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91 5 Desdobramentos Autores como o brasileiro Rubem Fonseca e o português José Cardoso Pires leitores de tramas policiais e prováveis conhecedores dessas regras/definições – trabalharam com o gênero policial, mas nunca seguiram resolutamente esses modelos de escrita, esses moldes narrativos. O pressuposto cartesianismo de alguns teóricos do romance policial apresenta dois problemas de ordem primordial para o entendimento do gênero – mas que não surgem, por exemplo, nas reapropriações do romance policial por parte de Cardoso Pires e Rubem Fonseca – que, segundo Narcejac, são: “1.º) el novelista* no es un “verdadero detective”, puesto que conoce la solución del enigma antes de contar la historia; 2.º) el lector tampoco es un verdadero policía, puesto que trabaja sobre unos hechos que se le presentan en un orden decidido por el autor y sobre testimonios cuya importancia el autor ha determinado de antemano. Escritores y lectores han hecho como si la novela policíaca no fuera una novela sino una verdadera investigación. Pero ocurre que algunas investigaciones fracasan porque el detective no consigue descubrir a los sospechosos. Sin embargo, la novela policíaca, en la medida que es, por añadidura, una ficción, debe siempre abocar a una solución feliz y, por consiguiente, los sospechosos deben ser desenmascarados; dicho de otra forma, su carácter debe ser descifrado 125 . Um dos objetivos de José Cardoso Pires e Rubem Fonseca parece ser o de pensar as relações entre os indivíduos, entre eles mesmos e suas relações com o Estado, principalmente no período de ditadura que os dois enfrentaram em seus respectivos países, numa época em que o poder estava “locado”. As condições histórico-sociais possibilitaram/estruturaram o nascimento do romance policial no século XIX. A industrialização, o fortalecimento da imprensa, a abertura de bancos, a consolidação dos Estados Nacionais – e das políticas de manutenção desses Estados como exército, polícia, escolas são “responsáveis” diretos pelo surgimento do gênero. Segundo a argumentação do professor e pesquisador Tradução Livre: "1.º), o romancista não é um "verdadeiro detetive", porque ele sabe resolver o enigma antes de contar a história; 2. º), o leitor não é um policial verdadeiro, visto que trabalha com acontecimentos que se apresentados a ele em uma ordenação decidida pelo autor e sobre depoimentos cuja importância o autor determinou antecipadamente. Escritores e leitores atuam como se o romance policial não fora um romance e sim uma verdadeira investigação. Porém ocorre que algumas investigações fracassam porque o detetive não consegue identificar os suspeitos. No entanto, o romance policial, na medida que é, verdadeiramente, uma ficção, sempre deve conduzir a uma solução feliz e, consequentemente, os suspeitos devem ser desmascarados, em outras palavras, suas características devem ser decifradas. 125 NARCEJAC, 1982, p. 56.

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5 Desdobramentos

Autores como o brasileiro Rubem Fonseca e o português José Cardoso

Pires – leitores de tramas policiais e prováveis conhecedores dessas

regras/definições – trabalharam com o gênero policial, mas nunca seguiram

resolutamente esses modelos de escrita, esses moldes narrativos. O pressuposto

cartesianismo de alguns teóricos do romance policial apresenta dois problemas de

ordem primordial para o entendimento do gênero – mas que não surgem, por

exemplo, nas reapropriações do romance policial por parte de Cardoso Pires e

Rubem Fonseca – que, segundo Narcejac, são:

“1.º) el novelista* no es un “verdadero detective”, puesto que conoce la solución del enigma antes de contar la historia; 2.º) el lector tampoco es un verdadero policía, puesto que trabaja sobre unos hechos que se le presentan en un orden decidido por el autor y sobre testimonios cuya importancia el autor ha determinado de antemano. Escritores y lectores han hecho como si la novela policíaca no fuera una novela sino una verdadera investigación. Pero ocurre que algunas investigaciones fracasan porque el detective no consigue descubrir a los sospechosos. Sin embargo, la novela policíaca, en la medida que es, por añadidura, una ficción, debe siempre abocar a una solución feliz y, por consiguiente, los sospechosos deben ser desenmascarados; dicho de otra forma, su carácter debe ser descifrado125. Um dos objetivos de José Cardoso Pires e Rubem Fonseca parece ser o de

pensar as relações entre os indivíduos, entre eles mesmos e suas relações com o

Estado, principalmente no período de ditadura que os dois enfrentaram em seus

respectivos países, numa época em que o poder estava “locado”. As condições

histórico-sociais possibilitaram/estruturaram o nascimento do romance policial no

século XIX. A industrialização, o fortalecimento da imprensa, a abertura de

bancos, a consolidação dos Estados Nacionais – e das políticas de manutenção

desses Estados como exército, polícia, escolas são “responsáveis” diretos pelo

surgimento do gênero. Segundo a argumentação do professor e pesquisador Tradução Livre: "1.º), o romancista não é um "verdadeiro detetive", porque ele sabe resolver o enigma antes de contar a história; 2. º), o leitor não é um policial verdadeiro, visto que trabalha com acontecimentos que se apresentados a ele em uma ordenação decidida pelo autor e sobre depoimentos cuja importância o autor determinou antecipadamente. Escritores e leitores atuam como se o romance policial não fora um romance e sim uma verdadeira investigação. Porém ocorre que algumas investigações fracassam porque o detetive não consegue identificar os suspeitos. No entanto, o romance policial, na medida que é, verdadeiramente, uma ficção, sempre deve conduzir a uma solução feliz e, consequentemente, os suspeitos devem ser desmascarados, em outras palavras, suas características devem ser decifradas. 125 NARCEJAC, 1982, p. 56.

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Renato Ortiz: “A indústria elétrica é uma conseqüência direta das investigações

científicas; as invenções do telégrafo, dínamo, motor elétrico e rádio (...) dentro

desse contexto, a própria sociabilidade dos indivíduos é reorganizada126”; a

diminuição das distâncias, tanto fisicamente quanto por meios como telégrafos e

melhoria na emissão e recebimento de cartas, a fotografia, tudo isso propiciou que

Poe e seus contemporâneos conseguissem levar a cabo sua empreitada e conseguir

sucesso, através da rápida aceitação de seus textos e desse novo gênero. A massa

se encantava com romances policiais e com tudo que representavam. Isso fica

claro na comparação feita por Walter Benjamin:

A câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa. Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em nossas cidades um só recanto que não seja o local de um crime? Não é cada passante um criminoso? Não deve o fotógrafo, sucessor dos áugures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado?127

No século XX, condições outras, mas também fundamentais,

pavimentaram a estrada por que seguem os escritores desses novos romances

policiais – que não pretendo denominar como policiais de citação, hiper-realistas,

teóricos, ou qualquer outro termo em moda –, como a Globalização, a queda das

fronteiras espaciais, via aeroporto/internet, a aproximação do cinema, como

ocorrera anteriormente com a fotografia, e a televisão. Completam o quadro as

novas configurações das relações pessoais, políticas e artísticas.

A associação entre literatura e meios de comunicação de massa, numa

sociedade de consumo, precisa ser refletida e atualizada, pois num período de

forte alienação política – cada vez mais sacrifícios no altar do Deus-consumo e

informações direcionadas pelos meios de comunicação – a ação passa ao segundo

126 ORTIZ, 2003. p, 27 * Tradução Livre: O Estado não pode funcionar apenas por pura coerção, (...) precisa construir um consenso, precisa construir histórias, dar veracidade a certa versão dos acontecimentos. Eu penso que este é um campo de investigação importante nas relações entre política e literatura, e talvez a literatura nos ajude a entender o funcionamento dessas ficções. Não se trata apenas do conteúdo dessas ficções, não se trata apenas do material produzido, mas sim da forma como são apresentadas essas narrativas do Estado. E, para perceber o modo como são apresentadas, talvez a literatura nos dê os instrumentos e os meios para captar a forma como são construídas e atuam as narrações que vêm do poder. 127 BENJAMIN, 1996, p. 107.

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plano, a passividade reina. O discurso estatal castrador mantém-se fortalecido,

entre outros motivos, pela estratégia de despolitizar o povo que oprime, pois,

quando os indivíduos têm uma falsa idéia do que está ocorrendo ao seu redor, a

voz do Estado se torna a única voz, como nos exemplifica o teórico argentino

Ricardo Piglia:

El Estado* no puede funcionar sólo por la pura coerción, (...) necesita construir consenso, necesita construir historias, hacer creer cierta versión de los hechos. Me parece que ahí hay un campo de investigación importante en las relaciones entre política y literatura, y que quizás la literatura nos ayude a entender el funcionamiento de esas ficciones. No se trata solamente del contenido de esas ficciones, no se trata solamente del material que elabora sino de la forma que tienen esos relatos del Estado. Y para percibir la forma que tienen, quizás la literatura nos dé los instrumentos y los modos de captar la forma en que se construyen y actúan las narraciones que vienen del poder128.

Visivelmente, José Cardoso Pires e Rubem Fonseca produzem uma obra

ficcional que incorpora elementos do discurso estatal e reconfigura esse discurso

para corroê-lo por dentro, construindo situações/falas que apresentem uma

realidade social diferente daquela sugerida pelo Estado. Os dois autores se

apropriam, literariamente, de algumas das estratégias utilizadas pelos Estados

ditatoriais de seus respectivos países, para a manutenção de seus regimes de

governo.

Ambos constroem, por exemplo, autos necroscópicos que incorporam

termos técnicos para aproximá-los do discurso tecno-burocrata, que almeja ser

direto e didático. Cardoso pires se apropria desse discurso burocrático estatal, em

seu livro Balada da praia dos Cães, para montar seu auto:

CADÁVER DE UM DESCONHECIDO

encontrado na praia do Mastro em 3-4-1960: 1. Indivíduo do sexo masculino, 1,72m de altura, bom estado de nutrição, idade provável cinqüenta anos... 2. Não aparenta rigidez cadavérica: não tem livores... 3. Na calota craniana, ao nível da sutura dta. Accipito-parietal, há uma perfuração circular de 4mm de diâmetro provocada por projéctil... 4. Perfuração do temporal esq., na tábua interna 5. Ruptura da dura-mater ao nível dos orifícios descritos nos ossos...(..) Ap. Exame ‘in situ’: Areal acidentado de pequenas dunas, numa das quais, a cerca de 100ms. da estrada se viam a descoberto um cotovelo humano e um joelho cujos tecidos de apresentavam parcialmente destruídos e cobertos de moscas129.

128 PIGLIA, 2001, p. 32. 129 PIRES, 1983, p. 5.

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Esse auto surge logo na abertura do livro, a apropriação feita por Cardoso

Pires é legitimada porque o “detetive”/protagonista de seu romance, Balada na

praia dos Cães, é um funcionário do governo. O discurso estatal está presente,

durante toda a narrativa, através de autos, relatórios, técnicas de investigação e de

interrogatório.

Em seu primeiro romance, O Caso Morel, Rubem Fonseca relembra seus

tempos de membro da força policial, ao criar um auto de necroscopia também

buscando uma similaridade com os procedimentos de escrita do regime ditatorial,

no caso brasileiro, um governo militar. Vejamos:

DO CADÁVER: era o de uma mulher de cor branca que aparentava haver alcançado, quando em vida, a idade de 20 (vinte) anos (...) cadáver este que mede cento e setenta centímetros de estatura, e que tem tonalidade esverdeada no tronco, pescoço, cabeça, membros superiores e inferiores, até a parte superior das pernas, com presença de flictenas putrefativas; o couro cabeludo, de implantação de cabelos negros, levemente ondulados, revela algumas lesões contundentes; córneas opalescentes, tumefação/enfisemação da face, nas pálpebras e lábios; dentes em bom estado de conservação (...) a abóboda craniana está integra: a dura-máter está integra: o encéfalo está recoberto superficialmente por substância avermelhada em toda a sua extensão130. Os autos de Rubem Fonseca e Cardoso Pires de certa forma representam

um mesmo modelo de justificativa do Estado para a morte de um indivíduo. O

discurso estatal deve satisfazer a curiosidade e gerar a segurança de que o governo

está atento a tudo, principalmente a mortes violentas. A investigação

governamental vai permitir que o Estado decida os rumos do processo, segundo,

evidentemente, seus interesses. Sobre essa incorporação de um “auto estatal” ao

texto cardoseano, temos a seguinte definição do professor Petar Petrov:

Na perspectiva do estatuto ideológico do responsável pelo enunciado, a inclusão do material referido exerce um duplo efeito: por um lado intensifica a historicidade do representado, chamando a atenção para determinados factos, situações e personagens, e, por outro lado, denuncia um desvio irônico no nível da narração. A posição crítica, neste caso, provém da circunstância de as passagens surgirem em resultado de um trabalho de imitação de um certo tipo de registro e representarem processos do âmbito da paródia e do pastiche de documentos existentes que serviram de fonte para a escrita do romance131.

130 FONSECA, 2000, p. 110. 131 PETROV, 2005, p. 313.

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Os dois escritores estão sempre a investigar o discurso estatal, quando

recorrem ao romance policial, mesmo que impregnado por uma escrita jornalística

e cinematográfica. Na verdade, incorporam técnicas para a escrita de histórias de

detetive e, consequentemente, acabam por atingir a um grande número de leitores,

tanto os que rotineiramente lêem romances policiais quanto os que

costumeiramente lêem obras de outros gêneros literários.

5.1 Mercado

O gênero policial compreende nuances e paradigmas próprios; a

peculiaridade singulariza e marca suas obras. Um dos motivos para considerar as

narrativas policiais como um subgênero, ou desconsiderá-las por completo como

um gênero literário, advém do fato de ser um tipo de leitura associada a uma

burguesia consumidora de títulos tidos como descartáveis e facilmente

esquecíveis (literatura de bolso para viagem, logo esquecida num quarto de hotel

ou num vagão). Os populares, em todos os sentidos do termo, best-sellers, que na

visão do professor Muniz Sodré seriam:

enquanto produto da literatura folhetinesca ou de massa, resultado do processo de industrialização mercantil e efeito da ação capitalista sobre a cultura, inscrevendo sempre, portanto, em sua produção, as diretrizes ideológicas dominantes de interpelação e reconhecimento do sujeito humano. O folhetim oitocentista era determinado pelas exigências industriais e comerciais da imprensa e como isto evoluiu até a fase atual das grandes editoras especializadas em best-sellers (...) do ponto de vista mercadológico, o folhetim tem dois públicos: o investidor (capitalista) e o leitor132. As pessoas se sentem excitadas, em alguns casos assustadas, com a

dramatização de um crime ou pela publicação dessa história em um jornal ou

romance. Narrativas policiais não são lidas, precisamente, para estabelecer uma

conexão cultural com esse público leitor ou para educá-lo, não se busca com a

leitura de obras do gênero o entendimento da sociedade ou da vida. Busca-se

entretenimento, prazer. Os conflitos apresentados podem até ser profundos ou

pedirem uma reflexão sobre um assunto capital, mas para o “bom” leitor de

132 SODRÉ, 1985, p.70.

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policiais, o status quo é válido e útil, pode não ser o ideal, mas causa-lhe

satisfação ou, pelo menos, a esperança de que tudo melhore.

Por outro lado, em uma sociedade burguesa, as relações interpessoais,

profissionais ou familiares, passam a fazer parte do equilíbrio econômico,

precisam estar balanceadas, sob o risco de causar algum dano monetário. Faz-se

necessária alguma estruturação para que os objetivos profissionais – como

acúmulo de capital, por exemplo – não sejam prejudicados. A vida transforma-se

em um quadro de estatísticas, com gráficos ditando rumos e destinos. De certa

forma, o romance policial clássico, com o detetive infalível é a obra burguesa por

excelência por criminalizar os conflitos entre indivíduo e sociedade e, assim

compactuar com a defesa dos ideais burgueses. Segundo Ernest Mandel:

A significação objectiva do advento do romance policial em meados do século XIX, num momento particular do desenvolvimento do capitalismo, do pauperismo, da criminalidade e da revolta social primitiva contra a sociedade burguesa (...) [aumentou] a necessidade cada vez mais premente sentida pela burguesia de defender a ordem social estabelecida133.

Pessoas acostumadas e criadas a pensar de uma maneira lógica e mercantil

e, também, a acompanhar os processos tecnológicos e as inovações que causam na

vida das pessoas, com descobertas em escala industrial, não podem depender da

verve criativa ou do humor de um autor. É a lei da oferta e da procura

transformando a sociedade, ou pelo menos tornando-a mais clara, como podemos

perceber no texto de Karl Marx, que apresenta um pensamento que ilustra a lógica

burguesa:

Um filósofo produz idéias, um poeta versos, um pastor sermões, um professor manuais, etc. Um criminoso produz crimes. Se consideramos um pouco mais de perto a relação que existe entre este ramo da produção e o conjunto da sociedade, revelaremos muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas crimes, mas ainda o direito penal, o professor que dá cursos sobre direito penal e até o inevitável compêndio em que o professor apresenta as suas lições como mercadoria à venda no mercado. (Daqui) resulta um aumento na riqueza material, (para além) do prazer que o autor extrai ao escrever esse compêndio. (...) O criminoso interrompe a monotonia e a segurança da vida burguesa: com isso protege-a contra a estagnação e põe em jogo aquela tensão infatigável, aquela mobilidade de espírito sem a qual o próprio estímulo da competição acabaria embrutecido. Imprime, portanto, um novo impulso às forças produtivas. O crime subtrai ao mercado de trabalho uma fração do excesso de população, diminui a competição entre os trabalhadores e, até certo ponto, evita que os salários desçam abaixo de um mínimo, ao (mesmo tempo) que o combate ao crime absorve outra parte da mesma população. Assim, o criminoso aparece como sendo uma das

133 MANDEL, 1993, p.29.

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"forças de equilíbrio" naturais, que estabelecem uma justa compensação e abrem toda uma perspectiva de ocupações "úteis" 134 . Tanto Cardoso Pires quanto Rubem Fonseca estão inseridos no mercado

em posições “justas”, pois ambos transformaram o ato de escrever em ofício, algo

raro em países sem vasta tradição de consumo de livros como Brasil e Portugal.

Muitos escritores exercem outras funções, nossos autores exercem somente aquela

que “precisam”. A posição que alcançaram, perante o público e a crítica,

consolida a posição desses autores como figuras ímpares no mercado editorial.

Rubem Fonseca e José Cardoso Pires não querem tranqüilizar a burguesia,

e também não querem ser porta-vozes da massa menos privilegiada econômica e

culturalmente, mas sim ser útil como uma (importante) peça da máquina sócio-

literária. Eles são tratados com respeito pela crítica e são bons vendedores de

livros. Logo, geram lucro e idéias. Lidam de forma “saudável” com o mercado,

não são autores de best-sellers, no sentido pejorativo da expressão, são, em

verdade, escritores de sucesso e por isso podem ser independentes ou engajados,

dependendo do termo que se queira empregar. Curiosamente, essa escrita

engajada foi “aceita” e não tornou nenhum dos dois escritores fracassos

comerciais. O crítico e escritor Silviano Santiago em comunicação apresentada

durante o XI Seminário Internacional da Cátedra Padre António Vieira, na PUC-

Rio, falou sobre essa relação entre intelectuais, escritores e a venda de livros:

A função do escritor, como intelectual, deve ser estabelecer pontes entre diferentes códigos para atingir diferentes públicos, porém escrever socialmente tem “sabor de veneno” para o escritor e para as editoras porque mata as vendas. Apesar de ser notável defensora do politicamente correto, apesar de pertencer à cultura hegemônica e escrever na língua franca da globalização, Susan Sontag não chega a estourar na lista dos mais vendidos. O povo quer Paulo Coelho, não quer Susan Sontag 135.

Silviano Santiago faz uma correlação entre um dos maiores vendedores de

livros do mundo, o despolitizado literariamente Paulo Coelho, e uma das

principais ativistas contra a violência dos mais fortes contra os mais fracos, sejam

eles países ou pessoas, Susan Sontag, que vende muito mais idéias do que livros.

Rubem Fonseca e Cardoso Pires têm suas obras cultuadas pela crítica e compradas

em larga escala pelo público. O escritor brasileiro tem uma linguagem um tanto

134 MARX, 1964, p. 173. 135 SANTIAGO, 2003.

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mais direta, apresenta o confronto em vários de seus livros como solução ou, pelo

menos, como possibilidade de solução para problemas. Cardoso Pires tem uma

escrita um tanto mais cifrada, valendo-se mais do implícito do que do literal,

apesar da “clareza” de uma obra como Dinossauro Excelentíssimo. Essa relação

entre crítica especializada, leitor e vendas, levantada pelo professor Silviano

Santiago, gera uma questão: um povo submisso a um poder locado se importa em

receber uma dose maior ou menor de veneno?

5.2 A Escolha

Os escritores não podem ser dissociados da época em que escrevem por

mais atemporais que possam ser/parecer seus textos. As condições históricas e

sócio-culturais têm influência em seus escritos, assim como, em muitos casos, a

produção literária desses autores causa mudanças no âmbito social. Na verdade, a

cultura, de modo geral, e para nós, especificamente, a literatura, não possui plena

autonomia perante a sociedade à qual está atrelada. Autonomia, aqui, no sentido

artístico “apenas”, sem mencionar censuras ou cerceamentos à liberdade criativa.

Segundo, a professora de Antropologia e pesquisadora dessa relação entre

literatura e sociedade, Adriana Facina:

Os escritores são produtos de sua época e de sua sociedade. Desse modo, mesmo o artista mais consagrado, considerado alguém dotado de um talento especial que o destaca dos outros seres humanos, é sempre um indivíduo de carne e osso, sujeito aos condicionamentos que seu pertencimento de classe, sua origem étnica, seu gênero e o processo histórico do qual é parte lhe impõem. Sua capacidade criativa se desenvolve num campo de possibilidades que limita a sua liberdade de escolha. Nessa perspectiva, faz pouco sentido afirmar coisas do tipo “tal escritor estava à frente de seu tempo”, pois, ainda que não seja compreendida ou admirada em sua época e só venha a ser consagrada posteriormente, toda criação literária é um produto histórico, produzido numa sociedade específica, por um indivíduo inserido nela por meio de múltiplos pertencimentos136.

A literatura/arte, para alcançar uma esfera autônoma ante os outros

aspectos sociais, teria de se apresentar homogeneamente a todas as culturas, para

136 FACINA, 2004, p. 9.

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não ser tocada pelos conflitos sócio-culturais inerentes à humanidade, como

disputas pelo poder, intolerância, medo, amor, que são e serão sempre os mesmos

através dos tempos e em qualquer civilização. Escritores como José Cardoso Pires

e Rubem Fonseca não querem estar “à frente de seu tempo” – talvez estejam

verdadeiramente à frente -, mas sua prioridade é a de acompanhar no mesmo

ritmo a sociedade em que vivem, participando de mudanças e questionando a

velocidade e necessidade dessas mudanças. Em seu livro de ensaios, E Agora,

José?, Cardoso Pires cronometra esse tempo português descompassado:

Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa (...) Chega-se a perguntar: está vivo? É claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro (...) Todo o cenário tem uma organização mutilada ou provisória. Barracas ao fio de água, tendas de feira, viagem, andaimes, dormitórios de passagem (...) é com tais coisas que se fabrica o país estropiado que o olho do astronauta sobrevoa e não vê porque só pensa em futuro e em anos luz137. O escritor deve estar atento a sua época e ao ”tempo” de sua época, ou

seja, às transformações tecnológicas que afetam a sociedade e à velocidade com

que essas mudanças ocorrem. Voltemos um pouco, mais precisamente à época de

Edgar Allan Poe, do meio para o fim do século XIX, período da ascensão da

burguesia, da consolidação dos Estados Nacionais e da revolução industrial, os

fatos que “ditavam” os rumos sócio-culturais. Poe percebeu e soube aproveitar, de

forma brilhante, o environment em sua produção literária. Analogamente, no fim

do século XX e início do XXI, a revolução tecnológica e a globalização ocupam

esse influente papel, pois, segundo o filósofo Zygmunt Bauman, “estão na ordem

do dia138”. O sociólogo espanhol Manuel Castells, no primeiro volume, A

Sociedade em Rede, de sua trilogia. A Era da Informação, define revolução

tecnológica:

(...) o que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso139. Globalização, o outro lado desta mesma moeda, é um processo

pluridimensional, não uma instância meramente econômica. O termo se refere à

137 PIRES, 1977, p. 19 e 24. 138 BAUMAN, 1999, p. 7. 139 CASTELLS, 2000, p. 50.

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interdependência global entre os mercados financeiros, fundamentada e mantida

pelas novas tecnologias da comunicação e pela livre circulação internacional de

dinheiro, através de bancos multinacionais. Essas mesmas tecnologias, como

internet e TV a cabo, por exemplo, integram pessoas de todo o mundo, afetando

assim a indústria cultural, pois qualquer produção artística pode estar virtualmente

ao alcance de todos, em cada local do planeta, ao mesmo tempo. Zygmunt

Bauman dedica um livro ao fenômeno da globalização. Segundo o teórico

polonês:

Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa basicamente o mesmo para todos. 140

Em outras palavras, como a globalização atinge a todos, escritores

inclusive, evidentemente, autores com maior comprometimento, no sentido não-

pejorativo do termo, e discernimento crítico terão de buscar meios para lidar

produtivamente com essa nova ordem reinante. Como vimos no capítulo

intitulado “Modelos de Romance Policial”, um dos gêneros literários que, mais

significativamente incorpora as nuanças, tecnológicas e sociais, de sua época é o

romance policial. Em seu livro Rainhas do Crime: Ótica Feminina no Romance

Policial, a escritora Sônia Coutinho tece uma explicação sobre a recente

popularidade alcançada pelo gênero:

O romance policial chega a este fim de século [XX] experimentando renovado apogeu. Nas estantes das livrarias, cresce o espaço para ele reservado, com suas variantes. E entre nós, chega às listas dos mais vendidos, assinado por autores de prestígio. Além do aumento da violência urbana, que o policial reflete, (...) uma característica da arte contemporânea é o fim da ênfase na originalidade; o privilégio, agora, é para a citação, ou o pastiche141.

Rubem Fonseca e Cardoso Pires escrevem em uma época de caráter

fragmentário, centro e trinta anos depois de Poe, em que, várias vezes, a diferença

surge como a grande marca, para logo em seguida ter seu lugar negado, através de

desconstruções, deslocamentos, bricolagens, pastiches, pelo sumário afastamento

de alguns mitos e a (re)criação de outros. No fim do século XX, surgem

produções literárias impregnadas de um espírito de liberdade, que sugere o

140 BAUMAN, 1999, p. 7. 141 COUTINHO, 1994, p. 23.

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hibridismo como norma, permitindo, desse modo, que um mesmo (romance

policial, por exemplo), seja sempre diferente, não-usual. A diferença tende a ser

(super)valorizada, característica de um mundo marcado por uma gama de

variantes “mutáveis” que não seguem nenhum sistema autoritário ou inflexível,

com isso, descentramento e subversão são as “novas regras a serem seguidas”.

Vejamos o que diz a professora Vera Lúcia Follain de Figueiredo:

Fala-se em salvar a literatura, impedir que ela agonize fechada em si mesma, mas não se deixa de mencionar o "shilling", que atraía Shakespeare, ou seja, o lado comercial que limita a independência do escritor, induzindo-o, em muitos casos, a fazer concessões que também poderiam levar a literatura, por outro caminho, a agonizar. Entre a postura de Flaubert e a de Zola, o escritor, nesses novos tempos, ao aceitar o princípio de repetição implícito na idéia de gênero, ao buscar o romance histórico e a trama policial, faz do propósito mesmo de conciliar o inconciliável o princípio estruturador da obra, através do qual procura legitimar artisticamente o padrão híbrido. 142 Cardoso Pires e Rubem Fonseca aceitam o desafio de escrever obras que

não apresentam cunho exclusivamente comercial, mesmo sendo vendidas como

romances policias ou histórias de investigação. Contam com o respaldo da crítica

e com a canonização acadêmica, para não serem inseridos na categoria de

escritores seriais, que escrevem através de fórmulas para agradar o público e, com

isso, vender cada vez mais livros. O hibridismo, a subversão dos gêneros, a

realocação das estruturas narrativas próprias do policial, tudo isso, gera a marca

da diferença, tão cara a esses dois escritores.

142 FIGUEIREDO, 2008.

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5.3 A Apreensão

Segundo Boileau-Narcejac, o romance policial clássico pode se resumido

em três elementos fundamentais a sua existência: o criminoso, a vítima e o

detetive143. Nos romances policiais contemporâneos, fim do século XX e início do

século XXI, os escritores se utilizam desse trinômio clássico, apresentado pela

dupla de teóricos franceses, para trabalhar questões sociais como totalitarismo,

censura, globalização e todo tipo de violência. A trama policial serve de suporte

para que determinados autores efetuem denúncias sobre esses desmandos,

promovam o debate e sugiram caminhos. A investigação do crime é também uma

investigação social. O criminoso caçado personifica o “mal” reinante, o poder

centralizador; sua captura e punição, geralmente através de uma grave

investigação, geram esperança de que ocorra alguma transformação. Segundo a

professora Vera Lúcia Follain de Figueiredo:

A melhor ficção policial contemporânea recorre, então, à convenção do gênero com uma dupla finalidade. De um lado aproveita o que, já na narrativa de enigma do século 19, apontava para a verdade como construção realizada a partir de uma combinatória de dados. De outro, corrói a confiança nas estruturas seqüenciais que, identificadas com a própria linha do raciocínio, com a forma da própria razão, acabavam por ordenar a busca da verdade num discurso fechado, que eliminava as probabilidades e abolia o acaso144.

Essa investigação social, que permeia os romances policiais

contemporâneos, se vale da temática do crime/assassinato para desenvolver

narrativas de denúncia à violência e à injustiça sociais. Essa nova literatura

policial incorpora em seu texto estratégias, para atingir o leitor, similares às

utilizadas pela mídia, pelo Estado, pelas grandes corporações, pela internet, pelo

cinema, marcando sempre a violência presente nesses discursos e que nem sempre

é perceptível facilmente. Estratégias, regras, modelos, todos são termos

pertinentes ao romance policial clássico, que ficou marcado por essa delimitação

estrutural.

Segundo Tzvetan Todorov: “A grande obra cria, de certo modo, um novo

gênero, e ao mesmo tempo transgride as regras até então aceitas”. Edgar Allan

143 Cf. BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p.9. 144 FIGUEIREDO, 2003, p. 15.

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Poe criou uma grande obra, que deu origem a um gênero, o romance policial de

enigma, e o escritor Michel Butor, através de seu personagem George Burton,

definiu teorias sobre as narrativas deste gênero:

Todo romance policial se constrói sobre dois assassinatos; o primeiro, cometido pelo assassino, é apenas a ocasião do segundo no qual ele é vítima do matador puro e impune, do detetive (...) a narrativa superpõe duas séries temporais: os dias do inquérito, que começam com o crime, e os dias do drama que levam a ele145.

O romance de enigma é construído sobre essa dualidade, que o diferencia e

nos ajuda a descrevê-lo. A segunda história, a do inquérito, só pode começar após

o término da primeira, mas as narrativas de enigma clássicas nunca apresentam

essa primeira história. Na primeira página do romance policial clássico, o crime já

ocorreu, o detetive é convocado a recolher pistas, interrogar suspeitos, formular

teorias. Vejamos como Cardoso Pires trata esse tema no segundo de trinta e dois

capítulos, em O Delfim:

“Crime”, pronuncia o dente inquisidor; e sente-se que dentro do Velho se tinha levantado uma alegria mansa. (...) “Assim mesmo. A dona Mercês matou o criado e o Infante matou-a a ela. Nem mais. (...) a dada altura fui eu que me deixei levar por ele. Tocado pelo veneno da curiosidade (...) Primeiramente convinha tomar fôlego, beber um copo, e, já agora, conhecer as linhas com que se cose o caçador ignorante dos mistérios aldeões. Estes da Gafeira sobretudo tinham sido muitos e inacreditáveis146.

A história do inquérito é o cerne principal deste tipo de narrativa por dois

motivos básicos: preservar o leitor e as personagens. O primeiro motivo é o de

não expor o leitor à ação violenta, deve-se narrar a descoberta do cadáver e as

condições em que ele se encontra, mas nunca deve ser feita uma descrição do ato

brutal do criminoso O crime, em algumas tramas, aparece em forma de

flashbacks, ou de reconstituições, porque o leitor quer travar contato com a

investigação, não quer presenciar o crime em si.

Em A Grande Arte, Rubem Fonseca adota um procedimento de escrita,

que abrange, de forma particular, os aspectos citados acima, pois antes do

primeiro capítulo, numa espécie de prólogo, o crime já ocorreu, mas o leitor não é

poupado de assistir ao assassinato:

145 BUTOR, 1969, p. 95. 146 PIRES, 1999a, p. 40.

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Não adiantava imaginar por que fazia aquilo. Era uma perda de tempo especular por que determinadas coisas dão prazer. O P não tinha ressonâncias literárias, nem ele se considerava um psicótico puritano querendo esconjurar a congênita corrupção feminina (...) a mulher abriu a boca, tentando respirar, emitiu um grunhido roufenho, os olhos arregalados fixados no rosto dele, os braços levantados, os dedos trêmulos, procurando um apoio que a salvasse de afundar e sucumbir na escuridão que rapidamente a engolfava147.

O segundo motivo apresentado, para justificar essa espécie de salvo-

conduto para as personagens de um romance policial de enigma, é dado pelo

próprio Tzvetan Todorov:

As personagens desta segunda história, a história do inquérito, não agem, descobrem. Nada lhes pode acontecer: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive. Não se pode imaginar Hercule Poirot ou Philo Vance ameaçados por um perigo, atacados, feridos, e ainda menos, mortos. As cento e cinqüenta páginas que separam a descoberta do crime da revelação do culpado são consagradas a um lento aprendizado: examina-se indício após indício, pista após pista. O romance de enigma tende assim para uma arquitetura puramente geométrica148.

“Arquitetura geométrica” e “regra do gênero” podem ajudar a estabelecer,

não modelos para a escrita de romances policiais, mas quais dessas estratégias

foram apreendidas por Rubem Fonseca e Cardoso Pires para a construção de seus

textos e a real funcionalidade dessas escolhas por parte dos autores. A professora

Vera Lúcia Follain de Figueiredo é uma grande especialista na obra do escritor

mineiro e desenvolve este pensamento, voltado à ficção fonsequiana, ora

apresentado abaixo, que entendemos ser perfeitamente pertinente também ao tipo

de procedimento de escrita utilizado por José Cardoso Pires em seus livros:

Sua ficção permite uma dupla leitura, como se houvesse virtualmente dois livros dentro de um único livro – o leitor pode prender-se apenas ao desenvolvimento do enredo, deixando-se guiar pelo princípio da causalidade, ou optar por perder-se nos atalhos abertos pelo jogo intertextual, caso em que sua trajetória será definida por um outro tipo de temporalidade. O segundo caminho exige um leitor que siga as pistas das remissões, que puxe os fios que o conduzirão para fora dos limites do texto, isto é, um público antenado com uma nova recepção que se impõe, cada vez mais, no mundo contemporâneo a partir da expansão das redes digitais149. Vejamos como Rubem Fonseca e Cardoso Pires lidam com esse novo caminhar

em A Grande Arte e O Delfim, respectivamente.

147 FONSECA, 1992 p. 9. 148 TODOROV, 1969, p. 96. 149 FIGUEIREDO, 2003, p. 13.

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5.4 O Delfim

No mítico ano de 1968, José Cardoso Pires publica O Delfim, um

acontecimento também ao nível do "marketing" literário, pois a editora Moraes,

capitaneada pelo escritor António Alçada Baptista, engendrou uma grande

campanha de lançamento. Algo inovador como atesta a escritora Inês Pedrosa:

A Moraes conseguiu fazer do lançamento um acontecimento forte, através de concursos de montras, decoração interior das livrarias com cartazes suspensos do tecto - enfim, toda uma parafernália de técnicas de 'marketing' que, na época, pouco se aplicavam ao livro, e que, de resto, ainda hoje pouco se aplicam com a criatividade necessária à captação de novos leitores150.

Segundo António Alçada Baptista, responsável pela edição original d´O

Delfim: "A acção de propaganda correu muito bem, o facto do livro ser

verdadeiramente muito bom justificou plenamente essa aposta. Cardoso Pires era

um grande escritor”, acrescenta o editor original d'O Delfim151", que vendia o

livro como uma história policial. Evidentemente, o mercado não influenciou a

escrita cardoseana, que criou um livro considerado uma obra-prima: "'O Delfim'

continua a ser considerado entre nós como um dos romances mais importantes do

século XX, mantendo intacta a sua limpidez e actualidade152" segundo a escritora

Lídia Jorge.

Ainda sob uma forte ditadura salazarista, Cardoso Pires cria um romance,

O Delfim, que se apropria de características próprias para a construção de

narrativas policiais que, na verdade, deve dar conta de política e das relações de

poder, ou seja, apropria-se do gênero e de muitas de suas convenções e

procedimentos de escrita para tratar de um tema capital: a situação de Portugal,

misto de estagnação e isolamento. Cardoso Pires traveste-se, no texto “Memória

Descritiva”, de crítico literário a analisar O Delfim:

No plano de reconstituição dos factos a visita à Gafeira decorre de algum modo como nas histórias policiais. Aproximar... mudar de pista... desviar a objectiva para o pormenor desapercebido... A receita é Sherlock & Hitchcock, com mais sangue, menos sangue, mais humor, menos humor. Sem muito esforço, O Delfim pode até inscrever-se na Tipologia do romance de Enigma de Tzvetan Todorov, Estruturas Narrativas, pois assenta abertamente na coexistência de “duas

150 JORNAL DE LETRAS, 2008. 151 JORNAL DE LETRAS, 2008. 152 JORNAL DE LETRAS, 2008.

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histórias, uma das quais está ausente mas é real e outra que está presente e tem papel insignificante.” Com a diferença, porém, de que na investigação sobre a Gafeira o insignificante é o crime153.

O romance apresenta a seguinte trama: a ação transcorre na Gafeira, aldeia

à beira de uma lagoa, que se constitui como área para caça e pesca, e está desde o

século XVII nas mãos dos Palma Bravo, que governam “monarquicamente” o

povoado. Se analisarmos que a Gafeira (“de nove milhões de almas154”) é uma

metonímia de Portugal, por analogia, podemos aproximar o Engenheiro Palma

Bravo, senhor há séculos da lagoa e de tudo e de todos em volta dela, da figura do

Imperador-Dinossauro António Salazar. O domínio do engenheiro só é possível

como resultado de uma situação política retrógrada e totalitária, como a que vivia

Portugal na época do lançamento do romance. A destituição do marido de Maria

das Mercês era uma questão de tempo, as duas mortes apenas apressaram sua

iminente queda. Como atesta o próprio Cardoso Pires:

Trata-se dum delfim sem coroa, de um exilado na lenda, e isso altera o jogo dramático. Mais grave ainda: o homem em causa sabe-se condenado e, para maior desgraça, a derrocada não lhe veio pelas mãos dos inimigos declarados. Se o destronaram e o puseram a monte, deve-o a partidários, como ele, da ordem paternalista, legisladores da cruz e do privilégio que, tempos são tempos, decidiram-se adaptar-se às novas voltas do mundo. Simplesmente, perante as “actualizações” irreprimíveis que ocorrem no interior e em defesa ainda do antigo contexto salazarista, este Delfim 1966 encontra-se demasiado rígido e destituído de influência para fazer a reciclagem salvadora155.

Manuel Castells apresenta um pensamento que ilustra como “este Delfim

1966”, a figura de poder da Gafeira, impossibilita qualquer tentativa de

modernização da aldeia:

Entretanto, embora não determine a tecnologia, a sociedade pode sufocar seu desenvolvimento principalmente por intermédio do Estado. Ou então, também principalmente pela intervenção estatal, a sociedade pode entrar num processo acelerado de modernização tecnológica capaz de mudar o destino das economias, do poder militar e do bem-estar social em poucos anos. Sem dúvida, a habilidade ou inabilidade de as sociedades dominarem a tecnologia e, em especial, aquelas tecnologias que são estrategicamente decisivas em cada período histórico, traça seu destino a ponto de podermos dizer que, embora não determine a evolução histórica e a transformação social, a tecnologia (ou a sua falta) incorpora a capacidade de transformação das sociedades, bem como os usos que as

153 PIRES, 1977, p. 171. 154 PIRES, 1977, p. 171. 155 PIRES, 1977, p. 160.

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sociedades, sempre em um processo conflituoso, decidem dar ao seu potencial tecnológico156.

O engenheiro, décimo primeiro da linhagem, vive às margens da lagoa

com sua mulher e criados, entre eles um cabo-verdiano, que morre supostamente

mantendo relações sexuais com a Maria das Mercês, que foge, cai na lagoa e

morre afogada. Qualquer tentativa de modernização poderia afetar sua posição de

líder, a estrutura social vigente era ideal para a manutenção do status de Palma

Bravo, pois a ignorância é a arma principal do totalitarismo.

O mistério do livro gira em torno da participação do engenheiro nas duas

mortes: ele é o responsável direto ou apenas o marido traído, fugindo da própria

vergonha? Um escritor amigo do casal chega à aldeia e parece ser o único que

pode vir a esclarecer tudo. O único que estaria apto a exercer a função de detetive.

5.4.1 O Detetive-furão

Sabemos desde o início, da narrativa de O Delfim, das mortes,

possivelmente criminosas, de uma mulher e de seu criado, mas o romance não

fornece maiores indícios sobre os motivos ou quaisquer novas pistas. De certa

forma, a única pessoa a ter alguma curiosidade pelo esclarecimento das mortes, e

talvez possa atuar como um detetive, é o escritor-caçador, inclusive por ser, ele,

alguém interessado nesse tipo de narrativa policial, como fica claro no seguinte

diálogo travado entre ele, o narrador-furão, como também é chamado no romance,

e Tomás Manuel, o Palma Bravo sobre crimes, investigação e detetives da

literatura:

‘O tema da reunião é o Crime. Livros e teorias do Crime. “Amigo”, vejo-me eu a dizer na vidraça que dá para a varanda sobre a lagoa, “a literatura policial é um tranqüilizador do cidadão instalado. Toda ela tende a demonstrar que não há crime perfeito.” Tomás Manuel põe em dúvida. Percorre ou vai percorrer a constelação dos policiais que tem na estante do seu gabinete: Carter Dickson, Gardner e O Santo, Rex Stout e Nero Wolfe...(e Simenon, junto por minha conta. E Hamett, e os escrivães da Inquisição, e Sir Edgar Allan Poe, que nunca foi Sir, e o

156 CASTELLS, 2000, p. 26.

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Reichsführer SS Walter Schellenberg, que nunca foi romancista e que no entanto relatou crimes bem planejados como poucos. (...) “Essa conversa de que o crime não compensa também é uma boa anedota (...) deve ter havido milhões de crimes altamente compensadores.” “Está bem, mas não vêm nos romances. O burguês pacato precisa de acreditar nas instituições. Mostrar-lhe que pode haver crimes perfeitos era o fim de sua tranqüilidade.” “Mas é que há mesmo. Por definição todos os crimes que não se descobrem são perfeitos”’157.

Os crimes que abalaram a Gafeira foram descobertos, mas não sabemos se

foram cometidos por alguém. Não existem evidências palpáveis. Apenas versões

contraditórias, dos presumidos assassinatos, continuam a emergir, a ganhar vida.

O nosso detetive-caçador apreende fatos e histórias repletas de fantasia, mágoa e

rancor, por sua conta e risco e, aparentemente, continua a alinhá-las como a

considerar que todos esses relatos serão úteis ao esclarecimento do mistério. O

narrador-furão se permite ouvir, sem distinção, essas vozes à margem que, de

certa forma, já solucionaram, cada qual a seu modo e segundo sua própria versão,

o crime. Todos agora podem discursar livremente, em público, como o cauteleiro:

Entram clientes no café, saem outros de jornal na mão, mas os caçadores que estavam ficaram. Continuam encantados com o Velho, é o que se depreende. E o Velho despeja a doutrina que lhe agrada (...) Partindo do princípio que é ainda dos crimes da lagoa que ele está a discursar no café, os forasteiros hão-de sentir-se um tanto desnorteados nas voltas e contravoltas do Velho (...) procurarão referências, pontos concretos158.

Ou como a hospedeira em conversa com o narrador-furão:

“Ora, se algum pecado se podia apontar ao Engenheiro, era ser leviano em demasia e andar, como diz o outro, sempre atrás de saias. Passe a expressão.” “Lógico”, concordo. O discurso da minha hospedeira era perfeitamente certo e provado. Mas também a resposta do cauteleiro se estivesse aqui, resposta de armadilha, como sempre, não seria menos certa. Esta só: “quem muito fornica acaba fornicado”. E como argumento chega. Dá para os dois lados, mas tem igualmente lógica e, mais ainda, astúcia159.

Essa posição minoritária estabelece uma relação de confiança e de

cooperação entre escritor e minoria, pois essa passa a ser recriada, reconstituída,

sem caricaturas ou preconceitos. De certa forma, o autor perde a aura idealizada e

idealizante, que se apaga em prol de sua escrita e de uma aliança contagiante,

157 PIRES, 1999a, p. 163. 158 PIRES, 1999a, p. 127. 159 PIRES, 1999a, p. 127.

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estruturada em subjetividade, com esses indivíduos sem respaldo social,

fomentando o conceito de pensamento livre, entre essas minorias que, quase

sempre, não têm voz. Em uma sociedade fragmentada, mas dominada ainda pela

mão branca, cristã ocidental e masculina160, essa junção de minorias cria não uma

maioria, mas um outro tipo de minoria – mais estruturada e em busca de uma

mudança do status quo. Na Gafeira, essa mão perde alcance e não consegue mais

pesar sobre todos esses desvalidos que desfrutam agora de uma nova ordem.

Segundo Manuel Castells:

Os sistemas políticos estão mergulhados em uma crise estrutural de legitimidade, periodicamente arrasados por escândalos, com dependência total de cobertura da mídia e de liderança personalizada, e cada vez mais isolados dos cidadãos. Os movimentos sociais tendem a ser fragmentados, locais, com objetivo único e efêmeros, encolhidos em seus mundos interiores ou brilhando por apenas um instante em um símbolo da mídia. Nesse mundo de mudanças confusas e incontroladas, as pessoas tendem a reagrupar-se em torno de identidades primárias: religiosas, étnicas, territoriais, nacionais161.

As vozes dessas pessoas agora ressoam livremente e unidas em um só

objetivo, não estão mais temerosas de uma punição “estatal”, então, vociferam

boatos, histórias caricaturais, mitificadoras não só a respeito do crime, mas a

respeito de tudo, e principalmente sobre Palma Bravo. São vozes engasgadas por

anos de silenciamento. O engenheiro é lançado, por praticamente todos, à

condição de suspeito (único), pois cada personagem parece contar uma dessas

histórias que ajudam a contar a história do livro, o qual é, também, um

emaranhado de vozes e versões que só conseguem ser ouvidas depois da queda do

regime. O professor Eduardo Prado Coelho comenta sobre a necessidade de estar-

se atento às histórias/versões/pistas que formam O Delfim:

Contar o quê? Contar a história, evidentemente. Mas, sobretudo, contar o modo como a história se conta, ou melhor, o modo como a história se revela, se oculta, e ao retrair-se, nos atrai, e, ao atrair-nos, nos distrai da revelação essencial. Porque a história nunca está presente, reduzida a uma verdade submissa e fixa. (...) A História de O Delfim (...) é feita apenas das suas versões que nunca eliminam nem as sombras dessa claridade, nem as contradições dos focos de luz, e assim permanecem suspensas de um enigma indizível - o fundo da lagoa, é evidente, esse coração insepulto162.

160 Cf. SAID, 1990. 161 CASTELLS, 2000, p. 22. 162 COELHO, 1999, p. 10.

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A investigação das duas mortes, segundo essas micro narrativas dentro da

narrativa de O Delfim, não deve sequer considerar que as causas poderiam ser

naturais – afinal o cabo-verdiano sofria do coração e Maria das Mercês poderia ter

se afogado sozinha, fugindo assustada com o infarto do amante, numa triste

coincidência. A ocorrência desse crime viabilizou, através da queda do poder

vigente, o surgimento de uma nova realidade social, ainda que de forma “confusa

e incontrolada”, como nos disse Castells. No lugar de um ditador (“nesta confusão

de almas penadas, o rosto do Engenheiro apagou-se – ‘levou sumiço’163”), a

Gafeira agora tem a figura de um regedor das vontades coletivas, que ainda custa

a acreditar na revolução que vivencia: “Quem é que alguma vez sonharia poder

ficar com a lagoa?164”. O narrador-furão também não fica indiferente à mudança:

(...) Tenho a resposta comigo, num pedaço de papel que trouxe há pouco da loja do regedor, uma licença de caça passada por ordem dos habitantes da aldeia, e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra165.

O despertar dessa lagartixa, símbolo do tempo português, arrastado e

jurássico, lança a revolução ao centro da narrativa, porque, mesmo não tendo sido

conscientemente engendrada, ela ocorreu, transfigurando a realidade da aldeia. A

cooperativa não foi criada para combater o poder vigente, mas nasceu de sua

queda, logo, existe, está apta a manter o foco na perpetuação desta recém-

inaugurada realidade, que nem virtualmente era imaginada. Todos os habitantes

estavam sujeitos ao domínio do Engenheiro, que dominava, cerceava e impingia

discursos, conforme seus interesses e com o respaldo, por exemplo, da Igreja. O

poder exercido por essas duas instâncias simbólicas sujeitava a todos, mas não

deixava transparecer a arbitrariedade dessa imposição, pois ela era/soava como

“natural’ e histórica. Segundo Pierre Bourdieu:

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define

163 PIRES, 1999a, p. 74. 164 PIRES, 1999a, p. 68. 165 PIRES, 1999a, p. 68.

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numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras166.

Essa enunciação, da qual o Engenheiro se vale, corroeu qualquer tentativa

de mudança da ordem social por parte dos habitantes da Gafeira. A posse histórica

da lagoa pela família de Palma Bravo sempre foi “reconhecida”, nos termos de

Bourdieu, por todos, assim como a carga de “responsabilidade” e todo o poder

que o cargo de senhor da Gafeira, senhor da lagoa, senhor de todos e de tudo traz.

A estruturação da perda de poder do Engenheiro orquestrada por Cardoso Pires,

na construção de O Delfim, pressupõe uma mudança a ser mantida pelos

habitantes da aldeia. Eles não tiveram nenhum papel na destituição do regime,

que lhes tolhia a liberdade, e nunca tentaram/conseguiram engendrar alguma ação

revolucionária. Historicamente, eles eram massacrados, tanto pelo “uso do poder

simbólico” pelo Estado-Engenheiro, quanto pela falta de discernimento crítico,

para perceber as falhas do discurso castrador, ou seja, não tinham como efetuar

mudanças na estrutura vigente. Cardoso Pires virtualiza uma nova sociedade, mais

justa e livre, por isso se preocupa com a investigação mais do que com a solução,

pois quer por em questão a possibilidade de uma realidade assim vir a existir, quer

lançar esse desejo a todos. Segundo Manuel Castells:

Não há separação entre “realidade” e representação simbólica. Em todas as sociedades, a humanidade tem existido em um ambiente simbólico e atuado por meio dele (...) a realidade como é vivida, sempre foi virtual porque sempre é percebida por intermédio de símbolos formadores da prática com algum sentido que escapa à sua rigorosa definição semântica. É exatamente esta capacidade que todas as formas de linguagem têm de codificar a ambigüidade e dar abertura a uma diversidade de interpretações que torna as expressões culturais distintas do raciocínio formal/lógico/matemático. É por meio do caráter polissêmico de nossos discursos que a complexidade e até mesmo a qualidade contraditória das mensagens do cérebro humano se manifestam. Essa gama de variações culturais do significado das mensagens é o que possibilita nossa interação mútua em uma multiplicidade de dimensões, algumas explícitas, outras implícitas (...) na comunicação interativa humana, independentemente do meio, todos os símbolos são, de certa forma, deslocados em relação ao sentido semântico que lhes são atribuídos. De certo modo, toda realidade é percebida de maneira virtual167.

166 BOURDIEU, 2004, p. 14. 167 CASTELLS, 2000, p. 395.

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A releitura da relação portuguesa com o poder, seja ele do Estado,

religioso ou internacional, é transposta por Cardoso Pires para uma aldeia, que

vive da caça e da pesca e do dinheiro enviado do exterior por aqueles que

buscaram, por necessidade, um outro ritmo de vida, uma outra perspectiva que o

atraso da Gafeira não permitiria. A apropriação de algumas estratégias, para a

construção de romances policiais, pelo autor, permite que, assim como ocorreu

com Dinossauro Excelentíssimo e outros textos cardoseanos, o implícito e o

explícito se mesclem, formando uma obra aberta, no sentido empregado por

Umberto Eco, a múltiplas leituras e objetivos. Diferentemente de um romance

policial clássico, o romance policial, O Delfim, de Cardoso Pires não imita, mas

reconfigura esse gênero que escolheu para tratar (des)veladamente de política.

Sobre esse mesmo tema – a troca da imitação de um modelo de escrita, clássico,

de um gênero literário, pela reconfiguração deste mesmo gênero, o professor

Eduardo Prado Coelho, na introdução do romance sobre a Gafeira, comenta sobre

a função deste narrador-escritor-detetive que:

Investiga no sentido policial do termo, mas surge-nos sobretudo (uma vez que não pretende aqui definir culpas ou atribuir castigos) como um investigador no sentido científico do termo. Digamos, para saltar algumas etapas do raciocínio, que o modo de contar é aqui um modo de decifrar, o que significa que tudo tende a aparecer como cifra168. A cifra toma o lugar da claridade, o livro termina e a solução do mistério

não vem à tona, só existem versões, vozes, suspeito(s), e a única certeza é a de

que Cardoso Pires apre(e)ndeu a lição de Poe e fez da investigação o cerne

principal do romance. Logo, não há necessidade de que o criminoso seja

encontrado/punido. Mesmo assim, a trajetória da narrativa não abandona de todo

o vínculo com o romance policial clássico. Ocorreu um crime, mesmo que em

essência possa ser apenas uma trágica coincidência. Isso basta para o “iniciar”. O

segundo aspecto diz respeito às vítimas, que usualmente despertam piedade e

merecem toda a atenção que o detetive possa oferecer, pois sua “paz” depende da

descoberta do criminoso Segundo Boileau-Narcejac:

A vítima só pode ser inocente. (...) Uma personagem que tivesse alguma culpa na consciência seria em geral má vítima. A inocência será tanto mais tocante quanto

168 COELHO, 1999, p. 13.

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mais inofensiva for a vítima. E tremeremos tanto mais por ela quanto mais hediondo for o assassino que a ameaça169.

Maria das Mercês e seu empregado/amante cabo-verdiano, que

“merecem” atenção, causam piedade, precisam da paz causada pela descoberta do

modo como morreram e pela punição, no caso de haver culpados, mas não

possuem o ar inocente das vítimas clássicas de romances policiais. Os teóricos

franceses Thomas Narcejac e Pierre Boileau, a respeito das novas formas de

apresentação de narrativas que tendem ou remetem aos policiais, complementam:

Eis porque esses “híbridos” nunca dão toda a satisfação. Põem em cena dois talentos diferentes que tendem a prejudicar-se reciprocamente. (...) Quando se lê um romance, é o presente que conta. Quando se lê um romance policial, é o futuro que importa, mesmo e sobretudo se se trata de um suspense. Duas ópticas! Dois tipos de leitura! E é arriscada toda tentativa de mistura170. Nas mãos de Cardoso Pires, até prova em contrário, a mistura funciona

perfeitamente.

Nas obras clássicas do gênero, a ação usualmente ocorre no passado,

retomada pela memória de alguém – no romance policial noir, a ação se passa no

presente e o leitor acompanha o ritmo das investigações. N´O Delfim, há o uso do

recurso do flashback em alguns momentos e o de uma narrativa que não pode ser

localizada temporal e geograficamente. O lugar escolhido ou tomado pelo

narrador, quase sempre, vem nublado, não está fixado. Em dados momentos, ele

não tem a menor idéia de onde ou de quando fala, pondo a perder a si e a todos,

numa névoa de bebida, sono e esquecimento. Para Boileau-Narcejac, o detetive

deve “descartar logo os criminosos profissionais171”, mas deve “investigar através

de conceitos realistas”, através da apropriação e compreensão dos fatos que

dispõe. Palma Bravo era responsável direto por vários crimes, mas não havia

nenhum indício de que seria o responsável pelos assassinatos de sua esposa e de

seu empregado. Uma questão clássica, apresentada pelo pesquisador Paulo de

Madeiros e Albuquerque, é que “o detetive não deve usar meios que enganem o

leitor”.

169 BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p. 68. 170 BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p. 83. 171 Cf. BOILEAU-NARCEJAC, 1991.

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O escritor-furão, personagem destinado a exercer essa função de detetive,

engana o leitor inadvertidamente, não como uma estratégia de sonegação de

informações, mas, sim, por não conseguir, ele mesmo, ordenar fatos e idéias,

envolto em uma névoa de sono e uísque que nubla sua percepção dos

acontecimentos. Como atesta a professora Izabel Margato:

As versões sobre o crime se multiplicam, e se misturam com as cenas da memória ou das leituras do narrador. Este, por sua vez, do mesmo modo que lê as versões dos outros personagens, lê e corrige a sua própria percepção dos fatos. Este narrador não é de confiança, adeus tranqüilidade, não estamos diante de alguém que sabe verdadeiramente o que se passou. O que temos é o entrecruzamento de falas, de lembranças (...) Não há um caminho único a percorrer mas, gradativamente, a cena do crime vai perdendo em interesse. O que temos são retalhos, versões que podem fazer algum sentido na rasura, na condição de cifras de outros sentidos, outros crimes, outras verdades. Gradativamente, vamos percebendo que afinal não importa muito descobrir os detalhes do crime: não sabemos se de fato o Engenheiro matou a mulher e o criado, ou se ele também morreu. Pois, afinal, o que a narrativa de O Delfim promove de fato é uma explosão de transmissibilidade, onde as versões não compõem uma cena, antes a estilhaçam172.

Isso cria outra lógica de raciocínio em torno da não culpabilidade do

detetive, fator caro à investigação por evitar que o detetive cace a si mesmo,

porque ao entrecruzar falas, pensamentos e situações que podem ter acontecido ou

não, em última instância não haveria álibi para o investigador, que poderia estar a

sabotar a investigação.

Os professores Izabel Margato e Eduardo Prado Coelho apontam para a

questão central no romance: o interesse maior é pela investigação. O jogo, entre

caça e caçador, que termina em punição, para o culpado, e louros, para o detetive,

não é tema primordial no livro de Cardoso Pires que, em verdade, nega a

possibilidade para que isso ocorra. Pode O Delfim “falhar” como romance

policial, mas não “falha” como romance, como marca de escrita de um autor

voltado ao livre-raciocinar. Não há mais necessidade de uma solução fácil porque

o paradigma mudou. As “configurações” atuais para a escrita de um romance não

encontram respaldo na concepção clássica. A nova política de liberdade, que,

independentemente de como se deu, assola a Gafeira pode ser lida como virtual

futuro para Portugal, em que a coletividade se configure como exercício legítimo

de poder, para tranqüilizar, como é marca das narrativas policiais, todo o povo.

172 MARGATO, 2002, p. 270.

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5.5 A Grande Arte

A escolha de um dos modelos clássicos de romance policial, ou a mescla

deles, por Rubem Fonseca comprova a mesma preocupação encontrada na obra de

Cardoso Pires: a utilização da narrativa policial para tratar de um outro assunto

que não seja a tranqüilização da burguesia. Rubem Fonseca se apropria da

temática e de várias estratégias clássicas para a escrita de romances policiais;

absorve regras e procedimentos, mas subverte o gênero ao desenvolver uma

escrita caleidoscópica, que reflete, de forma particular, essa nossa violenta

realidade. Para o sociólogo Ernest Mandel, nos romances policiais tradicionais:

Por um lado, tudo deve parecer tão real e prosaico quanto possível. Fornece-se sempre a hora exacta, precisa-se o local (por vezes com auxílio de mapas e desenhos), descrevem-se as acções, a indumentária e o aspecto físico dos personagens até o mais ínfimo pormenor. Mas, ao mesmo tempo, tudo está envolto em ambigüidade e banhado em mistério. Há sombras sinistras que espreitam, ao fundo. As pessoas não são o que parecem ser. O irreal sobrepõe-se permanentemente ao real173.

Na obra de Rubem Fonseca, aparecem vários modos de narrativas

policiais, inclusive aqueles mais próximos dos modelos utilizados pelos

precursores do gênero como as histórias criadas por Edgar Allan Poe, por

exemplo. O escritor Ariovaldo José Vidal lista quatro modelos para a escrita de

contos do gênero policial, presentes na obra do autor de Lúcia McCartney, e

classifica-os. O primeiro modelo é o único que verdadeiramente nos interessa,

pois trata da presença dos detetives nas tramas:

a) primeiro aqueles mais tradicionais, em que há um detetive empenhado numa investigação, num mistério, com a dedução e o esclarecimento final; é o tipo de história que vem de Poe, Doyle, Chandler, Simenon etc. Para o caso de Fonseca, fazem parte dessa linha os contos em que quase sempre aparece o personagem Mandrake, incluíndo-se aí os romances com ou sem a presença do personagem174.

A preocupação de Rubem Fonseca é com a investigação em si, Mandrake

em dado momento assume o papel de escritor de uma história, não

necessariamente a sua, ao mesmo tempo em que se permite uma liberdade de

173 MANDEL, 1993, p. 68. 174 VIDAL, 2000, p. 178.

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atuação que não tem como ser acompanhada por quem está lendo. Ele possui os

manuscritos, cadernos, depoimentos. Tudo o que precisa para iniciar a

investigação.

5.5.1 Mandrake

Mandrake é o detetive titular da obra de Rubem Fonseca, sua primeira

aparição, ocorre no conto “O Caso de F. A”., do livro Lúcia McCartney,

publicado em 1967. Durante toda a ação retratada no conto, o advogado Paulo

Mendes se apresenta para os envolvidos na investigação com seu nome

verdadeiro:

“Dona Gisela está?” “Quem quer falar com ela?” “Paulo Mendes.” “Um momento.” “Teu nome é Paulo Mendes?” “Pode me chamar de Paulinho.”

Somente nos momentos em que lida com um informante é que Paulo

Mendes deixa vir à tona o peso do nome desse detetive criado por Rubem

Fonseca. Durante o restante do conto, ele continua sendo Dr. Paulo ou Paulinho,

como se apresenta ou é reconhecido. Em outras palavras, a escolha do nome

Mandrake, assim como, a maneira e o momento em que é utilizado têm

importância narrativa – Mandrake é uma possível alusão ao ilusionista e dublê de

investigador, das histórias em quadrinhos, criado por Lee Falk175, em 1924 e

publicado dez anos depois. O Mandrake, de Falk, era um mestre na arte do

hipnotismo/ilusionismo, sua principal arma para lutar contra o crime, em suas

horas vagas, pois não era um detetive tradicional, e, sim, um mágico do ofício,

mas que vivia sempre às voltas com assassinatos e mistérios. O Mandrake de

Rubem Fonseca – nas palavras de Wexler, sócio de Paulo Mendes, no escritório

de advocacia – também “funciona” como dublê de detetive; vejamos o diálogo

travado por eles:

175 Cf. MOYA, 1970.

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“Seja realista”, disse Wexler quando voltei para o escritório às cinco horas, “não temos que bancar o detetive nos casos que vêm para aqui no escritório. É uma velha mania tua. Somos advogados, nosso objetivo não é heurístico, a verdade não nos interessa, o que importa é defender o cliente. Mas não, você quer saber tudo, quem é o culpado e quem é inocente, e muitas vezes se dá mal. Lembra do caso do frigorífico? Da doida, ou falsa doida, internada pela família? Até hoje não sabemos, e não adianta nada a confusão que você fez, se era doida ou não. Lembra? Seja realista.”. “Realista?” Para mim essa palavra servia apenas para justificar o comodismo, as pequenas ações e omissões indignas que os homens cometiam diariamente176.

Mandrake é figura recorrente na obra do escritor mineiro, inclusive, em

1983, surge como protagonista de A Grande Arte, livro que se divide em duas

partes. A primeira lembra os clássicos romances policiais do fim do século XIX e

início do XX. Em série, prostitutas aparecem mortas com a letra P desenhada, à

faca, em seus rostos. A narração inicial, a descrição de um assassinato, é feita na

terceira pessoa, mas no parágrafo seguinte, literalmente, o narrador passa à

primeira pessoa, marca registrada das escritas de Poe e de Fonseca, e uma

estratégia de aproximação entre as figuras do detetive e do leitor. Há um

detalhamento de toda a ação do assassino e, em seguida, Mandrake, o narrador em

primeira pessoa, explica seu procedimento de análise deste e dos outros crimes

que acontecem ao longo do romance:

Ele agarrou-a pelo pescoço e jogou-a de costas ao chão, acrescentando à força das mãos o peso de seu corpo (...) Não haveria impressões digitais, testemunhas, quaisquer indícios que o identificassem. Apenas sua caligrafia. Não tomei conhecimento dos fatos de maneira ordenada. Os cadernos de anotação de Lima Prado chegaram-me às mãos muito antes das minhas conversas com Míriam que me ajudaram a entender as relações de Zakkai, o Nariz de Ferro, com Camilo Fuentes. Para reconstituir o que se passou no apartamento de Roberto Mitry, além de minhas deduções e induções, baseei-me nas informações de Monteiro (o nome verdadeiro não era esse), o vendedor de armamento bélico. Os acontecimentos foram sabidos e compreendidos mediante minha observação pessoal, direta, ou então segundo o testemunho de alguns dos envolvidos. Às vezes interpretei episódios e comportamentos – não fosse eu um advogado acostumado, profissionalmente, ao exercício da hermenêutica177. Mandrake tem esse sócio, Wexler, que assume a posição de interlocutor do

detetive. No romance, os dois advogados não aceitam um caso de chantagem e

acabam enredados pelos desdobramentos provenientes dele: prostitutas mortas,

176 FONSECA, 1992, p. 30. 177 FONSECA, 1992, p. 10.

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pessoas desaparecidas, estupros, corrupção, envolvimento com o crime

organizado/corporativo. A investigação das mortes, tanto das prostitutas

marcadas, quanto das outras vítimas, não é o maior interesse do advogado. Todas

as pistas levam à Corporação Aquiles, uma organização financeira envolvida com

o tráfico de drogas e assassinatos, um novo tipo de instância criminosa. Na

evolução do gênero policial:

A evolução do romance policial reflecte a história do próprio crime (...) a expansão quantitativa do crime foi acompanhada pela sua transformação qualitativa. O crime organizado começou a tornar-se predominante. Existe um paralelo fascinante entre as leis que governam a concentração e a centralização do capital em geral, e a lógica da tomada do poder pelo crime organizado (...) quanto mais capital disponível, mais elevados eram os lucros e, consequentemente, maiores as possibilidades de reinvestimento. Os peixes grandes devoram os pequenos, e as grandes organizações triunfam facilmente sobre os pequenos empresários individuais, tanto entre os bandos de malfeitores como entre os fabricantes de aço178.

As vítimas, que deveriam “causar piedade”, na concepção de Boileau-

Narcejac179, estão em segundo plano, pois o que Mandrake busca é “superior” à

simples elucidação dos assassinatos. No caminhar da investigação, ele ganhou um

arquiinimigo, a Corporação Aquiles, que tem alguns “rostos” a representá-la,

emblematicamente, e é atrás destes seres à sombra que parte o sócio de Wexler.

Mandrake sai em busca, primeiro, de Camilo, assassino profissional que quase lhe

matou e, depois, de Zakkai e Lima Prado. O pseudo-detetive não quer mais

esclarecer o crime para trazer segurança para os outros, quer uma vingança

pessoal. Seguindo essa linha de pensamento:

Rubem Fonseca prepara sem pressa em seu “atelier de metamorfoses” (...) no caso, o repertório inclui mistério, suspense, discussões frívolas, provérbios óbvios, fugas, perseguições, grandes paixões etc., mas é preciso não confundir esses disfarces todos com o enredo verdadeiro. O seu livro discute o poder. Mandrake não quer descobrir apenas quem é que mata as mulheres com todos aqueles requintes que levam o crime a ser executado como uma obra de arte. Mandrake quer saber quem é que manda, quem tem o poder, quem fica impune e por quê180.

Numa era marcada pela globalização é natural que as grandes companhias

personifiquem a figura de vilão, o mal capitalista, nas narrativas policiais de nosso

178 MANDEL, 1993, p. 53. 179 Cf. BOILEAU-NARCEJAC, 1991. 180 SILVA, 1996, p. 101.

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tempo. Essas empresas assumem o papel anteriormente destinado e exercido pelos

gângsteres mafiosos, dos romances policiais americanos, dos anos vinte e trinta do

século passado, que passaram a atuar de forma organizada para não mais serem

derrotados pelos detetives cerebrais. Nas décadas seguintes o fenômeno se

espalhou internacionalmente:

É curioso observar que, na Alemanha e no Japão, os romances policiais só começaram a adquirir relevância a seguir à Segunda Guerra Mundial (...) o contexto do crime é quase sempre formado pela riqueza e pelos negócios, por vezes com uma dimensão social modestamente crítica. De maneira significativa, na maior parte destes romances, os criminosos são eles próprios industriais ou directores de empresas, e suas motivações são quase sempre a ganância ou a pressão das dificuldades financeiras181.

A busca pela satisfação pessoal, causada pelo lucro, é o cerne da sociedade

burguesa, por outro lado um assassino à solta produz insegurança, logo

diminuição de lucros, o que afetaria a todos. A morte, nos dias atuais, deve ser

encarada como solução “apenas” para problemas de ordem financeira. No início

do gênero policial, a morte causava indignação à burguesia porque atrapalharia,

obviamente, as perspectivas individuais e, em alguns casos, repercutiria

negativamente sobre determinada parcela da sociedade. Segundo Ernest Mandel:

O romance policial representa uma variante particular do medo perante a morte, um medo cujas raízes se encontram claramente inscritas nas condições específicas da sociedade burguesa (...) o aparecimento do romance policial como gênero literário específico abre uma brecha importante nesta tradição. A morte sobretudo o assassínio, está no centro do romance policial., mas, no romance policial, a morte não é tratada como um elemento central do destino humano ou como uma tragédia, mas antes como um objecto de investigação. Não é vivida, nem sofrida, receada ou combatida. Torna-se um cadáver a dissecar, um objecto a analisar. A reificação da morte está no cerne do romance policial182.

Essa reificação da morte atinge seu mais alto grau como metáfora para a

falência, desestruturação, desfragmentação, não de um ser vivo, mas de uma

empresa. Nos dias atuais, em que as bolsas de valores internacionais formam uma

“bolsa globalizada” e única, uma empresa “morrer” pode desestruturar a economia

mundial, lançando incontáveis pessoas em um abismo, destruindo mais vidas do

que qualquer assassino com uma faca, vagando à noite pelas ruas de Londres,

ousou contabilizar.

181 MANDEL, Ernest. 1993, p. 69. 182 MANDEL, Ernest. 1993, p. 64.

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Para conter esse assassino, que atormentava a sociedade burguesa um

século atrás, edificou-se um detetive com ares de herói mitológico, infalível,

paladino da moral, e guardião da ordem, uma imagem explorada corriqueiramente

para a construção de romances policiais. Segundo o escritor de romances policiais

e ensaísta Raymond Chandler:

Down* these mean streets a man must go who is not himself mean, who is neither tarnished nor afraid. He is the hero, he is everything. He must be a complete man and a common man and yet an unusual man. He must be, to use a rather weathered phrase, a man of honor, by instinct, by inevitability, without thought of it, and certainly without saying it. He must be the best man in his world and a good enough man for any world183. Mandrake se desvincula dessa imagem mítica de detetive, sua vida, em A

Grande Arte, é abalada pelo atentado que sofre. O abnegado decifrador está

obcecado pelo desejo de vingança, o que acaba por afetar a (sua/nossa)

investigação, com a emoção galgando o espaço destinado à lógica. A investigação

não perece, mais fica livre da obrigação de se fechar, pois Mandrake busca apenas

a fria punição dos culpados, ele não quer restabelecer ordem alguma, abandona o

estereótipo de detetive cerebral. Como podemos perceber nos excertos abaixo

retirados do romance:

Abri a camisa e mostrei meu abdômen. Hermes, com indiferença, examinou a cicatriz. “Quero ir à forra.” “Compra um revólver”. Disse Hermes, apático. “Quero usar uma faca. Tornou-se uma obsessão. Há vários dias não penso noutra coisa184.”

Em outro momento, Mandrake reflete sobre esse comportamento ilógico:

O dois assassinatos estavam ligados. O comportamento humano não é lógico e o crime é humano. Logo, para Raul, a lógica era uma ciência cuja finalidade seria determinar os princípios de que dependem todos os raciocínios e que podem ser aplicados para testar a validade de toda conclusão extraída de premissas. Uma armadilha185.

* Tradução Livre: Descendo por estas ruas de má-fama um homem deve prosseguir, que não precise se auto-afirmar, que tampouco é marcado ou temeroso. Ele é o herói, ele é tudo. Ele deve ser um homem completo e um homem comum e ainda um homem invulgar. Ele deve ser, para usar uma expressão bastante desgastada, um homem de honra, pelo instinto, pela inevitabilidade, sem pensar nisso, e, certamente, sem dizê-lo. Ele deve ser o melhor homem em seu mundo e um homem suficientemente bom para qualquer mundo. 183 CHANDLER, 1988, p. 78. 184 FONSECA, 1992, p. 82. 185 FONSECA. 1992, p. 29.

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Em um ambiente globalizado, só “tem” de morrer quem atrapalhar a

lucratividade de alguma instituição, seja criminosa ou não. E o crime – que foi

encarado, em muitos momentos, como uma oportunidade de rebeldia, de

indignação com a ordem estabelecida, ou como forma de auto-preservação – passa

a ser, exclusivamente, uma chance de ascensão social para os mais desfavorecidos

e de ampliação de bens, no caso dos mais abastados, seguindo assim o fluxo do

mercado. Segundo o sociólogo Ernest Mandel:

A paixão, a cupidez, o poder, a inveja, o ciúme e a propriedade não opõem apenas os indivíduos uns aos outros, dão igualmente origem a conflitos entre os indivíduos e os grupos ou as famílias a que pertencem, e até a revoltas contra o conformismo de classe. O crime torna-se um meio para subir na escala social ou para permanecer capitalista apesar de um desastre financeiro. É o caminho que leva do inferno ameaçador ao paraíso recuperado186.

O autor Mario Vargas Llosa, em resenha sobre A Grande Arte, apresenta o

romance como um “manancial secreto de referências”, uma paródia dos romances

policiais, e que, ao mesmo tempo, mantém posições críticas sobre a sociedade. O

segundo romance de Rubem Fonseca, nas palavras do escritor e crítico peruano:

“ (...) constitui mais uma prova de que a predisposição imemorial do gênero

[policial] – contar histórias, referir aventuras – pode muito bem consubstanciar-se

com as tentativas intelectuais mais exigentes”187. O personagem que mais chamou

a atenção do crítico foi justamente um desses marginais desqualificados, que

conseguiu galgar um cargo importante numa organização criminosa. Vejamos:

A personagem mais pitoresca do romance é um anão negro chamado Zakkai e alcunhado de Nariz de Ferro, que capitaneia um bando de delinqüentes e que, nos intervalos da sua ascensão veloz das favelas do rio aos gabinetes do capitalismo mais respeitável, camufla a sua identidade actuando como palhaço de um circo188.

É sintomático da obra de Rubem Fonseca que um anão, negro, pobre,

deformado, que atua como palhaço de circo se transforme no grande nome do

tráfico e de uma rede de assassinatos internacionais. Raul, policial amigo de

Mandrake explica o destino de Zakkai e da tal organização criminosa:

186 MANDEL, 1993, p. 71. 187 LLOSA, 1987. 188 LLOSA, 1987.

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“Quando, com a morte de Lima Prado, conseguiu o controle da Organização, Leitão deu, ou vendeu baratinho, para Zakkai a Pleasure e as outras empresas. A Aquiles agora só se envolve com atividades legítimas.” “Sei. Agiotagem, mutretas financeiras etc.”. “Como todos os bancos.” Na emergente sociedade burguesa, além do medo da morte, do temor de

cessação do lucro, havia, ainda, a preocupação com a quebra de expectativa de

futuro dessa sociedade, que não poderia ficar à mercê de assassinos de vidas e de

estabilidades. A morte deixa de ser uma tragédia individual para se configurar em

tragédia social. A morte representa o medo maior e isso é evidentemente retratado

nos romances policiais; assim como a solução do mistério e a punição do

criminoso são os grandes prazeres, as recompensas, da burguesia. Faz-se

necessário, para Rubem Fonseca, por em discussão a maneira como a temática

social se apresenta em seus livros; assim como a percepção crítica dos fatos que

levaram, por exemplo, um desvalido como Zakkai a ascender socialmente –

através de atos que a sociedade considera como desvios morais; ou a miséria que

leva alguém a se mutilar por dinheiro. O questionamento e o prazer estético

causados pela arguta construção de um livro como A Grande Arte parecem ser os

grandes prazeres.

5.5.2 Vozes visíveis

Em 2003, Rubem Fonseca recebeu, das mãos do escritor colombiano

Gabriel Garcia Marquez, o troféu "Juan Rulfo" - um dos mais importantes da

América Latina -, por ter "contribuído decisivamente para a renovação da prosa

narrativa189". Na ata, o júri revela que concedeu o Prêmio a Rubem Fonseca

porque o escritor "introduziu um modo de contar que aproveita e reelabora formas

provenientes da literatura popular, como o romance negro, mas também do

romance político, social, existencial e erótico". Sobre esta reelaboração do

romance negro, há um trecho sintomático no livro Romance Negro e Outras

Histórias, de Rubem Fonseca. Vejamos:

189 Cf. GAY, 2008

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Dizem que a chamada escola inglesa, crime, criminoso e vítima existem apenas para permitir ao detetive o trabalho de solucionar o Enigma. Segundo esse ponto de vista, os autores ingleses não perderiam muito tempo na descrição dos personagens e de suas motivações. Por outro lado, na escola americana, o Enigma é um pretexto para o crime. O crime, lado nefário, secreto e obscuro da natureza humana, é o essencial. O detetive americano despreza os valores da sociedade em que atua190. Rubem Fonseca reelabora, mas mantém o pacto clássico com o leitor, ao

explicar como ocorrerá a investigação. Mandrake, logo no início de A Grande

Arte, diz como vai solucionar o mistério, através de pistas e do exercício da

hermenêutica. Ele anda, aparentemente, no mesmo compasso do leitor, pois

precisa de um cúmplice, mas quer decifrar um mistério específico, em detrimento

dos outros. Assim como ocorre na obra de Cardoso Pires, a utilização do romance

policial por Rubem Fonseca serve a outra causa, desvelar o lado “obscuro da

natureza humana”. Nas palavras do escritor e ensaísta Rafael Pérez Gay:

É, efetivamente, um escritor livresco, um culto intransigente numa época em que o mercado impõe seus cânons mercantilistas (...) os romances de Fonseca são criações maiores, operações sinfônicas sustentadas não somente no seu assunto central, mas também em subtramas extraordinárias, estudos rigorosos de temas que têm passado com grande naturalidade à sua prosa, à caudalosa fluência de sua prosa, o manejo insuperável dos diálogos, a densidade verossímil de seus personagens, Fonseca acrescenta o conhecimento detalhado e o refinamento de uma vastíssima cultura literária. Não compartilho a visão crítica daqueles que vêm na obra de Fonseca somente o entrelaçado do gênero policial. Com efeito, ele emprega da melhor maneira uma das essências dessa literatura, o suspense; em suas tramas há assassinatos, policiais e labirintos criminais, mas seus fins não se propõem a descobrir o assassino, a façanha literária é a revelação do lado obscuro da condição humana191 . A revelação desse lado obscuro da condição humana, nas obras de Rubem

Fonseca, parte da premissa de transformação do leitor em seu parceiro e

interlocutor, ambos devem atuar juntos para desvelar a trama e chegar ao final da

investigação. Essa reelaboração literária permite que outras

considerações/hipóteses surjam de um gênero literário tido como descartável, mas

que, na contemporaneidade, dá suporte a narrativas voltadas à reflexão. O

advogado-detetive de Rubem Fonseca lida com grandes nomes da alta sociedade,

que solicitam seus serviços e seu silêncio, e também com prostitutas, porteiros,

traficantes, viciados. Todos esses depoimentos estão ao alcance do leitor, que

pode elaborar sua própria investigação, inclusive seguindo os preceitos do próprio

190 FONSECA, 1992a, p. 150. 191 GAY, 2008.

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Mandrake que, em seu conto de estréia, diz: “Hipóteses imaginadas dentro do

carro. 1) Eloína dissera a verdade 2) Eloína estava dizendo mentira (...) o mau

observador não vê e sim deixa de ver coisas192.”. As técnicas de inquirição estão à

disposição de leitor e autor, as armas investigativas são livres e devem facilitar a

solução do mistério ou o entendimento do real motivo da investigação.

Essa mescla, do escritor com o leitor, possibilita a aceitação das várias

micro-narrativas constituintes da trama de Rubem Fonseca, reforça a teoria de que

a embalagem policial de alguns romances, quando desfeita revela o objetivo não-

explícito do autor. A partir do momento que Mandrake também escreve, o estatuto

de escritor está diluído entre várias vozes, criando uma polissemia, daí não haver

mais necessidade ou espaço para o desfecho tradicional do romance policial,

como manda a forma clássica. Nessa dita polissemia, Mandrake e Rubem Fonseca

abrem espaço para que outras vozes ganhem som e força na(s) narrativa(s). Os

autores-detetives interrogam suspeitos, ouvem as versões sobre os crimes –,

cometidos pelo estado, pela Igreja, por uma horda de miseráveis, por quem quer

que seja –, dão valor e espaço a várias destas micro-narrativas, que ajudam, de

fato, a compor A Grande Arte. A voz de um senador da república, em conversa

sobre os desmandos sociais e suas soluções, com o presidente de uma grande

corporação, Lima Prado, ganha destaque:

Enquanto o exemplo negativo for dado pelas nossas elites, será muito difícil melhorar o tecido social em nosso país (...) faltam líderes, duas ditaduras, em menos de cinqüenta anos, destruíram os valores tradicionais e impediram a emergência de novos. As elites – refiro-me aos empresários, profissionais liberais, militares, intelectuais, religiosos – n/ao são capazes, nem estão dispostas a assumir com coragem e desprendimento a responsabilidade de conduzir o país para uma verdadeira democracia com liberdade e justiça social. Continuamos a correr o risco de sair de uma ditadura de direita para cair numa ditadura de esquerda ainda pior193. Assim como Cardoso Pires, Rubem Fonseca sabe que o escritor não deve

assumir uma posição superior e dominante, pois, com isso, perpetuaria uma

situação que rejeita. Os dois autores não querem subordinar outras pessoas a seus

anseios e ideais – ainda que sejam nobres e/ou mais igualitários. Essa

transformação interna constituirá o elemento deflagrador de um engajamento

coletivo. A arte congregando pessoas em um debate revolucionário – usamos o

192 FONSECA, s/d, p. 62. 193 FONSECA, 1992 p. 204

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termo aqui no sentido de mudança brusca –, a possibilidade do ecoar de uma nova

voz. Em outras palavras, o escritor precisa exercer um olhar marginal para que

consiga atingir seus objetivos democráticos, sem impor condicionamentos. A voz

de um senador ganha o mesmo espaço destinado às vozes de um imigrante ilegal

boliviano (além de assassino) e a de sua companheira brasileira (uma ex-prostituta

e ex-empregada doméstica), que também apresentam suas considerações sobre

essa mesma temática social. Ele, Camilo Fuentes, cego de um olho, faz compras

com sua mulher, Miriam, em um supermercado. Rubem Fonseca cria um diálogo

que perpassa por temas como consumismo, desigualdade social e

sexismo/machismo:

“Você acha que pode existir, como eles dizem aqui, ervilha fresca em conserva?” Pausa. A letra pequena. “Você acha que eu devo comprar uma córnea?” (...) “Está tudo escrito em inglês”, disse Miriam mostrando a lata de palmito. “É para dizer que o palmito é tão bom que até os americanos comem ele. Você não respondeu.” “Não sei.” “Não sabe? Você quer que eu fique cego para o resto da vida?” “Você tem o dinheiro?” “Tenho” “Então compra.” “Eu fico pensando na moça.” “Que moça? Que moça?” “A moça que está vendendo a córnea. Não sei se é justo ela ficar cega de um olho para um sujeito com dinheiro ficar com dois.” “Não é ela que quer vender?” “Forçada pela miséria.” “Por que não vai dar a bocetinha, como todo mundo? (...) Um dia eu quis abandonar tudo e fui ser empregada doméstica. A patroa era legal, quando comprou uma televisão a cores me deu a preto-e-branco dela. Eu era bem tratada e trabalhava pouco. Podia ter ficado lá, não podia?” “Lavando a latrina da madame?” “É melhor do que vender o olho.” 194.

A narração em A Grande Arte é construída para fomentar a reflexão, sem

definir posturas a serem seguidas, quer “apenas” lançar alguns assuntos à

discussão, principalmente os problemas sociais. O olhar de Rubem Fonseca

permanece atento a esses desmandos e ele faz da quebra de expectativa uma arma,

pois, através de uma escrita imagética, pinça situações corriqueiras e cotidianas e

faz com que deslizem, ganhem corpo e assumam o controle da cena. As vozes

passam a ter representatividade, mas os corpos dessa gente marginalizada

também. Vejamos o seguinte trecho, esclarecedor desta estratégia:

194 FONSECA, 1992 p. 226.

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Eu e Raul bebíamos chope no amarelinho, numa das mesas da calçada. A pouca distância estava um engolidor de fogo, cercado por alguns assistentes. Esse tipo de artista de rua era mais comum de se ver aos sábados e domingos. Nos dias em que os ingênuos saíam para passear. Além de engolidor de fogo, o artista, um negro forte e sem a maioria dos dentes, era também contorcionista, malabarista e palhaço. Usava calças largas presas por um suspensório, o tórax grosso e musculoso nu. No intervalo entre um número e outro contava piadas e imitava um gorila se coçando e andando na floresta. Esperava, assim, fazer os brancos miseráveis que o olhavam sentirem-se importantes: afinal, havia no mundo alguém inferior a eles – um negro sem dentes que parecia um macaco estúpido195. Para atestar os motivos de utilização desta técnica narrativa por parte de

Rubem Fonseca, recorremos as considerações do pesquisador Nestor Garcia

Canclini, em seu livro Culturas Hibridas, sobre o tema:

Existem narradores que usam as técnicas literárias para documentar processos sociais e ao mesmo tempo rediscutem as divisões do campo literário, as relações entre realidade e ficção, os problemas do processo de citações e representação discursiva. Nesses casos há reflexões explícitas que contribuem para redefinir as hierarquias dos discursos literários e científicos, assim como seus modos de vincular realidade e representação196. Uma obra que, de certo modo, quer ajudar a redefinir/desconfigurar o

aspecto hierárquico de determinados discursos não pode abrir mão de nenhuma

dessas vozes, independentemente das “fontes” de que elas provêm, e dessas cenas,

pois quer uni-las em uma comunicação coletiva. As conseqüências de uma

estratégia de escrita diferente desta utilizada por Rubem Fonseca podem resultar

em um processo de quebra de confiança e de comunicabilidade, como atesta o

seguinte pensamento de Manuel Castells:

Quando a comunicação se rompe, quando já não existe mais comunicação nem mesmo de forma conflituosa (como seria o caso de lutas sociais ou oposição política), surge uma alienação entre os grupos sociais e indivíduos que passam a considerar o outro um estranho, finalmente uma ameaça. Nesse processo, a fragmentação social se propaga, à medida que as identidades tornam-se mais específicas e cada vez mais difíceis de compartilhar197. Com o advento da globalização, a mobilidade tornou-se um dos pontos

mais importantes e desejados, pois dela decorre a proeminente hierarquia social,

onde os padrões econômicos, sociais e políticos deixaram a esfera local e

passaram a atuar mundialmente. A mobilidade só está ao alcance dos indivíduos

que podem pagar por ela. A falta de informação e o discernimento crítico para

195 FONSECA, 1992 p. 27. 196 CANCLINI, 1998, p. 268. 197 CASTELLS, 2000, p. 23.

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lidar com ela, ou com sua falta, estão condicionadas, fatalmente, a uma boa

educação, que nunca está, historicamente, disponível às classes mais

desfavorecidas da população. Em uma sociedade tecnológica, em que os custos

aumentam a defasagem entre ricos e pobres, a imobilidade é inevitável. Juntemos

a isso a questão da alienação e temos o ambiente propício à consolidação de uma

estrutura que prega a imobilidade. Segundo Zygmunt Bauman:

“Estar em Movimento” tem um sentido radicalmente diferente, oposto, para os que estão no alto e os que estão embaixo na nova hierarquia, com o grosso da população – a “nova classe média” que oscila entre os dois extremos – suportando o impacto dessa posição e sofrendo em conseqüência uma aguda incerteza existencial, ansiedade e medo. (...) uma diferença entre os da “alta” e os da “baixa” é que aqueles podem deixar estes para trás, mas não o contrário. As cidades contemporâneas são locais de um “apartheid ao avesso”: os que podem ter acesso a isso abandonam a sujeira e a pobreza das regiões onde estão presos aqueles que não têm como se mudar198.

O indivíduo se move segundo certos parâmetros sociais, a falta de punição

aos marginais, como ocorre em Feliz Ano Novo e em outros textos de Rubem

Fonseca, é sintomática. Quando essas pessoas à margem se movem para além dos

trilhos demarcados pela sociedade, elas extrapolam uma fronteira política, passam

a ser ameaças e não mais párias socialmente ignoradas. A transgressão aos rígidos

dogmas burgos, de proteção à propriedade, por exemplo, descarrila esse trem

social despejando uma carga de intranqüilidade no colo da população burguesa.

Segundo a professora Vera Lúcia Follain de Figueiredo:

O crime ultrapassa qualquer fronteira ou limite, até porque Rubem Fonseca se nega a tematizar apenas a violência dos oprimidos, constituindo sua obra como um amplo painel no qual o tema é abordado de diferentes ângulos, revelando as suas inúmeras faces. A geografia da violência se impõe, assim, a outros possíveis recortes da cidade, diluindo contornos, embaralhando as linhas do mapa199. Toda imobilidade tem, também, explicação social, mas apresenta

diferenças entre os objetivos/motivações que levaram o indivíduo a se mover ou a

se aquietar em seu determinado espaço social. A vontade de transgredir pode

surgir em qualquer camada social, mas a sociedade, quando ocorre um crime, de

certa maneira, tende a “desequilibrar” o “jogo” entre desvalidos e burgueses,

lançando apenas aos primeiros a culpa por essa transgressão, sem tentar entender

198 BAUMAN, 1999, p. 10. 199 FIGUEIREDO, 2003, p. 30.

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os possíveis motivos que a propiciaram. Em A Grande Arte, Rubem Fonseca traz,

através das palavras do senador alguma luz sobre o assunto:

Horrível, a morte do seu primo. Fiz, há tempos, um discurso no Senado, não sei se você tomou conhecimento, a imprensa noticiou com destaque, sobre a violência urbana em nosso país. Tenho estudado com grande empenho o assunto e concluí que a explosão demográfica, em primeiro lugar, e a má distribuição de renda, logo a seguir, são as causas principais da escalada da violência nas cidades. Existem outros fatores, como a ineficiência dos organismos policiais e a decadência moral da sociedade. Quando era garoto, a pior ofensa que se podia fazer a uma pessoa era chamá-la de ladrão; a violência era circunscrita a algumas áreas menos favorecidas. Hoje é isso que vemos em todo o país. Soa fora de moda dizer isso, mas não há mais vergonha, dignidade, pudor. Freios que atuavam dentro dos indivíduos, que impediam atos anti-sociais e imorais200. Bons advogados, contatos importantes e influentes, tudo isso “permite”

que a justiça ofereça tratamentos desiguais para um criminoso abastado e para um

marginal descalço. No caso das vítimas, esta relação desigual se mantém. O

assassinato de uma pessoa célebre/rica tem logo cobertura midiática intensa, com

toda a sociedade clamando por justiça e segurança. “Qualitativamente e/ou

jornalisticamente esse tipo de crime vale mais do que todos os outros. Da mesma

maneira que Rubem Fonseca se nega a tematizar apenas a violência do oprimido,

ele também não compactua com esse desvio por parte dos órgãos da mídia e

desenvolve esse tema em A Grande Arte:

A morte de Roberto Mitry teve ampla cobertura dos jornais. Editoriais condenaram com energia a escalada da violência e a falta de segurança dos cidadãos. Os outros cento e cinqüenta homicídios ocorridos naquele mês, no Grande Rio, a maioria das vítimas, negros e mulatos pobres, havia recebido apenas a atenção parca e rotineira da imprensa, mas o assassinato de Mitry era uma novidade atraente201. Mandrake, por outro lado, está situado num entre-lugar. Ele não abre mão

de seus vícios, como whisky, bons vinhos e charutos, que demandam recursos e

salientam uma personalidade em busca de prazer. O detetive, entretanto, não faz

nenhum tipo de distinção, seja ela superficial ou não, entre os marginais pobres e

ricos, com que convive e para quem trabalha, recebe em dólar de alguns clientes e

de outros recebe um simples aperto de mão e uma galinha, como pagamento de

seus honorários. Mandrake transita habilmente por esses diferentes mundos, por

pertencer a eles, sem a eles ficar preso. Alguns detetives de romances policiais

comumente provêm da mesma árvore genealógica dos “bandidos sociais” que 200 FONSECA, 1992 p. 204. 201 FONSECA, 1992 p. 198.

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roubavam dos ricos para dar aos pobres e eram por estes idolatrados e até mesmo

cooptados, em suas ações contra a ordem vigente. O povo se unificaria em torno

desses personagens contra um poder superior e distante da realidade deles que era

a mesma desses renegados. Rubem Fonseca, sinestesicamente, dá “visibilidade a

essas vozes”, porque reconhece o outro como um igual, e assume um

posicionamento intelectual e ético que permite a compreensão deste outro.

Segundo Emmanuel Levinas:

Tudo o que dele [ser] me vem a partir do ser em geral se oferece por certo à minha compreensão e posse. Compreendo-o, a partir de sua história, do seu meio, de seus hábitos. O que nele escapa à minha compreensão é ele, o ente. Não posso negá-lo parcialmente, na violência, apreendendo-o a partir do ser em geral e possuindo-o. Outrem é o único ente cuja negação não pode anunciar-se senão como total: um homicídio. Outrem é o único ser que posso querer matar. Eu posso querer. E, no entanto, este poder é totalmente o contrário do poder. O triunfo deste poder é sua derrota como poder. No preciso momento em que meu poder de matar se realiza, o outro se me escapou. Posso, é claro, ao matar, atingir um objetivo, mas, neste caso apreendi o outro na abertura do ser em geral, como elemento do mundo em que me encontro, vislumbrei-o no horizonte. Não o olhei no rosto, não encontrei seu rosto. A tentação da negação total, medindo o infinito desta tentativa e sua impossibilidade, é a presença do rosto. Estar em relação com outrem face a face – é não poder matar. É também a situação do discurso202.

Não estar atento às vozes marginais, em um período de poder repressor, é,

de certa, forma compactuar com esse poder e se tornar cúmplice do assassinato do

outro pelo Estado, figurativamente ou não. O intelectual, ao fazer valer essa sua

nomenclatura, tem a capacidade/possibilidade de compreender o funcionamento

do poder centralizador e de como ele é aplicado sobre todos. Para Emmanuel

Lévinas, “olhar” o rosto de outrem liberta o “eu ético” – que transfiguramos aqui

em intelectual – desse assassinato do outrem e abre caminho para que essa

alteridade consciente se propague e atinja o poder não-misericordioso, que, para

as literaturas de Rubem Fonseca e Cardoso Pires, pode ser configurado como o

Estado ou como as instituições globalizantes. O intelectual deve se integrar,

humilde e soberanamente, a esse outrem, deve se dar, através desse encontro com

o rosto de outrem, para a constituição de uma sociedade ética. Sobre essa teoria,

filósofo afirma que:

Esta inversão humana do em-si e do para-si, do “cada um por si”, em um eu ético, em prioridade do para-outro, esta substituição ao para-si da obstinação ontológica

202 LEVINAS, 1997, p. 27.

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de um eu doravante decerto único, mas único por sua eleição a uma responsabilidade pelo outro homem – irrecusável e incessível – esta reviravolta radical produzir-se-ia no que chamo encontro do rosto de outrem. Por trás da postura que ele toma – ou que suporta – em seu aparecer, ele me chama e me ordena do fundo de sua nudez sem defesa, de sua miséria, de sua mortalidade. É na relação pessoal, do eu ao outro, que o “acontecimento” ético, caridade e misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou eleva acima do ser [gerando um] Estado que admite, para além de suas instituições, a legitimidade, mesmo que ela seja transpolítica, da busca e da defesa dos direitos do homem203.

Emmanuel Lévinas incorpora metafisicamente uma aura a esse “eu ético”,

transformando-lhe em um ser cheio de graça e misericórdia e apresenta uma

definição virtual e utópica de Estado, repleto destes seres “éticos”. O filósofo

franco-lituano apresenta um “modelo” de Estado que, ele mesmo, afirma não

saber se pode ser “vivível”204, mas que julga necessário, como “libertação” do eu

e “compreensão e responsabilidade” em face do outro, na busca pelo “Bem”. No

âmbito do objeto de estudo desta tese, o Bem passa, por analogia, a ser sinônimo

de Liberdade e Justiça. O papel do intelectual, então, é buscar esse Bem e se

desvincular de qualquer posição superior em relação a seus pares, o poder

destinado a esse ser, que foge da alcunha de “misericordioso”, deve ser lançado

integralmente à luta contra aqueles que se posicionam contra o Bem.

Mandrake, o detetive fonsequiano, ao mesmo tempo em que não apresenta

tendências criminosas, ou reptícias, tampouco é um exemplo ilibado de herói, pois

lida com subornos, chantagens e a compra de material ilícito. O detetive de

Rubem Fonseca tem seu próprio lado, mas não se vende, nunca cede aos desejos

de seus contratantes se estes ferirem seus princípios, sempre faz o que acha certo e

é o responsável pela fluidez dessas vozes. Ele encontra-se disposto a lutar, ainda

que a sua maneira, por justiça. Não é um Robin Hood, nem quer montar um

exército de seguidores, mas é capaz de defender um inocente, independentemente

do pagamento de seus honorários, se achar que é o certo a se fazer, como no conto

“O Caso de F. A”:

“Estive no cartório da 15ª, doutor, e o escrivão disse que o juiz vai decretar minha prisão preventiva. Se eu for preso a minha mãe morre, o coração dela está por um fio.” “Você deu dinheiro a ele?, perguntei. “Dei”. “Aquele cara é um rato. Essa história de prisão preventiva é sacanagem dele. Não dá dinheiro para ele nunca mais. Pode ficar descansado.” “Que alívio, doutor!”

203 LEVINAS, 1997, p. 269. 204 Cf. LEVINAS, 1997, p. 271.

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“Até logo.” Fui saindo. “Fecha a porta, Evaristo.” Fraco neste mundo não tem vez, está fudido. Eu sei205. A segunda parte de A Grande Arte “ameniza” a narrativa policial e

apresenta, em flashback, a história dos Lima Prado, desde meados do século XIX,

passando pela construção e solidificação do império que se tornou a Corporação

Aquiles. As idiossincrasias da família são narradas como se fossem um romance

histórico-biográfico, mas que na verdade funcionam como um “continuar” da

investigação perpetrada por Mandrake, que se apropria do caderno de

apontamentos e da trajetória da família, para alcançar seu objetivo de se vingar de

Lima Prado e dos membros de sua organização criminosa. Segundo a professora

Vera Figueiredo:

A ênfase recai, agora, na semiotização da história, que vai abrir espaço para o romance que se debruça sobre o passado para nele colher material que será reciclado, reprocessado, como num laboratório, gerando novas versões, algumas vezes narradas obedecendo a cronologia linear e sem grande pretensão de inovações formais (...) quando as interpretações teleológicas da história estão em baixa, as ações praticadas pelos chamados “grandes homens” ficam reduzidas às suas motivações pessoais, nada existindo que possa dotá-las de um significado que transcenda o interesse particular, conferindo-lhe uma dimensão universal206.

Essa semiotização da história deve ser considerada como um referencial

para analisar a história dos Lima Prado – que pode ser lida como metonímia da

História do Brasil no mesmo período –, uma trajetória, que precisa ser

investigada, compreendida e assimilada, para que possa gerar uma ação de cunho

universal, seja ela qual for. A Grande Arte, na verdade, é um livro que surge

dentro do livro, um romance policial que se esfacela interiormente e apresenta

essa narrativa diferenciada, essa nova concepção do livro como “documento”

histórico. Busca-se, mas não se garante, a investigação como possibilidade para se

repensar determinadas situações e suas conseqüências. A escolha de Mandrake

pela busca de uma verdade particular desestrutura essa proposta. Faz-se necessária

a retomada de um modelo de investigação que não busque a verdade, pela real

impossibilidade dessa ocorrência, mas que compense o trabalho investigativo,

algo que só pode acontecer através da punição do criminoso, já que Mandrake não

205 FONSECA, s/d, p. 73. 206 FIGUEIREDO, 2008.

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demonstra interesse em solucionar os crimes – afinal nem todos foram cometidos

por Lima Prado.

O caderno de apontamentos e o livro, Retratos de Família, caem nas mãos

de Mandrake, ambos são obras que olham o passado com “a descrença dos tempos

atuais” e servem como instrumento, segundo o professor Deonísio da Silva, para

Rubem Fonseca ceder:

ao leitor e ao escritor pápeis de destaque em seu romance. É lendo, como vimos, que Mandrake decifra o principal enigma de A Grande Arte. È escrevendo, mesmo publicando em edições das quais se salva só um exemplar, que o escritor contribui para deslindar certos mistérios sociais. E está pronta a homologia. Os heróis do romance são o escritor e o leitor (...) em A Grande Arte, essa antiga e boa idéia volta à cabeça de Rubem Fonseca e ele dá o tal salto qualitativo, o pulo do gato, agora mesclando escritor e leitor num plano neutro, no grau zero da escritura, já que não os envolve diretamente no enredo, mas os faz participar a distância, iluminando as ações dos outros personagens, estes, sim, diretamente envolvidos em crimes, corrupções etc. 207.

Com isso, podemos vislumbrar que o objetivo fonsequiano de trazer um

romance “social” enraizado em um “tronco” policial acerta seu alvo repensando e

entendendo o papel de uma massa consumidora às voltas com a violência das

grandes corporações e do estatuto do autor na construção de um romance. Como

toda obra de arte, o livro está sujeito a múltiplas leituras, mas parece claro o

projeto de Rubem Fonseca de por em questão alguns pontos como: violência

(urbana), centralização de poder (nas mãos do Estado e de outras instituições),

injustiças sociais e a própria literatura.

Cardoso Pires e Rubem Fonseca transfiguram a hierarquia tradicional do

policial clássico, ao catapultarem a investigação ao lugar mais elevado da trama,

lugar anteriormente destinado ao prazer que o esclarecimento do crime trazia

enraigado. Nossos escritores fortalecem o policial, ao atualizarem o gênero,

segundo um projeto intelectual, pondo a investigação como centro narrativo e

possibilitando a discussão de questões sociais, que tradicionalmente não

encontrariam lugar nas obras policiais.

207 SILVA, 1996, p. 110.

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