria com Antnio Tavernard, suas memrias remetiam da
mesma forma a este sentido amaznico de cotidianidade, presena constante de sua obra, que
apresenta tempo fictcio e tempo real enunciando e revelando verdades sobre a sociedade e os
atores sociais da Amaznia.
Quando eu conheci o Antonio Tavenard, poeta tambm, sugerimos que ns amos fazer umas canes juntas; conversamos sobre as nossas
lendas, ele achou interessante e escreveu ento quando se tratou de boto, que uma lenda que, naquele tempo, tinha quase que uma veracidade. J no
era lenda; Parece que a gente conhecia o boto Foi boto, Sinh, um texto singelo, mas muito saboroso. E eu realizei com ele uma cano singela, mas
tambm muito saborosa, sobre a Amaznia. E, muito elogiada no Rio de
Janeiro, de todas as minhas lendas a que tem uma marca mais amaznica.
Logo depois, o prprio Tavernard preparou a letra para mim, pra Matinta Perera, que era outra lenda tambm. Eu at tinha impresso que eu conhecia umas certas mulheres que eram Matinta Perera; que noite se
transformavam em pssaros, porque eram assim, uns aspectos to
misteriosos... Depois eu mesmo fiz letra para o Curupira; fiz tambm para a Cobra Grande, porque a Cobra Grande eu no consegui mais que o Tavernard fizesse pra mim, pois eu j estava no Rio.
38
Assim Waldemar Henrique, mesmo sem pesquisar folclore amaznico, como
afirmou certa vez, comps refletindo essa realidade de significado profundo da sua infncia.
Essas coisas todas foram ficando no meu subconsciente, que quando eu fui me dedicar
composio mesmo, aquelas coisas fluam em mim sem muito esforo. Essas coisas a que
Waldemar faz referncia so as lendas absorvidas de sua infncia. Por isso, mesmo quando
passou a compor, recordou que esses conhecimentos lendrios fluam com autenticidade
porque eu no li no, eu vivi as emoes das viagens com meu tio. 39
37
HENRIQUE, Waldemar. Fascnio e Persistncia do boto no folclore amaznico. In: GODINHO. S. S Deus sabe por que. Ed. Falangola. Belm-Pa. 1989. (p.69-77). Trata-se de uma palestra proferida no Curso de Folclore promovido pelo Departamento de Turismo de Braslia, em agosto de 1971. 38
Pereira, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Falangola ed. Belm-Pa, 1984. (p. 91-92). 39
Tive um tio que morava em Manaus e que vinha freqentemente a Belm... Ele era um homem muito vivido na Amaznia e contava muitas historias e a gente percebia mesmo: a lenda do boto (parecia que era verdade), da
Yra era verdade, Uirapuru, matintaperera tudo era verdade para ns... naquele mundo mgico. Entrevista disponvel no Museu da Imagem e do Som (MIS) em Especial com Waldemar Henrique. Funtelpa; fita
cassete: FV 99/03.
33
O sentido mais forte da Amaznia no msico de fato o que o identifica s lendas.
Um sentido lendrio que se perpetua por seu trabalho. Individuar esta conexo entre a
realidade histrica dos povos ribeirinhos e as experincias do msico fortalece a percepo,
uma vez mais, desse carter verdico interiorano das lendas, no exmio lugar onde circula o
concreto e o intocvel, o real e o imaginrio. No msico generosamente fazendo-o crer em
matintaperera: noite se transformavam em pssaros assobiando pediam cachaa, farinha,
tabaco, voltando pela manh para buscar.
Matinta-perera detardinha vem buscar O tabaco que hontem noite eu prometi:
- queira Deus ela no venha me agoirar,
Um sentido pessoal que o identifica e justifica sua produo luz de um contexto,
cultural, social e tambm poltico que a tornou possvel. Seguimos a reflexo tambm de uma
feio da cidade, por sua vez, que mistura histrias de civilizao e coisas modernas e temas
de perspectiva mitolgica, vivida por imigrantes, mas histrias vivas no prprio seio urbano.
Waldemar Henrique fala pouco de outras parcerias, de intelectuais que possam ter
atuado como contatos influentes de sua produo em Belm do Par. Os escassos documentos
tambm fazem pouca referncia a dilogos ou encontros em sua movimentao artstica pela
capital. Por sua vez, quando trabalhou na direo artstica da Rdio Club do Par PRC-5, em
1931 e 1932, fez parceria com Gasto Vieira, mdico, com intenes de literatura, segundo
Mrio de Andrade. Juntos, Waldemar e Vieira compuseram Senhora Dona Sancha, cuja
letra dele, e a msica minha, lembrou o msico. Compartilhou valores e ideias
semelhantes com um grupo intelectual local que se destacava na poca, entre eles Bruno de
Menezes, com quem produziu em 1932 Alcova Azul e Chorinho, uma autntica imagem de
Belm, segundo Waldemar Henrique.
Alta noite... O silncio parou
Para ouvir o chorinho,
Que os crioulos tocavam
Falando com a Lua e as estrelas
Ao som do violo,
Da flauta e o cavaquinho
Horas inteiras aquele chorinho
Acorda a rua adormecida
E os trs
34
Vo por esse mundo que se chama saudade
E conduzem trs almas demais brasileiras
Serenatando
Os dedos amorosos,
Nas cordas soluantes,
Contam histrias,
Consagram amantes
Na paz da noite enluarada
O pianista, em parceria com Iln Pontes de Carvalho, produziu Serenata, Cabocla
malvada e Farinhada, e com Jacques Flores, fez parceria em Ns smos de Marintua, a
lenda sobre a ilha encantada. Ainda fez parceria artstica, no perodo, com Jorge Hurley, De
Campos Ribeiro e Edgard Proena.
Em 1929, Abguar Bastos, saudoso poeta paraense que retornava da ento capital do
pas s terras do Par, d o tom das preocupaes intelectuais do perodo. Naquela ocasio o
promotor de to aplaudido intercmbio, como fora chamado, iria proferir uma palestra
sobre o Fenmeno Moderno de Brasilidade. Segundo a chamada da revista A Semana
tomariam parte dessa noitada, os jornalistas e poetas Paulo de Oliveira, De Campos
Ribeiro, Sandoval Lage, Nuno Vieira, Bruno de Menezes, Edgar Proena, Muniz Barreto,
Orlando Moraes e a poetisa Eneida de Moraes. Terminando o encontro, anunciavam-se
nmeros de canes regionais, alm de interpretaes brbaras de Villa-Lobos que seriam
feitas por uma orquestra de 30 senhorinhas. 40
O intercmbio de Abguar Bastos ao Rio de Janeiro seria possvel em vista do contato e
amizade de Clvis de Gusmo, tambm literato, que, em parceria com Oswald de Andrade e
Raul Bopp, organizaram a Revista de Antropofagia. Em um interessante artigo, Aldrin
Figueiredo chama ateno para a maneira de abordar a questo da identidade nacional
desses literatos. Analisando a lenda de Mayandeua, Figueiredo atenta que Clovis de Gusmo
e seus companheiros modernistas buscaram estabelecer uma nova interpretao da cultura
brasileira, acentuada no carter genuno dessa sociedade, naquele momento de buscas
modernistas, querendo o folclore local. O msico paraense o faz de modo semelhante.
Waldemar lembra as lindas vesperais poticas, com Eneida de Moraes, Iln Pontes de
Carvalho, De Campos Ribeiro, Bruno de Menezes, Jacques Flores, Abguar Bastos, Clvis
Barbosa. Sujeitos importantes na movimentao literria paraense, que poderiam constituir
uma passagem intelectual para o msico, ainda em Belm. Num contexto de mudana de
40
Cf. A Semana. v. 11. n 595, de 05.10.1929.
35
capital, Waldemar organiza um evento que intitulou Noite da Cano Paraense. Trocando
versos e ideias com Tavernard, telefonemas e bilhetes, formatava os rascunhos iniciais do
repertrio da grande noite, nela esto includas timidamente duas peas musicais intituladas
Muirakitan e Nay (lenda da vitria-rgia), incorporando temas folclricos.
1 parte
I Muiraquitan ouverture para orquestra. II Por que partiste? Cano de Iln Pontes de Carvalho. III Fiz da vida uma cano. Valsa palavras de Waldemar Henrique. IV No faz mal... Cano letra de Waldemar Henrique. V Quando a saudade acorda... Cano versos de Antnio Tavernard. VI Ngo Vio. Cano palavras de Waldemar Henrique. VII Amor!Amor! Valsa-cano palavras de Waldemar Henrique. VIII Voc no casa comigo. Samba-cano versos de De Campos Ribeiro.
IX Felicidade. Cano palavras de De Campos Ribeiro. X Fugi s pra vort. Cano palavras de Iln Pontes de Carvalho. XI Boquinha mimosa. Cano versos de Leonardo Ribas. XII Chorinho versos de Bruno de Menezes
2 parte
I H de acabar um dia o nosso amor. Fox-cano versos de Wladimir Emanuel.
II Nay (Lenda da Vitria Rgia). Cano versos de Juanita Machado. III Suave Spleen. Fox-cano palavras de Waldemar Henrique. IV Viens! Je nattends que toi. Cano versos de Marcontian. V Cabocla Malvada. Cano versos de Wladimir Emmanuel. VI Cano Nmade. Versos de Waldemar Henrique. VII Amar de Longe. Modinha versos de Edgard Proena. VIII Cano do Meu Corao. Cano versos de Martins Fontes. IX Romance. Cano versos de Antnio Tavernard. X Vaidade. Valsa versos de Waldemar Henrique. 41
Os estudos de folclore, de fato, nem sempre foram bem vistos e timidamente foram
sendo agregados a uma nova forma de ler o pas e assumir a feio mais propriamente
modernista. Um problema corrente em meio aos folcloristas foi justamente, segundo Amadeu
Amaral, o seu sentimentalismo, as teorizaes precoces e o diletantismo erudito; 42 em
suma, muitos trabalhos haviam sido feitos sem o rigor necessrio, por isso, nos primeiros
folcloristas, (verificam-se) vrias distores no material coletado, nas quais os versos so
corrigidos e os costumes de seus informantes so suavizados. 43 Quanto postura, tais
41
MIRANDA, Ronaldo. Waldemar Henrique, compositor brasileiro. Belm, Falangola, 1978. (p. 30-33). 42
VILHENA, Lus Rodolfo. Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro (1947 1964). Rio de Janeiro: Funarte: Fundao Getulio Vargas, 1997. (p.79). 43
VILHENA, Lus Rodolfo. op.cit. (p. 28)
36
intelectuais, principalmente os da virada do sculo, buscavam no se envolver com o povo.
Procuravam afirmar em suas interpretaes uma superioridade do pensamento cientifico (do
intelectual) em relao s crenas populares. 44
Waldemar Henrique no se via como um folclorista, em suas prprias palavras, por
no se encaixar no modelo pretendido por Bela Bartok, segundo o qual o folclorista deveria
possuir uma erudio enciclopdica, conhecimentos filolgicos e fonticos, preparo
sociolgico, museolgico, coreogrfico e de histria. 45 Por essa fala percebe-se por que o
msico preferia no ser visto como folclorista. Contudo, continuando em seu raciocnio
afirmou: Estou perto do folclore apenas porque desde criana acostumaram-me a gostar dos
folguedos juninos, dos pastors natalinas, dos cocos e emboladas praieiras, das chulas
marajoaras, dos carimbs, dos bumbas... E l ouviu as histrias de cobra-grande, boto,
uira, curupira, jurupari, uirapuru, matintaperera (...) enfim toda magia em que vivemos
atolados na Amaznia. 46 O pianista no se via como folclorista no s por no possuir todas
as qualificaes descritas por Bartok, mas tambm por estar em contato com o povo, longe de
uma postura erudita, que procurasse estabelecer uma distino entre o eu folclorista e o
outro, o nativo.
Dos relatos que recolheu as laudas a que tive acesso de seu caderno de anotaes
folclricas, poderamos perceber a Amaznia profunda que o envereda e o encaminha a
muitos trabalhos do perodo. Um vio a Cobra Grande, outro a Cobra Norato, uns viravam
lobishome, a uira carregava outros e o Boto branco sahio pra dansar nas festas da lua sem
tirar o chapeo da cabea. Da surgiu seu folclore sem escola, nem projectos, sem pretextos,
sem alardes. Real, inesperado, e forte, profundo. 47
Foi por essas andanas de imigrantes de um lado para o outro, contando suas histrias
que Waldemar se encantou: percebi naquelle incio de drama que a tragdia nascia
commigo. 48
Fazendo uma auto-reflexo escreveu:
44
Para verificar essa postura em Jos Verssimo ver VERISSMO, Jos. Scenas da vida amaznica, um estudo
sobre as populaes indgenas e mestias. Tavares Cardoso Lisboa. 1886. 45
HENRIQUE, W. Caractersticas folclricas da musica brasileira. Palestra proferida no VII Festival de
Folclore, de Braslia, em 29.08.70. Disponvel em Godinho, S. op.cit. (p.59-63). 46
Idem. (p. 60). 47
Museu Histrico do Estado do Par. Coleo Waldemar Henrique. Manuscrito Folklore Amaznico de
Waldemar Henrique. s.l., s.d. 48
MHEP. CWH. Manuscrito Folklore Amaznico de Waldemar Henrique. s.l., s.d.
37
Vejamos agora como deverei entrevistar-me: julgo ser interessante
conhecer a poca e os acontecimentos que nos levam a descobrir em ns
prprios o artista.
Quando completei treze anos, trouxeram-me calas compridas, culos
e permisso de ler os livros da estante sem necessidade de subtrahi-los
sorrateiramente. Foi um delrio. As calas compridas abrigaram-me os
joelhos cuja exposio nunca fora do meu agrado. Os culos fizeram-me
destacar os seres, as casas, os arvoredos at ento vislumbrados em massa
sem relevo por via de uma fortssima myopia. Os livros afastaram-me para
sempre das tropelias juvenis.
Dei-me a cavalgar com Lancelot, a viajar com Julio Verne e a
agradecer com Dom. Sebastio. Sentir-me morrer com a pobre Margarida
Gautier e apaixonei-me por uma tal Paulina, si no me engano de Balzac.
Passei a sonhar com santos, ladres, guerreiros, ciganos, reis e prncipes do
oriente. 49
Este texto foi escrito em 1937 no Rio de Janeiro. Texto escrito talvez porque instigado
sobre o que o tenha levado a desenvolver um trabalho de natureza artstica. Em momentos
posteriores, Waldemar manifesta preocupao em responder bem esta pergunta. Em suas
memrias, recorda sempre a miopia, as suas viagens e, neste trecho, um elemento especial: a
literatura, suas leituras de menino, a experincia profunda e pessoal de poder, pela primeira
vez, enxergar bem e a sensibilidade que julga de artista. Defrontei um velho piano Dorner e
debrucei-me nelle com um amor maior que tudo neste mundo. Como chorei ouvindo-o.
Lembranas j de um velho msico, de sensibilidade que revela e relata os caminhos de sua
vida. Para a msica, jovem despertou: Foi nessa minha ida a Portugal (em 1910, com cinco
anos de idade foi com a famlia ao Porto) que eu conheci a msica (...) naturalmente [no
navio] havia msica no jantar. Por ser muito pequeno e trombar nos objetos a sua volta
Waldemar Henrique era proibido de ficar no salo onde se apresentavam os msicos. Jantava
cedo e, apesar de insistir, era levado pela sua bab para o camarote. Mas do camarote eu
ouvia a msica (...) com uma tristeza e ao mesmo tempo embebecido, a viagem toda. 50 E
quando retornou de Portugal, em 1917: eu vim embalado por msica. Cheguei em casa, aqui,
na Serzedelo Corra, minha me (sua madrasta) colocou um belo piano na casa.
Acompanhada do marido, ao bandolim, ambos tocavam. Quando eles se levantavam eu ia
para o piano e comeava a bater. Batidas, notas, que insistentemente prosseguiram das
tropelias juvenis ao trabalho artstico do Waldemar adulto.
49
MHEP. CWH. Uma entrevista commigo mesmo. s.l., (circa. 1937). 50
Pereira, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Falangola ed. Belm-Pa, 1984. (p.25)
38
1.2 A Amaznia e a experincia de Mrio de Andrade
O estudo busca tambm o sentido da Amaznia em Mrio de Andrade, porque como
no artista paraense Waldemar Henrique, Mrio de Andrade fala da Amaznia tanto em
Macunama como em O Turista Aprendiz. Dirio de viagem, este segundo trabalho o seu
texto, sua narrativa, sua experincia viva na Amaznia, seu relato, seu olhar.
Mrio de Andrade, afirma Rodolfo Vilhena, tornou-se, na dcada de trinta, o principal
representante dos estudos de folclore no Brasil. Poeta, crtico de artes, pesquisador de
etnografia e msica, contista, romancista, terico de uma linha que buscava firmar uma
intelligentsia brasileira nacionalista; influente frente intelectualidade de valores modernos
no pas. Participou de modo ativo da Semana de Arte Moderna (1922) e do movimento
modernista em seus debates mais calorosos. Colaborou em vrios jornais e revistas 51
,
escreveu livros. Em Ensaio sobre a msica brasileira (1928) e Aspectos da msica brasileira
(1937), tentou estabelecer uma orientao e um plano a ser seguido pelos msicos brasileiros
nacionalistas na busca de se concretizar um som puramente nacional. Paulicia Desvairada
(1922) emblemtico como um fenmeno paulicia, e o seu livro Macunama, de 1928,
fundamental quanto ao uso de inmeras lendas e mitos de saber indgena, e anterior a este, o
dirio de bordo O Turista Aprendiz.
Existe uma interpretao comum dentro dos estudos sobre a presena de Mrio de
Andrade na Amaznia a partir do seu dirio. Maria Cavalcanti, por exemplo, estudando as
danas dramticas, assinala um relato propriamente literrio no primeiro dirio de viagem
do rapsodo. Interpretado por Jose Tavares Lira como um momento de preguia criativa na
viagem pela Amaznia em 1927, um contraponto, para enfatizar, este o objetivo de seu texto,
um trabalho infatigvel no tour de Mrio de Andrade pelo Nordeste. Interpretao
constante, que aparece pelo menos em dois momentos nos textos de Tele Porto Ancona: nos
quatro pequenos textos que prefaciam a obra O Turista Aprendiz e num artigo publicado
quase trs dcadas depois, confirmando, ainda a mesma interpretao. 52
Menos ao cio
51
Colaborou em Papel e Tinta (So Paulo), na Revista do Brasil (Rio de Janeiro, at 1926) e na Illustrao
Brasileira (Rio de Janeiro, at 1921). Tambm em A Cigarra, O Echo e A Gazeta. Ver relao dos contnuos
trabalhos intelectuais de Mrio de Andrade em BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira.
Cultrix Ed. So Paulo. 1984. (p. 346-347). 52
Ver CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Cultura popular e sensibilidade romntica: as danas
dramticas de Mrio de Andrade. Rev. Bras. de Cincias Sociais. Vol. 19, n. 54. 2004. (p. 62). LIRA, Jos
Tavares Correia de. Naufrgio e galanteio: viagem, cultura e cidades em Mrio de Andrade e Gilberto Freyre.
Revista Brasileira de Cincias Sociais. Vol. 20 n 57, fev/ 2005. (p. 143). Ver tambm os textos da introduo de
autoria de Tele Porto Ancona em ANDRADE, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo, Duas Cidades,
39
criador, este trabalho busca atentar ao particular do contato do rapsodo com a Amaznia,
distinto naturalmente do que ser no Nordeste. No Norte, um intelectual mais livre dos
compromissos da produo de textos jornalsticos, muito mais apto a produzir na intimidade
das pginas de seu dirio o registro da viagem em um significado mais pessoal, mas prprio
de sua experincia com o lugar e o seu habitante, com a natureza e as sensaes ante a fauna e
a flora.
Mrio de Andrade aborda a Amaznia artisticamente, percebendo nela um lugar
mgico, assim como seus personagens e o limite entre o primitivo e o civilizado. Inicia seu
Macunama a partir da leitura de Koch-Grunberg, trabalho recheado em saberes indgenas,
crenas, mitos, costumes, artes da Amaznia. Mrio de Andrade viaja Amaznia e nos
entusiasma com o seu entusiasmo e expectativa frente ao rio, que pela primei