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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA
O MTODO DE ANLISE ATIVA DE K. STANISLVSKI COMO BASE
PARA A LEITURA DO TEXTO E DA CRIAO DO ESPETCULO
PELO DIRETOR E ATOR
Nair Dagostini
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.
Orientadora: Prof. Dr. Arlete Orlando Cavaliere
So Paulo
2007
DEDICATRIA
1935-1936
A mim, ainda me resta viver dois, trs anos, os ltimos. O que eu devo fazer transmitir minha experincia e mtodo para quem quiser receb-los. Peguem, eu darei tudo o que sei.
Konstantin Stanislvski
Dedico a tese in memoriam aos meus mestres Tovstongov e Katsman.
ii
AGRADECIMENTOS
Agradeo minha orientadora, prof. dr. Arlete Orlando Cavaliere pelo estmulo e
confiana proporcionados durante o processo de realizao desta tese.
Aos professores integrantes da banca de qualificao, prof. dr. Elena Vssina e prof.
dr. Maria Silvia Betti, pelas valiosas sugestes, os novos olhares e caminhos
apontados.
prof. dr. Elena Vssina, a quem ficarei eternamente grata por ter proporcionado as
condies para a realizao desta tese, colocando disposio sua biblioteca, seu
conhecimento e sua generosidade mpar.
Em especial, aos meus atores-pesquisadores, que, apesar de todos os conflitos,
estiveram comprometidos at o final com a pesquisa e criao do espetculo: Cristiane
Werlang, Gustavo Muller, Luana Michelottti, Maria Andra Soares, Michele Zaltron,
Rafael Sieg.
equipe artstica do espetculo A Dcil - Risom Cordeiro, Nara Maia, Clber Laguna,
Nelson Magalhes, Leandro Bartz, Sandra Tartas.
Ao Celso e ao Jorge, pela amizade e fora incondicionais
Ao Emlio, pela leitura da adaptao, sugestes, poesias e amizade.
Luana e Camilo, pela ajuda no italiano e no ingls.
Klara Gurianova, pela generosidade em ajudar a sanar dvidas da lngua russa, da
bibliografia e dos autores.
Iara, pela atenta reviso.
Irina Mikhailovna, pelas leituras, afeto e amizade.
Maria Helena Lopes, pela amizade e discusses por telefone nos momentos crticos.
Martina, pelos desabafos, leituras, opinies e amizade.
Mrcia, Clber, Adi, Adriane e Camilo, pela acolhida e amizade.
Michele, pela ajuda, sugestes e amizade.
Ao Rafael, pela sua incondicional dedicao e disponibilidade na concretizao desta
tese, pela pacincia e discusses.
Aos meus ex-colegas do Departamento de Artes Cnicas da UFSM e a todos os meus
alunos que cooperaram para o amadurecimento destas reflexes ao longo dos anos.
A Tatiana Golscheva, pelos vdeos, CDs e bibliografia trazidos da Rssia, pela amizade,
presena e transmisso de canes russas s atrizes.
iii
minha famlia: Adriana e Mauro pela disponibilidade, ajuda e afeto: ao Gil pela
gua nas flores e reunies do condomnio; Lourdes e Rosa, pelas caminhadas e
conversas; ao Miguel e Geraldine, pelos momentos ldicos e de descontrao; Ruth,
pelo afeto e incondicional apoio; minha querida me, pelas oraes e pela espera, e a
todos os que de alguma forma me apoiaram para a realizao desse trabalho.
iv
RESUMO
A orientao deste estudo se d na perspectiva de investigar, definir e especificar dentro
do sistema de K. Stanislvski o mtodo de anlise ativa e o das aes fsicas
juntamente com os seus elementos constitutivos a partir das suas fontes primrias,
tericas e prticas, e do seu desenvolvimento por renomados diretores russos, que
escreveram e aplicaram o mtodo em suas criaes. Obedecendo coerncia dos
princpios metodolgicos do sistema, esse trabalho contm uma parte terica e outra
prtica. Na terica, procuramos esclarecer em que consiste o mtodo; especificar o
processo de conhecimento da vida da obra, a criao do romance da vida das
personagens por parte do diretor; os elementos necessrios para a leitura da obra atravs
da ao; o mtodo de anlise ativa e seus elementos estruturais; os elementos do
sistema para o ator criativo, acompanhado da traduo de estenogramas das aulas-
ensaios de K. Stanislvski sobre seus ltimos experimentos relativos ao mtodo das
aes fsicas. A aplicao do mtodo se deu sobre a obra A Dcil, de Dostoivski.
Nela, primeiramente, foi realizada uma anlise na busca de conhec-la. Em seguida foi
feita a transposio do texto literrio para o texto teatral, o que resultou na adaptao e
anlise da ao da mesma, que se constitui no sistema do espetculo, o qual interliga o
projeto artstico do autor com o do diretor e se concretiza pela ao cnica do ator.
Palavras-chave: Sistema de Stanislvski/Anlise Ativa, Autor/Diretor/Ator, A Dcil,
de Dostoivski, Criao teatral.
v
ABSTRACT
The present study intends to investigate, define and specify the following methods,
which are part of K. Stanislavski System: the Active Analysis and the Physical Actions
with its elements. It is taken from the practical and theoretical primaries sources and
also from its development through renowned Russian directors that have written and
applied the method in their creations. Obeying the coherence of the methodological
principles of the system, this work has a theoretical and a practical part. In the
theoretical one, we look for clarifying in what the method consists; specifying the
process of knowing the texts life through the directors hands. We also search for the
necessary elements to read the text through the action; the method of active analysis and
its structural elements; the elements of the system to the creative actor, followed by
the translation of the notes from the rehearsal-classes of K. Stanislavski, about his last
experiments related to the method of Physical Actions. The method was applied in the
text: A Dcil, of Dostoivski. First of all, this text was analyzed with the purpose of
being deeper understood. After that, a transposition from the literary to theatrical text
was done and we had as a result the adaptation of the text and its actions analysis. This
adaptation constitutes itself the own system and is responsible for connecting the artistic
project of the author with one of the director and that is materialized through the scenic
action of the actor.
Keywords: Stanislavski System/Active Analysis, Author/ Director/ Actor, A Dcil,
of Dostoievski, Theatrical Creation.
vi
SUMRIO
DEDICATRIA..............................................................................................................ii
AGRADECIMENTOS...................................................................................................iii
RESUMO..........................................................................................................................v
ABSTRACT....................................................................................................................vi
O CAMINHO DE UMA VIDA NA ARTE....................................................................1 CAPTULO I O estudo dos princpios de direo cnica na leitura do texto a partir
do mtodo de anlise ativa..............................................................................................22
1. Elementos do sistema para a anlise do texto..............................................26
Superobjetivo...........................................................................................26
Linha transversal de ao.........................................................................31
Circunstncias dadas................................................................................33
2. O trabalho do diretor no processo de conhecimento da vida da obra..............35
3. Anlise ativa da estrutura da obra....................................................................49 CAPTULO II Elementos do sistema e a ltimas investigaes de K. Stanislvski
com o mtodo das aes fsicas sobre o papel...............................................................58
1. A formao do ator criativo.............................................................................58
Concentrao............................................................................................62
Imaginao...............................................................................................68
O se mgico..........................................................................................72
F e sentido da verdade............................................................................73
Relao.....................................................................................................78
Adaptao.................................................................................................82
Liberdade muscular..................................................................................84
Tempo-ritmo............................................................................................90
2. As ltimas experincias de K. Stanislvski no Estdio de pera
Dramtica.............................................................................................96
Traduo dos estenogramas das aulas-ensaios sobre o papel de
Hamlet................................................................................................102
vii
CAPTULO III Aproximao anlise de alguns aspectos da Imagem Artstica na
Novela Krotkaia (A Dcil), de Fidor M. Dostoievski............................................145
1. Impresses sobre a Novela A Dcil...............................................................145
2. A Imagem Artstica da Novela A Dcil.........................................................153
O Espao Artstico.................................................................................161
O Tempo Artstico.................................................................................167
As oscilaes na mentalidade dos heris...............................................173 CAPTULO IV Adaptao e Anlise Ativa de A Dcil, de Fidor M.
Dostoivski....................................................................................................................176
1. Adaptao da Novela Krotkaia (A Dcil).................................................176
2. Anlise Ativa da adaptao da narrativa de A Dcil.....................................203
3. Anlise Ativa dos grandes acontecimentos da adaptao de A Dcil............204
4. Anlise Ativa dos acontecimentos seqenciais da adaptao de A Dcil......206 DA AO AO ESPETCULO..................................................................................225 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................237 ANEXOS.......................................................................................................................251
viii
O CAMINHO DE UMA VIDA NA ARTE
Preservar a herana de Stanislvski isso significa desenvolv-la.1
O que ser exposto, nesta parte inicial, a trajetria de minha definio
acadmica e artstica na rea da arte teatral, as influncias recebidas e a atividade como
professora, pesquisadora e artista das artes cnicas.
Em 2001, com a defesa da dissertao de mestrado em Filosofia Mmesis de
Prxis como Eudaimonia: Aristteles e Lukcs, pela Universidade Federal de Santa
Maria, tambm encerrei a minha atividade acadmica nesta instituio como professora
do Curso de Artes Cnicas. A deciso de concorrer a uma vaga de doutorado na
FFLHC/USP poderia erroneamente parecer uma questo de vaidade, j que o ttulo no
seria incorporado na ascenso da carreira. O que, ento, me levaria a passar pelo
processo de concretizao de uma tese, que sempre envolve desafios e paixes, mas
tambm certo desgaste e at sofrimento? Acredito que foi a constatao de no ter
efetuado o registro de um conhecimento adquirido com grandes mestres da arte teatral
num pas que deu, no sculo XX, ao Ocidente, o maior legado nessa rea atravs da
figura incomparvel de Konstantin Serguiievitch Stanislvski -Alexiev (1863-1938).
Esse conhecimento se refere ao seu sistema, que me serviu de base e me
guiou ao longo do percurso acadmico-artstico. Essa dvida estava pendente devido ao
envolvimento total com atividades de ensino, pesquisa e extenso dentro do curso em
que atuei. Uma parte estava cumprida com a transmisso desse conhecimento via direta,
nas aulas e orientaes aos alunos, que hoje somam mais de uma centena espalhados
pelo Brasil.
Mas, apesar desse conhecimento transmitido estar sendo aplicado e se
expandindo em diferentes atividades artsticas, pedaggicas e culturais, penso que ainda
em pequena escala, pois os equvocos e mal-entendidos sobre o sistema ainda
existem, e, em certa medida, sempre existiro. Constata-se a necessidade de se apossar
individualmente desse saber atravs da prtica, sobretudo, sendo que a sensibilidade e a
capacidade de cada um fazem com que a peculiaridade subjetiva sempre esteja presente,
em detrimento da objetividade do sistema e de suas leis.
O importante a honestidade e a seriedade com que nos aproximamos e nos
apoderamos de determinado conhecimento e a nossa atitude diante dele, encarando-o 1 KEDROV, M. N. Stati, retchi (Ensaios e discursos). Moscou: VTO, 1978, p.51.
1
como um valioso patrimnio produzido por nossos antecessores o qual temos a
obrigao de preservar e de desenvolver para a transformao de nossas potencialidades
artsticas, culturais e humanas.
Eugnio Kusnet (1898-1975) deixou para ns, brasileiros, o legado valioso de
sua experincia pessoal sobre o sistema, como mestre, diretor, ator e escritor. No
ltimo perodo de sua vida, adquiriu em Moscou, dos discpulos de K. Stanislvski, o
mtodo de anlise ativa. Com esse olhar renovado sobre o sistema, empenhou-se para
que muitos dos mal-entendidos produzidos, at por ele mesmo, em sua atividade
artstico-pedaggica, fossem sanados e, em seus ltimos anos de vida, alm de
promover a formao de professores, diretores e atores, escreveu o livro Ator e
Mtodo. Penso que, apesar de j se completarem 30 anos de sua morte, a sua
constatao ainda possui certa validade:
Infelizmente, no Brasil nunca tivemos a oportunidade de confirmar esse mtodo no trabalho cotidiano de nosso teatro. [...] os nossos diretores, sempre dispostos a fazer novas experincias, desistiram, por fora de certas circunstncias, at da prpria Anlise Ativa.2
O impulso que me levou a realizar esse estudo no foi a pretenso de possuir a
melhor verdade sobre o sistema, por t-lo recebido na fonte direta, mas, como j
disse, foi a de fazer uma reflexo sobre a minha trajetria artstica e acadmica, com
base num conhecimento adquirido com grandes mestres, herdeiros da tradio de K.
Stanislvski, mas que foi assimilado e aplicado por mim dentro de determinadas
peculiaridades artstico-pessoais.
Por outro lado, estou ciente da falta de informao e de acesso a muitos escritos
do mestre publicados nos ltimos anos na Rssia, como tambm de boas tradues
diretas do russo, que possam desfazer muitos falsos pressupostos reinantes sobre o
sistema, a fim de ser possvel aprofundar e at contribuir para o seu desenvolvimento
em muitos aspectos. Penso estar dando uma modesta contribuio relativamente ao
sistema de K. Stanislvski, sobretudo no que tange a seu ltimo perodo, o mtodo de
anlise ativa, aos profissionais do teatro no Brasil, a partir do inesgotvel material
escrito que o mestre nos deixou, como nos dizem Arlete Cavaliere e Elena Vssina3:
2 KUSNET, E. Ator e Mtodo. So Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Funarte, 2003, p.150. 3 Professoras Doutoras do Departamento de Literatura e Cultura Russa da FFLCH-USP.
2
Stanislvski escreveu muito, e seu famoso sistema, que ele buscou aprofundar e aperfeioar at o final da vida, para a consecuo de um grande projeto integrador, atravs do qual toda a sua experincia, enquanto ator, diretor e pedagogo, pudesse ser registrada, segundo uma perspectiva de conjunto, jamais foi concludo.4
Feita essa observao, passarei a dar uma perspectiva de minha formao e
atividade nas Artes Cnicas.
Conclu o Bacharelado em Direo Teatral e Licenciatura em Arte Dramtica
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, em julho de 1978. Como
diretora, no perodo de formao, destaco duas montagens: Os Fuzis da Senhora
Carrar, de Bertold Brecht (1898-1956), e Senhorita Jlia, de August Strindberg (1848-
1912). E, como atriz, tambm destaco a atuao no papel da Me, na pea O Mal-
Entendido, de Albert Camus (1913-1960), e no de Isadora, no texto dramtico O
Encontro no Bar, de Brulio Pedroso (1931-1990).
medida que se aproximava o trmino da faculdade, apareciam os
questionamentos sobre o que fazer para continuar a desenvolver minha trajetria
artstica. Essas inquietaes me levaram a encaminhar dois projetos com pedidos de
solicitao de bolsas de estudos, um junto Embaixada da URSS, na rea de cinema, e
o outro junto Embaixada da Polnia, na rea de teatro. Em setembro de 1978, fui
contemplada com as duas bolsas de estudos, uma para o Curso de Artes Dramticas,
na Universidade Jagiellonica, em Cracvia, e a outra na URSS. Optei por transferir a ida
Polnia para depois do trmino da bolsa da URSS, que seria, em princpio, de dois
anos.
Em 30 de setembro de 1978, cheguei a Moscou, sem saber ao certo onde
estudaria e em que rea, teatro ou cinema, esta ltima de acordo com minha solicitao.
L chegando, com o primeiro dia de neve, sem falar minimamente a lngua, me vi entre
milhares de estudantes estrangeiros. Aps uma noite em Moscou, fui enviada pelo
Ministrio de Educao da URSS cidade de Leningrado, hoje So Petersburgo. A
viagem de trem rumo ao desconhecido, com dois estudantes, um rabe e outro indiano,
sem comunicao verbal, j que no tnhamos uma lngua comum que permitisse
manter a mnima conversao, a no ser a mimtica, anunciava o que estaria por vir.
4 CAVALIERE, A; VSSINA, E. A herana de Stanislvski no teatro norte-americano: caminhos e descaminhos. In Crop. Theater Studies -.Guest Editor. Maria Silvia Betti. So Paulo: Humanitas FFLCH/USP . Nmero 7, p. 1-394, 2001, p.308.
3
Na chegada estao, fomos recebidos por responsveis pelos estrangeiros e
enviados s instituies destinadas a cada um de ns. Conduziram-me ao LGITMiK -
Instituto Estatal de Teatro, Msica e Cinema de Leningrado, denominado N.K.
Cherkacov.5 Fui a primeira brasileira a estudar no Instituto, onde ningum falava a
lngua portuguesa. Tive, ento, a impresso de pertencer a uma tribo totalmente
desconhecida no mundo. Ao conseguir explicar que entendia o espanhol, trouxeram
um doutorando cubano para me auxiliar. Nos primeiros trs meses, estive envolvida,
sobretudo, com a aprendizagem da lngua russa, priorizando a comunicao imediata.
Vencidos os primeiros obstculos com o idioma e com a adaptao, pois o
inverno na virada do ano chegou a 43 graus negativos, passei a assistir s aulas de
direo e interpretao, estas obrigatrias, pois as disciplinas referentes s prticas
corporais oferecidas na Instituio e de cunho terico eram de minha livre escolha.
A instituio determinou, diante da anlise de meu currculo, que faria a ps-
graduao (aspirantura) em Maestria do Ator Dramtico, no curso de Arkadii
Katsman (1921-1989), e em Direo Dramtica, no curso de Gueorgui Tovstongov
(1913-1988). Ambos os cursos em nvel de graduao, sendo que o de Maestria do
Ator Dramtico tinha durao de quatro anos, e o de Direo Dramtica, de cinco.
Esses cursos s admitiam nova turma aps os alunos ingressantes terem
concludo o curso. Para o ingresso, os candidatos passavam por uma rigorosa seleo,
submetendo-se a testes especficos, prticos e tericos. Em Maestria do Ator
Dramtico, eram admitidos 22 alunos, sendo 11 mulheres e 11 homens; no curso de
Direo Dramtica esse no era o critrio adotado, e o grupo, alm de ser menor,
apresentava predominncia de alunos homens.
Ambos os cursos, atuao e direo, eram muito disputados pela notabilidade de
seus professores principais, professor Katsman e professor Tovstongov. Todos os
demais professores assistentes na ctedra de maestria do ator e de direo teatral eram
subordinados ao pedagogo principal, que tinha a funo de uma espcie de guia, de
orientador responsvel pela formao profissional dos atores e diretores. Essa forma de
organizao curricular levava a formao de um coletivo muito forte, guiado pelo
mestre principal. O que era destacado nesse sistema de ensino, alm da qualidade da
Instituio, era, sobretudo, o curso com determinado mestre, o que se assemelhava
5 O LGITMiK em 1993 passou a denominar-se Academia Estatal de Arte Teatral de So Petersburgo SPGATI.
4
muito estrutura dos Estdios criados por K. Stanislvski, principalmente, ao ltimo, o
Estdio de pera Dramtica.6
Seguem-se algumas referncias sobre os dois grandes mestres com os quais tive
o privilgio de estudar.
Arkadii Katsman formou-se como ator no Instituto LGITMiK, na poca da
Segunda Guerra Mundial, profisso que exerceu por muitos anos. Mas, ao assumir a
responsabilidade do curso que levava o seu nome, passou a dedicar-se exclusivamente
formao dos estudantes desse curso, no papel de principal pedagogo e tambm de
diretor responsvel pelas montagens dos alunos do curso. Tambm ocupava o cargo de
principal assistente de Gueorgui Tovstongov no seu curso de Direo Dramtica.
Nos anos de 1978-79, a turma de atores conclua a sua trajetria de estudos na
arte do ator com o espetculo, dirigido por Arkadii Katsman, Sonhos de uma noite de
vero, de Shakespeare (1564-1616). Tive a oportunidade de assistir a uma parte do
processo da criao desse espetculo, apesar do obstculo do escasso entendimento da
lngua russa. Com os alunos ingressantes no incio do ano letivo de 1979, dirigiu, como
trabalho final de formatura, o romance de Dostoivski (1821-1881) Os Irmos
Karamsov. Nessa montagem s participei de parte do processo de criao, pois sua
estria ocorreu aps minha volta ao Brasil. A pea tinha como meio principal de
criao a improvisao de tudes (estudos). Faz-se necessrio acrescentar que Lev
Dodin (1944- ), internacionalmente reconhecido diretor teatral, era professor assistente
nos cursos de Katsman e Tovstongov, sendo que, com a morte de Arkadii Katsman,
assume a ctedra do Curso de Maestria do Ator Dramtico.
Gueorgui Tovstongov, principal pedagogo do Curso de Direo Dramtica, que
levava o seu nome, fez sua formao como diretor no GITISa7, ingressante em 1933.
Teve como pedagogos principais A. D. Popov (1892-1961), A. M. Lobanov (1900-
1959) e M. O. Knbel (1898-1985), que tambm foi sua professora, mas no no papel
de orientadora, ou seja, como pedagoga principal. Todos eles eram discpulos e
seguidores de K. Stanislvski, e, alm de terem sido atores do TAM, haviam participado
como estudantes nos seus diversos Estdios. Estes se constituam em espaos que 6 O Estdio de pera Dramtica de 1919 a 1926 funcionou na casa de K.S.Stanislvski, primeiramente na rua Karetni Riad e posteriormente na travessa Lentiev. Em 1926, foi convertido em Teatro Estdio Estatal de pera Stanislvski. Em 1928, passou a chamar-se Teatro de pera Stanislvski. Em 1941, esse teatro fundiu-se com o Teatro Musical V.I. Nemirvich-Dnchenko, sendo denominado Teatro Musical dos Artistas do Povo da URSS, K.S. Stanislvski e V.I. Nemirvich-Dnchenko. Desde 1953, intitula-se Estdio de pera Dramtica K. Stanislvski. 7 GITIS - Instituto Estatal de Arte Teatral de Moscou, de nome A.V.Lunatchrski. A partir de 1991 passa a chamar-se RATI Academia Russa de Arte Teatral.
5
funcionavam como laboratrios onde o mestre desenvolveu o seu sistema,
experimentou e explorou os princpios fundamentais do processo criativo da arte do
ator com os estudantes.
Tovstongov chegou a assistir a algumas palestras-aulas de K. Stanislvski no
Estdio de pera Dramtica e a conferncias no GITISa. Sofreu influncia de
Nemirvitch-Dntchenko (1858-1943), Vartngov (1884-1924), Tairv (1885-1950),
Meyerhold (1874-1940) e Brecht, mas considerava-se filho da tradio stanislaviskiana,
ou seja, discpulo do Teatro de Arte de Moscou, pois aprendeu com seus mestres o uso
do sistema de Stanislvski e aplicou-o a partir do conhecimento adquirido com esses
mestres e de sua vasta prtica como pedagogo e diretor, mas de uma maneira muito
pessoal.
Como artista, apesar de haver se adequado aos cnones do regime sovitico,
quanto s instituies, e de ter sido muito respeitado pelo regime, sempre usufruiu de
muita liberdade em sua arte, a qual apresentava uma irreverncia esttica no-
conformista. Gueorgui Tovstongov foi o principal diretor do Grande Teatro Dramtico
Gorki, de Leningrado (BDT), hoje com o nome de Grande Teatro Dramtico Gueorgui
Tovstongov. Foi considerado um dos mais importantes diretores da encenao
contempornea, no s em seu pas, mas internacionalmente.
Os seus espetculos foram mostrados em temporadas pela Europa, Estados
Unidos, Amrica Latina, pelos pases da sia e do Leste Europeu. Realizou inmeras
montagens nesse ncleo dos pases socialistas. Para dar uma idia resumida das suas
grandes montagens, nomeio algumas entre mais de uma centena: As Trs Irms e Tio
Vnia, de Tchekhov (1860-1904), Baixos Fundos e Os Pequenos Burgueses, de Gorki
(1868-1936), A Histria de um Cavalo e Ana Karnina, de Lev Tolstoi (1828-1910), O
Inspetor Geral e Almas Mortas, de Gogol (1809-1852), A tragdia otimista, de V.
Vichnevski (1900-1951), Henrique IV, de Shakespeare, Humilhados e Ofendidos e O
Idiota, de Dostoivski. Sobre este espetculo h uma declarao de Eugnio Kusnet,
que penso ser ilustrativa de sua grandiosidade artstica, quando cita o genial ator I.M.
Smoktunovski (1925-1994), no papel de prncipe Michkin: At agora, depois de
muitos anos, ainda considero aquele espetculo o melhor entre todos que vi na minha
vida.8 Considerado um diretor altamente verstil, transitou por todo tipo de temas,
gneros e estilos. Foi mestre em criar cenas de grande tenso dramtica.
8 KUSNET, E. Ator e Mtodo. So Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Funarte, 2003, p.133.
6
Tovstongov dirigiu alguns filmes para televiso e escreveu inmeros artigos e
obras, sendo as mais conhecidas Zerkalo stseny (O espelho da cena), em dois tomos,
Bessdy s kollegami (Conversa com os colegas) e Premry (Estrias). O primeiro foi
traduzido em vrias lnguas, o tomo I, com o nome de A Profisso do Diretor de Cena.
Como diretor e pedagogo de alto nvel intelectual e artstico, foi responsvel pela
formao de grandes gnios da cena russa, diretores e atores, muitos ainda em atividade
e de reconhecimento pblico nacional e internacional. Entre os diretores conhecidos no
Brasil que foram seus alunos, menciono Lev Dodin e Kama Guinkas (1941- ).
No curso de direo, Tovstongov fazia-se presente duas vezes por semana,
pela tarde, j que os ensaios no BDT eram pela manh, sendo que a turma, no restante
do tempo, ficava sob orientao do principal pedagogo assistente, Arkadii Katsman, e
de seus respectivos pedagogos assistentes. Na esfera pedaggica do curso de direo,
Tovstongov e Katsman eram complementares, um no existia sem o outro, vale
observar as datas de suas mortes, 1988 e 1989, respectivamente. Quando Tovstongov
chegava s aulas, era-lhe dedicada uma grande reverncia, pois era considerado um
diretorpedagogo muito exigente, que paralisava a todos. Ao iniciar o trabalho com a
apresentao de exerccios criativos preparados para o dia, os quais davam a dimenso
daquilo que estava sendo trabalhado nas aulas, com os assistentes, na aquisio de
tcnicas referente aos elementos do sistema e apresentao de tudes ou anlise
ativa dos textos, se instalava uma atmosfera descontrada e apaixonada, com calorosas
discusses em que diferentes pontos de vista se contrapunham, no s entre alunos, mas
entre os dois mestres. Dentro da sala de aula havia um clima de liberdade de expresso
e de igualdade, em que dominavam o esprito tico e o entusiasmo artstico, to
essenciais no sistema de K. Stanislvski.
No coletivo de 1979, ingressantes do primeiro ano, nas aulas de maestria do
ator, trabalhavam com o mtodo das aes fsicas, desenvolvendo os mais variados
exerccios com objetos imaginrios. Os elementos do sistema eram trabalhados por
algumas horas diariamente. O trabalho criativo se dava, sobretudo, atravs de
improvisaes dos tudes, nos quais o aluno tinha que criar uma pequena cena com
uma estrutura dramtica que contemplasse as etapas exigidas, conforme o mtodo de
anlise ativa, que ser desenvolvido nos captulos posteriores.
A matria para a criao do tude devia ser resgatada da prpria vivncia do
ator, de uma experincia pessoal, de sua memria emocional e de aes com que o
aluno possusse familiaridade. A imaginao entrava no momento da composio e
7
organizao do material e, sobretudo, na execuo das aes fsicas com objetos
imaginrios nas circunstncias inventadas pelo aluno, dentro dos acontecimentos que
compunham o tude. Esses eram elaborados individualmente e submetidos a uma
criteriosa anlise pelo mestre e professores assistentes. O aluno tinha que criar e
apresentar, durante o semestre uma quantidade suficiente de tudes, para que os
melhores fossem aperfeioados e apresentados em mostras no final do semestre. Nesses
trabalhos, o objetivo principal das apresentaes era avaliar o desenvolvimento do aluno
em cada etapa de sua formao artstica, pois aquele que no apresentasse as
condies artsticas, disciplinares e ticas exigidas pelo curso seria eliminado do
mesmo.
Toda aula com o mestre seguia um ritual rigoroso, uma espcie de espetculo
de uns 40 minutos, que se compunha de quatro momentos: zatchin, crnica, composio
e popytka. O zatchin era um exerccio criativo, espcie de prlogo, que aglutinava uma
sntese dos elementos tcnicos e tericos que estavam sendo adquiridos na totalidade
das disciplinas, que envolvia o coletivo, sob a direo de um dos alunos selecionado a
priori. Nele era avaliado a escolha da linguagem artstica e a sua coerncia com o
contedo apresentado, que, em geral, se tratava de habilidades de movimentos, gestos,
aes, palavras e canes, tendo como fio condutor determinada idia. Seguia-se a
apresentao de uma crnica por um aluno tambm j selecionado, com resoluo
cnica adequada ao contedo, o qual devia estar ligado a algo que havia tocado o aluno,
que podia ser no mbito do curso, da rua, da realidade enfim, resultante de suas
observaes e impresses pessoais. Uma composio plstica a partir de um elemento
fixo, a qual devia sugerir uma ao transcorrida que no fosse ilustrativa, mas se
constitusse numa metfora. E, por fim, a apresentao de uma popytka, uma forma
de etiqueta criativa para apresentar uma bebida, oferecida aos professores (ch, suco,
gua, etc.).
No transcorrer da apresentao desses trabalhos, havia uma disciplina
impecvel, dentro de todos os requisitos necessrios para a apresentao de um
espetculo. O professor principal, em conjunto com os demais professores, assistentes,
alunos e aspirantes (alunos de ps-graduao) analisava cada exerccio, tanto na
forma quanto no contedo e sob o aspecto de sua coerncia e lgica. Tambm eram
destacados o humor na criao e a originalidade.
Essas aulas eram sempre assistidas por um pblico que se compunha de
professores e artistas, visitantes nacionais e estrangeiros e dos aspirantes, em que eu
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me inclua. A seguir, eram mostrados os tudes individuais, que passavam por anlise,
discusses e eram retrabalhados nos aspectos considerados problemticos. Quando os
atores no possuam tudes para apresentar, o mestre ou assistente trabalhava
exerccios que envolviam os elementos do sistema: ateno, imaginao, irradiao,
jogos, pesquisa com animais, entre outras habilidades.
Se no primeiro semestre do ano ingressante a criao dos tudes devia estar
ligada experincia pessoal do aluno, j no segundo semestre a criao dos tudes
iniciava-se a partir da literatura sovitica, por estar mais prxima e pertencer ao seu
universo cultural. Nessa etapa da criao dos tudes, havia a necessidade da relao
com o partner e o desenvolvimento do conflito entre ambos. Os alunos deviam
selecionar fragmentos da obra que possibilitassem o desenvolvimento dramtico para a
construo dos acontecimentos nas circunstncias dadas na obra que contemplassem
o processo de relao conflituosa e que dessem a idia de totalidade. O texto, quando
necessrio, devia originar-se das prprias aes do ator dentro das circunstncias da
obra, prevalecendo o critrio geral da criao, o se, gerado a partir da pergunta O que
eu faria em tais circunstncias dadas?.
No segundo ano, o aluno passava a ter conhecimento terico sobre o sistema e
o mtodo de anlise ativa, com todos os elementos que a compem. Na realidade o
processo que se dava era uma reflexo sistematizada sobre a prtica que j vinha sendo
realizada e de certa forma em processo de desenvolvimento que se tornava mais
complexo pela compreenso e reflexo sobre o ato criativo. Nesse estdio de
desenvolvimento, o aluno-ator, j com certo domnio prtico da criao, do ncleo
dramtico, passava a expandir sua capacidade para selecionar e eleger acontecimentos e
circunstncias na obra literria, a qual servia como base para a criao.
medida que a experincia do estudante se tornava mais slida e ele j possua
algum domnio da ao fsica com objetos imaginrios e das tcnicas referentes aos
elementos, nos semestres subseqentes passava a trabalhar com obras mais complexas
da literatura clssica russa, sem que fosse abandonado o trabalho do ator sobre si
mesmo. Nos dois ltimos anos, todo o coletivo tinha que passar pela experincia de
uma obra clssica de dramaturgia e de uma adaptao literria de um romance.
Os atores tinham que incluir em seu repertrio um espetculo de variedades,
composto de nmeros de circo e outras referncias artsticas que exigiam habilidades
especficas. Todo ator tinha que possuir pelo menos o domnio de um instrumento
musical. Havia tambm a obrigatoriedade da criao de um espetculo, com enfoque
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no domnio da palavra em verso, contando com a participao ativa dos professores de
tcnica vocal e da palavra cnica, disciplinas dadas por diferentes professores. No
coletivo em que assistimos ao processo de estudos, tivemos a oportunidade de
acompanhar o processo do espetculo com poesias de Puchkin (1799-1837), que tinha
como objetivo maior o domnio da ao da palavra em verso.
O coletivo de 22 alunos era formado desde o momento da seleo com critrios
artsticos, ticos e disciplinares rigorosos, e isso contribua para que, nos quatro anos de
formao, sob a orientao do principal professor e dos assistentes, se desenvolvesse
uma solidez artstica e tica nos atores aptos a enfrentarem a profisso. As demais
disciplinas, no que tange ao desenvolvimento tcnico psicofsico, como voz, palavra
cnica, rtmica, dana, luta, esgrima, movimento cnico, estilos, possuam importncia
fundamental. Na avaliao dessas disciplinas, eram obrigatrias a escolha e a criao
de tudes a partir de obras que exigissem essas habilidades, como o teatro
renascentista espanhol, ingls, francs, etc. Essas tcnicas, tanto para o ator quanto
para o diretor, eram necessrias para atuarem no variado repertrio de obras clssicas,
modernas e contemporneas, mas tambm eram complementares para o domnio das
to necessrias leis do controle, da preciso, da deciso e adaptao e da expressividade,
que garantiriam a qualidade artstica.
Penso ser de importncia citar as pesquisas de campo que os alunos realizavam
como processo do trabalho sobre si mesmo e para as suas criaes. Nas frias de vero,
o coletivo era designado a trabalhar em Kolkhoznyi (sistema de produo coletiva do
campo) e, durante a permanncia de dois meses no local de trabalho, em que eram
desempenhadas as mais variadas tarefas junto comunidade, devia transformar essa
experincia em campo de observao, transposio artstica atravs da concretizao em
aes fsicas com objetos imaginrios.
Esse material recebia um tratamento de estruturao por parte dos alunos, que
lhe davam transposio e expressividade artstica. O resultado da experincia era
apresentado no incio do ano letivo em forma de performances, tudes coletivos e
individuais, crnicas, zachins, composies de canes, danas, msicas, etc. Era um
espetculo constitudo dos mais variados nmeros, originados a partir dessas
observaes e experincias vividas pelo coletivo junto a essas comunidades.
Semelhante processo de apropriao fsica e corporal tambm era usado
quando havia a encenao de textos que remetiam realidade mais prxima, ou
permitiam uma transposio para a atualidade. Esses laboratrios experimentais eram
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vivenciados em locais escolhidos que propiciassem a vivncia fsica e psquica
necessria, exigida para a concepo da encenao de determinado texto. Outra
experincia que penso ser importante relatar era um trabalho com animais, resultante
da observao, em que o aluno criava tudes individuais ou com partner. No coletivo
dos atores houve uma apresentao da mmesis de ces, pois Leningrado era uma cidade
povoada de ces enormes, em que todos os atores se apresentavam com o seu objeto de
pesquisa, altamente caracterizados sujeito e objeto, o que se constituiu num espetculo
inesquecvel.
No curso de Direo Dramtica, da ctedra do professor G. Tovstongov, as
exigncias eram gigantescas, pois os futuros diretores, nos primeiros dois anos, eram
obrigados a adquirir o conhecimento prtico do sistema, no que tange a arte do ator:
trabalho com aes fsicas com objeto imaginrio, criao de tudes individuais,
zatchin, crnicas, etc. Era priorizada a especificidade da direo, na apresentao dos
trabalhos individuais e coletivos, que, em suma, eram os mesmos j descritos para o
ator, sendo que havia a exigncia de um olhar diferenciado sobre a inveno cnica, a
capacidade mais aguda para dar a idia de uma expresso artstica individual.
Trabalhavam em diferentes materiais, alm da experincia individual no resgate
de memrias, como poesia, notcias de jornal, fatos da realidade, com os quais deviam
encontrar uma forma de resoluo artstica da idia contida no material. Para a anlise
e criao da obra, o mtodo utilizado era o da anlise ativa, e o seu domnio constitua
a prova de fogo para o aluno continuar no curso. O mtodo estava presente em qualquer
criao, desde o material mais simples at o mais complexo, como a anlise de
romances e textos da dramaturgia clssica.
O aluno de direo cnica, aps um ano e meio de curso, iniciava a anlise de
uma obra completa, que pretendia encenar nessa etapa dos estudos. Esse trabalho de
anlise da obra, de seus acontecimentos principais, tema, idia e circunstncias
determinantes era apresentado aos mestres e ao coletivo. Esse material, aps ter sido
submetido anlise crtica, era aprofundado e muitas vezes totalmente recusado ou
reelaborado, at que o aluno apresentasse um projeto de anlise coerente com a obra. O
trabalho criativo com o ator, em fragmentos da obra, tambm era apresentado e passava
pelo rigoroso processo de questionamento e anlise. Como resultado o estudante-diretor
devia apresentar um espetculo que se constitusse numa unidade artstica, com todos os
elementos que lhe so inerentes. Na montagem de concluso do diploma, que era
realizado no ltimo ano, o aluno podia voltar ao seu pas de origem ou repblica e
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realizar a montagem em algum teatro local, seguido de defesa do espetculo. Nesse
coletivo dominava uma total atmosfera de criao em cujo ambiente s se respirava
arte.
Passo a listar o contedo terico e prtico recebido durante minha estada no
curso de Ps-Graduao, de 1978 a 1981:
A obra de arte como conscincia social; a imagem artstica e sua estrutura; princpios especficos da arte teatral; fundamentos ticos da arte teatral; o diretor
como organizador do processo da criao cnica; teoria da Direo Teatral;
problemas modernos da Direo Teatral; unidade do Processo de Educao e
Formao do Ator e Diretor.
Fundamentos da Direo Teatral: Mtodo da anlise ativa - fundamento da idia da regncia do espetculo; Romance da Vida como mtodo de aproximao
ao pensamento do autor pelo diretor; tema, idia e problema da obra; conflito da
pea e circunstncias; anlise dos acontecimentos da obra; objetivos,
superobjetivo e linha transversal de ao da obra e personagens como noo
bsica fundamental do sistema de K. Stanislvski.
Problemas da Direo Teatral na concretizao cnica da idia: natureza do sentimento do espetculo; resoluo do jogo cnico; atmosfera cnica; tempo e
ritmo da ao; resoluo musical, cenografia e iluminao do espetculo;
trabalho com os artistas de cenografia, iluminao, msica e indumentria.
Aulas sobre Direo do Drama: trabalho prtico como assistente no Curso de Direo Teatral com os estudantes, alm do programa estabelecido; trabalho
com tudes com fundamentos na literatura; criao sobre fragmentos de peas
dramatrgicas.
Aulas sobre maestria do ator: fundamentos da maestria do ator; princpios da psicotcnica do ator e suas tarefas; elementos e conformidades da ao cnica;
tarefas do ator em relao ao seu treino; acontecimento como unidade
fundamental e estrutural do processo da vida; tudes (exerccios de criao
cnica), como forma de domnio integral e natural da ao cnica; carter de
metamorfose do ator no processo de criao;
Aulas prticas de maestria do ator: trabalhos prticos como assistente no Curso de Atores Dramticos, com os estudantes, sobre fragmentos de romances e
dramaturgia na criao de tudes; pesquisa sobre psicotcnica do ator; foram
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ministradas por mim aulas de treinamento psicofsico com alunos do referido
curso e aulas abertas de treinamento psicofsico.
Aulas prticas de movimento cnico, estilo, rtmica, esgrima, acrobacia, luta, dana e palavra cnica em horrios livres, extracurriculares. Defesa prtica e
terica do trabalho: Plasticidade e Expresso do Movimento, pesquisa realizada
com os atores do Curso de Teatro Dramtico. Participao do elenco da
montagem Mandrgora, de Maquiavel (1469-1527), espetculo final do diretor
cubano Armando Crespo, aluno de Sulmov (1913-1994), Leningrado, URSS,
1980.
Apresentao do trabalho de Direo sobre a encenao do conto de V. Chukchin (1929-1974) Lgrimas de Kuko cumprindo as etapas de estudo e
aproximao da obra do autor; anlise de direo da encenao; trabalho de
criao sobre os fragmentos da obra pelo mtodo da anlise ativa para a
realizao da idia.
Assisti a todo o processo de criao, desde o incio dos ensaios at a estria, dos espetculos Lobos e Ovelhas, de A. N. Ostrovski (1823-1886), e Tragdia
Otimista, de V. Vichnevski, direo de G. Tovstongov, no Bolshoi Teatro
Dramtico M. Gorki.
Realizei pesquisas sobre o cinema novo brasileiro, no setor de cinema do LGITMiK, resultando no projeto Ideologia - Viso Artstica Fundamental do
Cinema Novo Brasileiro, que propunha a inter-relao entre a moderna
literatura brasileira e o cinema novo brasileiro. Projeto apresentado para
ingresso em doutorado em Moscou, no Instituto de Literatura Mundial Gorki,
na especialidade de Literatura Latino-Americana, na ctedra de I. A. Terterian, a
qual aceitou ser minha orientadora.
Em dezembro de 1981, fui obrigada a voltar ao Brasil, por no ter conseguido
naquele momento uma fonte financiadora para bolsa de estudos de doutorado que me
mantivesse na URSS, mas ainda tinha expectativas de um retorno em breve, o que no
aconteceu.
O panorama teatral no Brasil, mais especificamente em Porto Alegre, depois de
trs anos e meio de ausncia, se apresentava para mim, em termos profissionais, com
poucas perspectivas, sem falar em termos polticos e emocionais, no entanto era preciso
comear por alguma parte. O preconceito relacionava-se a fatores diversos: ao pas no
qual havia adquirido o conhecimento, a minha posio ideolgica e, sobretudo, a K.
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Stanislvski, que era visto com suspeita, tachado de psicologismo e ultrapassado.
Todos os cursos em voga na poca faziam questo de anunciar que no seguiam a
tendncia psicologizante do sistema stanislaviskiano. A sobrevivncia precisava ser
garantida e, enquanto no surgia algum trabalho, vendia gelatinas para iluminao
trazidas, algumas centenas, da URSS, como tambm trabalhava temporariamente para
a Secretaria de Turismo em pesquisas de opinio pbica.
Por outro lado, dei incio no MEC ao processo de reconhecimento do curso feito
no exterior, o qual foi se arrastando de universidade em universidade at voltar s
minhas mos depois de mais de dez anos, sem obter nenhum resultado. O curso nunca
foi reconhecido e no me trouxe qualquer ascenso na carreira acadmica, nenhuma
pontuao em concursos pblicos nem vantagem financeira.
Em maro de 1982, um ex-colega convidou-me para dirigir um espetculo a
quatro mos, com o texto Yerma, de F. Garcia Lorca (1898-1936). Procurei, na medida
do possvel, dentro do espao que me era permitido, aplicar os ensinamentos que havia
recebido, tanto no que tange ao ator quanto ao diretor.
Na seqncia, passei a trabalhar com amadores ligados a uma entidade de
classe, o que me obrigou a exercitar e transmitir na prtica os conhecimentos
adquiridos. Junto ao grupo eram desenvolvidos os elementos do sistema, a
capacidade de improvisao e o treino corporal. O grupo tinha como objetivo principal
a comunicao direta e imediata atravs de esquetes, intervenes e performances.
Diante dessas caractersticas do coletivo e de suas aspiraes em relao ao teatro, foi
proposta a encenao do texto de Tchekhov O Aniversrio do Banco. Essa montagem,
totalmente despida de qualquer pretenso cenogrfica, se sustentava, sobretudo, na
capacidade de improvisao do elenco, era apresentada em comunidades e sofreu
inmeros desdobramentos.
Em 1983, Maria Helena Lopes, diretora teatral conhecida nacionalmente, que
havia sido minha professora na universidade, convidou-me a fazer parte do elenco do
espetculo Crnica de uma cidade pequena, inspirada na novela de Gabriel Garcia
Marques (1928- ), Crnica de uma morte anunciada. Maria Helena, que considera
Eugnio Kusnet e J. Lecoq (19211999) seus mestres e trabalha com a improvisao
como meio para a criao, me propiciou a oportunidade de poder avaliar e dimensionar
o conhecimento adquirido sobre o sistema de K. Stanislvski. Apesar de no ter
continuado no elenco at a apresentao pblica, a participao no processo de criao
da referida montagem foi altamente enriquecedora, pois vinha afirmar pontos relevantes
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sobre o jogo cnico e a metamorfose do ator, o que trazia confiana sobre os
conhecimentos recebidos.
Fortalecida em minhas convices e conhecimentos, passai a ministrar um curso
de preparao de atores em que era desenvolvido o mtodo das aes fsicas de K.
Stanislvski, em Estgios I e II, de agosto de 1983 a dezembro de 1984, em Porto
Alegre.
Nesse mesmo perodo, participei como diretora de atores da montagem Antonio
Chimango, adaptao do poema homnimo de Ramiro Barcelos (1851-1916), com o
grupo que j vinha desenvolvendo os elementos do sistema, treinamento psicofsico e
improvisao. Tambm com o mesmo diretor e parte desse grupo, foi realizada a
montagem de Macbeth, de Shakespeare, na qual participei como diretora de atores
(1998/9).
Assumi a organizao de um pequeno grupo de atores, oriundos dos cursos
ministrados por mim e procedentes das montagens das quais participei, para a
encenao do espetculo Boca de Luar, (1996/7) inspirado nas crnicas de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), na obra de mesmo nome. Na montagem, atuei
como diretora e dramaturga, nesta na qualidade da adaptao da obra literria para a
forma teatral.
Ingressei na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1985, na rea de
Artes Cnicas, na categoria de professor auxiliar, pois, alm da graduao, s tinha o
reconhecimento de um curso de especializao em Sociedade, Poltica e Cultura da
Amrica Latina, oferecido pela UFRGS (1984). O Curso de Artes Cnicas da UFSM,
na poca, era o de Educao Artstica Licenciatura Plena em Artes Cnicas, extinto em
1994. Nesse curso, ministrei as disciplinas de Encenao, Tcnicas de Teatro e Dana,
Laboratrio de Pesquisa Dramtica, Evoluo do Teatro e Dana, Prtica de Ensino,
Metodologia de Ensino em Artes Cnicas.
Em 1992, inicia-se o processo de estruturao e elaborao do Curso de
Bacharelado em Artes Cnicas, opo em Direo e Interpretao Teatral, do qual
assumi a coordenao. O currculo que entrou em vigor em 1994 foi construdo sobre
uma base comum para ambas as opes: as disciplinas prticas, como Encenao I a VI,
para o ator, e at VIII, para o diretor, Tcnicas de Representao I a VI, para o diretor, e
at VIII, para o ator, Laboratrio I a VIII, para ambos, Expresso Corporal e Vocal I a
IV, para ambos, Tcnica de Montagem I a IV, para ambos, e as disciplinas tericas
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sendo iguais para os dois cursos. O mtodo de anlise ativa ocupou o lugar de centro
unificador do processo de educao e formao do artista como um todo.
Apesar do corpo docente, em seu conjunto, originar-se de diferentes formaes,
com alguns professores provenientes do prprio curso, os quais haviam sido meus
alunos, havia alguns princpios bsicos em comum sobre a arte do ator e do diretor que
possibilitavam a troca de experincias que enriqueciam a todos. Esse entendimento
comum nos levava a realizar projetos que envolviam grande parte das disciplinas
prticas e algumas tericas, em que professores e alunos passavam por uma experincia
unitria.
Aqui citarei alguns projetos interdisciplinares, com carter de ensino, pesquisa e
extenso, os quais envolviam grande parte dos professores, em que foi aplicado o
mtodo de anlise ativa, na anlise do material textual e no processo de criao. So
eles:
A montagem Mokimpot, de Peter Weiss (1916-1982), na qual atuei como assistente de direo e no processo de anlise do texto, cuja pesquisa de
linguagem era sobre o clown e o bufo.
A criao do espetculo Manantiais, uma saga da cultura gacha, tendo como base para a criao contos e lendas de Simes Lopes Neto (1865-1916), Barbosa
Lessa (1929-2002) e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), aglutinava
professores e alunos do curso de Artes Cnicas na sua pesquisa, criao e
produo. Na preparao do elenco, foram conjugadas e compartilhadas vrias
experincias e referncias dos professores, como a do sistema de K.
Stanislvski, Meyehrold, Laban (1879-1958), Grotowski (19331999), Lecoq,
Barba (1936- ), em que o mtodo de anlise ativa, atravs da anlise do material
textual e a tcnica de improvisao, serviu como base no processo de criao.
Assumi nessa montagem a assistncia de direo e a criao do roteiro, o qual
possua uma estrutura que entrelaava o real e o fantstico, imagens mticas e
histricas, presente e passado. Na seleo do material literrio para a criao
dos acontecimentos pelos atores e na sua estruturao em espetculo, foi
utilizada a anlise da ao, que se constituiu num slido caminho para a
organizao do vasto e complexo material produzido pelas improvisaes e
pesquisa de campo, o qual teve o seu entrelaamento produzido nos mltiplos
nveis da narrativa do espetculo.
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A montagem de Os Tambores Silenciosos, romance de Josu Guimares (1921-1986), em que, alm de atuar como assistente de direo, coordenei a equipe de
dramaturgia, na adaptao do texto literrio para o teatral, que passava pelo
processo de seleo de fragmentos e circunstncias da obra e que se concretizava
em acontecimentos atravs de improvisaes, para serem estruturados no
roteiro final.
A Construo de uma Dramaturgia de Imagens a partir dos Poemas de Sam Shepard (1943- ), projeto em que realizei a anlise da ao dos poemas, a
revelao de seus acontecimentos imersos na palavra potica, as circunstncias,
a idia, o superobjetivo e a ao transversal. Esses elementos serviam de suporte
para a criao, por meio da improvisao, na busca de imagens que revelassem o
contedo atravs do potico, em que a palavra s podia surgir como resultado da
ao concreta e podia ser usada em sua totalidade, em parte ou estar ausente.
O projeto de pesquisa e criao do espetculo O Nariz, de Gogol, em que realizei a anlise geral da obra e de fragmentos do texto literrio, escolhidos
pelo aluno, destacando que a anlise, sem perder a viso de totalidade da obra,
estava na dependncia da escolha de cada fragmento, isto , o desenvolvimento
dramtico era relativo ao momento do incio e do fim da parte selecionada.
Essa escolha de fragmentos gerou inmeras anlises e processos de evoluo
dramtica dos acontecimentos. As criaes individuais, em que todos os alunos
tinham de dirigir um fragmento e tambm atuar em outros, possibilitaram vasto
material criativo que passou por um processo de sistematizao e montagem
resultando no espetculo.
A participao, como co-orientadora, em projetos que aglutinavam algumas disciplinas afins, nos quais se propunha a criao, com base na aquisio de
tcnicas e estilos especficos do Bufo, do Clown e da Comdia
DellArte, contedos esses transmitidos pela professora doutora Ins Marocco,
do departamento de Artes Cnicas, a qual os havia adquirido na Escola Jaques
Lecoq, me levou a assumir a funo de responsvel pela anlise ativa do
material textual. Atualmente a referida professora est lotada no Departamento
de Arte Dramtica da UFRGS e atua na disciplina de Direo Teatral, na qual
utiliza o mtodo de anlise ativa com seus alunos, adquirido atravs das
experincias compartilhadas nos projetos.
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Nas disciplinas de Encenao, o conhecimento do mtodo para a anlise do
material textual se dava na disciplina de Encenao III, a qual sempre esteve sob minha
responsabilidade. Essa ordem do contedo, no processo de aquisio do conhecimento
prtico-terico do mtodo, se dava por entendermos que o aluno j deveria ter passado
pela experincia com as aes fsicas com objetos imaginrios e a criao do pequeno
ncleo dramtico atravs de improvisaes. Essas improvisaes eram geradas a partir
de temas oriundos de material ligado experincia pessoal do aluno, atravs do resgate
de suas memrias. Esse material, proveniente da prpria vivncia, levava o aluno a
mergulhar em suas razes e torn-las fonte de criao, na qual dava incio ao processo
de individualidade artstica.
Dentro desse processo evolutivo, j no terceiro semestre de encenao o recurso
aplicado para a transmisso do mtodo sempre foi a utilizao de material literrio,
essencialmente contos, por entendermos que esse recurso obriga o aluno a criar a partir
de uma estrutura da ao possibilitada pela anlise e no a partir do texto dramtico,
que j vem com o dilogo pronto. Esse procedimento, alm de afastar a tendncia
ilustrativa do texto, fora tanto o diretor quanto o ator a entrarem no ncleo da obra e
encontrarem solues individuais criativas na construo dos acontecimentos.
Aps ter transmitido os elementos e princpios fundamentais do mtodo de
anlise ativa atravs de um texto que eu considerava exemplar, didaticamente falando,
cada aluno elegia um conto de sua preferncia, devendo justificar sua escolha, suas
primeiras impresses sobre o mesmo e suas possibilidades cnicas. Esses aspectos
passavam pela verificao da anlise da ao por mim junto com o coletivo, podendo
ento iniciar-se o processo de criao. A disciplina tica e Esttica, tambm sob minha
responsabilidade, que s iniciava nessa etapa dos estudos, tambm ajudava a
estabelecer, atravs do estudo dos pesquisadores, diretores e diretores-pedagogos, os
princpios ticos e estticos e os mtodos que regiam as prticas desses produtores da
tradio teatral do sculo XX. Essas duas disciplinas se complementavam pois
levavam a dimensionar a importncia da individualidade artstica e as tendncias de
determinada esttica, como tambm possibilitavam obter a idia de conjunto da criao.
A fonte de experincia prtica com o mtodo de anlise ativa mais significativa,
alm da j mencionada, foi como orientadora da dramaturgia e/ou de espetculos,
atravs da orientao e/ou coordenao de projetos finais de montagem, tanto de alunos
de direo quanto de atuao. Foi utilizado o mtodo na criao de espetculos a partir
dos mais diversos textos literrios ou de dramaturgia de autores clssicos, modernos e
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contemporneos. Citarei somente alguns autores para no me alongar demasiadamente
em nessa exposio:
Eurpedes - dramaturgia, Sfocles - dramaturgia, Jean Genet - dramaturgia e
literatura, Beckett - dramaturgia e literatura, Nelson Rodrigues - dramaturgia, Plnio
Marques - dramaturgia, Oscar Wilde - dramaturgia e literatura, Pirandello - dramaturgia
e literatura, Ionesco - dramaturgia, Shakespeare - dramaturgia, Cervantes - dramaturgia
e literatura, Clarice Lispector - literatura, Hilda Hilst - literatura, Guimares Rosa -
literatura, Tchekhov - dramaturgia e literatura, Artaud - dramaturgia e literatura, Gogol -
literatura, Cortazar - literatura, Jean Jarry - dramaturgia, A. Dumas Filho -
dramaturgia, Ariano Suassuna dramaturgia, Edward Albee - dramaturgia, Kafka -
literatura, Albert Camus - literatura, Arrabal - dramaturgia, Frederico Garcia Lorca -
dramaturgia, Luis Fernando Verssimo - literatura, Buechner - dramaturgia, Brecht -
dramaturgia, Calderon - dramaturgia, Peter Weiss - dramaturgia, Borges - literatura,
Caio Fernando Abreu - literatura, Jean Cocteau - dramaturgia, Lya Luft - literatura,
Ligya Fagundes Telles - literatura, Cleber Laguna - literatura e dramaturgia .
Atualmente os professores, atores e diretores que concluram seus estudos
universitrios no Departamento de Artes Cnicas da UFSM, entre 1987 a 2001, e de que
tenho conhecimento, encontram-se atuando em escolas, em grupos de teatro
independentes, em secretarias de cultura e tambm em universidades do pas como
professores. Todos passaram pelo processo de conhecimento do mtodo em sua
trajetria de formao. Uns o assimilaram com maior paixo e domnio do que outros,
e a importncia que lhe atribuem, em seus trabalhos criativos ou pedaggicos, depende,
sobretudo, da individualidade artstica e pessoal de cada um, que foge de meu alcance.
Tenho acompanhado a trajetria de alguns atores e diretores que utilizam o
sistema, mais especificamente o mtodo de anlise ativa, em seu trabalho criativo, e
o consideram no s um meio para as suas produes artsticas mas tambm um
princpio orientador geral de suas prticas artsticas. Tambm tenho conhecimento de
inmeros alunos, que concluram, ingressaram ou esto ingressando em cursos de ps-
graduao, em mestrado e doutorado, no pas e no exterior, alguns atuando em
universidades com concluso de excelentes dissertaes e em processo de finalizao
de teses de doutoramento. Em muitas dessas dissertaes e teses, os objetos de estudo
esto ligados diretamente ao sistema de K. Stanislvski, enquanto outros, focalizam
o ponto de vista dos seus discpulos.
19
por essa formao e experincia aqui explicitadas que me sinto responsvel
em sistematizar esse conhecimento como uma contribuio para a rea teatral.
importante salientar que concretizei o projeto dessa tese em duas esferas, uma terica e
uma prtica, sendo que, na segunda, foi realizada a montagem do espetculo A Dcil, de
Dostoivski. Essa escolha, de realizar uma montagem, como parte do projeto, foi mais
um desafio a que me propus, pois, apesar de ter trabalhado com textos de autores
russos, sobretudo, Tchekhov, os quais somam mais do que dezenas, entre dramaturgia e
literatura, foi a primeira vez que trabalhei com o nada convencional, mas cnico,
Dostoivski.
Entendo que o sistema de K. Stanislvski forma uma totalidade que abrange
a teoria e a prtica da arte do diretor e do ator, tendo esse aspecto pautado a
investigao e composio da tese, onde essas duas esferas foram realizadas ao abordar
os problemas da cincia da arte teatral vinculados criao artstica. A profisso do
diretor apresenta dois lados fundamentais, que procurei teorizar nos captulos I e II, um
deles o de encontrar a chave para dar acesso idia da obra atravs da anlise da
ao, e o outro o de conseguir concretiz-la cenicamente pela ao psicofsica do ator.
O capitulo I tratar do mtodo da anlise ativa e da sua aplicao pelo diretor na
leitura do texto, esclarecendo no que consiste esse mtodo. Nele esto expostos os
processos de conhecimento da vida da obra, a criao do romance da vida das
personagens. So desenvolvidos os elementos essenciais para a anlise da obra pelo
diretor, como o superobjetivo, a linha transversal de ao, as circunstncias dadas. Esses so os elementos que possibilitam revelar a ao do texto, por meio da
valorizao e da seleo de seus acontecimentos conflituosos gerados pelas
circunstncias dadas. Segue-se a exposio de meu entendimento sobre o mtodo de
anlise ativa, objeto desse estudo.
O captulo II se compe de duas partes, sendo que, na primeira, so expostas as
leis da criao cnica, como exigncia fundamental do sistema, na formao do ator
criativo, para a utilizao do mtodo. O foco se d sobre os elementos do sistema para
a arte do ator considerados essenciais, como concentrao, imaginao, o se mgico,
f e sentido da verdade, relao, adaptao, liberdade muscular, tempo-ritmo. A
segunda parte deste captulo ser acompanhada da traduo, direta do russo, de
estenogramas das ltimas aulas-ensaios ministradas por K. Stanislvski sobre o novo
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mtodo, no Estdio de pera Dramtico, na anlise e criao do papel da pea Hamlet,
de Shakespeare, juntamente com uma introduo aos mesmos.
Completada a fundamentao terica e metodolgica sobre o recorte que fiz do
sistema, na apresentao da anlise ativa e dos elementos do sistema que considero
fundamentais para a criao por meio do mtodo, realizei, a segunda parte, que a
prtica e se compes do III e IV captulos e parte final.
O captulo III composto da anlise literria do texto Krtkaia (A Dcil), de
Dostoivski, em que, primeiramente, foram abordadas as impresses sobre a novela.
Nele tambm focalizaram-se alguns aspectos da imagem artstica na novela como:
composio, personagens, tempo, espao, mentalidade dos heris e arqutipos. Essa
investigao auxiliou na compreenso da vida da obra, de sua estrutura, das motivaes
e origem dos conflitos de suas personagens, como tambm na concepo da encenao
como um todo, na busca das imagens, signos e metforas concretas que possibilitaram
expressar a idia do espetculo.
O mtodo de anlise ativa foi aplicado, sobretudo, no captulo IV, por meio da
adaptao do texto literrio, original, Krotkaia para a encenao do espetculo A Dcil.
A anlise se d sobre o texto adaptado, seguindo a recomendao do mtodo, ou seja,
primeiro em seus acontecimentos gerais, seguindo-se a anlise da ao detalhada de
seus acontecimentos seqenciais. Na parte conclusiva da tese constam os procedimentos
utilizados no processo de criao e as consideraes finais sobre as potencialidades do
mtodo e do sistema, como um todo, para a leitura do Material textual e na criao
do espetculo pelo diretor e ator .
Devido abrangncia do sistema de K. Stanislvski, elegi os elementos que
considero fundamentais para o desenvolvimento da tese, portanto, ao longo do texto,
quando me refiro ao sistema, trata-se do recorte realizado para esse estudo.
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CAPTULO I
O ESTUDO DOS PRINCPIOS DE DIREO CNICA NA LEITURA DO
TEXTO A PARTIR DO MTODO DE ANLISE ATIVA
O mtodo de anlise ativa se apresenta, para mim, como o mais completo meio de trabalho com o ator, nos dias de hoje; ele representa o coroamento de muitos anos de investigao de Stanislvski no domnio da metodologia.9
No incio do sculo XX, as inquietaes sobre a especificidade artstica do
teatro, a sua linguagem, expressaram preocupao de todos aqueles que se dedicaram
seriamente a essa arte. K. Stanislvski se sobressai entre os artistas, pesquisadores e
pedagogos que se dedicaram a encontrar uma espcie de gramtica que pudesse dar
conta da complexidade da arte teatral e que, atravs dela, fosse possvel expressar a
vida do esprito humano.
As pesquisas desenvolvidas por ele durante toda a sua vida artstica, como
diretor, ator e pedagogo, as quais originaram o seu sistema, culminaram no mtodo
das aes fsicas. Como decorrncia deste, por meio de um processo constante de
investigao, preocupado em captar o impulso de vida que originou a criao do autor,
K. Stanislvski nos contempla com o mtodo de anlise ativa. O mtodo constitui-se
num paradigma do diretor teatral para a anlise da obra do autor, atravs da ao, e
um meio para o ator recriar, em seu sentido mais profundo, a atualidade da obra, dando
origem ao espetculo.
A anlise ativa consiste em um mtodo capaz de acionar o pensamento ativo e
criativo do diretor e do ator, gerando um processo de conhecimento da estrutura da ao
dramtica, que se complementa e concretiza na prtica atravs do processo de criao
do ator, envolvendo todo o seu aparato psicofsico. Esse mtodo de investigao da
obra, atravs da ao do ator e da sua estruturao pelo diretor, experimentado e
desenvolvido pelo prprio K. Stanislvski em seus ltimos anos de existncia, continua
a ser utilizado e em processo de desenvolvimento por seus discpulos diretos e indiretos,
como tambm adotado por artistas do mundo todo que obtiveram conhecimento do
mesmo. A eficcia do mtodo e sua flexibilidade tm possibilitado o desvelamento da
9 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.235, v.1.
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estrutura da ao em diferentes materiais textuais, respeitando o significado mais
profundo do texto, possibilitando, assim, uma criao original a partir da
individualidade do diretor e do ator.
A anlise ativa se coloca como um meio producente para o diretor conduzir o
processo criativo atravs da ao, princpio primordial do teatro. A investigao da
estrutura da ao, que se d na experimentao atravs da criao do ator, pode revelar
o impulso primeiro que originou a obra, possibilitando, assim, alcanar nveis
diferenciados entre texto e ao, que transcendem a mera ilustrao da palavra. A maior
ou menor complexidade de compreenso da ao dependem da relao dialgica que se
estabelece entre texto e sujeito que compreende e desvela a ao contida nele, por meio
da vivncia.
A investigao da ao do texto pelo mtodo de anlise ativa possibilita ao
diretor introduzir o ator direta e imediatamente na atividade produtiva com seu corpo e
sua mente, colocando-o como parte fundamental do processo criativo.
A importncia atribuda ao resgate do sentido primeiro do texto de importncia
fundamental para a criao teatral, pois nele que est contida a verdade que ainda
pode nos encantar e revelar algo sobre nossa atualidade, vivenciada no aqui e no agora
pelo ator. A arte verdadeira se caracteriza por ser portadora e geradora de vida por
conter um impulso vital sempre renovado em cada sujeito-leitor-espectador. O teatro
tem esse poder de renovao da vida a cada momento da apresentao de um
espetculo. O espectador participa, por identificao, desse fenmeno vital, que
alcanado quando o ator consegue a fuso orgnica do seu ser com a personagem e o
poeta.
A meta de K. Stanislvski, durante toda a sua vida, foi compreender e tornar
consciente esse mistrio da criao, pois, para ele, a verdadeira arte deve ensinar
como despertar conscientemente em si mesmo a natureza inconsciente, para a criao
orgnica supra-consciente.10
O sistema, resultado da investigao e inquietao de toda uma vida,
complementa-se com a sistematizao do mtodo de anlise ativa, que contm em si o
mtodo das aes fsicas. Este permanece em aberto como meio e possibilita chegar
essncia da obra dramtica, ao ncleo que determina o sentido da criao, a ao e
sua recriao pelo ator. Nesse processo promovido o desenvolvimento psicofsico
10 STANISLVSKI, K. Sobrnie sotchinni v 8 tomakh, 1954-1961. Moi jizn v isksstve (Minha vida na arte). Tomo 1. Moscou: Iskusstvo, 1954, p.406.
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integral do ator, em seu papel, resultando no espetculo, uma unidade da criao do
autor, do diretor e do ator.
Grotowski11 (1933-1998) assinala dois princpios nos quais fundamenta seu respeito por K. Stanislvski.
O primeiro foi sua auto-reforma permanente, o seu contnuo submeter discusso o trabalho, as suas etapas precedentes.[...] O segundo motivo pelo qual respeito Stanislvski pelo seu esforo em pensar a base daquilo que prtico e concreto. Como tocar o que no tangvel? Quis encontrar as vias concretas sobre o que secreto, misterioso. No os meios, contra os quais lutava e chamava de padres, mas os caminhos.12
K. Stanislvski, com o mtodo de anlise ativa, concretiza o ideal das buscas
artsticas e metodolgicas de seu sistema, que sempre foi o de possibilitar a formao
de um ator que ultrapassasse a mera interpretao de um texto, que participasse
ativamente do processo de criao, sendo resgatada a sua individualidade como sujeito
criativo, atravs de sua especificidade artstica.
Tovstongov13 fala da evoluo constante que sofreu o sistema, o que
testemunha no a contradio muitas vezes apontada, mas a coerncia de K.
Stanislvski em seu processo de investigao, que se d na seguinte ordem: o
pensamento como fator primordial do processo criativo, com o qual chegou ao subtexto;
o monlogo interior, onde o carter humano se revelava principalmente atravs do
intelecto. Como despertar no ator os sentimentos no processo de existncia cnica da
personagem? Desde o incio, a emoo foi sempre algo derivado; o ator que confia na
inspirao e no subconsciente da criao cai no clich; preciso confiar na evocao
consciente, deliberada das emoes necessrias; o fator volitivo, a vontade, produz as
emoes necessrias e leva a resultados corretos que correspondem aos conceitos de
objetivo e ao total, que ainda hoje mantm validade.
11 Jerzy Grotowski, polons, diretor e investigador de teatro. Influenciado pela tcnica das aes fsicas de Stanislvski, a biomecnica de Meyerhold e o teatro oriental. Dirigiu o teatro-laboratrio de Wrclaw, definido como teatro pobre e focado na relao ator/espectador. Em 1986 fundou o Centro de Pesquisa e Experimentao Teatral de Pontedera, na Itlia, onde em seu ltimo perodo buscou desenvolver prticas, tcnicas e metodologias criativas ligadas ao seu trabalho, chamado A arte como veculo, no qual investigava os processos ligados aos cantos antigos. 12 JIMENEZ, S. (org.) El Evanagelio de Stanislvski segun sus apostoles, los apcrifos, la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote. Mxico: Gaceta, 1990, p.492. 13 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.236, v.1.
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Toda essa evoluo foi confirmada e comprovada por um processo criativo
realizado nos estdios o qual levou K. Stanislvski a formular as leis da atuao cnica
constantes de seu sistema. Todas essas verdades do sistema foram amplamente
reconhecidas atravs da qualidade artstica dos atores e dos espetculos do TAM, nos
quais, para a sua criao, na primeira etapa era utilizado o chamado ensaio de mesa,
em que, por meio de uma cuidadosa anlise da idia, das personagens, dos objetivos e
superobjetivo, compreendiam intelectualmente a obra, para s numa segunda etapa
passarem para o espao cnico e atuarem. K. Stanislvski, sempre inquieto em relao
aos resultados artsticos de suas investigaes, percebeu o papel preponderantemente
ativo do diretor nesse processo da criao, enquanto que ao ator era relegada uma
posio passiva. Constatado esse perigo, ele percebeu outro, que consistia no
desenvolvimento no-integral do psicofsico do ator. Diz Tovstongov:
A Stanislvski preocupou-lhe muito a falta de uma oportunidade para o desenvolvimento harmonioso, completo, de todo o aparato do ator, o psquico e o fsico, durante o processo de criao, tanto que se ps a revisar todo o seu sistema e, pouco antes de sua morte, desenvolveu um novo sistema, mais tarde recebendo o nome de mtodo de anlise ativa. Stanislvski chegou concluso de que somente a reao fsica do ator, a cadeia de suas aes fsicas, a ao fsica na cena estimulam a razo e a vontade, e evocam, em ltima instncia, tal emoo, o sentimento, graas ao qual existe o teatro. Havia descoberto finalmente o estmulo bsico no processo que conduziria o ator do consciente ao subconsciente.14
Angel Ruggiero15 (1946-1992) tambm fala sobre as aparentes contradies no
desenvolvimento do sistema, quando K. Stanislvski inverte o conceito crer para agir
e o transforma em agir para crer, o que o leva a mudar os procedimentos dos ensaios.
[...] Com relao anlise de mesa, Stanislvski no se contradisse. Simplesmente, descobriu que o momento de faz-lo devia ser outro. No no comeo do trabalho do ator, mas no momento adequado, depois que o ator, em temperatura, tivesse encontrado o essencial de sua personagem e das situaes. ento, que a anlise de mesa cobra importncia, e serve para que o ator aprofunde sua busca e no se paralise. Aqui, longe de encontrar uma contradio,
14 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.237, v.1. 15 Angel Ruggiero, de origem argentina, exilado na Espanha, se formou com o diretor Raul Serrano em Buenos Aires. Realizou sua vida profissional como professor, ator e diretor em Madri. Vinculado ao teatro independente, foi um dos fundadores do grupo La Quarta Pared.
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encontramos uma reafirmao do conceito, porm uma modificao do uso no tempo do mesmo.16
Ele conclui que, com essa mudana, K. Stanislvski mostra-nos a lei do
desenvolvimento do processo criativo do ator, que a lei do desenvolvimento do objeto
de sua investigao, a personagem. A importncia do mtodo enquanto atividade
interativa e criativa do diretor e do ator no processo de criao do espetculo,
confirmada pelos seus discpulos, que aplicaram o mtodo em suas inmeras criaes e
no seu processo pedaggico.
1. ELEMENTOS DO SISTEMA PARA A ANLISE DO TEXTO
Antes de entrar nos procedimentos da anlise da obra, ser definida e esclarecida
a terminologia de alguns elementos que a compem, como superobjetivo, linha
transversal de ao e circunstncias dadas.
Superobjetivo
K. Stanislvski, em seu sistema, avaliou que as foras motrizes da vida
psquica: mente, vontade e sentimento, possuem o poder de mobilizar todas as foras
internas da criao, ou seja, ativam todos os elementos da ao, que conduzem para o
cerne da obra, para o objetivo essencial do autor, do diretor e do ator. O objetivo
principal do diretor e do ator, atravs do espetculo, transmitir todo o material
espiritual que o autor reflete na obra, as idias, os sentimentos, os sonhos, as alegrias e
as dores. Esse fim essencial, que levou o autor a escrever a obra, foi chamado de
superobjetivo, e ele que movimenta todas as foras psquicas, elementos, aes e
atitudes dos atores em suas personagens.
Consideramos que o superobjetivo um dos elementos fundamentais do
sistema para a atitude do diretor diante da anlise da obra, para a concretizao do
espetculo e para o ator na criao do papel.
G. Tovstongov considera que:
A idia mais importante de todas no sistema de Stanislvski a do superobjetivo, tal como ele chamou o sentido principal de uma obra dramtica. No trabalho sobre o espetculo a principal
16 REVISTA MSCARA. Stanislvski, Esse Desconocido. Ano 3, nmero 15. Mxico, D.F.: 1993, p.75.
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preocupao de Stanislvski era a de encontrar um verdadeiro e absorvente superobjetivo, que subordinasse a totalidade da montagem.17
Salienta ainda que K. Stanislvski ampliou o conceito de superobjetivo com o
de super-superobjetivo, o qual contempla a totalidade da vida do homem-artista, toda
a atividade do autor, diretor e ator e possibilita ligar a individualidade artstica com os
problemas de importncia fundamental na contemporaneidade, fazendo que autores
clssicos tenham voz no mundo atual, unindo os pensamentos e os sentimentos dos
autores, diretores, atores e do espectador num s impulso.
K. Stanislvski18 fala desses vitais propsitos do artista e do ser humano, que
podem ser chamados de objetivos supremos e de linhas supremas da ao. D um
exemplo real de sua vida, que ilustra a origem do super-superobjetivo e da super-linha
transversal de ao e como surgiu nele essa idia e necessidade como artista e
cidado: ao ver uma multido que esperava numa fila durante toda noite, debaixo de
neve, para comprar ingressos no dia seguinte, arriscando a sade e at a prpria vida, foi
levado pelo desejo de criar um objetivo to elevado que contemplasse toda a sua vida
como artista e homem, que correspondesse ao seu objetivo supremo na vida e ao seu
cumprimento, a linha suprema de ao, os quais foram chamados por ele de super-
superobjetivo e super-linha transversal de ao.
O superobjetivo deve conter a idia do autor, que surge do seu contedo mais
profundo, pressupondo um mergulho no universo espiritual do escritor, em suas idias,
nos motivos impulsores de sua obra. O superobjetivo do autor a finalidade principal da
obra. Por isso na sua definio deve estar contemplada a universalidade da mesma. O
trabalho criativo do diretor e do ator, quer seja a partir de uma obra dramtica, quer
literria ou de outro material textual, deve orientar-se pelo superobjetivo.
Para Maria Knbel19 (1898-1985), a definio do superobjetivo a principal
incumbncia dos diretores e atores para concretizar na cena as idias e sentimentos do
dramaturgo, os quais o fizeram escrever a obra. Ele atrai para si todas as tarefas que
17 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.40, v.1. 18 STANISLVSKI, K. Sobrnie sotchinnii v 8 tomakh, 1954-1961. Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi v tvrtcheskom protssse perejivnia (O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre si mesmo no processo da criao da vivncia). Tomo 2, Moscou: Iskusstvo, 1954, p.341. 19 Maria Knbel, aluna de Stanislvski no 2 Estdio e atriz do TAM. Em 1936 foi convidada a trabalhar no Estdio de pera Dramtica. Pedagoga do GITIS (atual Academia Russa de Arte Teatral GITIS), diretora teatral e autora de inmeras obras sobre o sistema de Stanislvski.
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mobilizam as foras internas, como o intelecto, a vontade e o sentimento, e as externas,
como as aes, as atitudes e os elementos sensoriais do ator para com o seu
personagem. O que possibilita a realizao do superobjetivo da obra pelo ator o seu
correto entendimento do papel.20
K. Stanislvski, em toda a sua vasta obra, no cansou de reforar a importncia
do superobjetivo no trabalho do ator, na criao do papel. Ele afirma que a mxima
proposio dos grandes autores dramticos oferecer um objetivo emocional para o
trabalho do ator que carregue todos os diversos elementos da obra e do papel: Tudo o
que ocorre na obra, todas as tarefas isoladas grandes ou pequenas, todos os
pensamentos e aes do artista relacionados com a criao e o papel tendem a
concretizar o superobjetivo.21
Para ele, a qualidade da obra e o poder de atrao do superobjetivo tornam a
aspirao real, humana, ativa, como uma artria que alimenta todo o organismo do
artista e da personagem.
K. Stanislvski22 declara que o superobjetivo consciente imprescindvel.
Aquele que nasce da emoo estimula toda a personalidade do artista, ele to
necessrio como o alimento. E aquele que nasce da vontade essencial, pois arrasta
todo o nosso ser fsico e espiritual.
O superobjetivo para o papel deve vir do autor, mas deve ressoar na alma do
ator. O superobjetivo gera desejo para a sua realizao, estimula a imaginao criativa,
absorve nossa ateno, satisfaz o sentido da verdade, desperta a f e os demais
elementos da atitude do ator. Deve ser fundido com a sensibilidade do ator, converter-se
em algo prprio, encontrar a essncia interior do ator. O superobjetivo deve estar
estreitamente unido ao plano do subconsciente.
A busca do superobjetivo exige tempo, ateno e investigao profunda na obra
do autor e deve repercutir no esprito do ator. Sobre essa lenta assimilao do
superobjetivo por parte do ator, Nemirvitch-Dntchenko23 (1858-1943) diz que:
20 KNBEL, M. O. El ltimo Stanislvski, Anlisis Activo de la Obra y el Papel. Madrid: Editorial Fundamentos, 1999, pp.51-53. 21 STANISLVSKI, K. Sobrnie sotchinnii v 8 tomakh, 1954-1961. Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi v tvrtcheskom protssse perejivnia (O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre si mesmo no processo da criao da vivncia). Tomo 2, Moscou: Iskusstvo, 1954, p.333. 22 Ibidem, p.334. 23 Vladimir I. Nemirvitch-Dntchenko, fundador do Teatro de Arte de Moscou, dramaturgo, pesquisador, pedagogo e diretor teatral.
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Uma semente ao cair na terra germina, porm ao preo de sua prpria decomposio, e exatamente o mesmo ocorre com a obra de um poeta ao penetrar na alma artstica, j que desperta sua criatividade, porm ao fazer isso morre dentro dela.24
Como j foi dito, a definio do superobjetivo exige um difcil processo de
investigao que mobiliza no s o intelecto, mas os sentimentos e a vontade do diretor
e do ator, e K. Stanislvski determinou que fosse nomeado por um verbo de ao para
reforar o mpeto de desejo ardente da criao. A preciso do nome, da ao que este
encerra, depende da orientao e do enfoque da obra. A ampliao do superobjetivo, ou
seja, a sua universalidade, no plano humano, social e filosfico d obra um contedo
mais profundo.
O superobjetivo universalizado amplia e aprofunda o sentido da obra. K.
Stanislvski25d, entre outros, o exemplo do superobjetivo em Hamlet, que se for
determinado assim: quero honrar a memria de meu pai tem a conotao de um
drama familiar. Mas se for: quero conhecer o sentido da existncia, resulta numa
tragdia mstica, na qual o homem que vislumbrou para alm da vida j no pode deixar
de resolver essa questo. E acrescenta outro mais amplo: quero salvar a humanidade,
que amplia e aprofunda ainda mais a tragdia.
A eleio das palavras que nomeiam o superobjetivo de suma importncia para
a arte e a tcnica do ator, e para a orientao do espetculo como um todo. A escolha
errada pode levar o ator expresso de sentimentos, que o levam passividade e ao
clich. So numerosos os exemplos extrados de sua experincia pessoal no papel que o
mestre nos d desse perigo. Aqui citaremos o da obra Mirandolina de Goldoni (1707-
1793), em que o superobjetivo da obra eleito foi: a dona de nossas vidas a mulher
Mirandolina, a dona da pousada. Esse s foi formulado, mais corretamente, depois de
ter sido corrigido o do papel, no qual K. Stanislvski representava o misgeno, pois
tinha como superobjetivo: quero evitar s mulheres. Ao perceber a paralisia da
personagem, a falta de humor e ao, compreendeu que o heri amava as mulheres e
que sua atitude era fingida e