Upload
buinga
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
TESES SOBRE
A LINHA SINDICAL
– III Congresso da Refundação Comunista –
Brasil, 30 de agosto de 2015
Comitê Central da RC/Brasil
2
“Encheu, minha Marília, o grande Jove de imensos animais [...] as terras [...]. Para sua defesa, a todos deu as armas, que convinha, a sábia natureza. [...] Ao homem deu [...] dedos ligeiros, que podem converter em seu serviço os ferros e os madeiros; que tecem fortes laços e forjam raios [...].”
Tomás Antônio Gonzaga “Decerto, o movimento político da classe operária tem como fim último a conquista do poder político; para tanto, é neces-sário sua prévia organização, que se desenvolve a partir das próprias lutas econômicas, até certo nível. [...] Ademais, todo movimento em que a classe operária, como classe, enfrenta as classes dominantes e tenta pressioná-las de fora é um movimento político. Por exemplo, a tentativa de impor, a capi-talistas isolados, a limitação da jornada de trabalho em uma só fábrica ou em apenas um ramo de produção, mediante greves etc., é um movimento puramente econômico; em con-trapartida, o movimento voltado à imposição de uma lei sobre as oito horas etc. constitui um movimento político [...], quer dizer, um movimento da classe para impor seus interesses sob a forma de uma norma geral, socialmente obrigatória.”
Karl Marx “[...] a consciência das massas operárias não poderá ser uma verdadeira consciência de classe se os operários não apren-dem a aproveitar os fatos e acontecimentos políticos concre-tos da atualidade ardente para observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações de sua vida inte-lectual, moral, política [...]; para bem conhecer-se, a classe operária deve ter uma consciência precisa das relações recí-procas de todas as classes da sociedade contemporânea, conhecimento [...] fundado na experiência da vida política”.
Lênin
3
Sumário
I – O trabalho como protoforma da atividade humana e da organização social
II – A substância, o caráter e o papel do movimento sindical
III – A origem do movimento e da forma sindical no mundo
IV – A trajetória do sindicalismo a partir do Outubro Vermelho
V – Os primeiros passos do movimento sindical no Brasil
VI – O movimento sindical brasileiro de 1945 em diante
VII – O proletariado como ser social e seu perfil contemporâneo
VIII – A base social do movimento sindical no Brasil
IX – Trabalhadores proletários e pequeno-burgueses
X – O direito do trabalho e seu lugar na luta de classes
XI – A burguesia declara guerra aos direitos trabalhistas
XII – Sindicato de classe, de massas, de lutas, representativo, unitário e autônomo
XIII – Princípios, diretrizes e plataforma do movimento sindical
4
I – O trabalho como protoforma da atividade humana e da organização social
1 - O gênero humano é um ser social, pois seus membros convivem, conscientemente, nos
laços da organização societária, mesmo que seus objetivos e percepções possam dar-se nos mais
elementares níveis da prática. Logo, é composto por animais que já emergiram do mundo pura-
mente natural, passando a manter uma relação estreita e cooperativa com seus semelhantes. Ao
longo da história, desde o início, construiu extensas redes de convivência por meio do trabalho,
práxis que começou transformando a natureza em função de suas necessidades vitais, como ali-
mentação, habitação e proteção em face das intempéries. A linguagem é a comprovação mais efe-
tiva de que os seres humanos têm a obrigação intrínseca e objetiva de existir em interação com os
outros. Eis por que a produção e a reprodução de suas vidas ocorrem através do labor, isto é, pela
capacidade de gerar algo novo a partir, sempre, de sua relação com a exterioridade mineral, orgâ-
nica e social.
2 - A invenção da roda articulada com eixo central – componente ou equipamento inexisten-
te no ambiente natural, anteriormente só encontrado, nos reinos mineral, vegetal e animal, em for-
mas circulares assemelhadas e sem qualquer função econômico-social, mas inicialmente incorpo-
radas em gestos e desenhos culturais – revolucionou a atividade humana, criando novas possibili-
dades intencionais para o translado de produtos ou pessoas e para a elaboração de ferramentas
ou máquinas. Trabalhar, portanto, significa utilizar capacidades físicas e mentais para concretizar
um propósito previamente pensado. Somente ao colocar em movimento sua força laboral, com vis-
tas à criação de algo útil para atender a um carecimento qualquer, o agente transforma uma subs-
tância bruta – tal qual se encontra disponível na exterioridade – ou derivada e a submete ao seu
serviço, imprimindo-lhe sua teleologia. Assim, realiza, nas matérias-primas, o fim a que se propôs:
gerar um novo produto, agora mais elaborado, capaz de atender às suas necessidades, fundamen-
tais ou acessórias, elementares ou complexas, urgentes ou de prazo dilatado.
3 - A força de trabalho é muito mais do que a mera utilização de capacidade física, pois en-
volve também a mobilização de faculdades intelectuais como experiências, sensações, memórias,
intuições, conhecimentos, habilidades, persistência e foco. Semelhantes aptidões, vulgarmente
mistificadas e coisificadas sob o nome de “inteligência” ou “dom”, foram forjando-se no longo pro-
cesso de produção e reprodução da existência, à custa de infinitas tentativas, com fracassos e su-
cessos, muitas vezes obrigando o executor da ação a tomar decisões contra sua própria intenção
anterior, “sob o risco da ruína”. Na maioria das vezes, o indivíduo, isoladamente ou em grupo, é
impulsionado – por circunstâncias já encontradas e à revelia de sua vontade, vale dizer, empurrado
por condições objetivas – a trabalhar em determinada direção, embora não raro pense que age por
ato incondicionado e completamente livre.
4 - Assim, a pessoa, considerada como partícula isolada, não tem absoluta autonomia para
imprimir no mundo a sua teleologia, nem como finalidade, nem como processo, nem como forma.
5
Para que sua ação possa ter eficácia, é imprescindível que conheça e se aproprie da realidade ob-
jetiva e concreta, descobrindo suas propriedades e seus nexos causais. Trata-se de desvelar, em
cada circunstância, aqueles vários elos e relações passíveis de serem movidos e direcionados pelo
propósito previamente estabelecido. Há, pois, a instalação de uma articulação unitária entre idea-
ção e realidade. Sem tal enlace coeso e coerente, a finalidade permaneceria vazia e abstrata, con-
vertendo-se em mero desejo elementar ou em simples obrigação moral, fechando-se às possibili-
dades produtivas da razão e ao processo em realização. Assim, recaindo no estado coisificado que
descaracteriza qualquer força humana, os atributos e propriedades inerentes à substância continu-
ariam a mover-se ao ritmo da reprodução como necessidade “natural”, sem a intervenção conscien-
temente protagonizada pelo ser do trabalho.
5 - Como captou Marx, em trecho de importância teórica inestimável, “A natureza não cons-
trói nenhuma máquina, nenhuma locomotiva, trens [...]. Eles são produtos da indústria humana [...].
São órgãos do cérebro humano produzidos pelas mãos humanas”. Poucos anos depois, o mesmo
autor confirmou e destacou a teleologia como diferença decisiva entre o trabalho humano e as for-
mas de atividade sobre a natureza, realizadas pelos demais animais, mesmo por aqueles que, ao
agirem com instintos mais elaborados, conseguem fazer estruturas formais desenvolvidas e sur-
preendentes: “uma aranha executa operações semelhantes àquelas levadas a cabo pelo tecelão; a
construção dos favos de mel pelas abelhas poderia envergonhar, pela sua perfeição, muitos mes-
tres de obras”. Todavia, concluiu, “Esse último supera o melhor das abelhas; é que antes da cons-
trução ele elabora o objeto em sua mente”.
6 - Semelhante passagem capta, de maneira eloquente, a natureza essencial de quaisquer
atividades humanas produtoras de novos objetos, simultaneamente à transformação interna do
próprio agente da mudança. Mostra por que, no trabalho, surge algo mais que um bem, de vez que
o produtor, ao criar uma realidade externa, deixou de ser internamente o mesmo: sua consciência
se enriqueceu no exercício da práxis laboral, seja adquirindo novos conhecimentos, seja utilizando
criativamente as propriedades da matéria-prima em que impregna sua vontade, anteriormente des-
conhecidas, despercebidas ou mal captadas. Nesse ato, aparentemente simples e cotidiano, mani-
festa-se o embrionário processo constitutivo de todas e quaisquer intervenções humanas, inclusive
nas esferas do Estado, da política e no movimento sindical. Da produção mais elementar até as
elaborações espirituais mais elevadas, todas se nutrem dos elementos universais da práxis, já pre-
sentes no processo de trabalho.
7 - Tal assertiva inclui também as ideologias, que orientam os indivíduos, agrupamentos e
classes a agirem com certos anseios e em determinadas direções, a partir do domínio intelectual
sobre as circunstâncias a serem conservadas ou transformadas. Nesse processo, inerente tão so-
mente à atividade humana, a ideação assume um papel essencial no feixe do complexo determi-
nante, de vez que arbitra ou estabelece previamente o projeto a ser concretizado, assim como a
sua forma, as propriedades do material básico e os meios mais adequados à operação pretendida,
6
sem falar da organização volitiva. Portanto, o labor é uma atividade consciente, que pressupõe o
conhecimento – aproximado, mas progressivo – de certas finalidades e instrumentos, especialmen-
te no que concerne à apreensão, à seleção, à priorização, ao domínio e à utilização dos nexos
causais imanentes à realidade.
8 - Em síntese, o trabalho, fundamento basilar e estruturante da vida humana, é uma ação
mediadora entre seu agente e a exterioridade, mormente o mundo natural, por meio da qual se
constitui, se desenvolve e se recria continuamente o ser social. Como processo, envolve a teleolo-
gia, a captação das propriedades inerentes à matéria-prima ou realidade a ser transformada e os
meios ou instrumentos adequados. A consecução de seu objetivo exige também outros elementos
procedimentais decisivos, como a atenção sobre o curso da intervenção, a persistência na perse-
guição do fim, a habilidade em contornar obstáculos e a disciplina tanto mental quanto corporal na
atividade prática. Sem a presença desses componentes, a objetivação pretendida se realizaria par-
cialmente, dar-se-ia em formas indesejadas ou permaneceria na subjetividade como algo irrealizá-
vel e, portanto, mera utopia.
9 - O entrelaçamento entre os fatores objetivos, a exterioridade, e subjetivos, a interioridade,
suscita tamanho constrangimento ao processo laboral que sua direção só pode acontecer quando
se põe sob a égide da finalidade, isto é, sob aquela dimensão da consciência capaz de dominar e
regular os meios e procedimentos. Tais características mais gerais e universais, apreendidas a par-
tir da realidade empírica na vida cotidiana e da elaboração conceitual, expressam o padrão próprio
da ação humana, ou seja, sua singularidade característica. Manifestam-se, irrecorrivelmente, seja
na simples produção de valores de uso para satisfação de necessidades mais imediatas, seja nas
práxis ideológicas ou imateriais em geral – filosofia, cultura, religião, ciência, arte e política –, seja
na constituição do Estado, conforme os graus de singularidade e complexidade inerentes a cada
patamar da vida social.
10 - Eis por que Marx entendeu o trabalho “como a atividade racional destinada à produção
de valores de uso, à assimilação da matéria natural ao serviço das necessidades humanas [...], a
condição natural eterna da vida humana, [...] independente das formas e modalidades dessa vida,
bem como comum a todas as formas sociais por igual”. Portanto, mesmo as espécies laborais mais
elementares apresentam características essenciais e gerais, que transcendem os seus próprios li-
mites, assim como articulam os esforços manuais e intelectuais, ainda que primitivamente. Tais es-
feras necessárias e inerentes a qualquer trabalho impregnam e são também comuns a “todas as
formas sociais por igual”.
11 - Todavia, enquanto na transformação material há maior controle sobre os elementos
envolvidos, permitindo rápidas correções de rumos e instrumentos, inclusive o retrabalho, nos
grandes movimentos e organizações de massas o processo acontece diferentemente. A tomada de
decisões ocorre de maneira extremamente complexa. Por exemplo, em assembleias sindicais, ca-
da participante, por avaliação individual ou construída em coletivos, tem que fazer uma opção al-
7
ternativa diante dos problemas expostos e escolher entre apoiar ou rejeitar propostas. Surgem de-
bates e confrontos. As percepções de cada um podem oscilar ou alterar-se em face de argumentos
fortes e convincentes, que apresentam novos fatos e angulações. No final das contas, as opiniões
pessoais se coagulam e se sintetizam em uma ou mais resoluções, consensuais ou majoritárias,
que representam o todo e adquirem legitimidade.
12 - Se a consciência assume papel tão proeminente, ao ponto de incorporar uma força ca-
paz de orientar a intervenção na realidade e a sua transformação com determinado sentido, de on-
de vêm seus elementos, conteúdos e potências? Descartando as explicações místicas e fantásti-
cas – inclusive as metafísicas idealista ou naturalista –, provêm, em primeiro lugar, de sua relação
com a realidade objetiva concretamente existente, cuja forma imediata e perceptível se expressa
na vida cotidiana, com seus infinitos atos de produção e reprodução da vida. Em tal esfera, de ca-
ráter fundante, constrói-se a rede basilar de necessidades humanas diferenciadas, das mais sim-
ples às mais complexas, cujo atendimento pressupõe um sistema integral de geração, distribuição,
troca e consumo de bens e serviços. Em suma, o ser humano dá respostas às questões postas pe-
los carecimentos que brotam de sua relação com o mundo.
13 - As buscas e tentativas, com vistas à satisfação de suas necessidades mediante a ativi-
dade laboral, constituem o elemento impulsionador da reprodução individual e social. Portanto, a
subjetividade, longe de fenômeno apriorístico, que precede a práxis humana, é um produto históri-
co, de vez que parte movida e movente da realidade concreta, da objetividade. Todavia, ainda que
sua origem se ancore, irrecorrivelmente, na substância social, a interioridade pode expressar-se em
forma de alienação. Trata-se do processo em que algo produzido pelo trabalho se volta contra seu
próprio sujeito, criando barreiras à sua ação consciente e restringindo suas possibilidades de al-
cançar uma vida plena de sentido. Semelhante reversão acontece tanto para o produtor direto da
riqueza quanto para o conjunto da sociedade.
14 - Contudo, em todos os estágios alcançados pelo desenvolvimento da comunidade hu-
mana, bem como na singularidade própria de cada formação econômico-social, os traços da uni-
versalidade se manifestam de modo bem particular, assumindo contornos próprios e concretos. An-
teriormente ao capitalismo, o indivíduo criava e recriava sua vida em ligação íntima com a natureza
e a comunidade coisificada, mas lhes era muito subordinado. Semelhantes liames objetivos se
mantiveram, em certa medida, na “servidão generalizada”, na escravidão “antiga”, no feudalismo e
na escravatura mercantil-colonial. Aos poucos e depois aceleradamente, as capacidades se de-
senvolveram, ampliando a produtividade, impondo a divisão do trabalho e constituindo práticas es-
pecíficas de produção, distribuição e circulação de bens.
15 - Com o devir histórico e, a partir de certa época, a interveniência da luta de classes, a
maneira pela qual a riqueza era apropriada passou a dividir a sociedade entre proprietários e des-
possuídos, embora nas formas iniciais os polos apropriadores ainda se beneficiassem de capas
místicas e morais, não raro estabilizadas em pactos mais ou menos estáveis. Todavia, no modo de
8
produção capitalista, o proprietário do patrimônio e do dinheiro adquiriu a condição de transformá-
los em capital, controlando os meios de atividade – matérias-primas, instalações e instrumentos –
convertidos em capital constante, assim como regulando o labor alheio e apropriando-se de seu
produto ao comprar força de trabalho livre, isto é, a energia contida nos braços, nervos e cérebro
dos assalariados, tornando-a capital variável.
16 - Para que a força de trabalho proletária pudesse ser adquirida foi preciso que estivesse
disponível na esfera da circulação, sob a forma de mercadoria, isto é, que seu portador tivesse que
vendê-la para sobreviver. Ao mesmo tempo, para que o capital possa manter a sua valorização e
ampliação, é essencial e imperativo que explore – produzindo e saqueando a mais-valia, em forma
absoluta e relativa – o único fator capaz de acrescentar valor à mercadoria transformada: o traba-
lho. Na lógica da produção capitalista, o possuidor da força laboral é um perpétuo prisioneiro desta
contradição: os proprietários dos meios de produção e os despossuídos, os empresários e os assa-
lariados, enfim, a burguesia e o proletariado, são as duas classes fundamentais, que nucleiam a
formação econômico-social.
17 - A capacidade humana de criar valor e bens – considerada, inicialmente, como disposi-
ção de seres isolados – assume, no modo de produção caracteristicamente capitalista, um caráter
cada vez mais articulado e socializado. A potência do trabalho, como a expressão mais decisiva
das forças produtivas em desenvolvimento, ultrapassa as habilidades e competências específicas
dos indivíduos e dos pequenos grupos para atingir a geração mercantil em alta escala e com tecno-
logias extremamente avançadas, que exigem novas aptidões intelectuais e cognitivas dos traba-
lhadores, bem como determinam que as várias disposições pessoais se interajam e se entrelacem,
na medida em que a evolução e aplicação das inovações científicas e organizacionais impregnam
os mais diversos processos laborais.
18 - De início atingindo apenas alguns ramos industriais, a subjunção real do trabalho pelo
capital – isto é, a utilização de forças produtivas e formas laborais cooperativas que vão além da
simples junção de antigos processos parcelares e autossuficientes – foi gradativamente impreg-
nando as demais áreas da economia. Simultaneamente, a concorrência intercapitalista foi ficando
cada vez mais acirrada. Assim, umas empresas sucumbiram e outras se agigantaram por meio da
concentração e centralização dos capitais autônomos e particulares até então existentes – industri-
al, comercial, agrário e bancário –, que se fundiram, geraram conglomerados monopolista-
financeiros, readequaram o papel do Estado e marcharam para o imperialismo. A busca persistente
pela valorização máxima dos investimentos acentuou a exploração da força de trabalho, pois so-
mente assim é possível gerar mais riqueza na sociedade burguesa. A disseminação de novas mo-
dalidades técnicas e gerenciais na produção impactou fortemente o processo laboral.
19 - A utilização de máquinas avançadas e de inovações organizacionais criou condições
para que o trabalho deixasse cada vez mais de ser um tipo de atividade meramente individual, co-
mo no passado gremial, ou algumas vezes organizado de fora, como na escravidão, para assumir
9
um caráter marcadamente social, cooperativo ou combinado. Entre os seus diversos agentes, as
atividades de todos passaram a entrelaçar-se e a ficar dependentes entre si, de tal modo que a
forma coletiva foi, gradativamente, suplantando a individual, mesmo sem eliminá-la. Os proletários
começaram a partilhar uma situação que se multiplica, não só nas seções ou nas unidades fabris,
como também na rede mais ampla e geral do labor orgânico, derramando suas consequências prá-
ticas na própria lógica reprodutiva do capital, que se universalizou e passou a penetrar no conjunto
e em cada célula da vida social.
20 - Como o valor da mercadoria é estabelecido, não pela duração individual de uma ativi-
dade parcelar qualquer, mas pelo trabalho socialmente necessário para produzi-la, o preço de um
bem só se consuma e se efetiva com base no tempo médio prevalecente nos ramos e nas determi-
nadas etapas históricas do processo econômico global, em função do desenvolvimento cientifico,
das aplicações tecnológicas, da correlação estabelecida na luta entre classes contrapostas e das
demais circunstâncias. Portanto, a valorização do capital é fruto de atividades inter-relacionadas e
complexas de muitos proletários, ainda mais na contemporaneidade, na medida em que os magna-
tas monopolista-financeiros já se apossaram dos setores mais expressivos e decisivos da produção
mercantil, passando a controlá-los e a comandá-los, assim como, ao fim e ao cabo, a concentrá-los
e a centralizá-los.
21 - Consequentemente, a exploração da força produtiva humana socialmente combinada
ultrapassou as fronteiras nacionais e ampliou suas conexões no mercado mundial do capital, cada
vez mais espraiado pelas diferentes regiões e países, na busca incessante por taxas de mais-valia
e lucros sempre maiores ou defendendo-se da baixa tendencial. Os grandes empreendimentos e
conglomerados se deslocaram pelo terreno mundial afora, sujeitando, especialmente em períodos
de crise aguda, o proletariado a chantagens e ameaças como desemprego, supressão ou redução
de direitos e arrocho salarial. Tal processo expandiu a exploração, mas também criou condições de
ação comum para o mundo do trabalho e, pois, melhores possibilidades objetivas de uni-lo em su-
as lutas.
22 – Em suma, a produção caracteristicamente capitalista tem como base a relação estabe-
lecida entre si pelos adquirentes e os vendedores de força laboral na circulação mercantil, quase
sempre por um determinado tempo ou jornada. Concretizado semelhante contrato, em geral docu-
mentado e formalizado juridicamente, mas às vezes informal, os burgueses lançam mão da energia
presente na capacidade de trabalho alheia para transformar matérias-primas, instalações, fontes de
energia, máquinas e equipamentos – os meios de produção – em valores de uso que, por sua vez,
entrarão no circuito comercial para serem negociados, assim transmutando sua forma em dinheiro
e realizando a mais-valia. O trabalho que acrescenta valor é denominado produtivo, não porque
crie bens úteis, atendendo a determinadas necessidades, mas porque gera valor excedente, repro-
duzindo o capital.
10
II – A substância, o caráter e o papel do movimento sindical
23 - Ao contrário do que acontece com os trabalhadores individuais ou pequeno-burgueses,
que atuam isoladamente – mantendo autonomia para estabelecer o fim e o controle de sua ativida-
de laboral –, no modo de produção caracteristicamente capitalista a teleologia se concentra nas
mãos, no cérebro e na vontade dos empresários. Já o proletariado, agente efetivo do processo cri-
ador, que lhe acrescenta valor, vê-se – no ato de concretizar nos bens as potências intelectuais e
cognitivas de sujeito coletivo – despojado da prerrogativa de escolher o que, com que, por que e
para quem produzir. Assim, o resultado domina a potência humana que o gerou, reforçando a sua
condição de mera mercadoria. Eis a condição que se apresenta ao assalariado para reproduzir-se
como força de trabalho.
24 - Tal “sortilégio” se ancora em classes que estão condenadas à unidade na contradição e
que expressam, na dinâmica da vida cotidiana, interesses inconciliáveis: a burguesia, buscando a
valorização de seu capital, e o proletariado, propugnando melhorias na remuneração de sua força
laboral e garantias correlatas. Esse antagonismo imanente, além das vontades em jogo, dispensa
imputações morais de sentido. As angulações e preferências dos observadores que analisam ou
simplesmente percebem a realidade social mudam, mas jamais serão neutras. Na cognição e na
ação, duas óticas essenciais se digladiam dentro da aporia irrecorrível na ordem burguesa: a do
trabalho e a do capital, com variações à direita ou à esquerda, em gradiente que vai da conciliação
ao conflito.
25 - Decerto, tal binômio é apenas uma dimensão do complexo societário do capital, que
abarca também outras classes e camadas. Mas constitui o pilar básico da formação econômico-
social, porquanto a pequena burguesia – com suas diferentes camadas na cidade e no campo – só
pode habitar nos poros da produção mercantil e da prestação de serviços, constituindo, ao lado de
semiproletários, lumpens e trabalhadores desempregados ou “supérfluos”, o terreno periférico à
contradição fundamental. Em consequência, sua grande importância política se associa à impotên-
cia de estribar projetos alternativos à ordem vigente: como só lhe restam formas ideológicas osci-
lantes entre os polos antagônicos do conflito social, suas posturas são acessórias ou cativas,
mesmo quando adotam vieses extremos e sectários.
26 - Sobretudo no Brasil, país com extensão continental e atravessado por enormes dife-
renças, a começar por sua formação econômico-social tão complexa, a compreensão da trama
evolvente nos subterrâneos da sociedade pressupõe que se decifrem seus nexos e articulações
reais. Se bem exploradas e analisadas, as manifestações vivas do cotidiano poderão indicar os
elementos da estrutura social e da luta de classes operantes. O procedimento de partir do efetiva-
mente existente, extraindo-lhe as forças atuantes e formulando conceitos que os expressem, auxi-
lia os movimentos do mundo do trabalho, especialmente os ativistas sindicais, a evitar as visões
ilusórias, deturpadas, superficiais e até mesmo conspirativas sobre os acontecimentos, que per-
11
meiam os olhares do senso comum.
27 - A história do movimento proletário é a crônica do combate à exploração e à opressão.
Mesmo nos períodos de calmaria, o ator principal encontrou meios para sair da passividade. Em
muitas conjunturas, formas de luta mais ou menos radicais se impuseram, expressando, nem sem-
pre de forma consciente, a intuição de rebelar-se contra as condições infames em que ocorre a sua
sobrevivência e a reprodução do trabalho. O impulso espontâneo contra a mais-valia absoluta ge-
rou formas antediluvianas de resistência – da revolta contra máquinas até sociedades filantrópicas
de ajuda mútua – que, aos poucos, foram suplantadas pela constituição de entidades capazes de
organizarem as massas no embate por suas reivindicações mais sentidas. Surgiram os sindicatos e
também os partidos políticos.
28 - Os sindicatos se estruturam como instituições de massa representativas de todos os
assalariados pertencentes a uma categoria econômica, sem exceção, dentro de certo contorno ter-
ritorial, estendendo-se a sua base social para além do conjunto formado pelos filiados formais. Sua
coluna vertebral de atuação está na abordagem prática da contradição trabalho versus capital, no
concernente à resistência contra a exploração e a opressão, como acontece nas lutas por remune-
ração e condições laborais adequadas e melhores. Tais entidades constituem, pois, veículos por
excelência para que os proletários elevem sua compreensão a respeito das causas do sobretraba-
lho, anteponham limites à extração ou distribuição de mais-valia, construam uma organização forte
e se preparem para novos combates. As mesmas características se encontram nas instituições
que, por causa de injunções legais, são obrigadas a adotarem a forma de associação profissional,
como representações de praças e soldados.
29 - Os sindicatos se distinguem de outras organizações de massas em aspectos funda-
mentais. O movimento popular-comunitário – de bairros, vilas, favelas, conjuntos residenciais e
áreas ocupadas por famílias sem-teto – gera entidades representativas de contorno genérico, pois
têm base social diversificada, exprimindo a composição da periferia econômico-social das cidades:
assalariados, semiproletários, desempregados, donas de casa, jovens, pequeno-burgueses e até
empresários subalternos. Por seu turno, as instituições temáticas, sem limite espacial ou de classe,
encerram conformação ainda mais indiferenciada no plano social. Já os diretórios e grêmios estu-
dantis representam alunos de vários níveis e redes, independentemente de sua extração social.
30 - Tais entidades, ainda que de massas, organizam segmentos exteriores à lógica da pro-
dução e do serviço associado à contradição trabalho-capital, que é o fulcro da organização sindical.
Embora sejam instituições de luta popular, tornar-se-ia postiço e danoso tentar fazer com que as-
sumissem funções incompatíveis com seus propósitos e sua composição social multifacetada. O
esforço de iniciativa comum, em torno de objetivos determinados e da solidariedade mútua, sempre
garante a amplitude necessária para alcançar vitórias. Contudo, as particularidades – na esfera da
organização e da atuação – precisam ser preservadas. Ignorá-las equivaleria, também, a diluir os
sindicatos e a luta de classes, bem como, na outra ponta, criar ilusões substitutivas à necessária
12
frente de unidade popular.
31 - A forma clássica e mais importante da luta sindical é a greve, de ocorrência tão antiga
quanto a própria existência da moderna burguesia, pois se frutifica e se interpõe na produção e na
circulação regidas pelo capital, interrompendo a entrega da mercadoria-trabalho, paralisando a va-
lorização, freando a oferta de serviços, obstaculizando a comercialização e instaurando a negocia-
ção associada, para rever o contrato anterior. Em sua deflagração, o caráter social do trabalho im-
pregna também a troca no comércio, violando a apropriação privada do sobreproduto, cuja redistri-
buição é rediscutida e, em caso de vitória, refeita. Eis por que tal meio de combate ocupa o centro
das formulações teóricas sobre o direito laboral. Todavia, a greve geral é uma forma de luta, como
tal sujeita à conjuntura, à correlação de forças, ao nível de consciência, ao patamar de preparação
e ao objetivo intencionado, jamais uma finalidade permanente, contínua e mítica, à revelia das
condições concretas.
32 - O temor e o ódio do patronato ou do Estado ao movimento paredista residem no ato
proletário capaz de alterar o equilíbrio estabelecido na taxa de exploração e na hierarquia da em-
presa, como também de colocar em xeque o individualismo imanente ao conceito burguês de pes-
soa – sujeito isolado que impregna com sua vontade a mercadoria –, já enfraquecido ao instaurar-
se o dissídio judicial. A reação do Estado burguês o confirma em sua tipicidade: procura impor ao
coletivo a personalização da resistência, já que provoca intencionalmente as tensões ou rupturas
nas negociações, confiando nas leis e nos procedimentos judiciais, em cujo limite garante a prote-
ção ao capital e a marginalização do movimento sindical, exatamente no seu momento de maior
expressão e força conjunta.
33 - Além do instrumento grevista, cuja radicalidade e complexidade desaconselham impro-
visações, os sindicatos utilizam variadas formas de luta, mas sempre fundadas em avaliações crite-
riosas sobre as condições objetivas e subjetivas de preparação, condução e desfecho. Ademais,
seus combates podem assumir conteúdos políticos, seja como fruto da evolução espontânea de
pleitos econômicos, seja como resposta direta a problemas surgidos em sua relação com as impo-
sições globais da classe burguesa ou com as instâncias do Estado. Se, de fato, as entidades re-
presentativas de massas têm como função básica o zelo pelos interesses específicos de sua cate-
goria perante o patronato, é também verdade que a experiência histórica mostrou os movimentos
reivindicatórios tantas vezes interpenetrados com assuntos políticos e até mesmo entrelaçados
com tal esfera desde o nascedouro.
34 - Caso surja, em campanhas salariais, uma pressão externa, como a intransigência das
autoridades públicas, a promulgação de uma lei antioperária, a repressão pelo Estado ou uma sen-
tença abusiva na Justiça do Trabalho, o conflito se tornará político. O mesmo caráter apresentarão,
por si, ainda que mediados, a solidariedade a outras categorias, o protesto contra o cerceamento à
livre manifestação, a exigência de mudanças na lei e a intervenção no processo eleitoral, tanto
mais quanto a mobilização for geral e pleitear reformas no regime institucional, como a ampliação
13
dos direitos eleitorais e democráticos da população. Tais exigências, que são suprapartidárias, po-
dem sensibilizar vastos contingentes de massas, favorecer o acúmulo de forças e até facilitar o
trânsito da defensiva à ofensiva.
35 - O ingresso dos sindicatos nas disputas eleitorais, parlamentares e jurídicas por meio
exclusivo da marcha ascensional, empírica e autárquica do movimento espontâneo, nada mais po-
de gerar que a mimetização da ideologia sensível à sociedade política do capital, rebaixando-se a
mera massa de manobras dirigida por “benfeitores” de ocasião, quando não por representantes
burgueses mais conservadores. Somente a luta de classes permitirá que o proletariado problemati-
ze a exploração e a dominação que o subordina na sociedade alienada. Em Que Fazer?, Lênin
sublinhou que “a consciência das massas operárias não poderá ser uma verdadeira consciência de
classe se os operários não aprendem a aproveitar os fatos e acontecimentos políticos concretos da
atualidade ardente para observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações
de sua vida intelectual, moral, política [...]; para bem conhecer-se, a classe operária deve ter uma
consciência precisa das relações recíprocas de todas as classes da sociedade contemporânea,
conhecimento [...] fundado na experiência da vida política”.
36 - Marx já havia destacado o papel central do proletariado. “A grande indústria concentra
em um só lugar uma multidão de pessoas desconhecidas entre si. A concorrência divide seus inte-
resses. Mas a defesa dos salários, seu interesse comum diante do patrão, une-as em uma ideia
comum de resistência, de coalizão [...]. As coalizões, a princípio isoladas, organizam-se em grupos,
e, perante o capital sempre unido, manter essa associação vêm a ser mais importante que a defe-
sa dos salários [...]. Nessa luta – verdadeira guerra civil – reúnem-se e desenvolvem-se todos os
elementos necessários à batalha futura.” Hoje, o caráter social da produção e a concentração de
capitais integram os diferentes trabalhos concretos e refundem seus frutos em bens compostos.
37 - Os desdobramentos da reivindicação econômica em formas superiores de luta ou a
eclosão direta de conflitos políticos se manifestam como contingências, imanentes ao caráter apro-
ximativo do domínio humano sobre a realidade. Embora imprevisíveis no conjunto de seus elemen-
tos, são acontecimentos ricos, que evidenciam facetas despercebidas e formam a consciência das
massas. Nunca um evento pode ser antecipado em seus mínimos detalhes: por mais elaborada
que seja uma teleologia, sempre emergirão elementos inesperados. A dialética intrínseca do movi-
mento impõe aos sindicalistas os limites próprios do planejamento: ao desfecharem e conduzirem a
luta em uma circunstância dada, jamais terão condições de conhecer e dominar, a priori, todos os
fatores objetivos e subjetivos intervenientes.
38 - Todavia, é possível e necessário captar a essência objetiva do movimento sindical, que
determina seus elementos, contornos, papéis e tarefas permanentes, imunes às flutuações conjun-
turais – por mais casuais que pareçam –, e ao mero desejo de indivíduos ou agrupamentos, por
mais talentosos e influentes que sejam. Reconhecer e valorizar as legítimas iniciativas políticas das
entidades representativas não significa confundi-las com posturas e ações caracteristicamente par-
14
tidárias, que pressupõem uma doutrina, explícita ou embutida, assumida ou perceptível em suas
práticas, mesmo que ensejadas e desfechadas por agremiações oportunistas e fisiológicas, cujos
membros também se diferenciam das pessoas exclusivamente componentes da categoria econô-
mica. Eis por que Engels observou, em 1881, que “Ao lado ou acima dos sindicatos de cada ramo
da indústria surgirá uma união geral, uma organização política da classe operária no seu conjunto”.
39 - Um partido digno de intitular-se comunista conta com uma estratégia, uma tática geral,
políticas conjunturais e formas singulares de organização, que são elaborações adequadas ao ob-
jetivo de superação revolucionária do Estado burguês, de ascensão ao poder político e de trânsito
à sociedade humano-universal. Portanto, seus militantes partilham uma fisionomia político-
ideológica e uma doutrinária singulares. Por seu turno, um partido conservador, mesmo pragmáti-
co, compromissado ou insatisfeito com governos, defende o Estado e a exploração capitalista, mais
ou menos intensificada, atenuada ou reformada. O mesmo enfoque expõe os traços peculiares de
formações intermediárias ou terceiristas, como agremiações socialdemocratas, social-liberais e de
massas, inclusive de suas nuanças e de seus grupos internos.
40 - Ao contrário do que acontece no ambiente partidário, por opção de seus membros e
imposição de suas lógicas, não prevalecem como critério de participação, no sindicato, quaisquer
alinhamentos filosófico, ideológico, doutrinário ou político. Ainda que todas as opiniões sejam im-
portantes em fóruns apropriados – correntes de opinião e debates teóricos –, nas entidades repre-
sentativas do proletariado as discussões, as filiações, as mobilizações, as propagandas e as dispu-
tas se referenciam nas lutas da categoria e iniciativas unitárias mais amplas. Logo, os militantes
dos partidos políticos têm espaço na atividade sindical, desde que respeitem suas características,
seus meios participativos e seus fóruns decisórios próprios, bem como partilhem as avaliações e
escolhas coletivas.
41 - Acima de tudo, os sindicatos devem ser preservados, em vez de aparelhados ou trans-
formados em correia de transmissão heteronômica. A política partidária não é a única forma de fa-
zer política. A incompreensão dessa questão nuclear, em especial na contemporaneidade, acarreta
dois grandes malefícios: em uma ponta, rebaixa a atividade partidária pelo imediatismo pragmático,
inibindo sua potência transformadora e diluindo-a nas instâncias de massas; na outra, suprime a
função representativa genérica das organizações de massas, que passam a ser de apenas uma
parte da categoria. Longe de qualquer apologia ao apoliticismo – economicista ou semianarquista –
, a crítica deve sublinhar que o confessionalismo prolifera em articulação com o pluralismo, abdu-
zindo as potências do movimento e colocando-o à mercê das políticas burguesas.
42 - Eis por que, ao ignorar os fundamentos ontológicos dos sindicatos, considerando-os
naturalmente inclinados em direção a opções pós-capitalistas, o conceito de “sindicalismo revoluci-
onário” breca sua identificação com toda a classe. A demarcação com tal postulado implica, para o
marxismo, em contraste com o reformismo, a formulação de uma linha revolucionária para o movi-
mento sindical, transpondo para o patamar da política partidária o atributo que o anarcossindicalis-
15
mo e as correntes doutrinaristas de ultraesquerda imaginam pertencer, por definição, ao ser social
empírico. Assim, torna-se preciso levar em conta as características dos períodos e conjunturas: por
exemplo, lutar em condição desfavorável, sob a ofensiva da reação, é muito diferente que pugnar
em uma situação revolucionária.
43 - Nesse quadro, a democracia renova toda a sua importância e delicadeza como traço
inelutável da prática sindical. As instituições de todos os trabalhadores, caso queiram reforçar-se,
estão condenadas a contrapor-se à rotina elitista, bem como instadas a compreender e combater
os fundamentos sociais e as posições que minam a unicidade da representação e a unidade em
torno de uma plataforma mínima de ação, a ser construída com base na história e renovada em
cada situação, conforme o desenvolvimento da luta de classes. As entidades não têm o direito de
restringir a participação de nenhum indivíduo, pertencente à sua base, por motivos estranhos ao
seu caráter, intencionalmente ou como consequência de concepções estreitas e sectárias.
44 - Ademais, o sindicato precisa ser permeável e aberto a críticas e sugestões, sempre vi-
sando a melhorar sua atuação, acolher as diferenças e fazer-se respeitado pela categoria que re-
presenta. Às bases devem ser garantidas e estimuladas, não só a participação nos eventos e
ações, como também as condições suficientes para sua aproximação e seu protagonismo nas di-
versas esferas democrático-decisórias, como assembleias, reuniões setoriais, organizações por lo-
cal de trabalho e representações várias. Trata-se de enfrentar uma das maiores debilidades que
hoje solapam as entidades: o desinteresse em mobilizar e integrar, seja por concepção ideológica
estruturada, seja por submissão ao senso comum, seja por motivações de controle mesquinho.
45 - Hoje, as mudanças na estrutura produtiva, administrativa e gerencial, com fortes altera-
ções nos padrões tecnológicos e organizacionais, criam condições para que a burguesia tente mol-
dar a subjetividade proletária, convidando seus empregados a serem filhos da “grande família” em-
presarial, em que todos seriam sujeitos, opinariam e realizariam tarefas “flexíveis”. Todavia, perma-
nece o despotismo patronal, frequentemente imediato, especialmente em conjunturas de crise eco-
nômica. Ressalvando-se a importância das reflexões e ações gerais, somente a militância cotidia-
na, no local de trabalho e em torno das questões mais sensíveis das categorias, gera a experiência
e a confiança mútua, necessárias à reconstituição das lutas com vistas a novo fluxo ascendente.
46 - Os desafios são por demais instigantes. Em face de questões persistentes, antigas e
complexas, bem como de outras emergentes, o ativismo superficial é medíocre e impotente. Os mi-
litantes sindicais não têm alternativa de saída produtiva, senão a de se debruçarem sobre os ve-
lhos e novos nexos causais imanentes à materialidade do mundo do trabalho. Para tanto, urge co-
nhecer e vivenciar o cotidiano das categorias, captar as contradições mais evidentes, tratá-las de
modo adequado e mobilizar os proletários em torno das questões candentes que os afetam. As di-
retorias não podem ficar na dependência de “especialistas” externos. Precisam preparar-se como
quadros dirigentes, assumir compromissos, testá-los na prática cotidiana e avançar nas lutas.
16
III – A origem do movimento e da forma sindical no mundo
47 - Na esteira das forças produtivas e de seus enlaces orgânicos com as relações de pro-
dução burguesas, a primazia e o desenvolvimento do capitalismo, nos vários países, aconteceram
em tempos históricos diferenciados, de maneiras consideravelmente complexas e revestidos de
formas particulares. Os agrupamentos mutualistas e demais experimentos de ação comum e de so-
lidariedade – surgidos por critério de ofícios ou locais de moradia, nos anos setecentos – foram os
embriões das primeiras entidades representativas por categoria econômica ou ramos industriais no
Velho Continente. O movimento sindical europeu e norte-americano, em razão de sua precocidade,
repercutiu em diversas regiões do Planeta, especialmente por meio das lutas por redução na jorna-
da e melhorias nas condições de trabalho. Na primeira metade do século XIX, o proletariado entrou
no cenário da luta de classes.
48 - Na Inglaterra, reivindicou direitos político-sociais, como nas manifestações de 1819 em
Manchester, nas jornadas pelas liberdades grêmio-sindicais de 1820 a 1840 e nas petições cartis-
tas. Na França, depois de lançar-se aos levantes contra a velha ordem aristocrática acabou, em
meio a sucessivas revoluções, vertebrando as pioneiras organizações radicais – Sociedade dos
Amigos do Povo, Sociedade das Famílias, Liga das Estações e Sociedade Republicana Central – e
chegando às primeiras formas de consciência socialista. Na Alemanha, com participação da comu-
nidade operária no exílio, construiu suas instituições de 1834 em diante, com destaque à Liga dos
Desterrados e à Liga dos Justos.
49 - Não tardou que se revelasse a urgência de uma articulação internacional entre os vá-
rios movimentos locais. A resposta veio à “crise industrial” e durante a “revolução de 1848”: a Liga
dos Comunistas, de 1847, que apresentava uma ideologia, uma doutrina, uma concepção de orga-
nização e um programa inovadores. Todavia, como se dissolveu no quinto ano de vida e como sua
característica partidária era incapaz de preencher, por si só, as demandas relacionadas à interna-
cionalização das entidades, ações, laços e tarefas com formas especificamente sindicais em fase
constitutiva, o vácuo ainda permaneceria por mais de uma década. Nesse ínterim, enquanto se ar-
refecia o impulso democrático-radical no centro-europeu, continuava o protagonismo das massas
nas diferentes regiões e nações.
50 - O movimento proletário demonstrou iniciativa e vigor. Na Inglaterra, em 1859, paralisou
a construção civil de Londres; em 1863, prestou solidariedade aos operários franceses e discutiu a
formação de uma associação mundial; em 1864, apoiou a rebelião polaca, recebeu um enviado de
Garibaldi e se reuniu com imigrantes de várias nacionalidades; em 1865, dirigiu a Liga da Reforma;
em 1866, ergueu-se contra o fechamento de fábricas. Nos EUA, durante a guerra civil, apoiou a
União contra os escravocratas sulistas – conforme a carta que Marx endereçara a Abraham Lincoln
em 1864 – e reivindicou no Congresso de Baltimore, de 1866, a jornada de oito horas. Na França,
reativou-se com a crise de 1857-1858, realizou greves em defesa dos salários e enviou delegados
17
à Exposição Universal Londrina de 1862.
51 - Nos países de capitalismo retardatário, suas entidades ainda engatinhavam. Na Ale-
manha, ao fim do ciclo revolucionário – sob o ataque da reação, a proibição das sociedades operá-
rias em 1854 e a rápida expansão econômica –, retomaram sua trajetória de maneira mediada,
reunindo associações de vários tipos e, nos anos 1860, ancorando-se nas primeiras instituições
partidárias que se reivindicavam socialistas. Na Itália, o baixo nível de apropriação real do trabalho
pelo capital prorrogou a existência do mutualismo e favoreceu mobilizações de cortes desiguais,
que afinal se concentraram em Turim, gerando a Associação Geral dos Operários em 1850. Na Es-
panha, os levantes populares da primeira metade oitocentista, quando as pequenas produções
camponesa e artesanal se enfraqueciam em face da industrialização, convergiram para modalida-
des primitivas de protesto, como incêndios em fábricas, ataques a igrejas ou conventos e terroris-
mo. Em Portugal, os combates antiabsolutistas e a revolução burguesa – com a extinção das cor-
porações, a obtenção da liberdade laboral e a implantação de fábricas – permitiram a eclosão da
resistência operária.
52 - O proletariado emergente nas sociedades euro-orientais, asiáticas, latino-americanas e
africanas, por sua vez, entraria em cena bem mais tarde, na passagem do século XIX ao XX, como
na Rússia, onde os poucos e frágeis sindicatos foram tornados ilegais pela reação que sucedeu à
Revolução de 1905. Acontece que vivia, seja em tempos transitórios do colonialismo à dominação
imperialista, seja na submissão a regimes autocrático-imperiais, seja, como no Brasil, nos poros do
escravismo colonial-mercantil. Mesmo assim, a jovem classe inscreveu na história humana seus
caminhos peculiares e suas maneiras singulares de ouvir e reciclar os ecos de suas lutas pioneiras,
travadas nas formações econômico-sociais em que o capital mais cedo e amplamente se desen-
volvera.
53 - Só em 1864 apareceram os sintomas de retomada mundial na luta proletária, com os
entendimentos entre delegações operárias acontecidos em Londres. Marx e Engels se integraram
em tais esforços e participaram, dois anos após, do congresso inaugural da Associação Internacio-
nal dos Trabalhadores – AIT, igualmente conhecida como I Internacional. Surgiu assim a segunda
instituição suprafronteiras, que, desta feita, procurava reunir as correntes ou entidades com algum
tipo de conflito ou insatisfação diante do capital – agrupamentos revolucionários e reformistas, cír-
culos políticos e seitas, entidades sindicais e mutualistas, sociedades cooperativistas e tantas ou-
tras espécies organizativas –, sob a intenção difusa de formar partidos políticos socialistas e lutar
pelo poder.
54 - O esforço dirigente da AIT rendeu frutos no plano sindical. De início, instalou seções
nas principais nações ou cidades europeias, fortaleceu as mobilizações de massas e favoreceu a
fundação da primeira central nacional, em 1868, na Inglaterra: o Trades Union Congress (TUC).
Imediatamente, a I Internacional se converteu no “horror das classes dominantes”. Os marxistas,
porém, militavam em uma estrutura federativa e permeada por dissensões. A experiência da Co-
18
muna de Paris representou mais um foco no agravamento das divergências. No fundo, revelou-se
impossível gerir os antagonismos doutrinários – e suas derivações político-práticas – dos marxistas
com democratas-radicais, republicanos, blanquistas, reformistas, anarquistas, owenistas, mazzinia-
nos, lassalleanos, liberais, nacionalistas, franco-maçons, positivistas, utopistas e assim por diante,
agregados em facções que agiam por conta própria.
55 - De fato, sequer havia uma unidade interna mínima entre os participantes para se pro-
moverem ações políticas imediatas. Em uma conjuntura complexa e hostil – a derrota sofrida pelos
communards; o enfraquecimento estrutural causado pelos golpes repressivos; as modificações so-
ciopolíticas no capitalismo; a retração das lutas operárias em meio ao reinício da prosperidade bur-
guesa; os danos provocados por proudhonistas e bakuninistas –, a I Internacional começou a de-
clinar. Tentou-se fortalecer o Conselho-Geral na Conferência de Paris, em 1871, e no Congresso
de Haia, em 1872, que por fim reiterou a participação nas disputas políticas, decidiu afastar os
anarquistas da Aliança Internacional e transferiu a sede central para New York. Mesmo assim, fe-
neceu em 1876.
56 - Ao longo de sua existência, a AIT fixou a base ideológica do movimento socialista. Fir-
mou, também, a noção de que o cooperativismo e o sindicalismo são incapazes de assumir um pa-
pel dirigente na revolução anticapitalista. Demonstrou, ainda, que as seitas utópicas eram reminis-
cência de uma “época” em que o proletariado ainda não atuava “como classe”. Asseverou, por fim,
o imperativo de se fundarem organizações político-partidárias, capazes de promover atividades na-
cionais e mediar sua doutrina em face das formas emergentes na sociabilidade burguesa, bem co-
mo das realidades e conjunturas particulares de cada país. Em contrapartida, seus problemas e
acúmulos evidenciaram que a forma-partido deve se diferenciar da forma-sindicato: cada qual pre-
cisa de espaço próprio, de vez que apresentam características ideativas, programáticas, orgânicas
e procedimentais particulares, como sugeriram, respectivamente, as decisões de Genebra, em
1866, e de Londres, em 1871.
57 - Com a dispersão que acompanhou o fim da AIT, as tendências espontâneas e descen-
tralizadas imprimiram suas tônicas nas esferas nacionais, seguindo rumos próprios, conforme as
tradições locais, algumas muito arraigadas, e os desdobramentos havidos na luta de classes. Na
Inglaterra, o TUC reuniu a grande maioria das entidades representativas e se afirmou como pode-
rosa federação, mas adentrou no caminho adaptacionista e pragmático do tradeunionismo, cujos
traços básicos – economicismo, corporativismo e atuação pelo método exclusivamente calcado em
negociações de cúpula – se converteram na expressão clássica da escassez na consciência prole-
tária e da hegemonia burguesa no sindicalismo, postulados como esfera máxima da subjetividade
admissível.
58 - Nos EUA, em face do processo produtivo em rápida expansão, da gestão empresarial
em franca adaptação e da passagem ao imperialismo em fase inicial, a American Federation of La-
bor (AFL), criada em 1881, adotou a filosofia do pragmatismo e a cultura da conciliação, afinal co-
19
nhecida pelo nome de seu principal vulto: gomperismo. Sua prática, tida como “apolítica” e de “re-
sultados”, eliminou a militância, gerou burocratas perfilados ao estilo executivo-empresarial, incor-
porou ações gangsteristas e transformou a estrutura sindical em mediadora de negócios patronal-
financeiros, entrelaçados aos interesses pessoais de seus dirigentes. Pretextando uma isenção de
classe e ideológica, tinha de fato consciência, vínculo e conteúdo burgueses, chegando a cumprir
serviços estratégicos ao Estado e aos governos estadunidenses nos contenciosos imperialistas.
Resistindo a semelhante confissão, surgiu, em 1905, a Industrial Workers of the World, proibida se-
te anos depois.
59 - Na Alemanha, o partido lassalleano se inclinou ao caminho nacional e reformista: me-
nosprezando a frente sindical, buscou exclusivamente a obtenção do sufrágio universal e a criação
de sociedades produtoras com ajuda estatal, chegando a manter acordos com Bismarck e a reação
prussiana. Não obstante, unificou-se, em 1875, ao Partido Social-Democrata dos Trabalhadores,
dirigido por Bebel, gerando, em 1890, o Partido Social-Democrata da Alemanha. No mesmo ano, já
desfrutando certas liberdades, as entidades se articularam para constituir, em 1892, no congresso
sindical de Halberstadt, a Comissão Central dos Sindicatos da Alemanha. Cinco anos depois, rom-
pendo a unicidade, surgiu a Centralização de Representantes da Alemanha, posteriormente Asso-
ciação Livre dos Sindicatos da Alemanha, de confissão anarcossindicalista. Já na primeira década
do século XX, as vertentes economicistas e conciliadoras se manifestavam, mas foi durante a I
Guerra Mundial que a cooptação de sindicalistas, esmagados pelas vantagens obtidas – corporati-
vas ou individuais – e pela pressão do nacionalismo, intensificou-se.
60 - Na França de 1872, ainda com as feridas rasgadas na Comuna em cicatrização, reor-
ganizaram-se as câmaras sindicais que, sob alguma influência do Partido Socialista, recém-
fundado, reinseriram-se nas disputas políticas, por volta de 1877. Com a legalização restritiva con-
quistada em 1884, ampliaram rapidamente seus movimentos, mas o anarquismo foi ao gueto nos
anos 1890, adotando formas de luta sectárias, inclusive o terrorismo, e facilitando a nova onda re-
pressiva. Depois de lento acúmulo, surgiu, em 1895, a Confederação Geral do Trabalho, que, em
um ano, passou a contar com adesão dos sindicatos na proporção de dois terços. Todavia, em que
pese o esforço da Carta de Amiens, lançada no IX Congresso, de 1906, em dissuadir a partidariza-
ção das entidades representativas – mesmo ao preço de certo viés corporativo, economicista e
apolítico –, o sindicalismo foi dividido em 1919 pela iniciativa confessional de criar-se a Confedera-
ção Francesa dos Trabalhadores Cristãos.
61 - Na Itália, o desenvolvimento das forças e relações de produção capitalistas, as trans-
formações ocorridas nos fundamentos econômico-sociais – especialmente na região setentrional –
e a influência da I Internacional, cuja seção local se instalou em 1867, impulsionaram o embate teó-
rico-ideológico que derrotou as correntes anarquistas, permitiu a fundação do Partido Socialista Ita-
liano em 1895 e gerou condições para criar-se a Associação Geral de Trabalhadores Italianos. No
entanto, a semipatronal Confederação Geral do Trabalho, organizada em 1906, apoiando-se na
20
opção pluralista, instituiu a conciliação de classes sob a forma de unificação orgânica das federa-
ções industriais com as câmaras de trabalho, ao estilo clássico do corporativismo e de forma seme-
lhante aos traços da legislação sindical brasileira.
62 - Na Espanha, o anarcossindicalismo, fincado no solo de relações capitalistas bem atra-
sadas, lançou raízes duradouras, especialmente na região da Catalunha. Nesse quadro, a disputa
contra socialistas e marxistas começou tão logo a representação da AIT se instalou no País. As lu-
tas de 1873 e 1874 – em que algumas facções federalistas, respondendo à repressão estatal com
ações isoladas e terroristas, evidenciaram a inconsequência e os limites de sua concepção – resul-
taram na cisão que gerou o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e ainda, em 1888, a Uni-
ão Geral dos Trabalhadores (UGT), de caráter nacional. Em 1911 surgiu a Confederação Nacional
do Trabalho: a ruína da unicidade aconteceu quando se avocou a herança da insurreição na Anda-
luzia e da confissão bakuninista.
63 - Em Portugal, a presença local da AIT, a partir de 1871, conferiu novo impulso às lutas
de classe, com numerosas greves e manifestações. Os primeiros sindicatos, organizados na déca-
da de 1880 em Lisboa e no Porto, estavam sob direção socialista, mas os anos 1890, com a
presença de marxistas, anarquistas e possibilistas, viveram um quadro de pulverização. Com a
proclamação da República, em 1910, a luta por reformas sindicais e sociais se ampliou e
radicalizou, enfrentando dura repressão, mas conquistando direitos como a lei sobre os acidentes
de trabalho em 1913 e a regulamentação da jornada em 1915, com sete horas nos
estabelecimentos bancários e oito a dez horas nas minas.
64 - Tais processos nacionais já estavam inseridos em um período novo do movimento
operário mundial. O fim da AIT revelou não apenas um vácuo, mas também uma dupla demanda,
partidária e sindical. No entanto, várias tentativas de reorganização fracassaram, incluindo as
iniciativas anarquistas de 1872 a 1881, assumidamente antipartidárias. Após a morte de Marx, em
1883, Engels as postergou nos encontros socialistas de Berna, em 1876, de Coire, em 1881, e de
Paris, em 1883, esperando a integração de setores importantes. Ao fim e ao cabo, concordou em
aproveitar-se o centenário do assalto à Bastilha: a II Internacional nasceu em 1889, com as lutas
operárias em ascensão. No Congresso de Paris, tratava-se de organizar os partidos existentes ou
em articulação – misturados a sindicatos, além de, como afirmou Engels, “confusos evangelhos
das diferentes seitas, com suas correspondentes panaceias”.
65 - Obviamente, seria preciso definir a condição estatutária dessa multitude. No III Con-
gresso, de 1893, realizado em Zurique, havia sido aprovada a proposta de Bebel, que propusera a
admissão de “todos os sindicatos profissionais operários”. No IV Congresso, de 1896, em Londres,
acabou sendo ratificada a participação das “organizações puramente corporativas”. Em oposição à
bancada alemã, ergueu-se a crítica dos marxistas e blanquistas franceses, defendendo a participa-
ção exclusiva de correntes políticas. Nas palavras de Vaillant, “não é culpa nossa se, para atrair
sindicatos, mudou-se o caráter desses Congressos e se fez do Congresso de Londres um duplo
21
Congresso sindical e político”. O ecletismo, que refletia os limites e a fragilidade orgânica dos sindi-
catos, atrelou as entidades representativas ao partido, deu-lhes caráter confessional e consolidou a
cultura aparelhista.
66 - No VII Congresso – de Stuttgart, 1907 –, os 50% da bancada alemã, compostos por de-
legados sindicais, defenderam, sem abrir mão de sua inserção congressual, “que os sindicatos
operários teriam que se ocupar, unicamente, da luta econômica” e que a greve geral, pelo seu ca-
ráter político, deveria ser de responsabilidade apenas partidária. Foram derrotados, mas o rechaço
majoritário ao mito positivista de neutralidade manteve a tradição confessional, mesmo sem apro-
var o critério, proposto pelos belgas e suecos, de se filiarem aos partidos as entidades representa-
tivas de massa. Relativizada pela preocupação genérica de preservar-se “a autonomia dos sindica-
tos” e de considerar-se o socialismo como sua linha teórica – devem guiar-se “pelo espírito socialis-
ta” –, a resolução final ficou “sem se manifestar nem a favor nem contra alguma forma de unidade
orgânica”.
67 - A vida real ignoraria tais generalidades. Desde 1901, quando em Copenhague se reuni-
ram entidades gerais da Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Inglaterra, Noruega e Suécia, funcionava
uma articulação sindical relacionada com a II Internacional – o Secretariado Sindical Internacional.
Esse fórum resolvera nomear-se, na VII Conferência – de 1913, em Zurich –, como Federação Sin-
dical Internacional (FSI). Todavia, já na VIII Conferência – de 1917, em Berna –, tal organização se
encontrava manchada pela capitulação ao militarismo imperialista e paralisada pelos dilemas dos
partidos social-democratas em bancarrota, todos alinhados às Internacionais II e II½. Nesse qua-
dro, deslocara-se à falaciosa neutralidade político-ideológica, que fora, em 1907, rechaçada no
Congresso Socialista de Stuttgart e que passara a sustentar o ponto de vista burguês no interior do
movimento sindical.
68 - Tragada pela I Guerra Mundial e atordoada pelo novo período político, em que se des-
tacavam o início da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a ofensiva da Entente, a
FSI reapareceu em 1919, já implicada na conciliação trabalho-capital, na postura de neutralidade
perante a Revolução de Outubro e no anticomunismo. Impossível ignorar que seu Congresso na
Holanda, feito a toque de caixa, foi uma tentativa mais ampla de conter a onda de simpatia irradia-
da no movimento sindical pela saga do proletariado e dos bolcheviques russos, assim como de an-
tecipar-se ao anunciado e preparado I Congresso da Internacional Comunista (IC ou Comintern),
visto por muitos como fórum que reproduziria os mesmos critérios da AIT e da II Internacional, bem
como geraria um redemoinho fatal para os partidos, agrupamentos e correntes adaptados e sub-
sumidos à ordem do capital. Logo no início dos anos 1920, a chamada Internacional de Amsterdam
sofreu perdas consideráveis: muitas entidades se aproximaram das iniciativas realizadas em torno
da URSS; outras preferiram ligar-se à Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos, depois
transformada em Confederação Mundial do Trabalho (CMT).
22
IV – A trajetória do sindicalismo a partir do Outubro Vermelho
69 - Após a transição de Zimmerwald, a IC virou a página da guerra interimperialista e abriu
mais um capítulo na luta proletária mundial. Sobre tal pano de fundo surgiu, em 1921, a Organiza-
ção Internacional de Sindicatos Vermelhos (OISV) – Internacional Sindical Vermelha (ISV ou Pro-
fintern) –, com presença de sindicatos sob a influência de variadas correntes. Um ano antes, o II
Congresso da IC antecipara que “não rechaçará a ajuda de toda organização operária politicamen-
te neutra, desejosa de combater contra a burguesia”. No entanto, a construção do fórum comum
seria uma operação delicada e difícil. Em Moscou se condensaram controvérsias clássicas e anti-
gas do mundo sindical, colocando aos presentes a responsabilidade ímpar de ajustar posições teó-
ricas muito arraigadas e promover mediações capazes de garantir a unidade, seja para fundar-se
uma central mundial representativa e forte, seja para se formularem políticas urgentes.
70 - O II Congresso da IC, ao repudiar “categoricamente a opinião conforme a qual o
proletariado pode realizar sua revolução sem ter um partido”, ao afirmar que sua “luta política” tem
como finalidade “a conquista do poder” e ao exigir as 21 “condições precisas de admissão”, supera-
ra o ecletismo evidenciado nas tentativas passadas, mesmo que no ano seguinte a conformação
exclusivamente partidária fosse ainda nomeada, não como desejável, mas como transitória. Ade-
mais, anunciara que “a neutralidade política é conscientemente cultivada [...] pela burguesia e por
seus agentes, a fim de desviar o proletariado da luta organizada pelo socialismo”, postura reafir-
mada no III Congresso, em 1921: “A Internacional Sindical Vermelha, diferente da Internacional
Amarela de Amsterdã, não pode, em caso algum, aceitar o ponto de vista da neutralidade”.
71 - Tal posição foi aceita por unanimidade no I Congresso da OISV. Entretanto, a forma de
sua vinculação com a IC – tradução mundial das relações entre os partidos e sindicatos, que se re-
velou estreitamente vinculada ao problema confessional –, foi alvo de vivas discussões e deman-
dou ajustes sutis, pois envolveu não só forças importantes, como também algumas tradições que
se conflitavam de frente há pelo menos 70 anos e sequer alcançavam consenso entre os dirigentes
bolcheviques. Certamente, havia motivos para que o Esquerdismo, doença infantil do comunismo,
em 1920, registrasse: na URSS os sindicatos, “no aspecto formal, são sem partido”.
72 - No mesmo ano, quando Trotsky propôs, sem sucesso, que o X Congresso do Partido
Comunista da URSS (PC-b) decretasse a militarização dos sindicatos e a nomeação de seus
diretores pelo governo, Lênin respondeu: “será que diante desse tipo de Estado [...] nada têm os
sindicatos a defender? Pode-se dispensá-los na defesa dos interesses materiais e espirituais do
proletariado organizado em sua totalidade? [...] Nosso Estado de hoje é tal que o proletariado
organizado em sua totalidade deve defender-se, e nós devemos utilizar estas organizações
operárias para defender os operários em face de seu Estado e para que os operários defendam
nosso Estado".
73 - Atento às sociedades capitalistas, o III Congresso da IC, em 1921, após dizer que “re-
23
forçar a união do partido com as massas significa, antes de tudo, ligá-lo mais estreitamente aos
sindicatos”, complementou: “O partido deve saber exercer a influencia mais decisiva sobre os sindi-
catos, sem submetê-los à menor tutela”; “O partido tem núcleos comunistas em tais ou quais sindi-
catos, mas o sindicato enquanto tal não está submetido ao partido”; “O objetivo não consiste, de
nenhum modo, em que os sindicatos estejam submetidos mecânica e exteriormente ao partido e
renunciem à autonomia que deriva necessariamente do caráter de sua ação”. Na mesma linha, o IV
Congresso da IC, em 1922, mesmo criticando quem fraude o conceito de autonomia para fortalecer
a “sua ação dissolvente e anárquica”, opor-se à luta política e divulgar preconceitos antipartido, fri-
sou: “O partido não pode e nem quer atentar contra a autonomia dos sindicatos”.
74 - Semelhante fórmula exigiria um parto complicado. As delegações ao I Congresso da
OISV, entre as quais as dos comunistas europeus, opunham-se majoritariamente à caracterização
da entidade mundial como seção da IC. A decisão sobre o vínculo formal-orgânico – mesmo ate-
nuado pela expressão "altamente desejável" – gerou críticas tão generalizadas que, no ano seguin-
te, a direção precisou readequá-la: “o Conselho Central da ISV declara que a resolução implica não
a subordinação dos sindicatos aos partidos comunistas e da ISV à III Internacional, mas exclusiva-
mente a busca da colaboração entre todas as forças organizadas da classe operária na luta pela
derrubada do regime capitalista”. O II Congresso, atendendo à opinião encaminhada pela Confede-
ração Geral do Trabalho Unitária, recém-formada na França, revogou por unanimidade o artigo 11
do Estatuto e formalizou que a relação entre as internacionais seria de colaboração.
75 - Mais difícil seria evitar que o caráter organicamente autônomo se tornasse letra morta
com a vinculação das entidades representativas, prévia e imanente, seja ao chamado “sindicalismo
revolucionário”, atendendo a pleitos de viés anarcossindicalista, seja à vaga fraseologia socialista,
que nem mesmo servia para distinguir-se dos partidos que patrocinavam a internacional “amarela”.
Vigorando semelhante formatação, tratar-se-ia, não da organização de toda a classe, mas de uma
tendência político-ideológica entre outras. O adequado é defender uma política revolucionária no
sindicato, coisa muito diferente. O III Congresso da IC já observaria que “os sindicatos [...] tendem
cada vez mais a abranger, sem exceção, todos os operários de cada setor da indústria e a receber,
nas suas fileiras, não somente os comunistas conscientes”, assim como constataria que “a teoria
do fortalecimento do comunismo somente mediante a propaganda e a agitação, [...] tem fracassado
totalmente”, pois “em nenhuma parte pôde criar-se algum partido comunista de certa influência.”
76 - Por fim, os princípios da unidade e da unicidade surgem – no Esquerdismo, doença in-
fantil do comunismo – em refutação à “tolice cometida pelos comunistas alemães ‘de esquerda’,
que deduzem do caráter reacionário e contrarrevolucionário dos chefetes dos sindicatos a conclu-
são de que é necessário... sair dos sindicatos!!, renunciar ao trabalho neles!!, criar formas de orga-
nização operária novas, inventadas!!”. Lênin prossegue: “Deixar de atuar dentro dos sindicatos rea-
cionários significa abandonar as massas operárias insuficientemente desenvolvidas ou atrasadas à
influência dos líderes reacionários, dos agentes da burguesia, dos operários aristocratas ou operá-
24
rios aburguesados (ver a carta de Engels e Marx em 1858, a respeito dos operários ingleses)”.
77 - A seguir, apresenta o dirigente bolchevique – que acumulara experiências nos concla-
ves da II Internacional e nos desafios recentes da passagem soviética – uma proposta concreta: “O
Comitê Executivo da III Internacional deve [...] condenar abertamente e propor ao próximo Con-
gresso da Internacional Comunista que condene, de modo geral, a política de não participação nos
sindicatos reacionários [...] e, em particular, a linha de conduta de alguns membros do Partido Co-
munista Holandês, que (direta ou indiretamente, às claras ou disfarçadamente, total ou parcialmen-
te, tanto faz) sustentaram essa política falsa.” O II Congresso da IC recomendou, como queria Lê-
nin, a participação nos sindicatos “amarelos”, sem “o abandono do trabalho revolucionário”.
78 - Coube ao IV Congresso da IC sublinhar: “A cisão do movimento sindical, sobretudo nas
condições atuais, representa o maior perigo para o movimento operário em conjunto. [...] faria re-
troceder a classe operária em vários anos, pois a burguesia poderia retomar facilmente as conquis-
tas mais elementares dos operários. Os comunistas devem impedir a qualquer preço a cisão sindi-
cal. Por todos os meios, [...] devem obstaculizar a criminosa pressa com que os reformistas rom-
pem a unidade sindical. [...] Nos países onde existem paralelamente duas centrais sindicais nacio-
nais (Espanha, França, Tchecoslováquia etc.), os comunistas devem lutar sistematicamente pela
fusão das organizações paralelas. [...] não é conveniente separar os comunistas isolados dos ope-
rários revolucionários, dos sindicatos reformistas, transferindo-os aos sindicatos revolucionários.
Nenhum sindicato reformista deve ficar desprovido de fermento comunista”.
79 - O V Congresso da IC, em 1924, alertado pelo aparecimento da reação fascista em vá-
rios países, que tornava imprescindível a preparação dos partidos e do conjunto do proletariado pa-
ra grandes combates democráticos, anti-imperialistas e contra “o perigo crescente de uma guerra
antissoviética”, clareou definitivamente sua posição em face das indefinições ou ambiguidades an-
teriores. A delegação do PC(b), afirmando que “os comunistas somos, por princípio, partidários da
unidade sindical”, manifestou-se a favor de que se convidasse a FSI para um congresso comum,
sob o critério da representação proporcional, para criar-se uma entidade sindical mundial única.
Depois de aprovada pela OISV, extensivamente ao Conselho Geral das trade unions inglesas, tal
proposta resultou em convite oficial.
80 - O VI Congresso da IC, em 1928, em face de resistências calcadas em posturas estrei-
tas e sectárias, manteve a política sindical mesmo depois que a FSI recusou a proposta de unici-
dade. Logo a seguir, após criticar inclinações liquidacionistas – o fim das organizações partidárias
nas entidades de massas –, recomendou a entrada na AFL dos sindicatos sob a influência comu-
nista, em vez de criar-se um “movimento de minoria”. Ademais, saudou a forte presença do movi-
mento sindical em vários países da Ásia. Por fim sublinhou, concomitantemente às tarefas políticas,
o caráter necessário das reivindicações parciais e específicas, nomeadas como compromisso coti-
diano e forma de aprofundar-se o liame dos revolucionários com as grandes massas proletárias.
81 - Em 1930, o V Congresso da OISV, após as recusas da internacional “amarela”, resol-
25
veu, respaldado pelo Comitê Executivo da IC (CEIC), transformar as oposições revolucionárias em
sindicatos independentes, recaindo na política confessional-isolacionista. Mas o VII Congresso da
IC, em 1935, decidiu corrigir a rota e saudar o Conselho Central da OISV por dirigir-se à FSI, vi-
sando à unificação. Insistiu, ainda, no critério de autonomia orgânica dos sindicatos em relação aos
partidos políticos – informe de Dimitrov –, mas preservando-se “o ponto de vista de princípio pelo
qual é inadmissível que os sindicatos mantenham posição neutral perante a luta de classes entre o
proletariado e a burguesia”. Por fim, estabeleceu: as entidades vermelhas fracas precisam integrar-
se às reformistas mais fortes; os grandes sindicatos de centrais distintas devem convocar congres-
sos de unificação referenciados em plataformas de luta comum, sem pontos irreais e artificiais.
82 - Claro está que a política da IC, muito além de uma flexão tática ou conjuntural, tinha
em vista reverter, com fundamento em princípios e concepções, o pluralismo em marcha livre para
o desfecho catastrófico. Se a política geral de frente única estava sendo exitosa, os resultados na
área sindical tinham sido parcos, principalmente pela recusa da FSI e demais articulações interna-
cionais aos convites pela unidade política e orgânica. Com a II Guerra Mundial – inclusive seus
processos preparatórios e resultados geopolíticos – as condições concretas provocaram uma des-
mobilização prática da OISV em 1937 e a substituição da IC, em decisão do CEIC, por múltiplas
formas de intercâmbio, consulta e colaboração entre partidos, após 1943. Ocorre que a Revolução
de Outubro enfrentava o momento mais difícil de sua existência e a batalha soviética, de vida ou
morte, contra os exércitos nazifascistas coligados entrava na fase de contraofensiva.
83 - Ao fim das hostilidades, havia muitas articulações internacionais, destacadamente a
OISV, a FSI e a CMT. O desfecho, porém, havia favorecido à URSS e aumentado seu prestígio,
criando novas condições para se rediscutirem os critérios e formas de unidade, mesmo com as cor-
rentes arraigadas ao pluralismo por concepção e, há pouco tempo, indiferentes ou até hostis à uni-
cidade. No próprio ano de 1945 aconteceu a grande vitória: o Congresso de Paris criou a Federa-
ção Sindical Mundial (FSM) – World Federation of Trade Unions, com a sigla WFTU. Participaram
56 organizações nacionais de 55 países e 20 organizações internacionais, representando 67 mi-
lhões de trabalhadores, inclusive da China e de nações latino-americanas. Obviamente, o desfecho
favorável só aconteceu depois de polêmicas e más vontades, sobretudo envolvendo o Congress of
Industrial Organizations (CIO), a AFL, a CISC e a CGT. Muitos ficaram na entidade a contragosto.
84 - Desde o início, a direita buscou a cisão, mas só conseguiu realizá-la em 1949, sob a
“guerra fria” – antecipada pelo uso da bomba atômica, abandono dos compromissos democráticos,
edição do Plano Marshall e preparativos do macarthismo –, quando as centrais dos EUA e da In-
glaterra, que já propunham o fim da entidade unitária, capitanearam vários sindicatos rumo à cria-
ção da Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL). Em resposta, o 13º
Congresso Sindical Mundial – Damasco, 1994 – derrotou a proposta cisionista e manteve a FSM.
Já no caminho à direita, o Congresso de Viena, em 2006, promoveu a fusão da CIOSL e da CMT,
compondo a Confederação Sindical Internacional (CSI) – International Trade Union Confederation
26
(ITUC) –, que adotou a conciliação e a cooperação de classes como prática e objetivo.
85 – Hoje, a CSI, com sede em Bruxelas, declara que representa 175 milhões de trabalha-
dores, pertencentes a 311 sindicatos nacionais em 155 países e territórios. Agrupa federações in-
ternacionais, que reúnem sindicatos nacionais por setores. Tal estrutura integra-se às instituições
multilaterais tripartites, controladas por forças estatais e corporações privadas conservadoras e pró-
imperialistas, com destaque ao Council of Global Unions (CGU), página informatizada para elaborar
e divulgar os projetos e propostas do sindicalismo adaptado. Concomitantemente, imprime, em
conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) – International Labour Organization
(ILO) –, instituição especializada em regras disciplinadoras do labor, uma orientação mimetizada no
ambiente socioeconômico monopolista-financeiro e no aperfeiçoamento moral do capitalismo.
86 - A nova central potencializou a prática pluralista-confessional e a conciliação com a bur-
guesia, que consubstanciam suas diretrizes básicas. A unificação de seus aparelhos e o alarga-
mento de sua presença permitiram a multiplicação de sua capacidade doutrinária e negocial nos fó-
runs internacionais. Um dirigente tentou glamourizá-la com palavras tão genéricas quanto elucidati-
vas: “a CIOSL e a CMT defendem os mesmos valores do sindicalismo livre, democrático e inde-
pendente”. De fato, várias entidades aderiram à central “global” em busca de acomodação no pro-
cesso de mundialização em curso, de fragmentação nas relações trabalhistas e de reação burgue-
sa, na ilusão de se protegerem perante a desfiliação e a retração de receitas, bem como de se
apegarem a formas extrassindicais para “suprir” dificuldades na representação e assim por diante.
87 - A plataforma da CSI sequer arranha os interesses do capital: diálogo social com o Ban-
co Mundial, o FMI e a OMC; campanhas junto com a OIT pelo tal “trabalho decente”; organização
de minorias e segmentos sociais para fins policlassistas; melhorias na transição da escola ao traba-
lho na perspectiva da empregabilidade. Ao contrário de reorientar o movimento sindical internacio-
nal para novas e maiores lutas contra o capital, limita-se à participação institucional na esfera das
organizações pautadas pelo “desenvolvimento global”, pela “sustentabilidade” e pelo “tripartismo”.
Assim, alinha-se à concepção do “propositivismo sindical” e do “sindicalismo de sociedade ou cida-
dão”, eliminando ou secundarizando a questão salarial como pleito e a greve como forma de luta,
conforme o diapasão social-liberal e até ultraliberal. De fato, vincula-se à utopia do capital decente.
88 - As grandes alterações no quadro mundial, com a ofensiva do capital sobre o trabalho e
a mudança na correlação de forças, inclinaram setores do movimento sindical em direção ao adap-
tacionismo e ao conservadorismo. No Japão, que se apresenta como nação de proletários-modelo,
as jornadas extensas, o esfacelamento pluralista e a conciliação forçada provocaram o “karoshi” –
morte súbita no trabalho –, ao passo que, ao longo das crises econômicas, o saque de mais-valia
cresceu na proporção dos cortes nas conquistas. Mundialmente, algumas centrais sindicais que an-
tes se ancoravam à esquerda e dirigiam lutas, agora se colocam sob o guarda-chuva da CSI. Con-
tudo, há tensões internas: trata-se de um compósito com coesão instável, sobretudo quando se de-
senvolve a luta de classes na depressão pós-1972, a mais profunda e longa do capitalismo.
27
89 - Nesse quadro, a FSM continua imprescindível. A entidade tem uma história de combate
às políticas patronais e defesa das reivindicações proletárias. Impulsionou a luta contra o jugo im-
perialista e a exploração capitalista. Batalhou por um futuro em que a liberdade, a paz e a prosperi-
dade “avançariam pelo bem de toda humanidade”. Depois, enfraquecida com as cisões dos anos
1950, bem como novamente golpeada nos anos 1990 pela reação burguesa mundializada e pela
dissolução da URSS, entrou em declínio, sofrendo perdas importantes, com destaque às centrais
da Itália e da França. Todavia, de 2005 em diante, tomou novo impulso e passou a reinserir-se na
luta de classes, promovendo a defesa das soberanias nacionais, o apoio aos povos em busca de
autodeterminação e a solidariedade ao proletariado no mundo inteiro.
90 - Com sede atual em Atenas, a FSM representa 90 milhões de trabalhadores em 126 pa-
íses. Organiza-se em forma de Congresso Sindical Mundial, mantendo escritórios regionais, um por
país, e Uniões Internacionais Sindicais (UIS) por ramos de atividade. Na perspectiva de zelar pelos
interesses proletários e combater o controle monopólico interno, tem representantes na ONU, na
UNESCO, na FAO e na OIT. Em sua plataforma, destacam-se os seguintes pontos: “guiar-se pelos
princípios da luta de classes e da participação militante; independência das organizações sindicais
em relação aos monopólios, corporações transnacionais e partidos políticos; enfrentar os graves
retrocessos nas liberdades democráticas e sindicais; enfrentar os ataques aos direitos humanos
sob o pretexto de luta contra o terrorismo pelas potências imperialistas; a luta pela paz”.
91 - No concernente aos assuntos especificamente sindicais, defende que as entidades:
combatam o burocratismo e o elitismo, visando a recuperarem a confiança das massas; exercitem
o trabalho coletivo, a crítica e o funcionamento democrático, para fortalecerem o movimento; prati-
quem a formação política e sindical, de modo que seus representados alcancem níveis de consci-
ência e cultura elevados; mobilizem-se por melhoria nas condições de vida e trabalho para suas
categorias, lutando no campo das reivindicações econômicas e dos direitos trabalhistas; promovam
o princípio nuclear do movimento sindical, desde sempre a unidade por cima das diferentes ideolo-
gias, nacionalidades, religiões, partidos, cores, idiomas e gêneros. Assim, a FSM segue sob os
ataques do capital, que mira na coesão internacional do proletariado.
92 - O XVI Congresso Sindical Mundial – Atenas, 2011 – teve 828 delegados de 101 países,
ratificou as reivindicações atuais dos trabalhadores e terminou com a eleição do Conselho Presi-
dencial. Mantendo-se viva e fortalecendo-se, a FSM preenche a necessidade proletária de manter
uma organização internacional, que sempre foi um dos principais objetivos das forças inseridas em
suas fileiras. Hoje, com a mundialização do capital, colocam-se os trabalhadores e povos em conta-
to mútuo, ampliando e radicalizando a solidariedade suprafronteiras. Se o movimento operário foi
primeiramente um produto europeu, acabou caminhando rumo à universalização, assumindo fei-
ções próprias às características históricas e culturais de cada país. Mesmo com suas formas naci-
onais, o conteúdo expresso nas lutas sindicais encerra uma dimensão internacional.
28
V – Os primeiros passos do movimento sindical no Brasil
93 - As formações do proletariado e, por consequência, a do movimento sindical brasileiro
são produtos sócio-históricos da consolidação hipertardia do capitalismo no terreno nacional. Di-
versamente do que aconteceu na Inglaterra, na França e nos EUA – nações onde o novo modo de
produção já se havia imposto no início dos oitocentos, permitindo assim a eclosão do operariado
fabril nas lutas populares –, aqui a revolução burguesa ocorreu por uma via especifica e retardatá-
ria. Tal observação demarca com várias especulações, inclusive as teses calcadas na concepção
circulacionista ou em outros modelos apriorísticos, que asseveram a vigência do capitalismo, ou
desde a primeira missa de Cabral, ou por meio da simples evolução econômica na sociedade colo-
nial, ou pela superação incompleta de uma suposta etapa feudal primeva.
94 – Ademais, essa constatação se distingue da intenção eclética de se agregarem hipóte-
ses fantasiosas, como a de que a estrutura econômica do Brasil ainda seria regida pelas relações
precedentes. Em contrapartida, permite afirmar-se que a transição à sociabilidade burguesa – dila-
tada por mais de um século em meio a ciclos agrário-exportadores – apenas se concluiu, nos seus
aspectos fulcrais, com as mudanças institucionais antioligárquicas, o predomínio estatal sobre as
reações locais e a hegemonia do capital sobre as antigas relações econômicas, completadas nas
convulsões de 1920 até a Constituição de 1934. Foram seus episódios os pronunciamentos nativis-
tas, a implantação do Estado nacional em 1822, as rebeliões regionais no Império, as insurreições
de escravos, as guerras quilombolas, as campanhas abolicionistas, a supressão definitiva do modo
de produção escravista-mercantil em 1888 e a proclamação da República em 1889, dentre outros.
95 - Na ausência de um evento fundante nacional, único e radical, a primazia do capital
manteve o monopólio rural da terra, a dependência econômica aos centros imperialistas, os traços
autocráticos no regime político e o conservadorismo em toda linha. Utilizando-se o conceito grams-
ciano, foi uma “revolução sem revolução” ou “revolução passiva”. Tal peculiaridade sintetiza o feixe
de múltiplas determinações que agiram na origem do proletariado: a não ser em certos casos – fer-
rovia, porto, transporte marítimo, extração mineral, construção civil, indústria naval, serviço público,
comércio, banco e outros, ainda que o assalariamento se misturasse às velhas formas –, o labor
cativo predominou até maio de 1888. Às vésperas da abolição, a St. John d’El Rey Mining Com-
pany Limited, em Minas Gerais, tinha 1.690 escravos entre os 2.500 trabalhadores.
96 - A pequena e difusa expressão da força laboral livre, combinada à minúscula taxa de
urbanização – em 1872, apenas 10% da população moravam nas cidades – e industrialização, tor-
nou impossível a existência de organizações operárias amplas e robustas. Mesmo assim, a exis-
tência de um proletariado nascente na sociedade antiga ensejou os primeiros passos de resistência
à exploração, em forma de associações ou sociedades rudimentares para socorro e ajuda mútua
diante de necessidades maiores – como desemprego, penúria, doença e morte –, evoluindo nos
anos 1870 e 1880 rumo à organização de ligas e uniões operárias por ofícios, em defesa de seus
29
interesses mais gerais, que depois resultariam nos primeiros sindicatos por ramo de atividade.
97 - O debute brasileiro no movimento grevista se deu em 1720, nos poros mesmos da es-
cravidão e sob o jugo colonial, quando o porto de Salvador, à época o maior das Américas, foi pa-
ralisado. A experiência paredista se repetiu em 1791, desta feita no Rio de Janeiro: os empregados
na Casa das Armas exigiram salários atrasados. Em 1858, os 80 membros da Imperial Associação
Tipográfica Fluminense – a primeira entidade representativa de caráter sindical no Brasil, fundada
cinco anos antes – cruzaram os braços e impediram a circulação de importantes jornais cariocas,
denunciando as péssimas condições de trabalho e renegando “a falsa crença da obediência e de-
dicação a seus pretendidos senhores”. Em 1895, dois anos depois de uma tentativa fracassada, o
Centro Socialista celebrou, pioneiramente, o Dia do Trabalhador na cidade portuária de Santos.
98 - No ano seguinte à implantação da República, já existiam quase mil fábricas, em geral
de pequeno porte. Vinte anos depois, tais unidades se concentravam no Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com 68,85% do proletariado industrial. As regiões sul e sudes-
te, somadas, reuniam 89,3%. Eis o ambiente social em que se constituíram e proliferaram inúmeras
organizações e iniciativas, como as seguintes: no Rio de Janeiro, a União Operária do Engenho de
Dentro (1889), a União dos Operários Estivadores (1903), a Sociedade União dos Foguistas
(1903), a Associação dos Marinheiros e Remadores (1904), a Sociedade de Resistência dos Tra-
balhadores em Trapiche e Café (1905); em Porto Alegre, a União do Trabalho (1892).
99 - Compreende-se por que surgiram, no alvorecer dos novecentos, alguns círculos, cor-
rentes e personalidades jacobinas ou reformadoras, oposicionistas ou situacionistas, radicais ou
moderadas, bem intencionadas ou oportunistas – “amarelos”, positivistas, cristãos, socialistas,
anarquistas, carreiristas e humanistas de todo tipo –, que procuravam soldar-se aos trabalhadores
livres assalariados, tateantes na busca de suas reivindicações imediatas e de protagonismo social,
não raro adotando a greve como forma de luta. Todavia, o grosso do valor econômico era produzi-
do no campo, composição que manteve a influência oligárquica no aparelho de Estado. Até então,
a sociedade política oficial procurava os caminhos adequados à contenção do proletariado infante.
100 - A primeira lei sindical brasileira – Decreto nº 979 de 1903 –, elaborada por iniciativa
católica, determinava que as entidades fossem corporativas, reunindo empregados e empregado-
res no mesmo espaço, fórmula que exerceria influência na conformação da política estatal e na es-
trutura sindical brasileira. Todavia, o verdadeiro marco legal se fincou em 1907, com o Decreto nº
1.637, também de inspiração cristã, que reconheceu o direito de organização para todas as catego-
rias laborais. Todavia, atribuiu-lhes um papel colaboracionista – a utópica “harmonia [...] entre o
capital e o trabalho” –, na linha estimulada pela encíclica Rerum Novarum, de 1891, inaugurando
certa compaixão terceirista. No entanto, a busca do pacto social seria a outra face da repressão po-
licial contra os sindicalistas, especialmente socialistas e anarquistas: na sequência, deportaram-se
600 estrangeiros “indesejáveis,” com base em decretos especiais e sentenças judiciais.
101 - Nas primeiras décadas dos novecentos, grandes riquezas patrimoniais ou monetárias,
30
no campo e na cidade, verteram-se à configuração de capital na esfera da produção. Finalmente, a
“velha toupeira” que cavava no solo da sociedade antiga, passou a determinar profundas transfor-
mações. A força de trabalho escrava se pôs à disposição do assalariamento, agregando-se aos
homens livres, por sua vez ampliados com os aproximadamente quatro milhões de imigrantes que
advieram de 1880 a 1930, destinaram-se ao campo em sua maioria e, depois, redirecionaram-se
aos principais centros urbanos. O imaginário do jovem proletariado permeou caminhos próprios e
ainda entrou em contato com tendências em voga na Europa, começando pelas utopias, continu-
ando na AIT, passando pelo mosaico da II Internacional e desaguando na Revolução de Outubro.
102 - Na simbiose do nascente operariado nativo, já em movimentação espontânea, com os
imigrantes estrangeiros e seus filhos ou netos nacionais, continuaram a desenvolver-se o ser e a
consciência do proletariado nos centros urbanos do sudeste e do sul em fase de industrialização e
de relações capitalistas expansivas. Eis por que seria inconsistente e infrutífero procurar-se a ori-
gem do movimento sindical brasileiro nas ideologias, doutrinas e padrões comportamentais que te-
riam chegado, em primeiro posto, ao mundo do trabalho local, como se fossem imperativos exterio-
res e precedentes ao processo econômico-social de sua conformação concreta. Semelhante hipó-
tese reproduziria o mito fundador europeísta, complexo imitativo sugerido pela cultura colonial.
103 - Na verdade, as esferas intelectuais, sobretudo exóticas – parcialmente fora de lugar –
nunca desempenharam papel determinante, embora estivessem presentes nas volições que dispu-
tavam, em face das necessidades reais, os rumos do associativismo espontâneo. As primeiras en-
tidades e ações, de corte profissional, iniciaram a reivindicação de melhorias sociais, embora conti-
nuassem frágeis. Não tardou que sociedades por ramo econômico – de ferroviários, marítimos, têx-
teis ou mistas – ganhassem impulso no início do século XX, seja procurando formas e soluções
imediatistas sob a influência oficial, seja acolhendo incentivos de círculos socialistas. O sindicalis-
mo imediatista ou “amarelo”, mais atuante nos setores públicos, mesclado às demais posições e
sem dilemas confessionais, inauguraria uma cultura de ação pragmática – ora combativa, ora ne-
gocial e sempre submissa à ordem –, mas legaria um inventário de conquistas econômico-sociais.
104 - Os relatos registram, igualmente, a constituição de algumas comunidades ou colônias
isoladas, incentivadas por volições típicas de ambientes intelectuais, artesãos e camponeses, que
alimentavam o desejo nostálgico de subsistir à margem do capitalismo nascente, a exemplo de Ce-
cília, Guararema, Vapa e Cosmos. Também adentraram na cena os adeptos do anarcossindicalis-
mo, especialmente no Rio Grande do Sul e em São Paulo, trazendo ainda na bagagem os valores
da autonomia gestionária do trabalho próprio e independente, na tradição do libertarismo eurolati-
no. Até então, as articulações, as entidades e as lutas, em geral circunscritas a áreas minoritárias,
constituíam uma colcha de retalhos – eco do padrão adotado na AIT ou até anteriores –, sem he-
gemonia de qualquer uma das correntes atuantes.
105 - Os primeiros encontros nacionais – os Congressos Socialistas de 1892, realizado no
Rio de Janeiro, e de 1902, ocorrido em São Paulo – misturaram representações proletárias e de
31
ofícios, muitos de caráter protossindical, com delegações ou propósitos programáticos e organiza-
cionais tipicamente partidários, ao estilo da II Internacional, que realizara seus primeiros cinco con-
gressos na mesma época: 1889, 1891, 1893, 1896 e 1901. No fim do século XIX e no início do XX,
sucederam-se diversos encontros estaduais ou regionais, em moldes variados, começando com
Porto Alegre, em 1898, organizado por grupos, uniões, sociedades, comunidades, cooperativas e
jornais. Estava em marcha um impulso de generalização, apontando para novos fóruns nacionais.
106 - O I Congresso Operário, de 1906, também no Rio de Janeiro, manteve critérios de
credenciamento elásticos, aberto até a grupos por nacionalidade, lançou a Confederação Operária
Brasileira (COB) e aprovou uma pauta comum, notadamente, a jornada de oito horas e o seguro
para acidentes de trabalho. Todavia, inaugurou a polêmica entre as duas principais concepções à
época em voga no movimento sindical, que iriam dividi-lo irremediavelmente nos próximos anos:
uns, propondo a introjeção instrumental do conclave no interior de partidos socialistas em rearticu-
lação; outros, contrapondo a espontaneidade, a luta econômica e o corporativismo de ofícios à or-
ganização política do proletariado, como se as entidades pudessem incorporar, por si, uma estra-
tégia revolucionária ou, em sua variante moderada, devessem vivenciar nichos comunitário-
reformadores no interior da sociabilidade burguesa.
107 - Em opção política passiva e oficialista, o chamado IV Congresso Operário Brasileiro,
de 1912, igualmente no Rio de Janeiro, aprovou a fundação da Confederação Brasileira do Traba-
lho (CBT), cuja plataforma contemplou as reivindicações dos vários movimentos e entidades então
existentes, avançando para a “abolição de todos os monopólios”, mas naufragou em meio ao hibri-
dismo – autointitulou-se “partido político operário”–, ao reformismo e à expectativa no apadrinha-
mento governamental, que alentara desde o nascedouro. Em resposta, o II Congresso Operário, de
1913, reunido na mesma cidade, resolveu repudiá-la, retomando a sucessão ordinal iniciada há se-
te anos e formalizando a primazia doutrinária do anarcossindicalismo, até então difusa e tênue.
108 - Ao contrário da CBT, a COB, mesmo que descontinuamente, influenciou as greves-
gerais de 1917 e 1919, em SP, RJ e MG. Promoveu campanhas contra a repressão e pela paz
mundial. Todavia, o III Congresso Operário, em 1920, que objetivou “traçar uma diretriz doutrinária,
ideológica, instrutiva, de cultura proletária”, referiu-se tão somente à Comissão Executiva, a seções
regionais, a confederações por cidade e a federações por ofícios ou ramos. Astrojildo Pereira valo-
rizou a moção referente à Revolução de Outubro, “que tão alto tem erguido o facho da revolta triun-
fante, abrindo o caminho do bem estar e da liberdade aos trabalhadores mundiais”, e à “III Interna-
cional de Moscou, cujos princípios correspondem [...] às aspirações de liberdade e igualdade dos
trabalhadores”, mas o Boletim Nº 1, impresso após o conclave, a noticiou com ressalvas.
109 - Durante os anos 1920, os desdobramentos da luta de classes consumaram a falência
da concepção sindical que – ensimesmada em postulações tidas como econômicas, no federalismo
desorganizador, na proclamação da greve-geral permanente e na fraseologia revolucionária de
“poder para os sindicatos” – recusara-se a participar de ações políticas importantes, incorrendo no
32
abstencionismo eleitoral, rechaço às leis trabalhistas e indiferentismo aos pleitos populares mais
amplos, que entraram na ordem do dia e demandavam abordagens complexas. Mesmo assim, o
movimento sindical, depois dos primeiros ensaios e tentativas de sua infância e já sob alguma in-
fluência marxista, entrou em nova fase de ascensão.
110 - Considerando-se que as resoluções dos fóruns e as lutas ocorriam em torno das
mesmas reivindicações, revelando a convergência prática dos interesses proletários, fica patente
que, até aquele momento, as divergências eram fruto, fundamentalmente, da imaturidade presente
no movimento, embora exacerbadas por diversas concepções em busca de autoafirmação. Toda-
via, instalou-se uma contradição antagônica entre as necessidades maiores do sindicalismo – tal
como pensava, agia e se organizava – e a incapacidade intrínseca de resposta aos novos desafios
por parte de seus protagonistas espontâneos, especialmente o melhorismo imediatista, que surgira
ao fim dos oitocentos e crescera no alvorecer dos novecentos, e as correntes confessionais.
111 – Essa aporia foi acentuada por fatores significativos: as sublevações tenentistas; a Co-
luna Prestes; a repressão e a cooptação aos sindicatos, especialmente por Artur Bernardes; a Re-
volução de 30 e a guerra civil de 1932; a fundação da Aliança Nacional Libertadora (ANL); a im-
plantação do “Estado Novo”; a mudança no perfil do capital, com recuo dos ofícios individuais; o
crescimento empírico e o amadurecimento político do proletariado; a Revolução de Outubro e a
emergência da contradição capitalismo versus socialismo na geopolítica mundial; a crise final do
colonialismo e o avanço das lutas anti-imperialistas nos países dependentes; as iniciativas dos pri-
meiros agrupamentos marxistas a partir de 1919, a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB)
em 1922 e sua influência progressiva no meio sindical.
112 - A expansão do proletariado e sua capacidade histórica de apresentar demandas se
alçaram, no colapso da República Velha, ao centro das preocupações estatais, como alvo da re-
construção hegemônica e da disciplina legal. As formas embrionárias de associação no mundo do
trabalho, além de procurarem afirmar-se, passaram a ser recicladas pelos governantes por inter-
médio de estatutos político-jurídicos, inaugurando a nova seara da disputa social. Como o capital é
uma relação social, configurou-se também uma burguesia tardia, débil, sem autonomia e sem per-
sonalidade suficiente para bancar um projeto nacional próprio. O Estado continuaria marcado pela
influência oligárquica e assenhorado pelos interesses imperialistas – os ingleses e depois princi-
palmente os estadunidenses, diante dos realinhamentos reforçados na I Guerra Mundial.
113 - As querelas interconfessionais foram amenizadas pela necessidade concreta da luta
comum e pelo papel unitário desempenhado pela crescente influência comunista. Suscitam-se no-
vas experiências e acúmulos no quadro da crise nacional em curso e, nos anos 1930, da convivên-
cia conflituosa com as ambiguidades ou imposições legais. Em 1934, as relações institucionais das
entidades com o Estado seriam constitucionalmente equacionadas em moldes liberais – permitindo
que o patronato quebrasse a unicidade, como aconteceu na Mina de Morro Velho – e depois com
base no corporativismo oficial. Aproveitando as sucessivas brechas, reuniu-se o Congresso Sindi-
33
cal Nacional de 1929, que passou por cima dos critérios doutrinaristas, primou pela unidade, abriu-
se a todas as entidades representativas e fundou a Central Geral dos Trabalhadores (CGT).
114 - Seis anos após, em 1935, no clima compatível com a política dos V e VII Congressos
da IC, os 300 delegados à Convenção Nacional de Unidade dos Trabalhadores, representando 500
mil proletários, criaram a Confederação Sindical Unitária (CSU), que passou à história como a reu-
nião de todos os trabalhadores brasileiros em uma só central, filiando 489 entidades. Diante da
mobilização popular em ascensão – especialmente o rápido crescimento da oposição democrática
à esquerda – o Catete, cedendo a inclinações fascistas, editou a Lei de Segurança Nacional, proi-
bindo a greve, dissolvendo a CSU e, logo depois, colocando a ANL na ilegalidade. Houve resistên-
cia, mas o insucesso do levante nacional-libertador em 1935 e o golpe de 1937 sob a provocação
do “Plano Cohen” desencadearam o terrorismo de Estado contra os comunistas e sindicalistas.
115 - No entanto, à margem das intenções estadonovistas – suprimir a autonomia das enti-
dades e atrelá-las –, o Decreto Lei n.º 1.402, de 1939, ao instituir a unicidade e bloquear o plura-
lismo, ilegalizaria definitivamente o cisionismo patronal. Ato contínuo, a eclosão da II Guerra Mun-
dial, a política de aliança internacional contra o nazifascismo, a organização da Justiça do Trabalho
e, em 1943, a decretação da CLT concederam certas brechas às atividades sindicais, permitindo-
lhes uma dura travessia até a anistia, a queda de Getúlio e a legalização do PCB em 1945. Já a
partir de 1942, as autoridades palacianas, percebendo a crise irreversível do “Estado Novo”, prepa-
ravam a transição para uma República Constitucional de contornos ainda indefinidos.
116 - O respaldo governamental entre os trabalhadores se reforçava com aumentos salari-
ais. A Lei Antitruste – 1945 – e o fechamento da Sociedade dos Amigos da América garantiriam o
apelo nacional. A disputa, porém, imporia uma abordagem sobre a questão sucessória. Submetido
à pressão pública – estimulada pela vitória contra o nazifascismo e as relações com a URSS –, o
primeiro mandatário prometeu a normalização política. Preocupada com a desenvoltura do adver-
sário, a UDN – cujo estatuto afirmava ser “o capital estrangeiro [...] necessário [...] para o aprovei-
tamento das nossas reservas inexploradas” – exigia imediata eleição presidencial, pois sua meta
era o Catete. Para o PCB, a transição deveria basear-se na Assembleia Constituinte, que promove-
ria mudanças democráticas: só após, com novo arcabouço legal, realizar-se-iam os demais pleitos.
117 - Com o “queremismo” ganhando as ruas e o movimento comunista aproximando-se de
setores trabalhistas, os oposicionistas mais à direita, com participação de militares e apoio estadu-
nidense, intensificaram a conspiração contra o continuísmo cada vez mais reformista. Em 29 de ou-
tubro, vergando-se ao ultimato do Alto Comando do Exército, Vargas se retirou do cargo, que foi
assumido pelo Presidente do STF. O golpe saíra vitorioso sem confronto, criando condições para
se realizarem seus objetivos principais: a restauração do clima propício à penetração do capital
monopolista-financeiro exógeno, impulsionado pela Fase A da 4ª onda longa ou Golden Age; a
contenção da esquerda e do movimento sindical em processo de fortalecimento.
34
VI – O movimento sindical brasileiro de 1945 em diante
118 - Em 1945, organizou-se o Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), exigindo li-
berdade sindical, fim do Departamento de Imprensa e Propaganda e extinção do Tribunal de Segu-
rança Nacional. Em 1946, o Congresso Sindical dos Trabalhadores do Brasil, com 2.400 delega-
dos, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, criou a Confederação Geral dos Trabalhadores do Bra-
sil (CGTB). Após o avanço eleitoral dos comunistas e a promulgação constitucional, o governo fe-
deral resolveu brecar o processo democrático e desencadear a repressão. Ante os acúmulos do
movimento popular e o militarismo imperialista – que antecipava o macarthismo, a Guerra da Co-
réia e a “guerra fria” –, Dutra mandou proibir manifestações, invadir residências, prender militantes,
assassinar ativistas, proscrever o PCB e cassar os mandatos comunistas. Com apoio da oposição
udenista, criminalizou a greve, proibiu o MUT, fechou a CGTB e interveio em suas 400 entidades.
119 - O movimento sindical viveu dilemas complexos. A decisão de responder à escalada
repressiva com a organização de associações “democráticas” em cada categoria profissional en-
fraqueceu a influência marxista sobre as massas proletárias. A justa criação de representações ge-
rais proibidas por lei se converteu na quebra da unicidade por baixo, abrindo caminho ao monopó-
lio pelego na estrutura e aumentando a exposição dos revolucionários ao ataque inimigo. Prestes,
signatário dos Manifestos de Janeiro, em 1948, e de Agosto, em 1950, usados como justificação da
nova linha sindical do PCB, criticou: “escrevi uma longa carta citando [...] Esquerdismo, doença in-
fantil do comunismo. [...]. Queria mostrar que os comunistas deviam participar dos sindicatos [...],
era [...] mais vantajoso participar de sindicatos legais”; “os sindicatos paralelos não tiveram êxito”.
120 - O equívoco foi corrigido em julho de 1952, pela resolução Ampliar a organização e a
unidade da classe operária, que determinou aos militantes: “ingressar em seu sindicato, tornar-se
ativo militante sindical”, embora mantendo a disputa contra os dispositivos antidemocráticos da le-
gislação vigente – atestados ideológicos, intervenções e aparelhamento populista. Todavia, a mobi-
lização na zona rural começou a oscilar entre movimentos temáticos, como as Ligas Camponesas,
e as entidades representativas com presença proletária. Sem menosprezar-se o papel desempe-
nhado pelas demais formas do movimento agrário, foi um marco a fundação de aproximadamente
mil sindicatos e a iniciativa de criar-se, em 1963, a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura.
121 - A recuperação do espaço retirado pela repressão – facilitada pela postura sectária –
deu-se sob os governos seguintes: as lutas passaram os anos 1950 em crescimento e se fundiram,
na passagem aos sessenta, com o pleito por reformas. Os dois presidentes articularam, cada qual
do seu modo, estratégias burguesas calcadas no desenvolvimentismo. Ambos precisavam acenar
aos “de baixo” para tecer alianças amplas, neutralizando as pressões golpistas e ultraconservado-
ras, bem como resguardando acordos eleitorais. Vargas, que no “Estado Novo” retirara a coleira de
Felinto Müller e o soltara contra os comunistas, associou o trabalhismo a interesses nacionais e ao
projeto de industrialização, pacto político que adquiriu feição trágica com o suicídio de 1954.
35
122 - Todavia, Getúlio preservou, por meio de Goulart, a ponte político-institucional com a
modernização conservadora e cosmopolita de seu sucessor. Kubitschek, que votara pela cassação
dos mandatos comunistas em 1947, mas recebera seu apoio eleitoral em 1955, declarou “que as
reivindicações operárias dependem de sindicatos fortes e estes só poderiam surgir nas localidades
de grande concentração de trabalhadores, onde se caracterizam, naturalmente, o espírito associa-
tivo e a união para defesa dos interesses comuns”. Afirmou também que é preciso manter “o prin-
cípio da unidade sindical e obrigatoriedade do imposto sindical, no qual se esteiam o poder de re-
presentação e a autoconfiança dos sindicatos brasileiros”. Novos espaços e horizontes se abriram.
123 - De 1940 a 1953, o proletariado fabril duplicou para 1,5 milhões. Nos 1950 o PIB per
capita no Brasil cresceu três vezes mais que no restante da América Latina. De 1951 a 1953 ocor-
reram 1.500 paralisações, que atingiram dois terços da classe. Em São Paulo, exprimindo as con-
quistas na Greve dos 300 Mil, surgiu em 1954 o Pacto de Unidade Interssindical, que, em 1961,
somado a entidades cariocas, transformou-se no Pacto de Unidade e Ação. Multiplicaram-se cam-
panhas nacionais, de cunho anti-imperialista: contra a bomba atômica, o envio de tropas à Coreia e
o Acordo Militar Brasil-EUA, bem como pela criação da Petrobrás. Pouco mudou, porém, no arca-
bouço legal: os sindicatos continuaram sob o controle ministerial e o regime democrático-restritivo.
124 - A fase de ascensão experimentada pelo movimento proletário acontecia sobre um pa-
no de fundo econômico-social concreto. Foi nos anos 1950, em época posterior em relação à Eu-
ropa e aos EUA, que o capitalismo começou a gerar monopólios econômicos no Brasil. Os investi-
mentos estrangeiros, que já penetravam sem obstáculos durante o Governo Dutra, estiveram tam-
bém presentes nos esforços getulistas voltados à construção estrutural do parque fabril, mesmo
com suas veleidades patrióticas, e se consolidaram no mandato de Juscelino, em forma de grupos
transnacionais, indo além da antiga presença que mantinham nas esferas da circulação doméstica
e do controle exógeno sobre as riquezas locais.
125 - Com a industrialização acelerada, os conglomerados privados se fortaleceram e inten-
sificaram sua competição pela primazia total e incontestável. A “modernização” passiva da produ-
ção penetrava as diferentes esferas da vida social e se estendia às instituições governamentais,
passando a exercer, apesar de carregar contradições intestinas, considerável influência econômica
e política. Na primeira metade dos anos 1960, com o auge da Golden Age mundial do capitalismo,
o aggiornamento conservador na economia nacional começou a expressar-se como interesse polí-
tico dos grupos monopolista-financeiros fortalecidos, passando a disputar o controle do aparato pú-
blico contra o que seus agentes enxergavam como estatismo e licenciosidade republicana.
126 - No capitalismo retardatário e dependente, com o auge da “guerra fria” na geopolítica
mundial, com o crescimento dos movimentos populares, com a ascensão nacional das lutas por re-
formas de base, com o engajamento da intelectualidade progressista à esquerda, com o vácuo de
supremacia entre as várias frações do capital, com a sociedade política burguesa penetrada por
disputas sectárias e com o governo federal permeável a reivindicações vindas “de baixo”, era im-
36
provável que a reorganização autocrática do Estado, traduzida na fusão de seus órgãos com os
monopólios econômico-financeiros, acontecesse sem traumas, pacificamente e pela via democráti-
ca, em que a hegemonia jogasse o papel central.
127 - Como se não bastasse, a crise conjuntural, com inflação e recessão, completava o
ambiente instável e oferecia pretextos aos conluios da oposição liberal-conservadora, encabeçada
pelo lacerdismo e robustecida pela conspiração nos quartéis. Em face dos profundos dilemas naci-
onais, dos conflitos incontornáveis e do reduzido espaço ao exercício de mediações, que até foram
tentadas à exaustão, os representantes dos conglomerados e seus aliados – impotentes no âmbito
da representação política formalizada e da correlação de forças expressa pelo sufrágio – decidiram
recorrer à cirurgia extralegal, isto é, à linha mais aderente à tradição direitista, mais simples à efeti-
vação, mais rápida na execução e mais garantida no resultado imediato.
128 - O golpe de 1964 foi o ajuste formal do Estado burguês à concentração e centralização
do capital sob a hegemonia da oligarquia financeira, contra as lutas nacionais, democráticas, prole-
tárias e camponesas. Ocorreu sob os auspícios dos cartéis transnacionais e do latifúndio, autono-
meados como defensores da civilização ocidental e da moral, bem como impulsionado pela inge-
rência estadunidense. Os segmentos mais retrógrados da classe dominante suprimiram a república
constitucional, em que seus representantes partidários geriam a coisa pública, e cederam às For-
ças Armadas o papel de mediador, com o respaldo de Washington e das sobrevivências ultramon-
tanistas na Igreja Católica, que prepararam a “Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade”.
129 - O movimento sindical, que vinha de intenso protagonismo desde os anos 1950, resis-
tiu às forças direitistas e articulações antidemocráticas. Em 1960 e 1962, o III e o IV Congresso
Sindical Nacional criaram e formalizaram o Comando Geral dos Trabalhadores, que sucedeu ao
Comando Geral de Greve, congregou vários fóruns, deu exemplo de unidade e se alçou ao primei-
ro plano na luta de classes: em 1961, quando Jânio renunciou, sustentou a posse de João Goulart
com a greve-geral; em 1962, desenvolveu papel decisivo na antecipação do plebiscito pelo Con-
gresso Nacional; em 1964, ajudou a mobilizar 200 mil pessoas para o comício na Central do Brasil;
em 30 de março, por nota pública, apelou à greve-geral, dessa feita contra o golpe militar.
130 – À frente da paralisação, que se revelou parcial, os ferroviários do Rio de Janeiro e os
mineiros da Cia. Morro Velho cruzaram os braços em apoio ao governo constitucional, dando
exemplo de combatividade. Ao mesmo tempo, cumprindo exatamente o papel divisionista e de li-
nha auxiliar do patronato – a que se destinavam desde o nascedouro e por meio de sua concepção
–, as entidades confessionais, articuladas como sempre na ambiência do pluralismo defendido e
forçado pela direita, imediatamente hipotecaram seu apoio aos golpistas: o Movimento Sindical
Democrático, a Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres, o Movimento Renovador Sindi-
cal e até mesmo a “centrista” União Sindical dos Trabalhadores.
131 - Nem o movimento sindical, demasiadamente oficialista, nem Goulart, dissolvido nas
esferas do Estado, nem a esquerda puderam resistir. O movimento comunista estava desnorteado
37
pela tese da revolução em duas etapas e dividido desde 1962, assim como tinha seu maior partido
fragilizado pelo reformismo, pela ilusão na “burguesia nacional” e pela expectativa em um contra-
golpe institucional. A correlação de forças desfavorecia a contraofensiva democrática e a operação
castrense se antecipou à situação revolucionária, antes que as massas ingressassem em um ca-
minho independente. O Massacre de Ipatinga, em Minas Gerais – 7/10/1963 –, quando policiais mi-
litares mataram dezenas e feriram centenas de operários da Usiminas, antecipou o golpe.
132 - O regime militar, com o AI-1, listou os primeiros 100 cassados: 31 eram sindicalistas.
Deteve, torturou e assassinou, em massa, militantes: só nos municípios mineiros de Nova Lima e
Raposos, onde ficava a Cia. Morro Velho, interrogou 300 pessoas, na maioria operários. Interveio
em diretorias de 1.565 sindicatos e 49 federações ou confederações. Demitiu milhares de
funcionários públicos. Implantou o arrocho salarial e o mascarou pelo Programa de Integração
Social (PIS). Decretou que as entidades seriam somente assistenciais: o Plano de Valorização dos
Sindicatos, com financiamentos e doações, as proibia de fazer algo além da pura prestação de
serviços médico-odontológicos, jurídicos, recreativos, educacionais, habitacionais e creditícios.
133 – Mas a resistência proletária se instalou. De 1965 a 1970 houve 80 greves. Em 1967,
criou-se o Movimento Intersindical Antiarrocho (MIA) em São Paulo. Em 1968 houve paralisações
contra o atraso nos salários e 13º. À revelia dos interventores e colaboracionistas, comissões de
fábricas ressurgiram e dirigiram lutas locais. Em 1968, a ocupação da Cobrasma deflagrou a greve
de Osasco, reprimida pelo Ministério do Trabalho, que a declarou ilegal e assumiu o controle do
sindicato. Três meses depois, na cidade mineira de Contagem, outra greve se levantou, desta feita
contra o arrocho salarial, sendo alvo da violência policial-militar. No mesmo ano, os cortadores de
cana em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, cruzaram os braços.
134 - O redespertar proletário, com formas de lutas em ampliação e ascensão que haviam
sido represadas pela coerção até 1978, completou-se no ABC paulista, quando os metalúrgicos
ignoraram a legislação repressiva e associaram-se ao movimento democrático já em marcha: em
outubro fizeram a primeira greve geral de categoria depois do golpe militar, parando 250 mil
trabalhadores e somando-se, naquele ano, a um milhão de grevistas. Em 1979, mais de 430
paralisações envolveram 3,2 milhões de trabalhadores em várias categorias, incluindo servidores
públicos. O processo se manteve ascendente no ano seguinte e, a partir de 1983, os petroleiros
também entraram em cena.
135 - O ambiente era favorável. A Golden Age acabou nos anos 1970 e cedeu lugar à fase
depressiva do 4º Kondratieff. O regime entrou no plano inclinado e, no final da década, deparou-se
com o protagonismo popular. Concomitantemente, reorganizavam-se ou surgiam partidos de es-
querda. Nesse quadro, as demandas e ações proletárias colocaram a urgência de um instrumento
unificador. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, alçado à condição de refe-
rência geral, passou a articular um bloco de militantes que, em sua maioria, se originavam da luta
democrática e careciam de tradição partidária. Os sindicalistas desse campo, autoproclamados au-
38
tênticos ou combativos, colocavam-se como sujeitos do “novo sindicalismo” construído “pela base”.
136 - Em 1980, reunidos no Encontro de Monlevade, Minas Gerais, seus representantes
lançaram um programa para “incentivar a articulação entre as lutas do movimento sindical e as lu-
tas do movimento popular, na cidade e no campo”. Ao mesmo tempo, defenderam o “fim da CLT,
com a elaboração de um Código do Trabalho que pregasse a liberdade e autonomia sindical de
acordo com a Convenção 87 da OIT”. Dois anos depois, criaram a Articulação Nacional dos Movi-
mentos Populares e Sindicais (Anampos). Na oportunidade, somaram-se ao esforço de organizar-
se uma central eclética, semissindical e popular. No plano político, assumiram a luta contra o regi-
me militar e a estrutura sindical tida como de origem meramente varguista.
137 - Outro polo foi a Unidade Sindical, que desde 1979 englobava o Sindicato dos Meta-
lúrgicos de São Paulo, a Contag, sindicalistas moderados ou pelegos, militantes ou simpatizantes
de organizações revolucionárias e até antigos interventores. Também se opunha ao regime militar,
mas queria uma “frente democrática ampla” e a manutenção da estrutura sindical. Em 1981, os
dois campos convergiram na I Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat) – Praia
Grande, São Paulo, com mais de 5.000 delegados –, que elegeu a Comissão Nacional Pró-CUT,
sigla referente à Central Única dos Trabalhadores que todos proclamavam apoiar. Todavia, a pró-
pria forma dessa comissão já anunciava a divisão: indicaram-se dois presidentes, um de cada lado.
138 - Os pontos em torno dos quais se deu a cisão, que também dividiu a esquerda e o mo-
vimento comunista, foram, além de assuntos inadequados ao caráter do fórum unitário – estratégia
da luta antirregime, reorganização ou criação de partidos e doutrinas sociais –, a estrutura sindical
e o tipo de central a ser criada. Em novembro, também a Unidade Sindical iniciou a construção de
sua central que, ao se fundar, resgataria o nome da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT).
Algumas divergências fora de lugar, exacerbadas por reclamos partidário-confessionais e sectários,
impediram que todos seguissem o mesmo caminho. A II Conclat – São Bernardo do Campo, São
Paulo, 5.059 delegados de 912 entidades ou agrupamentos – fundou a CUT em agosto de 1983.
139 - A nova entidade geral, disposta ao combate pelas reivindicações proletárias e campo-
nesas contra os interesses do capital e do latifúndio, manteve a palavra “única” em sua sigla, mas
abdicou da unicidade que seria consagrada na Constituinte. Os dissensos especificamente sindi-
cais foram aprofundando-se e adquirindo feição irretratável: todos se aferraram em suas doutrinas
e cada qual procurou articular seu próprio lugar. Percebendo o clima de cisões e o mosaico de ni-
chos – em que nem sequer faltou a conciliação de classes –, o patronato, o Estado e os sucessivos
governos teceram uma legalização pluralista capaz de acolher as várias centrais, reforçando e legi-
timando assim os pleitos confessionais e partidarizados, com apoio tácito ou expresso de todas.
140 - Tal situação nada tem de raio no céu azul. A história do movimento sindical brasileiro
é pontilhada por tendências liberal-pluralistas, que só foram contrarrestadas pela necessidade obje-
tiva e pela vontade política de unidade, que se gestavam no caráter social do trabalho imanente à
produção industrial capitalista, que se faziam tanto mais prementes nas conjunturas de agruras e
39
que se impunham em momentos de ampla participação de massas. Hoje, nos seus aspectos fun-
damentais, a unicidade ainda se encontra mantida nos sindicatos de base e nas instâncias federa-
tivas e confederativas, ainda que sob os ataques frequentes das forças e agrupamentos interessa-
dos em fragmentá-los, especialmente o patronato. No entanto, foi rompida na esfera das centrais.
141 - Em 2008, a Lei nº 11.648 sancionou a fragmentação por cima. Coroavam-se, em par-
te, os esforços da Comissão de Modernização das Relações de Trabalho, no Governo Collor, da
Comissão de Notáveis, no Governo Fernando Henrique, e do tripartite Fórum Nacional do Traba-
lho, no Governo Lula, cujas posições foram aprofundadas pela PEC nº 369, de 2005. Todavia, seus
efeitos nos sindicatos de base foram contidos pela resistência das confederações e de outros seto-
res que, no Fórum Sindical dos Trabalhadores, conseguiram salvar da revogação sumária o artigo
8º da Constituição Federal e barrar a Medida Provisória nº 294, de 2006, que desejava criar o Con-
selho Nacional de Relações de Trabalho em âmbito ministerial, com poderes anticonstitucionais.
142 - Houve também influências externas. Se, no início dos novecentos, a presença inter-
nacional surgia tão somente como caldeamento ideológico-doutrinário, 50 anos depois passou a
manifestar-se em operações pragmáticas, direcionadas à cooptação e ao financiamento de institui-
ções ou agrupamentos com alguma disponibilidade, visando a integrá-los em campanhas da direita
externa e interna. Exemplo desse assédio aconteceu durante a preparação e o apoio ao golpe de
1964, envolvendo organizações estadunidenses. No século XXI, os herdeiros e as derivações do
gomperismo, irradiados pela AFL, vêm fortalecendo posturas imediatistas, direcionadas exclusiva-
mente à manutenção de aparelhos e obtenção de resultados, em conluio com o capital.
143 - Nessa perspectiva, cumprem um papel político essencial na ordem burguesa, na me-
dida em que procuram transformar os diretores ou quadros sindicais em gerentes administrativos
conservadores, que adquirem orientação anticomunista e confundem os seus interesses próprios
com aqueles das entidades. As relações espúrias estabelecidas pelo sindicalismo estadunidense
no Brasil, em estreita colaboração com partidos e políticos reacionários ou social-liberais, geraram
institutos e agências especializados em organizar intercâmbios, cooptar dirigentes, recolher infor-
mações, determinar posições, difundir procedimentos e interferir nas contendas práticas. Várias
centrais brasileiras optaram por integrar-se à tradição e à rede sindical da CSI.
144 - A despeito da insistência pluralista, o arcabouço legal e os direitos sindicais ainda se
encontram em disputa. No entanto, a luta enfrenta dificuldades. A ebulição política dos anos 1980,
com suas expectativas contrarreformistas, resultaram na primazia do projeto ultraliberal nos noven-
ta e no reforço às ilusões politicistas em setores da esquerda. A crise do movimento sindical, inclu-
sive o esfacelamento nas representações por cima e a miséria confessional, encontraram terreno
propício nas mudanças do processo produtivo, que provocaram impactos no mundo do trabalho e
na organização sindical, constrangendo frações do proletariado ao pactualismo e ao liberalismo,
afinal “naturalizados”. Resistir à reação antissindical e passar à contraofensiva, eis a tarefa.
40
VII – O proletariado como ser social e seu perfil contemporâneo
145 - Nos últimos trinta anos, a chamada “reestruturação produtiva” – que incorporou a in-
formática às forças produtivas – e o projeto contrarreformista de alterar as relações institucionais do
Estado burguês com as massas assalariadas, vêm sendo o pano de fundo para a pretensão maior
dos ideólogos e políticos conservadores: liquidar os direitos sindicais e trabalhistas, arrancados à
ordem pelos “de baixo” em dois séculos de lutas e muito sacrifício. A essência dessa atualização
legal e hegemônica – originada, mundialmente, na metade dos anos 1970, quando os conglomera-
dos monopolista-financeiros precisaram responder ao início da fase depressiva na quarta onda
longa da era capitalista, bem como à concomitante crise dos Acordos de Bretton Woods, do Welfa-
re State, do keynesianismo e do fordismo é o ataque reacionário aos interesses do proletariado.
146 - Semelhante processo, ao contrário de mera perversão moral, foi uma necessidade ob-
jetiva. A saída menos onerosa e mais atraente para o capital, especialmente após o fim da URSS e
o enfraquecimento do movimento operário mundial, era atacar diretamente o ser social capaz de
resistir à extração de mais-valia absoluta e relativa mais elevada – para compensar a baixa ten-
dencial na taxa de lucro –, bem como de ameaçar, historicamente, a sociabilidade reinante. Eis por
que a burguesia e seus representantes, salvo algumas hordas fascistizantes, deixaram em segun-
do plano a ladainha sobre criancinhas devoradas por comunistas, para se concentrarem na tentati-
va de fragmentar os nexos internos da ideação revolucionária e do pensamento sindical.
147 - O tema privilegiado nos ambientes à direita passou a ser o lugar ocupado pelo traba-
lho na realidade social, conforme as teses que alardeiam – sem o menor esforço de comprovação
ou com argumentos equivocados – o vencimento da categoria trabalho na organização conceptual
da sociedade, a redução quantitativa do labor produtivo na economia, o deslocamento “natural” do
mercado para os “serviços” e, em suma, o fim do sujeito social capaz de realizar a emancipação
humano-universal. Igualmente, como já não haveria proletariado, a doutrina marxista sobre a trans-
formação social, o movimento sindical contraposto aos interesses do capital e até o direito burguês
do trabalho, mediador de conflitos, seriam extemporâneos e estariam condenados à extinção.
148 - Os comunistas navegam contra essa maré, criticam os manipulados critérios utilizados
pelas estatísticas oficiais e denunciam a falsidade geral da profecia sobre o fim da produção huma-
na. Suas opiniões são opostas à alardeada pelos coveiros dedicados a enterrar a classe nomeada
por Marx como “possibilidade positiva de emancipação”: o trabalho, longe de estar caducando, re-
vigora-se no interior do processo retrativo da indústria tradicional; consequentemente, ocorre a re-
estruturação do proletariado endogenamente ao conceito, com mudanças nas características, rela-
ções mútuas e aspectos exteriores de suas várias camadas, mas sem que seja violada sua essên-
cia econômico-social.
149 - Portanto, os comunistas assumem e defendem, como núcleo teórico-ideológico de
sua doutrina social e meta histórica de sua atividade política, a libertação integral dos seres huma-
41
nos ante a exploração e a opressão burguesa. Isso quer dizer, nas palavras de Marx, a supressão
da atividade alienada em que se desvanecem, metabolicamente, “o caráter útil dos produtos dos
trabalhos” e “as diferentes formas de trabalho concreto”, isto é, a eliminação do labor residual cuja
“objetividade impalpável” configura os “valores-mercadoria” típicos da sociabilidade contemporâ-
nea. Para tanto, é irrecorrível a realização de uma revolução social que destrua e refunda o Estado,
inaugurando o longo e complexo processo de transição socialista rumo à sociedade emancipada.
150 - Os arautos da extinção do trabalho dentro do capitalismo estão atados – por respon-
sabilidade própria, mas não contingente – a um conceito reducionista sobre o ser proletário, que é
incapaz de apropriar-se intelectualmente de sua realidade objetiva na dimensão de universalidade
concreta. Incompetentes para captarem a essência e as múltiplas formas de sua existência, histori-
camente constituídas, veem-se obrigados a concluir que a classe está sumindo. De fato, com as
inovações tecnológicas hodiernas, a informatização das máquinas e as mudanças físicas nas in-
dústrias, aquela específica e antiga camada operária de macacão e unhas sujos de graxa, dedica-
da exclusivamente ao trabalho manual, está perdendo terreno nos processos produtivos, fenômeno
já constatado por estudiosos, jornalistas, administradores de empresas e sindicalistas.
151 - Todavia, o fim do proletariado – seja como conceito, seja como esvaecimento objetivo
do ser social empírico – mostra-se insustentável por, no mínimo, dois motivos principais. Primeiro,
porque supõe a exacerbação escatológica da fragmentação nas indústrias em forma de terceiriza-
ção funcional, precarização do emprego, multiplicação da produção individual-parcelar e partição
das grandes unidades fabris rumo a pequenas empresas. Segundo, porque aprisiona a noção da
classe a um simplismo imune à realidade complexa do labor: ao confundir o ser social genérico
com uma de suas particularidades concretas, empobrece-o em cascata, identificando-o com traba-
lhador, respectivamente, produtivo, manual, gerador de bem material e criador de mercadoria.
152 - Ao contrário do que propõe tal concepção minimalista, o proletariado é a classe social,
historicamente definida, cujos membros só possuem a própria força de trabalho e, portanto, são
obrigados a vendê-la compulsoriamente à burguesia, em troca de salário para manter sua vida e
reproduzir suas condições de existência das mais banais às mais elaboradas, inclusive as condi-
ções técnicas indispensáveis à transformação industrial e autorrealização afetivo-cultural , produ-
zindo assim mais-valia ou permitindo que suas funções úteis, embora improdutivas, possibilitem ao
capital, em suas várias formas e movimentos, assenhorar-se de uma parcela da mais-valia gerada
no conjunto da sociedade.
153 - Se o labor é produtivo ou improdutivo, caracteriza-se como manual ou intelectual, gera
bens materiais ou espirituais, produz precipuamente mercadorias ou valores-de-uso para consu-
mos públicos e privados, são questões de fato importantes, que exigem estudos e classificações.
Todavia, tais enunciados específicos dizem respeito, não à singularidade do conceito genérico,
mas sim à função concreta realizada pelas diferentes camadas proletárias, isto é, ao lugar particu-
42
lar ocupado, ativamente, pelo trabalho abstrato na reprodução ampla do capital e das relações so-
ciais burguesas. São diferenciações que incidem, portanto, apenas sobre os contornos das cama-
das interiores ao moderno e contemporâneo mundo dos produtores e servidores assalariados.
154 - Trata-se do conceito clássico de proletariado, que deve ser o “bê-á-bá” dos comunis-
tas e de todos os militantes sindicais. Marx, há mais de um século e meio, superou as correntes de
pensamento que lhe eram contemporâneas, inclusive as filiadas ao socialismo utópico e ao movi-
mento operário espontâneo, e até hoje se distingue das vulgaridades que campeiam na mídia, na
academia e em setores da esquerda. Sua teoria jamais reduziu a classe proletária genérica ao
segmento assalariado realizador de trabalho produtivo, embora o considerasse como segmento in-
terno nuclear da transformação industrial. Ilustra esse ponto de vista a seguinte passagem: “Todo
trabalhador produtivo é assalariado, mas nem todo assalariado é produtivo”.
155 - A mesma observação vale para os tipos de labor localizados na esfera dos serviços,
que geram, tão somente, valores-de-uso para consumo imediato, seja público, pela sociedade, que
os recebe, seja privado, pelos capitalistas ou por simples pessoas físicas que os compram dos
prestadores. São as funções dos empregados que podem ser discriminados por ramo: nos diversos
níveis estatais, que não geram mercadorias com a finalidade precípua de serem vendidas no mer-
cado; nas empresas que operam com depósitos monetários, créditos, finanças, capitalização ou
seguros; nos estabelecimentos especializados em comércio atacadista ou varejista; nos escritórios
de vários tipos e nos setores improdutivos das indústrias; e assim por diante.
156 - A respeito, Marx alude aos “funcionários” dos “serviços estatais”, que “podem conver-
ter-se em assalariados do capital, mas, nem por isso, se transformam em trabalhadores produti-
vos”. Refere-se, ainda, aos “trabalhadores comerciais”, que realizam uma “função necessária, pois
o processo de reprodução também abrange funções improdutivas”, mas cuja “utilidade [...] consiste
em que se compromete parte menor da força de trabalho e do tempo de trabalho da sociedade
nessa função”: mesmo sem criar “diretamente mais-valia para o capital produtivo, [...] proporciona
ao capital mercantil participação nessa mais-valia”. Quanto aos bancários, sua função improdutiva
possibilita que “parte do lucro, da mais-valia, [...] que o capitalista ativo, industrial ou comerciante
[...], tem que pagar ao dono e prestamista desse capital”, transfira-se aos banqueiros como juros.
157 - A questão da produtividade se define pelas determinações históricas incidentes sobre
o trabalho, condicionando sua função específica no processo mesmo de valorização do capital, não
por meio de sua substância concreta, com “sua utilidade particular ou valor de uso peculiar no qual
se manifesta. [...] Um trabalho de idêntico conteúdo pode ser, portanto, produtivo e improdutivo”.
Suas características dependem, nos seus aspectos essenciais, das circunstâncias socioeconômi-
cas que cercam o labor, pouco importando se é predominantemente manual ou intelectual, se é ge-
rador de bens materiais ou espirituais e se é produtor de valores para uso durável ou para consu-
mo simultâneo à sua própria criação.
158 - Lembra Marx: “Um mesmo trabalho pode ser produtivo, se um capitalista o compra [...]
43
para obter lucro, ou improdutivo, se um consumidor o compra, uma pessoa que nele investe uma
parte de suas rendas para consumir seu valor-de-uso”. Alguém pode contratar um trabalhador por
empreitada ou salário – para cozinhar, faxinar, pajear, reparar utensílios, fazer obras, dar aulas par-
ticulares, advogar, obturar dentes, medicar e assim por diante – sem que se transforme em capita-
lista: “O operário também compra serviços com dinheiro, o que constitui uma maneira de gastar di-
nheiro, mas não de transformá-lo em capital.” Mas as mesmas funções concretas podem ser reali-
zadas por empresas e, nesse caso, haverá trabalho produtivo, mesmo que arrolados como servi-
ços pelas estatísticas oficiais.
159 - Retendo a singularidade, “Como o fim imediato e [o] produto por excelência da produ-
ção capitalista é a mais-valia, temos que só é produtivo aquele trabalho e só é trabalhador produ-
tivo aquele que emprega a força de trabalho que diretamente produza mais-valia; portanto, só o
trabalho que seja consumido diretamente no processo de produção com vistas à valorização do
capital. [...] Do ponto de vista do processo de trabalho em geral, apresentava-se como produtivo o
trabalho que se realiza em um produto, mais concretamente, em mercadoria. Do ponto de vista do
processo capitalista de produção, acrescenta-se uma determinação mais precisa: de que é produti-
vo o trabalho que valoriza diretamente o capital, o que produz mais-valia, ou seja, que se realiza
sem equivalente para o operário, para seu executante em mais-valia (sur-plusvalue), representa-
da por um sobreproduto (surplusproduce), ou seja, um incremento excedente de mercadoria para o
monopolizador dos meios de trabalho (monopoliser dos means of labour), para o capitalista.”
160 – Logo, “Só é produtivo o trabalho que põe o capital variável, e, portanto, o capital total,
como C+C=C+v. Trata-se, pois, de trabalho que serve diretamente ao capital como instrumento
(agen V) de sua autovalorização, como meio para a produção de mais-valia. [...] É produtivo o tra-
balhador que executa trabalho produtivo, e é produtivo o trabalho que gera diretamente mais-valia,
isto é, que valoriza o capital. [...] Somente a estreiteza mental burguesa, que toma a forma capita-
lista de produção pela forma absoluta, e, em conseqüência, pela única forma natural de produção,
pode confundir a questão do que seja trabalho produtivo e trabalhador produtivo do ponto de vista
do capital com a questão sobre o que seja trabalho produtivo em geral, contentando-se assim com
a resposta tautológica de que é produtivo todo trabalho que produz, todo o que redunda em um
produto ou em algum valor de uso qualquer; resumindo: em um resultado. [...] Só é produtivo o
operário cujo processo de trabalho = ao processo de consumo produtivo da capacidade de trabalho
do depositário desse trabalho por parte do capital ou do capitalista.”
161 - Não se pense que insistir na singularidade dos assalariados improdutivos significaria,
logicamente, retirá-los do âmbito conceptual referente a proletariado. Quando criticou os economis-
tas vulgares que designavam os “faux frais da produção” como produtivos, Marx já manifestara pre-
ferência pela franqueza e crueza de “autores do tipo Malthus, que defendem sem circunlóquios a
necessidade e a conveniência dos operários improdutivos”. Note-se que o autor falou em “operá-
44
rios”, não em “classe média” ou em qualquer outra expressão empirista, embora tivesse ressalvado
que os membros de sua “categoria ‘superior’ ”, a exemplo dos altos executivos empresariais e esta-
tais, hoje tão comuns, são “parasitas dos verdadeiros produtores ou agentes da produção”.
162 – Atualmente, quando as formas particulares do capital industrial urbano ou agrário,
comercial e bancário encontram-se fundidos em um todo superior e integral, sob o controle da
oligarquia monopolista-financeira, fração hegemônica da classe dominante, justifica-se ainda me-
nos subtrair a grande massa formada pelos trabalhadores assalariados improdutivos à classe pro-
letária. Todavia, continua sendo pertinente distingui-los dos proletários produtivos, até mesmo para
desautorizar os “apologistas” do capitalismo que, ao tentar misturá-los e descaracterizá-los, procu-
ram passar “felizes por alto sobre a diferença específica” entre ambos, localizada na sua “produção
de mais-valia” e no seu “trabalho vivo”.
163 - Marx também negou que o labor intelectual concreto seja, conforme a vulgata, intrin-
secamente improdutivo: “Como, considerando-se o desenvolvimento da subsunção real do trabalho
ao capital ou do modo de produção especificamente capitalista, não é o operário individual, mas
uma crescente capacidade de trabalho socialmente combinada que se converte no agente
(funktionär) real do processo de trabalho total, e como as diversas capacidades de trabalho que
cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo
imediato da formação de mercadorias, ou melhor, de produtos – esse trabalha mais com as mãos,
aquele mais com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (engineer), técnico etc., outro
como capataz (overloocker), outro ainda como operário manual direto ou inclusive como simples
ajudante , temos que mais e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no conceito ime-
diato de trabalho produtivo, e seus agentes no conceito de trabalhadores produtivos, diretamente
explorados pelo capital e subordinados em geral a seu processo de valorização e de produção.”.
164 - Depois, arrematou de maneira muito precisa: “Caso se considere o trabalhador coleti-
vo, de que a oficina consiste, sua atividade combinada se realiza materialmente (materialiter) e de
maneira direta num produto total que, ao mesmo tempo, é um volume total de mercadorias; é abso-
lutamente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador – simples elo desse trabalhador cole-
tivo esteja mais próximo ou mais distante do trabalho manual direto. Mas, então, a atividade des-
sa capacidade de trabalho coletiva é seu consumo produtivo direto pelo capital, vale dizer, o pro-
cesso de autovalorização do capital, a produção direta de mais-valia, e daí [...] a transformação di-
reta da mesma em capital.”.
165 - As funções intelectuais são irrecorríveis na produção capitalista. Concomitantemente
ao potencial físico do trabalho manual, constituem momento fundamental no processo de valoriza-
ção. Questão bizantina seria erguer uma Muralha da China entre ambos, sobretudo hoje, quando
vigem meios técnicos avançados e integrados. Tal evidência é acobertada pelos ideólogos conser-
vadores, que apresentam a condensação das funções intelectuais no processo produtivo e a hiper-
45
trofia das finanças, no mundo atual, como se fossem a redenção definitiva da acumulação diante
do labor em fase terminal. Perante a produção cada vez mais social e a apropriação cada vez mais
privada, invertem em palavras as tendências reais. Eis uma das mentiras pós-modernas: tendem o
trabalho a terminar e o capital impessoal a prescindir – também a ser – de todos.
166 - Assim, nenhuma assertiva está mais distante da realidade que a propalada substitui-
ção integral de indústrias declinantes por serviços hipertrofiados, acompanhada pela redução ou
desaparição completa do produtor direto, que seria totalmente substituído por máquinas. Desenvol-
ve-se, pelo contrário, a diversificação e a multiplicação das empresas, sejam industriais, sejam im-
produtivas, cada vez mais articuladas e integradas ao movimento superior do capital monopolista-
financeiro – controlado pela fração dominante da burguesia –, processo acompanhado pela proleta-
rização cotidiana do labor, ainda que irregular e até com recuos. Tal processo constitui a face ge-
nérica da “produção e reprodução das relações especificamente capitalistas”.
167 - Mesmo hoje, nos poros da produção, distribuição e circulação burguesas em sua eta-
pa monopolista-financeira, continua regenerando-se o trabalho independente com suas nuanças,
inclusive associado a novas tecnologias, mas sob a dominância da lógica hegemônica. O Manifesto
do Partido Comunista já o registrara: “A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até
então reputadas veneráveis e dignas de piedoso respeito. O médico, o jurisconsulto, o sacerdote, o
poeta, o cientista, todos foram convertidos em seus servidores assalariados.” Mais de uma década
após, Marx reafirmou: foram profanadas as profissões “que até então haviam sido precisamente
objeto de uma veneração supersticiosa e se encontravam rodeadas por uma espécie de auréola”.
168 - Pouco tempo depois, o tema foi desenvolvido pelo revolucionário alemão: “Na produ-
ção capitalista se tornam absolutas, por um lado, a produção de produtos como mercadorias e, por
outro, a forma de trabalho como trabalho assalariado. Uma série de funções e atividades outrora
envoltas por uma auréola e consideradas como fins em si mesmas, que se exerciam gratuitamente
ou se pagavam indiretamente como os profissionais [...], médicos, advogados [...] etc. na Inglater-
ra [... ] , por um lado, transformam-se diretamente em trabalhos assalariados, independentemente
do seu conteúdo e pagamento; por outro, caem sua avaliação, o preço dessas diversas ativida-
des, desde a prostituta até o rei sob as leis que regulam o preço do trabalho assalariado.”.
169 - Todo trabalho assalariado produtivo é proletário. Afirmar-se o inverso, porém, seria
falso. Quanto ao labor improdutivo, só é proletário aquele trabalho assalariado subordinado formal
e funcionalmente ao capital, excluindo-se, pois, as cúpulas dirigentes das empresas e dos órgãos
estatais, formadas por pessoas com altíssimas remunerações e situadas no topo da cadeia hierár-
quica, que atuam como agentes mediadores no processo gerencial e na extração de mais-valia. À
exceção de semelhantes serviçais da exploração – pequeno-burgueses ou sócios do capital –, o
movimento sindical é constituído, basicamente, pelos membros despossuídos que se distribuem
nas várias categorias econômicas.
46
VIII – A base social do movimento sindical no Brasil
170 - Nas condições brasileiras atuais, as entidades de massa podem continuar represen-
tando, às vezes, além do vasto semiproletariado, as camadas empobrecidas e intermediárias do
campesinato e da pequena burguesia urbana – os trabalhadores independentes que desenvolvem
suas atividades-fim sem recorrer a empregados permanentes –, de vez que esses se relacionam
de forma conflituosa com a ordem monopolista-financeira, na esfera da circulação e da política. No
entanto, como suas funções laborais ainda não foram impregnadas pela determinação e pelo con-
trole do capital na esfera da produção, seu papel nas reivindicações, nas mobilizações e nas for-
mulações permite inserções próprias, não raro dúbias e moderadas, às vezes impacientes e exa-
cerbadas. A greve, por exemplo, seria uma forma de luta ineficaz para promoverem suas deman-
das, pois inexistem patrões a pressionar diretamente.
171 - No campo, os sindicatos podem filiar, além dos proletários, proprietários rurais com
pouca terra, posseiros, pequenos arrendatários – inclusive parceiros, que pagam suas obrigações
com produtos – e assalariados sazonais ainda fixados no porto seguro das glebas familiares. Nas
cidades, também contemplam, por critérios profissionais ou de ofícios, parcelas de artesãos, came-
lôs, microempreiteiros, mecânicos de garagem, profissionais liberais, operadores autônomos de
computadores, caminhoneiros proprietários, taxistas independentes, motoboys, biscateiros e toda a
gama de trabalhadores mais ou menos especializados, manuais ou intelectuais, usuários de ferra-
mentas técnicas tradicionais ou avançadas, instalados em imóveis ou itinerantes, estáveis ou pre-
carizados em graus diferenciados, mas sempre sem patrão fixo e, portanto, tendo que se converter
em negociantes diante dos compradores de seus bens ou serviços, ou seja, os vários tipos de tra-
balhadores conhecidos por meio da expressão “por conta própria”.
172 – Tal extensão pode ser admitida, mas sem diluição conceitual da classe fundamental.
O reducionismo que incide sobre a representação do conjunto proletário acabaria incentivando e
promovendo, no extremo polar, por ecletismo ou por inadequação, a mistura geral de todos os
segmentos sociais ocupados – seja despossuídos, seja detentores de seus equipamentos, contro-
ladores do próprio processo laboral e vendedores de seus resultados – no amorfo protoconceito de
“classe trabalhadora”, tão usado pelo senso comum. A tal respeito, a substituição das palavras
“campesinato” e “proletariado”, de usos consagrados, pela vaga expressão que passa por cima das
relações laborais, efetivou-se no Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, e foi amplamente acolhi-
da no regime militar. Eis como as várias espécies de miséria classificatória podem nutrir-se no culto
ecumênico à ocultação do trabalho abstrato e à diluição das fronteiras de classe, que acabou pre-
dominando no discurso acadêmico, oficial, político e sindical, provocando confusão teórica e trans-
tornos práticos.
173 - No Brasil, o proletariado compõe, indubitavelmente, a grande maioria da força laboral.
Sua presença estrutural vem aumentando, embora de maneira variável, descontínua ou com retro-
47
cessos conjunturais, sob a influência de ciclos econômicos e políticos. O número de empregados
em relação às pessoas ocupadas ficou abaixo de 60% nos anos 1990, quando se pronunciaram a
destruição de forças produtivas e a difusão do trabalho considerado supérfluo pelo capital, pois re-
legado ao desemprego crônico. Naquele período, parte considerável da força laboral foi, porém,
reabsorvida pelo mercado nas condições de assalariamento informal ou trabalho por “conta pró-
pria”, engrossando assim as fileiras inorgânicas do semiproletariado que, somado aos trabalhado-
res pequeno-burgueses urbanos e aos camponeses, compõem a esmagadora maioria dos 40%
restantes.
174 - No século XXI, a percentagem de assalariados na população cresceu continuamente:
de 2001 a 2011, subiu de 62% para 69%, abarcando 15 entre as 16 milhões de pessoas que pas-
saram a ocupar novos postos laborais no período. Descontando-se a cúpula do setor improdutivo
nas empresas, que integra o terço parasitário da camada gerencial lato sensu e que foi estimada
em 5,8% pela Síntese de Indicadores Sociais – IBGE – de 2013, a taxa de proletarização girava em
torno de 67,7%. Portanto, as relações de produção caracteristicamente capitalistas – portadoras da
subjunção formal e real do trabalho pelo capital – alcançaram, desde a conclusão da longa e com-
plexa revolução burguesa no País, um patamar avançado na formação econômico-social monopo-
lista-financeira e dependente. Paralelamente, persiste a reprodução marginal das relações domi-
nantes no assalariamento informal ou sazonal, inclusive por obra de verdadeiras empresas dedica-
das a negócios ilícitos, do crime, passando pela contravenção, à sonegação e à simples burla da
legislação trabalhista.
175 - A propósito, em 2011, a ocupação sem qualquer registro oficial, embora estivesse re-
cuando, estava em 41,5%, atingindo 38 milhões de pessoas, que com seus familiares ultrapassam
a população da Alemanha, o mais populoso país-membro da Comunidade Europeia. Quem se abs-
tém de promover a dignificação do capitalismo e de redefini-lo pelas formalidades jurídicas, igno-
rando as relações reais de produção, pode perceber sua lógica nos poros da legalidade. A chama-
da exclusão, ao contrário de um gesto autofágico em que a burguesia expeliria forças produtivas
humanas para o exterior do “sistema”, é a passagem do capital, do labor vivo e do mercado para
fora do cenário formal dos direitos e deveres consagrados no Estado, isto é, à semiclandestinidade
no interior do sociometabolismo reinante.
176 – Atualmente, infinitos e profundos vasos comunicantes continuam permitindo ao di-
nheiro e às mercadorias fluírem pelas esferas ditas “incluída” e “excluída”, que se tornaram típicas
da formação econômico-social brasileira. Na raiz da suposta “retração” proletária na sociedade civil
institucionalizada operam processos concomitantes, que movimentam bilhões: a marginalização do
capital legal e a legalização do capital marginal. Nesse quadro, a violência, a criminalidade e a cor-
rupção crônicas em nada se assemelham à ausência de capitalismo e nem são determinadas pela
imoralidade dos políticos ou pela incivilidade do povo. Ilude-se quem sonha em resolver a crise da
cidadania burguesa por meio da “inclusão”, dos vitimados pela “exclusão”, à sociedade formal do
48
trabalho abstrato, ainda mais quando tal discurso cede lugar a expedientes conservadores como a
privatização das empresas estatais para combater a corrupção, o mero endurecimento penal para
enquadrar a população pobre ou o combate às instituições democráticas para colocar “ordem” no
País.
177 - As mudanças operadas na estrutura do emprego revelam, além de oscilações conjun-
turais, o impacto causado pelas tecnologias de ponta na economia fabril clássica. Mas a concen-
tração e a centralização de capitais, associadas ao papel das novas teorias gerenciais burguesas e
das mudanças operadas pelas políticas governamentais conservadoras, também devem ser consi-
deradas, de vez que são vetores de uma determinação multilateral, objetiva e subjetiva, que atua
sobre o perfil do trabalho produtivo e o modifica. Eis o constrangimento complexo sob o qual, ao
fim do século XX, o número relativo de pessoas “ocupadas” caiu nas chamadas “indústrias de
transformação”, exatamente onde as unidades de grande concentração operária estavam mais
presentes.
178 - Nos demais ramos econômicos, o emprego continuou estagnado ou expandindo-se
absolutamente e até, em alguns casos, relativamente ao crescimento demográfico, como nos “ou-
tras atividades industriais”, “administração pública”, “transporte e comunicação”, “indústria de cons-
trução”, “social”, “serviços auxiliares da atividade econômica”, “comércio de mercadorias”, “presta-
ção de serviços” e “agrícola”. Eis como a desproletarização fenomênica da sociedade capitalista no
País desvela seu real caráter: transferência de trabalho vivo das unidades fabris tradicionais para
novos setores industriais e, em conjunturas de atividade reduzida, para o capital informal, o esto-
que de pessoas desempregadas e as tarefas “por conta própria”, como, aliás, repete-se na crise cí-
clica de 2014-2015.
179 - A reprodução das formas tradicionais de trabalho produtivo e improdutivo – ambos
proletários –, que se mantém, combina-se à expansão de novos ramos industriais, inclusive de
empresas dedicadas a serviços fornecidos por empregados próprios, aos quais se agregam, em in-
terface, os negócios informais e o trabalho supérfluo. Ocorre a quíntupla regeneração do proletari-
ado: em novas funções produtivas, como nas indústrias de microeletrônica, equipamentos informa-
tizados, saúde, ensino e cultura; em algumas funções produtivas tradicionais, como na indústria de
construção e de transporte; nas terceirizações de processos e funções; em antigas funções impro-
dutivas, mas úteis, como no “comércio de mercadorias”, na atividade “social” e em setores públicos;
em atividades informais, produtivas ou não.
180 - Tais mudanças ficam eclipsadas pelos critérios adotados pelo IBGE no enquadramen-
to dos estabelecimentos por ramos, que: ignoram o trabalho produtivo subsidiário em empresas
tradicionais de “prestação de serviços”, como embalagem no comércio, lanchonetes ou padarias
nos supermercados e reparos mecânicos em concessionárias de veículos; recusam-se a inserir no
grupo “indústrias de transformação” setores inteiros, como energia elétrica, abastecimento de água,
estiva, estocagem, transporte, construção e agropecuária, em que transcorre algum tipo de mu-
49
dança nas matérias-primas; caracterizam como “prestação de serviços” muitos segmentos em que
há trabalho produtivo, que inclusive abarcam algum tipo de valorização material; desconsideram os
negócios informais.
181 - Há, inclusive, indústrias de serviços que geram mais-valia e incrementam o capital: a
estocagem, o transporte, a medicina e o ensino possuem funções de “transformação”. Na estoca-
gem, modificam-se os bens materiais no tempo, protegendo e aumentando seu valor-de-uso. Ana-
lisa Marx: “Durante a estocagem, o valor das mercadorias só é conservado ou aumentado porque o
valor de uso [...] é colocado em [...] condições materiais que exigem dispêndio de capital, e é sub-
metido a operações em que trabalho adicional atua [...].” Nas funções improdutivas, “O cômputo
dos valores das mercadorias, a contabilidade desse processo, os negócios de compra e venda, ao
contrário, não influem sobre o valor de uso em que existe o valor das mercadorias. Relacionam-se
apenas com a forma do valor [...].”
182 - No transporte, a posição das matérias-primas ou dos bens já elaborados sofre modifi-
cações no âmbito espacial – por exemplo, do local onde está a fábrica ao comércio ou a outras
praças e do ponto do atacado ao varejo –, como foi constatado por Marx: “Esse intercâmbio pode
determinar mudança de espaço dos produtos, seu movimento efetivo de um lugar para outro. [...]
Assim, o capital produtivo [...] acrescenta valor aos produtos transportados, formado pela transfe-
rência de valor [...] e pelo valor adicional criado no trabalho de transporte. [...] esse valor adicional
se divide, como em toda produção capitalista, em reposição de salário e em mais-valia.” Quando a
mercadoria transladada é a própria capacidade de trabalho – os seres humanos livres, como no
transporte urbano de massas –, incorpora-se valor diretamente a uma esfera da força produtiva so-
cialmente disponível.
183 - Nas indústrias do ensino e da saúde, os trabalhos realizados se destinam diretamente
ao consumo, no ato mesmo de sua efetivação. Naquela, atende à demanda prioritária pela criação
e reprodução da capacidade produtiva em forma de força laboral, correspondente à necessidade
fundamental da sociabilidade capitalista, em matéria de técnica e cultura, para gerar mais-valia, ar-
ticuladamente à reprodução da ideologia burguesa e subsidiariamente respondendo à procura de
autossatisfação espiritual. Por seu turno, os procedimentos médico-hospitalares respondem à ma-
nutenção, recuperação e reprodução da saúde corporal ou mental – logo, de força produtiva –,
além de prevenir a capacidade de trabalho futura, de amparar o labor passado e prover a realiza-
ção individual multifacetada.
184 - Em ambas, o valor-de-troca é a presumível transformação material e intelectual da
pessoa compradora e consumidora, embora, não raro, o efeito alcançado seja a sua morte e ou in-
cultura. O trabalho do proletariado no ensino e na saúde acaba valorizando o capital, sendo apenas
por tal motivo produtivo e não pelos efeitos causados no consumidor. Storch disse que a sua pro-
dutividade repousaria na criação de “cultura” e “saúde”, merecendo assim a ironia de Marx, que lhe
sugeriu mordazmente: “com a mesma razão”, seriam os médicos e professores gerados pela doen-
50
ça e ignorância. A tais setores se somam os assalariados improdutivos, dos porteiros aos funcioná-
rios administrativos, complementando os conjuntos conhecidos como “trabalhadores do ensino” e
“trabalhadores da saúde”.
185 - Cabe ao movimento sindical brasileiro, demarcando com a ilusória catástrofe da “soci-
edade do trabalho” e olhando para além dos setores tradicionais da indústria fabril, perceber o fun-
damental: processa-se uma restruturação do proletariado endogenamente ao conceito, com mu-
danças nas características e nas relações mútuas de suas camadas, bem como no seu aspecto ex-
terno – desenho formal –, porém, sem violar em nada sua essência. Destacam-se, pois, as suas re-
lações adensadas com as modernas técnicas emergentes na contemporaneidade, com a socializa-
ção de suas diferentes atividades manuais ou intelectuais e com a intensa migração interna rumo
aos ramos vulgarmente nomeados como “serviços” ou aos setores informais, paralelamente aos
pulsos de trabalho supérfluo.
186 - Atividades há bem pouco tempo inexistentes como a produção e a comercialização
de chips, hardwares, softwares, acessos por servidores, labor em redes, educação on line a distân-
cia, formação informática, operações virtuais, consultorias especializadas, apoio a produtos origi-
nais, entre tantas outras – estão interagindo com as demais e gerando novos proletários, a exem-
plo do que se passa na fabricação de máquinas ou equipamentos, na robótica, na engenharia ge-
nética, na pesquisa científica, nos ramos culturais e assim por diante. Em vez de perdas irreversí-
veis no rol do proletariado, de fato se reproduzem o trabalho abstrato e funções concretas. Consi-
derando-se a concentração de labor passado e de capital variável nas mãos de alguns magnatas,
com elevação astronômica na produtividade, aprofunda-se a centralidade do trabalho na reprodu-
ção das riquezas e da vida social.
187 - Obviamente, a experiência comum, dentro das grandes fábricas, encontra-se debilita-
da pela dispersão física relativa dos produtores diretos e pelo caráter estrutural do estoque supér-
fluo, que dificultam a formação da ideologia sensível e a consolidação da consciência de classe.
Todavia, longe de inviabilizarem a reprodução do movimento sindical, tão-somente aumentam o
papel da subjetividade e da contenda contra-hegemônica nas categorias econômicas e no conjunto
da sociedade, incluindo a dimensão da cultura, dos valores, da estratégia, da organização e das
mediações táticas na ideação transformadora. Assim, reafirmam, em nova situação histórica, as
preocupações de Engels ao final do século XIX, dos bolcheviques no início dos 1900, e de Grams-
ci, nos anos seguintes. A nova condição proletária apenas sublinha o colapso do corporativismo e
do economicismo, que dependem exclusiva e absolutamente da convivência profissional e setorial,
com seus limites.
188 – Hoje, diversamente ao que aconteceu por ocasião do ludismo, inexistem quebras ge-
neralizadas de robôs e computadores, embora haja muita perplexidade e desorientação. Todavia,
não há porque soltar interjeições de assombro, admiração ou pavor, como aqueles ocorridos quan-
do a burguesia nipônica, antes de mergulhar na crise, anunciou a eliminação completa do trabalho
51
manual na sua indústria até o final do século XX. Além de ser inviável a completa extinção da esfe-
ra física presente no labor social, lembre-se de que a introdução de novas forças produtivas é limi-
tada pela primazia da compulsão por altas taxas de lucro. Afinal, o capital, em nível internacional e
mais ainda nos países dependentes, jamais conseguirá libertar-se da natureza combinada, mas
sempre desigual, da evolução tecnológica e também do mar proletário de baixa ou média qualifica-
ção que continuará habitando o cinturão em torno das ilhas douradas da produção e da fruição ex-
celentes.
189 - Tal realidade desaconselha certa elaboração de políticas sindicais, que se referencia
em um “futuro” só existente na imaginação de alguns. Mesmo supondo que o devir se configurasse
como antecipam os profetas do fim inapelável da chamada “sociedade industrial”, seria necessário
responder ao presente e travar a luta de classes atualmente existente. Se a concentração-
centralização de capitais, as doutrinas gerenciais burguesas e as tendências tecnológicas são ob-
viamente temporais, podem e devem sofrer, mesmo que nas condições históricas legadas pelo
passado, a incidência das intervenções dos seres humanos, entre as quais inclui a política. A ideia
de que o mero desenvolvimento nas forças produtivas tecnológicas quando muito secundado por
agentes sociais dispersos determinará o porvir nada tem em comum com o marxismo e nada
mais é que uma quimera criptonaturalista.
190 - O capital continua e sempre estará condenado a explorar a força laboral despossuída,
porque, ao contrário de mera coisa, é uma relação social. Portanto, jamais conseguirá livrar-se de
seu irmão siamês o trabalho abstrato. Numa equação matemática, o índice de capital constante
aplicado na produção é função direta e complexa da variável automação. Aquele só representaria,
hipoteticamente, 100% do investimento global na sociedade caso essa conseguisse tocar o absolu-
to, eliminando as diferenciações técnicas, o capital variável, o mercado e, finalmente, o próprio ca-
pitalismo, assim mesmo com tudo chafurdado nos processos e conflitos sociais. Trata-se de uma
impossibilidade e, como hipótese, uma futilidade. Ademais, a sociabilidade humana nunca logrará
descartar o trabalho concreto, para uns, sua maldição, para os marxistas, sua gênese criadora e
reprodutora irrecorrível.
191 - Se, por meio de um exercício utópico, fosse concebida uma sociedade em que toda
função produtiva tenha sido, no limite, substituída por robôs inclusive a programação, a operação,
o reparo, a educação e a recriação e em que o direito ao lazer opcional fosse trocado pelo regime
da inutilidade compulsória, mesmo assim a futura ação dos indivíduos livremente associados have-
ria de modificá-la para refundar o mundo e desenvolver alguma função capaz de suprir suas ne-
cessidades ou de exteriorizar seus anseios, antigos e novos, do modo e quando melhor a realidade
lhes apresentasse como adequado. A síndrome de 2001: Uma Odisséia no Espaço, ao contrário de
ser a revelação do futuro, foi mais o diagnóstico sobre uma terrível moléstia psicoideológica do
presente.
52
IX – Trabalhadores proletários e pequeno-burgueses
192 - No Brasil, os números das instituições oficiais, devidamente interpretados e reagrupa-
dos, bem como ajustados pelas devidas inferências e aproximações, elucidam a realidade empírica
da força laboral. Em 2015, a população total ultrapassou 204 milhões, mas os dados mais específi-
cos e confiáveis sobre a composição de classe e sobre as categorias são encontrados em fontes
computadas desde 2010. A pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad/IBGE – para
2011 mostra que, em números arredondados, entre as 195 milhões de pessoas residentes no Bra-
sil, 146 milhões com 15 anos ou mais “em idade ativa” e 92 milhões ocupadas, 61 milhões compu-
nham o proletariado em pleno exercício de sua capacidade econômica e 25 milhões eram traba-
lhadores “por conta própria”, atuando em forma parcelar e autônoma, integral ou parcialmente, na
cidade ou na zona rural.
193 - Os demais seis milhões de indivíduos estavam no rol formado pelos pequeno-
burgueses empregadores, pelos membros das cúpulas gerenciais e pelos empresários em geral.
Dos patrões, somente 2,9 milhões empregavam mais de quatro funcionários e, portanto, podiam
ser tidos como caracteristicamente capitalistas, de vez que encontravam as condições objetivas
minimamente necessárias – embora nem sempre suficientes – para se desligarem das atividades
diretas na produção, circulação ou serviço, vivendo e acumulando apenas com base na renda reco-
lhida em forma de mais-valia e suas derivações. Entre os assalariados, 45 milhões apresentavam
relações consignadas na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS – ou em contratos es-
tatutários no serviço público.
194 - Conforme os números constantes no Cadastro Geral de Empregados e Desemprega-
dos – Caged –, colhidos em 2010, com levantamentos pautados apenas em relações jurídico-
formais, aproximadamente 19,6% ou 8,5 milhões trabalhavam na “indústria de transformação”,
classificação que alude, exclusivamente, às fábricas urbanas de mercadorias materiais com exis-
tência autônoma e móvel, a partir de matérias-primas em forma de substâncias primárias ou semi-
elaboradas. O conceito adequado para tal segmento seria indústria fabril. Pelas informações de
2012, contidas na Pesquisa Industrial Anual – PIA/IBGE –, tal camada subiu para 8,6 milhões. As
empresas com mais de 499 empregados – desta feita, incluindo-se toda a extração mineral –, que
em sua maioria já se encontram integradas ao circuito monopolista-financeiro, concentravam dois
terços da receita líquida. Obviamente, quantificações atualizadas exigem ajustes baseados em es-
tatísticas e índices de informalidade anuais, que são desiguais nas diferentes categorias econômi-
cas.
195 - Ainda pelos dados extraídos da PIA/IBGE-2012, válidos para as indústrias fabris com
mais de quatro empregados, 70,7% da força laboral estavam direta e exclusivamente ligados ao
processo de valorização do capital, criando bens mercantis e nucleando, pois, o trabalho produtivo
no País. Os salários e outras espécies de remuneração, englobando inclusive o pagamento dos
53
funcionários administrativos e as retiradas de investimentos imobilizados, compuseram apenas
25,5% do valor total criado no segmento – R$230 bilhões comparados a R$902 bilhões –, indican-
do um considerável grau de exploração. Relacionando-se o preço da “transformação industrial”
com os R$149 bilhões do capital variável gasto em pagamentos ao “pessoal assalariado [...] ligado
à produção”, a taxa de mais-valia estava em 505,4% – [(902–149)x100]÷149=505,4%. Eis, mate-
maticamente, o montante de sobretrabalho que, além de reproduzir a riqueza burguesa, redistribui-
se para financiar o conjunto das atividades improdutivas nas próprias empresas, na sociedade civil
e nos órgãos estatais.
196 - Pelo Caged-2010, na metalurgia em geral – o ramo mais importante da economia,
formado pelos setores automotivo, aeroespacial, naval, siderúrgico, eletroeletrônico e fabricantes
de bens de produção ou máquinas e equipamentos, entre outros –, o número de trabalhadores su-
bia a cerca de 2,2 milhões. O salário médio que recebiam era de R$2.470,00 mensais. Ao todo, re-
presentavam aproximadamente 5,1% do proletariado em situação de formalidade. No conjunto da
indústria fabril, somavam 25,9% da força de trabalho e criavam um terço do valor. Em sua maioria,
os metalúrgicos são pessoas jovens: cerca de dois terços estavam abaixo de 40 anos e menos de
um décimo ultrapassava 50.
197 - A concentração da metalurgia é significativa: 88,9% das unidades fabris se localiza-
vam no centro-sul do País, mormente SP, MG e RJ. Por seu turno, a força de trabalho no ramo se
distribui na proporção de 37,2% nas grandes fábricas, com mais de 499 empregados, aproxima-
damente 55,3% nas médias, com 10 a 499, e apenas 7,5% nas pequenas, com até nove assalaria-
dos. No que se refere à sua presença por setor, 33,6% estão no siderúrgico e básico, 22,9% no au-
tomotivo, 21,4% no dedicado aos bens de produção – máquinas e equipamentos – e 17,4% no ele-
troeletrônico. Os dados fornecidos pelo Caged-2013 elevam a categoria econômica para aproxima-
damente 2,4 milhões de proletários.
198 - De acordo com a PIA/IBGE-2012, as demais indústrias fabris, por ordem decrescente
de força de trabalho então empregada, são: alimentos, 1,7 milhões; vestuário e acessórios, 756 mil;
bens de minerais não metálicos, 499 mil; borracha e material plástico, 448 mil; couros, artefatos, ar-
tigos para viagem e calçados, 425 mil; substâncias químicas, 316 mil; têxteis, 303 mil; móveis, 303
mil; objetos de madeira, 221 mil; celulose, papel e derivados, 196 mil; equipamentos de informática,
produtos eletrônicos e ópticos, 181 mil; coque, derivados do petróleo e biocombustíveis, 160 mil;
bebidas, 158 mil; gravações, 148 mil; farmoquímicos e farmacêuticos, 99 mil; produtos do fumo, 19
mil; diversos – que reúne as menores categorias econômicas –, 191 mil. O total perfazia 5,7 mi-
lhões de empregados.
199 - As indústrias extrativas – setores mineradores, como carvão mineral, petróleo, gás na-
tural, minerais metálicos, minerais não metálicos e apoio à extração mineral, que são oficialmente
considerados estranhos às atividades de “transformação” –, ainda segundo as informações conti-
das na PIA/IBGE-2012, totalizavam 214 mil assalariados, dos quais 118 mil, ou aproximadamente
54
55%, trabalhavam em unidades que empregavam mais de 499 funcionários. No conjunto, o ramo
englobava 5.880 empresas ativas, das quais a esmagadora maioria – 5.345 ou 90% – se dedicava
a minerais não metálicos, como pedra, areia, argila e outros bens. Todavia, as grandes indústrias
estavam basicamente em dois setores, que concentravam 70,8% da força laboral e 86% do valor
criado – R$116 dos R$135 bilhões totais: petróleo e gás natural, com 36%, e minerais metálicos,
com 50%.
200 - Na indústria de construção civil – que a classificação oficial também considera uma
atividade exterior à “transformação” –, existem, conforme os números do Caged-2010, 2,4 milhões
de trabalhadores com vínculo formal ou 5,5% do proletariado. A Pesquisa Anual da Indústria da
Construção – Paic – 2011 já assinalava 2,6 milhões de proletários no ramo, com remuneração mé-
dia mensal de R$1.437,00 ou 2,6 salários mínimos. No comércio, pelo Caged-2010, havia 8,2 mi-
lhões de empregados ou 18,9% do proletariado, parte dos quais realizava funções industriais sub-
jacentes, número que subiu para 10,2 milhões na Pesquisa Anual de Comércio – PAC/IBGE – de
2011, que também englobava o trabalho produtivo para reparação de veículos automotores e mo-
tocicletas.
201 - A força laboral restante se localiza no conjunto – não raro subestimado em termos de
relevância na chamada economia real – que os critérios oficiais conceituam, genericamente, como
“serviços”, em oposição à “indústria de transformação”. Todavia, a simples dimensão apresentada
pelas tabelas do Caged-2010 demonstra sua importância: abarca nada menos que 22,5 milhões de
proletários ou 52,9%, sem considerar o enorme contingente sem relação de emprego formalizada.
Tal operação intelectual reduz drasticamente, por si só, o proletariado produtivo, que passa a ser
“ilhado” em fábricas tradicionais e “expulso” de vários setores onde ocorre a criação de valor e a
valorização do capital.
202 - Referindo-se a tal segmento, a Classificação Nacional de Atividades Econômicas –
CNAE – submergiu vários domínios produtivos em sete diferentes atividades, segundo as “finalida-
des de uso” declaradas pelas empresas e pelos patrões: prestação, principalmente, a famílias e
pessoas físicas; informação e comunicação; profissional, administrativo e complementar; transporte
e correio; imobiliário; manutenção e reparação; outros. Consequentemente, a distribuição da classe
proletária brasileira, já suficientemente complexa, aparece sob uma imagem esfumaçada, que en-
tre outras inadequações descaracteriza várias ocorrências de labor produtivo e novos tipos de in-
dústria, permitindo apenas uma primeira e imprecisa aproximação à realidade.
203 - Um das espécies criadoras de valor, que aparece diluída nos critérios escolhidos, é o
transporte privado e público, abarcando também a logística e as atividades conexas. A PAS-2010
afirma que as empresas do setor – distribuídas em modais, como rodoviário, aéreo, ferroviário, me-
troviário e marítimo-portuário – empregavam 2,2 milhões de pessoas. De acordo com a Relação
Anual de Informações Sociais – Rais – de 2012, os trabalhadores em transporte, alocados como
funcionários de serviços, eram dois milhões, dos quais 57% se encontravam na região sudeste,
55
onde se concentram os investimentos estatais em infraestrutura. A maioria – 55% – tinha entre 30
e 49 anos. A remuneração permanecia baixa: 43% até dois salários mínimos; 42% entre dois e
quatro. No mesmo ano, 36.332 proletários do ramo sofreram acidentes registrados de trabalho,
com média diária de 100 eventos.
204 - O Pnad-2012 indica que os servidores públicos, nas três esferas federativas, eram 11
milhões, perfazendo 17,7% do proletariado, e que os trabalhadores domésticos privados – de com-
posição basicamente feminina – chegavam a sete milhões ou 11,3%. O Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos – Dieese –, em 2012, informa que os bancários e demais empregados no
ramo financeiro chegavam a 508 mil ou 0,8%. O Censo Escolar de 2007 mostra que os professores
– em sua maioria funcionários estatais –, somavam 4,1 milhões ou 7%. Por seu turno, entre os 372
mil médicos do Brasil em 2011, uma boa parte já trabalhava exclusivamente como assalariada:
aproximadamente um terço em 2003, conforme informações do Conselho Federal de Medicina –
CFM. Semelhante é a situação dos advogados atuantes: há cerca de 150 mil empregados, alguns
em regime de “associado”, proporção que beira 20% da categoria em São Paulo, conforme dados
recolhidos pela OAB.
205 - As entidades sindicais brasileiras urbanas permitem a filiação de segmentos pequeno-
burgueses e semiproletários – isto é, independentes ou híbridos –, que não empreguem funcioná-
rios em sua atividade-fim: médicos, advogados, taxistas, pedreiros, carpinteiros, mecânicos, cami-
nhoneiros, motoqueiros, técnicos de computador e assim por diante. Tais profissionais vendem,
não sua força de trabalho, mas os bens ou serviços produzidos “por conta própria”, em estabeleci-
mentos ou com equipamentos de sua propriedade ou posse particular, operando sem qualquer vín-
culo empregatício ou com dupla condição e realizando labores improdutivos, de vez que não valori-
zam o capital.
206 - Pelo CFM-2011, existiam cerca de 250 mil médicos que mantinham consultório e que
o jargão oficial rotula de “microempresários”, embora também mantivessem relações laborais na
condição de assalariados, sendo 74,1% pelo capital privado e 69,7% no serviço público; logo, uma
boa parte em ambas as esferas. O mesmo método permite conceituar como prestadores autôno-
mos ou híbridos quase 80% dos aproximadamente 875 mil advogados e auxiliares que a OAB atu-
almente congrega. Pelo IBGE-2013, os trabalhadores urbanos em condição exclusivamente pe-
queno-burguesa eram 15 milhões, auferindo majoritariamente rendas baixas ou médias. Tais seto-
res precisam ser abordados por meio de reivindicações e formas de luta próprias.
207 - Na agropecuária – juntamente com a extração vegetal, a caça e a pesca –, processa-
se a lenta retração da força laboral, seja em termos absolutos, seja mais ainda em relação às cida-
des. Como apresentam claramente os censos agropecuários do IBGE, o número de pessoas ocu-
padas nos estabelecimentos vinha crescendo paulatinamente até 1985, chegando ao ápice de 23,4
milhões, a despeito da urbanização em marcha no século XX. Todavia, posteriormente, houve uma
reversão da tendência histórica: o conjunto começou a declinar, chegando a 14 milhões em 2015 –
56
conforme a estimativa do Pnad/IBGE –, ilustrando o êxodo em curso. A retirada, rumo às concen-
trações urbanas, é maior entre os jovens.
208 - Longe de meras causas conspirativas, morais, volitivas e culturais, tal fenômeno refle-
te a conjugação de um duplo e persistente processo econômico-social, com forte participação mo-
nopolista-financeira, inclusive com a presença de investimentos estrangeiros: a concentração da
propriedade territorial, que prossegue sendo fortalecida em pinça pela capitalização do latifúndio e
também por uma espécie de acumulação primitiva retardatária, em detrimento, respectivamente,
das propriedades, posses e domínios camponeses e públicos; o desenvolvimento incessante, alar-
gado e inevitável das forças produtivas, da composição orgânica no capital e, por via de conse-
quência, da produtividade laboral.
209 - O Pnad/IBGE-2013 apontou a existência de quatro milhões de assalariados rurais
permanentes – aproximadamente 29% da população engajada na agropecuária e 6,5% do proleta-
riado brasileiro –, os quais somente alcançavam uma renda média domiciliar per capita equivalente
a 81% do salário mínimo, tinham idade abaixo de 40 anos na razão de 58% e trabalhavam na in-
formalidade em 60% dos casos. As Estatísticas do Meio Rural 2010-2011, editadas pelo Diee-
se/MDA, revelaram 3,2 milhões de empregados temporários, tipicamente semiproletários. O
Pnad/IBGE também destacou a numerosa presença camponesa, igualmente em declínio, mas per-
sistente com base em seu modo de produção característico e sua condição de estoque laboral dis-
ponível ao capital, na “sanfona” empregatícia que segue o ritmo marcado pelos ciclos econômicos
de crise ou bonança.
210 - Como aspecto fundamental da questão agrária, histórica no Brasil, ainda hoje persis-
tente e ignorada pelos sucessivos regimes políticos e governantes, há 9,5 milhões de pessoas
ocupadas na agropecuária parcelar, seja independente, seja semi-integrada, classificadas nas se-
guintes camadas: os camponeses pobres, formados pelos proprietários com pouca terra, pelos
posseiros, pelos pequenos arrendatários – inclusive parceiros – e pelos agregados sem remunera-
ção, que não raro recorrem a empregos sazonais para completar o orçamento familiar; os campo-
neses médios, que são proprietários e arrendatários com áreas tão somente suficientes para ocu-
parem o trabalho familiar; os camponeses-patrões, que já contratam ajudantes, mas continuam li-
gados à produção.
211 - A filiação sindical a ser adotada no campo, além de buscar preferencialmente os tra-
balhadores assalariados, que são empregados em fazendas empresariais e que geram mais-valia,
ou seja, em glebas com capital territorializado, precisa contemplar também os camponeses pobres
e médios – aqueles com propriedades ou posses minifundiárias de até quatro módulos fiscais. Tais
camadas somam 4,8 milhões de famílias, totalizam 20 milhões de pessoas – mais da metade ocu-
pada em atividades econômicas – e se distinguem, seja dos fazendeiros-patrões médios, seja ain-
da mais dos latifundiários, pois se encontram premidos em suas necessidades básicas, explorados
na esfera da circulação mercantil, submetidos aos interesses locais dominantes e marginalizados
57
em face do Estado.
212 - Especialmente importante para as lutas rurais é a multidão sem terra ou com pouca
terra, que se constitui como principal sujeito do movimento por reforma agrária e alvo da violência
conservadora: em 2010, pelos números computados pela CPT/Dieese, as forças policiais estatais e
as milícias privadas latifundiárias reprimiram 559.401 pessoas, com 34 assassinatos, e 70.387 fa-
mílias em ocupações, com 9.283 expulsões e 4.283 destruições de objetos como casas, bens, ro-
ças ou equipamentos. Tarefa fundamental dos sindicatos é abordar a questão agrária no âmbito da
aliança operário-camponesa, de vez que as duas classes envolvidas nesse enlace estratégico,
mesmo com suas diferenças objetivas e subjetivas, compartilham espaços físico-ambientais, expe-
riências sociais, inimigos e interesses.
213 - O mapa econômico-social acima apresentado, que conceitua e quantifica generica-
mente as relações de produção, de serviço e de circulação mercantis, permite que o movimento
sindical, ao estabelecer a sua política de organização e mobilização, sublinhe os ramos de maior
importância estratégica e as categorias econômicas fundamentais – quer pelo valor produzido, quer
pelo papel desempenhado na logística do capital, quer pela socialização do processo laboral, quer
pela importância numérica dos trabalhadores –, sem descuidar-se da classe como conjunto e de
seus aliados principais. Em qualquer nível de escalonamento, merecem destaque as grandes em-
presas, especialmente os estabelecimentos que reúnem muita força de trabalho no mesmo espaço
físico e, no seu interior, aqueles proletários ligados diretamente à produção de bens mercantis.
214 - Nessa perspectiva – mas considerando-se os acúmulos, realidades e particularidades
locais, que podem justificar enfoques específicos, desde que rejeitados quaisquer laivos de artificia-
lismo, formalismo ou inflexibilidade –, a concentração dos esforços destinados à organização, à
mobilização e à ação sindical, em sequência e por critério de importância, deve contemplar os
segmentos apresentados a seguir. A prioridade máxima se dirige ao proletariado fabril, que realiza
um trabalho produtivo de caráter marcadamente social, notadamente à categoria econômica meta-
lúrgica, sem o qual jamais as lutas operárias serão fortes o suficiente para resistir à reação e de-
fender seus interesses econômicos ou políticos, assim como para galvanizar as classes populares.
215 - Também merece atenção o rol de empresas cujos empregados produzem valor fora
de instalações fixas, em ambientes alternados e difusos, como extração mineral, construção civil,
transportes e outros. O próximo grau de importância reside nas indústrias de serviços mercantis
privados, cujos bens são consumidos no ato mesmo de sua produção, como energia, água, ensino,
saúde, telefonia e mais alguns. Logo após estão os estabelecimentos dedicados à prestação de
serviços improdutivos, mas também socialmente úteis, como comerciários, bancário-financeiros,
domésticos, estatais e assim por diante, aos quais de somam as ocupações urbanas de caráter
pequeno-burguês. Por fim, devem ser contemplados os assalariados rurais, juntamente com o
campesinato pobre e médio.
58
X – O direito do trabalho e seu lugar na luta de classes
216 – Considerando-se a gigantesca presença fática do proletariado na formação econômi-
co-social brasileira, o autismo intelectual ante o mundo do trabalho e a ilusão no fim da “sociedade
do trabalho” expressam duas vertentes. À esquerda, o ingênuo desejo de liberdade absoluta que
conformista ou crítico renasce no estupor e na angústia estimulados pela derrota momentânea do
movimento operário e pela permanência da “servidão” assalariada em sua face mais bárbara e
destrutiva. À direita, o malicioso propósito de suprimir – pelo elogio ao empirismo – a representa-
ção genérica da classe que, segundo Marx, “tenha cadeias radicais”, a própria seara social “onde
existe a possibilidade positiva de emancipação”. Tais são os valores que distinguem, no campo da
confusa sensibilidade pós-moderna, que tenta assassinar o sujeito coletivo, a ilusão libertária – ge-
nerosa, mas inconsequente – do ultraliberalismo, conservador, mas com alguma eficácia.
217 - Não se justificam, portanto, os fundamentos e as conclusões alegadas por tais varian-
tes, especialmente, a quimera de realizar-se, no capitalismo, a dissolução do trabalho abstrato e,
no processo civilizatório como conjunto, a perdição do trabalho concreto. Por mais que a reação
burguesa deseje superar ou enterrar o próprio direito do trabalho, seus fundamentos histórico-
sociais continuarão existindo enquanto houver capital. Permanecem atuais, não só a defesa dos
benefícios sociais e políticos dos trabalhadores assalariados, frutos de longos e árduos combates
que mobilizaram várias gerações, como também a luta presente por reformas que materializem no-
vas conquistas.
218 - O contencioso capital versus trabalho só poderá terminar em uma época para além da
sociabilidade alienada, o que recoloca o problema teórico e prático da revolução social. Justifica-
se, em termos de objetivos históricos mais gerais, o propósito humano-universal de abolir a face
perversa da práxis produtiva – o trabalho abstrato – e, como corolário, as próprias noções de prole-
tariado e burguesia. Somente nessa perspectiva, como proclamou Marx, “o tempo livre que tanto
é tempo para o ócio como tempo para atividades superiores ” poderá, no futuro, transformar “o
seu possuidor [...] em outro sujeito”. Semelhante tarefa está além da capacidade e dos objetivos do
movimento sindical, que, todavia, tem um relevante e insubstituível papel a cumprir na luta de clas-
ses.
219 - O Direito, como arcabouço legiferante e disciplina intelectual – desde seu surgimento,
nas primeiras formações humanas dilaceradas em conflitos de classe –, é uma espécie de relação
social historicamente constituída, que traduz, cristaliza, organiza e disciplina, na esfera das ações
legais e normativas do Estado, em última instância, as necessidades e os interesses imanentes ao
modo de produção dominante em cada época. Em vez de serem criados pela volição política auto-
determinada de indivíduos ou agrupamentos – a partir de situações subjetivas presentes na cons-
ciência, de categorias apriorísticas ou de contratos soberanos entre sujeitos iguais, como querem
59
as teorias burguesas de vários matizes –, os princípios e regras jurídicas surgem, desenvolvem-se,
exprimem ideologias, referenciam moralidades e se tornam parâmetros coercitivos na práxis social
concreta.
220 - Nesse terreno peculiar e modo de ser específico, em que jamais pode existir, ontologi-
camente, a pacífica unidade universal quanto aos fins, prepondera o contencioso em formas elabo-
radas e objetivadas, bem como se encontram estreitamente ligados o direito e o arbítrio, dois con-
ceitos excludentes no senso comum e nas doutrinas jurídicas metafísicas. Todavia, lembrando
Marx, “O Faustrecht (o direito do mais forte) é igualmente um direito.” A paz social passa a ser uma
necessidade relevante para os “de cima” somente quando a troca se torna um fenômeno regular,
com base em seus equivalentes universais, e começa a determinar-se, no alvorecer do capitalismo,
na própria intimidade do modo de produção, em que o valor de uso se torna precipuamente merca-
doria e gera o mercado.
221 – No metabolismo da sociedade atual, os interesses e relações que enlaçam os bens
com valores de troca equivalentes se nucleiam pela contradição entre dois campos antagônicos –
os possuidores de capital e os detentores da força de trabalho. Nesse ambiente, agem sujeitos
atomizados, pois carecem de uma racionalidade social, egoístas, pois se encontram atados ao pu-
ro cálculo econômico, e objetivados, pois hospedam suas vontades nas coisas. Ademais, quando
vige a produção precípua e universal de mercadorias, o centro articulador específico do arcabouço
legal se localiza nas relações privadas, razão pela qual o sujeito jurídico das teorias sobre o direito
se ligou, intimamente, à figura do moderno proprietário. Eis por que Engels vinculou o princípio
burguês da igualdade à lei do valor, tal como vige no modo de produção e na formação econômico-
social capitalista.
222 - Para que os bens, na sociabilidade do capital, estabeleçam contatos mútuos entre si
na condição de valores de troca, os agentes econômicos – não importa se dominantes ou subalter-
nos – precisam comportar-se como pessoas independentes e iguais, expressando, na sua totalida-
de, uma única e mesma relação social. O espaço jurídico, ao tornar-se assunto inevitável entre su-
jeitos fenomenicamente reconhecidos, dos mais simples aos mais complexos, permite que o poder
político genérico ouse opor-se ao poder econômico pessoal e que, por consequência, a forma da
lei possa impor-se à sociedade civil. Assim, como notou Marx, surge “A constituição do Estado polí-
tico mediante a decomposição da sociedade burguesa em indivíduos independentes, cujas rela-
ções são regidas pelo direito”.
223 - O propósito político-prático da mediação jurídica é a concessão de garantias inelutá-
veis à marcha, mais ou menos direta e clara, da produção e reprodução da economia e da vida so-
cial que, na sociedade burguesa, quando formalizadas, operam por meio de contratos. Tal funda-
mento faz o direito constituir-se como algo além de meras ideologias e moralidades. Portanto,
comportando-se de maneira semelhante à riqueza, que se traduz em superlativo acúmulo de bens
e capitais, a sociedade de classes se apresenta, fenomenicamente, como teia ininterrupta e abran-
60
gente de relações jurídicas objetivas, que vincula entre si os fatos econômicos empíricos e as mer-
cadorias celulares, inclusive a força de trabalho humana, superando suas condições de simples
unidades privadas e isoladas.
224 - O desenvolvimento superior do pensamento jurídico, ao abranger a relação dialética
entre conteúdo e forma, mesmo quando envolta e mistificada em arcabouços metafísicos, exige a
elaboração de enunciados abstratos e gerais. Eis por que o Direito sempre remete a referências
normativas que, por óbvio, só podem ser cientificamente apropriadas na angulação de uma pers-
pectiva histórica concreta, embora nem sempre tal aconteça. Nos próprios fundamentos ontossoci-
ais das comunidades humanas e na sua reprodução metabólica residem o nascimento e a trans-
formação da forma jurídica, que, na sociabilidade burguesa, unifica os diferentes rendimentos do
trabalho não apenas segundo o critério da troca equivalente, como também conforme as relações
de classe entre os proprietários dos meios de produção tornados capital e os titulares da força de
trabalho livre.
225 - O Direito se evidencia, pois, não como atributo de uma suposta comunidade humana
abstrata, mas como fato pertencente ao domínio político, por sua vez correspondente a formações
econômico-sociais determinadas. Os princípios formais da subjetividade jurídica moderna – liber-
dade, igualdade, autonomia, personalidade e assim por diante – adquirem importância sobredeter-
minada no capitalismo: edificados sobre a oposição entre interesses privados, são também, além
de representações ou ideações mais ou menos dissimulatórias e hipócritas, vetores objetivos que
acompanham o desenvolvimento da economia e que, em sua ação de retorno, interferem juridica-
mente nas relações humanas.
226 - A subjunção do trabalho ao capital, que atingiu a maturidade formal e avançou veloz-
mente na sua esfera real durante a chamada revolução industrial, com a expansão do modo de
produção caracteristicamente capitalista – notadamente na Europa e nos EUA – ampliou em muito
as fileiras do proletariado, gerou a contemporânea questão sociolaboral e tornou imprescindível a
readequação das instituições jurídicas à nova realidade. Em um primeiro momento, a relação capi-
tal-trabalho foi regulada pelo próprio direito civil, que se baseava na presunção de igualdade entre
as partes e, pois, de liberdade na contratação – expressões formais da prévia, absoluta e mitológi-
ca autonomia da vontade –, bem como no corolário liberal-clássico de que o Estado deveria man-
ter-se exteriormente às relações econômicas, só agindo em domínios limitados e nos momentos
críticos.
227 - Todavia, no século XIX, a multiplicação e a complexificação do mundo do trabalho, fa-
ces emergentes na decomposição da sociedade civil em indivíduos independentes, exigiram do
próprio Estado uma resposta mais especializada. A filosofia burguesa do Direito, cujo fundamento é
a categoria do sujeito apetrechado com sua incondicionada capacidade autodeterminativa, passou
a estabelecer as condições mais gerais para se efetuarem a compra da força laboral pertencente a
seres humanos livres. Nesse nível elementar, tal disciplina ainda permanecia como ideologia e, no
61
máximo, como simples dispositivo jurídico dedicado a regular o modo de produção em sua justifica-
ção moral, seu funcionamento geral e sua estabilidade cotidiana. O Estado apenas ditaria as regras
da ordem econômica exploradora e fixaria os parâmetros da coerção em prol de sua permanência
e seu desempenho.
228 - Todavia, em determinado momento de sua história e conforme as condições sociais
encontradas, o poder institucional burguês precisou também promover ações públicas direcionadas
ao fim de zelar pelo trabalho como bem mercantil e capacidade produtiva especial, de primeira
grandeza e à sua disposição, cuja existência e reprodução se havia tornado imprescindível para o
capital como conjunto. Eis por que a política e, especialmente, as leis, o arcabouço jurídico, a ad-
ministração pública e os serviços básicos não mais poderiam depender apenas dos critérios e cál-
culos sempre egoístas, corporativos e anárquicos de cada patrão individual. O ultraliberalismo en-
contrava, pois, limites práticos.
229 – Surgiram assim as condições histórico-sociais para a mitigação do suposto “contrato
livre”, processo que serviu ainda para sustentar a hegemonia em face do movimento operário
emergente – inclusive para se precaverem das críticas revolucionárias à ideologia burguesa quanto
à parcialidade e à formalidade da liberdade, da igualdade e da democracia –, especialmente quan-
do a república do mercado procurava mascarar a exploração capitalista, o despotismo no interior
da empresa e as determinações materiais que constrangem os seres humanos reais. As conquis-
tas e direitos trabalhistas – sejam arrancados imediatamente ao Estado por meio de lutas, sejam
antecipados por cima como instrumento para se prevenirem crises iminentes ou se tratarem as
crônicas – tornaram-se possíveis nas brechas da forma jurídica.
230 - O movimento sindical já nasceu enfrentando o dilema que o persegue até hoje. A me-
ra defesa dos fundamentos abstratos da ordem jurídica especializada no trabalho não passaria de
submissão à forma mais geral assumida pelos interesses coletivos da classe dominante perante os
proletários, afinal reconhecidos como sujeito jurídico que dispõe de sua força criadora como mer-
cadoria. Entretanto, apropriar-se intelectualmente da forma juridicamente mediada, por fim adotada
pela relação econômico-social de exploração, é fundamental para conscientizar-se quanto ao cará-
ter da superestrutura estatal erguida pelo direito do trabalho e para, sempre que possível, usá-la
em seu benefício, como fenômeno objetivo universal que incide na vida cotidiana e na luta de clas-
ses.
231 - Na Europa, as “leis sociais” debutaram no século XIX, quando começaram a limitar a
chocante superextração de mais-valia absoluta sobre mulheres e menores. Por seu turno, o cres-
cimento de associações operárias, a repercussão das jornadas revolucionárias de 1848 e o as-
sombro causado pela Comuna de Paris deixaram certos saldos de liberdade sindical. Contempora-
neamente à II Internacional, a Conferência de Berlim, em 1890, e a Encíclica Rerum Novarum, em
1891, recomendaram algumas reformas trabalhistas, mas a emergência do capital monopolista-
financeiro e o agravamento dos conflitos imperialistas as retiraram da pauta burguesa. Já no século
62
XX, perante a vitória da Revolução de Outubro, o fim da I Guerra Mundial e o alargamento na mar-
gem estatal de manobras com a expansão econômica do 3º Kondratieff, os direitos trabalhistas vol-
taram à baila e adentraram o constitucionalismo republicano no México, 1917, e em Weimar, 1919.
Após a II Guerra Mundial, com o contraponto socialista e a nova fase de bonança, o capital acolheu
o Welfare State.
232 - No Brasil-Império, a formação econômico-social escravista interditou qualquer forma
jurídica universal destinada a disciplinar a força laboral livre, embora a Constituição de 1824, se-
guindo os princípios liberais, a tivesse mimetizado abstratamente pela abolição das corporações ar-
tesãs. Sob a República, a marcha da apropriação formal do trabalho pelo capital, especialmente
nas grandes cidades, foi gerando as primeiras leis regulatórias: certa liberdade associativa prevista
constitucionalmente em 1891, a proibição do trabalho infantil até 12 anos e o limite de sete horas
na jornada para crianças até 14 anos. A seguir, nas primeiras três décadas do século XX, o Código
Civil passou a regular a relação de emprego, enquanto algumas leis específicas versaram sobre a-
cidentes do trabalho, caixa de aposentadoria ou pensões para ferroviários, férias anuais e tribunais
rurais.
233 - Somente após a conclusão, em seus traços fulcrais e decisivos, do longo, complexo e
peculiar processo da revolução burguesa no Brasil, em 1930, e já em plena Fase B ou depressiva
da 3ª onda longa do capitalismo, o Governo Vargas, imbuído de um projeto nacional a meio-pano e
procurando inserir passivamente o mundo do trabalho no esforço de industrialização, procedeu à
ampliação e à sistematização das normas laborais. Os doutrinadores liberais e seus seguidores da
academia, da mídia e dos parlamentos, no afã de atacarem, desmoralizarem e enfraquecerem os
direitos trabalhistas, afirmam que sua origem se deve a certa ideologia de outorga populista-
corporativa, simplesmente instaurada em uma volição de cima para baixo, que as teria marcado
com o artificialismo.
234 - Todavia, as leis trabalhistas instituídas no Governo Vargas, em vez de benesses de-
sinteressadas e generosas de um regime ditatorial, são políticas do Estado burguês ainda frágil,
que, imerso em uma formação econômico-social com forte presença oligárquica, grandes clivagens
regionais e reprodução difusa de capitais, tentava construir uma base social de massas urbanas.
Ademais, a cantilena elitista da intelectualidade conservadora mal disfarça a intenção de ocultar –
pretextando incompatibilidades com modelos ideais e supostos atrasos no nível de consciência – a
importante participação proletária nas lutas populares ocorridas nas primeiras décadas do século
XX, com suas peculiaridades.
235 - Em especial, as greves gerais de 1917 a 1920, que mobilizaram multidões no RJ, SP,
MG e outros Estados, assim como as manifestações reprimidas durante o Governo Artur Bernar-
des, pesaram na implantação do direito do trabalho, inoculando na forma jurídica a dimensão de
conquista e de brecha para demandas sindicais, mesmo que tolhidas por óbices ideológicos e limi-
tes institucionais. A Constituição de 1934, primeira no Brasil a dispor sobre normas específicas do
63
direito trabalhista, como o salário mínimo, a jornada de 8 horas, as férias, o repouso semanal e a
liberdade sindical, orientou derivações futuras como a indenização por despedida injusta, a organi-
zação da Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT ou Decreto-Lei nº
5.452, de 1943 –, em que pese o retrocesso de 1937, com a expressa intervenção do Estado nos
sindicatos e a proibição da greve.
236 - Já no regime de república constitucional e no alvorecer do 4º Kondratieff – início de
sua Fase A ou expansiva –, a Carta Magna de 1946 reestabeleceu o direito de greve, instituiu a
remuneração do repouso semanal, instaurou a estabilidade decenal e retirou a Justiça do Trabalho
da órbita executiva do Estado, imprimindo-lhe certa autonomia em relação aos governos. Assim,
abriram-se caminhos para novas conquistas, como a gratificação natalina. Trata-se de uma respos-
ta política da burguesia à expansão quantitativa do proletariado e ao processo de subjunção real do
trabalho ao capital, intrínsecos ao surto de industrialização havida nos anos 1950, assim como for-
talecimento da organização sindical, que exigiram novas mediações e também impulsionaram o
movimento popular por reformas.
237 - Por seu turno, após 1964, o ataque do regime castrense ao movimento sindical – fron-
tal desde o primeiro dia e terrorista na sequência do AI-5 – preferiu postergar o fim de alguns direi-
tos legais, retirando-os a contagotas e por meio de manobras mediadas. No entanto, foi direto
quando eliminou a estabilidade no emprego e o direito de greve. O Governo Castello Branco anun-
ciou a extinção do imposto sindical, mas teve que ceder à resistência generalizada, mudando seu
nome para “contribuição”. Não titubeou, porém, ao proibir a greve por meio da Lei nº 4.330, de
1964, medida aprofundada nos Decretos-Leis nºs 229, de 1967, e 1.682, de 1978. Em 1965, im-
plantou o arrocho salarial: a Lei nº 4.725 forçou reajustes abaixo da inflação. Eliminou a estabilida-
de empregatícia, um direito fixado na CLT, e camuflando a supressão com o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS). O Governo Geisel tentou adaptar a CLT aos cânones do que os golpis-
tas denominavam “Movimento Cívico-Militar de 31 de Março de 1964".
238 - A falência do regime ditatorial e o fim da longa noite repressiva permitiram que a
Constituição de 1988 valorizasse os direitos coletivos e sociais, especialmente no seu artigo 7º.
Destacam-se a instituição formal da liberdade sindical, a jornada semanal de 44 horas, a generali-
zação do FGTS, a indenização por demissão sem justa causa, o adicional para hora-extra de no
mínimo 50% sobre a remuneração normal, as férias de um terço, a licença gestante de 120 dias, a
licença paternidade e a idade mínima de 14 anos para trabalho, aos quais veio somar-se a Emenda
Constitucional nº 72, de 2013, equiparando os empregados domésticos aos demais assalariados.
No conjunto, o arcabouço legal construído nos últimos 100 anos é, no conteúdo, ideológica e insti-
tucionalmente burguês. Na forma jurídica, porém, apresenta contradições que, paralelamente aos
dispositivos draconianos de controle e coerção, coagulam e regulam alguns direitos e conquistas
históricas do proletariado.
64
XI – A burguesia declara guerra aos direitos trabalhistas
239 - O direito do trabalho, pelo menos em seu formato no Brasil, pode ser conceituado co-
mo ramo do direito público cujo objeto é o conjunto de princípios, regras e instituições jurídicas des-
tinadas a justificar, disciplinar e garantir, como partes integrantes do Estado burguês, as relações
laborais no modo de produção caracteristicamente capitalista e nas situações que lhe sejam even-
tualmente equiparáveis, fixando assim os sujeitos contratantes – dominantes e subordinados ou
patrões e empregados, com seus deveres e direitos precisamente delineados –, bem como as or-
ganizações administrativas destinadas a manter a força de trabalho em suas estruturas, atividades,
valorações e reproduções societárias, na sua condição de mercadoria essencial ao modo de pro-
dução vigente.
240 - Os elementos de alteridade no direito do trabalho, impressos social e historicamente
em sua forma, perpassam a lógica dialética de seus enunciados abstratos mais gerais, influindo em
suas funções básicas, definidas em doutrina própria, quais sejam: as interpretativas, que definem o
alcance das regras; as informativas, que difundem o conhecimento jurídico; e as integrativas, que
suprimem as lacunas normativas. Destacam-se, como matérias-primas dessas abordagens intelec-
tuais, fundamentalmente, seis princípios, que sem dúvida interferem no contencioso entre os sujei-
tos envolvidos, beneficiando o polo que a doutrina considera hipossuficiente, mas com ênfase na
esfera individual, isto é, na dimensão que detém a preferência do Estado como instituição coletiva
do capital.
241 - O princípio da proteção incide sobre o sujeito economicamente mais fraco – hipossufi-
ciente –, ajudando-o na dúvida, na norma mais favorável e na condição mais benéfica. O da impe-
ratividade imuniza a norma contra a vontade das partes, derramando-se na indisponibilidade, que
vincula o direito à pessoa, e na irrenunciabilidade, que protege as vantagens legais contra os con-
sentimentos viciados. O da realidade subordina os documentos ao processo fático. O da intangibili-
dade contratual objetiva torna inalterável o conteúdo firmado, mesmo na sucessão, gerando a inal-
terabilidade para modificações lesivas e a irredutibilidade salarial. O da continuidade opta pela
maior duração possível da relação jurídica, pressupondo que esteja em jogo a sobrevivência do
contratado. O da razoabilidade impõe um juízo equilibrado, remetendo ainda à boa fé da intenção
justa.
242 - O direito do trabalho atribui também uma função estruturante e diretiva aos enuncia-
dos e valores gerais presentes na Constituição Federal – CF –, mormente ao Título I, que fixa os
princípios fundamentais, e ao artigo 5º do Título II, Capítulo I, no âmbito dos direitos e deveres indi-
viduais e coletivos, pois se sobrepõem à legislação infraconstitucional e são beneficiados pelo crité-
rio da imperativa unidade no ordenamento jurídico. Logo, suas referências teóricas são robustas o
suficiente para dirimirem as eventuais dúvidas e preencherem as poucas lacunas. Ademais, a CLT
dispõe que, havendo vácuo nas disposições legais ou contratuais, as autoridades administrativas e
65
judiciárias decidirão com base na jurisprudência, no método da analogia, no critério da equidade e
em outras normas gerais.
243 - Semelhante complexo – composto pelos princípios, fins, regras e procedimentos inte-
grados, mediados e acessórios –, em vez de nascerem no Estado por si, apenas podem ser com-
preendidos e decifrados como parte do movimento social real. Tal assertiva significa afastar-se, ra-
dicalmente, tanto do puro formalismo, a-histórico e abstrativista, quanto do sociologismo jurídico
acadêmico, hostil aos enlaces formais. De outro modo: recusar que os elementos singulares favo-
ráveis aos assalariados sofram enfoques analítico-positivistas, com a supressão de seu conteúdo
de classe, ou doutrinaristas, com o menosprezo a conquistas e direitos importantes. Marx foi ainda
mais longe quando afirmou que, mesmo na transição para além do capital, as relações humanas
permanecem, durante certo período, necessariamente encerradas no “horizonte limitado do direito
burguês”.
244 - Portanto, o movimento sindical precisa valorizar e utilizar as suas conquistas e os
seus instrumentos. Os direitos constitucionais trabalhistas se concentram no Capítulo II do Título II,
que, dispondo sobre as relações institucionais do Estado com o proletariado, enuncia: no artigo 6º,
os direitos sociais; no artigo 7º, os direitos dos assalariados urbanos e rurais; no artigo 8º, a liber-
dade associativa profissional ou sindical; no artigo 9º, o direito de greve; no artigo 10, a participa-
ção dos trabalhadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou
previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação; no artigo 11, a eleição de representações
por empresa. Estão ainda espalhados em outros dispositivos da CF, mormente aqueles que institu-
em: o regime dos servidores públicos; os tribunais, juízes e procuradores do trabalho; a previdência
social.
245 - Além dessas normas, os direitos trabalhistas estão presentes em muitas partes da
vasta legislação infraconstitucional, especialmente na CLT que, odiada pelos patrões mais broncos,
regula e complementa os vínculos individuais e coletivos do labor no processo de criação, distribui-
ção e circulação de valores de troca na sociedade burguesa, vale dizer, as relações de produção,
circulação e serviço capitalistas. Suas regras se apresentam ao longo de títulos com desdobramen-
tos práticos, a exemplo dos dispositivos sobre a tutela do trabalho, o contrato individual de empre-
go, a organização sindical, as convenções coletivas, as comissões para conciliação prévia, as mul-
tas administrativas, a Justiça do Trabalho, o Ministério Público, o processo judicial e assim por di-
ante.
246 - As disputas e repercussões dos embates em torno desse arcabouço legal – na aca-
demia, na mídia, nos parlamentos, nas entidades patronais, nas lides processuais, em acórdãos
judiciários, em processos eleitorais e no movimento sindical – demonstram que a questão proletária
se mantém no centro da vida social e política do País, inclusive a partir dos anos 1990, quando o
capital intensificou a tentativa de aniquilar as formas jurídicas que, em certa medida, podem facilitar
as lutas dos trabalhadores e proteger seus segmentos mais fragilizados. Eis por que os direitos co-
66
agulados em princípios e regras estatais são medidos, pela régua ultraliberal, como algo “atrasa-
do”, “retrógrado”, “artificial”, “outorgado”, “estadonovista”, “intervencionista” e “paternalista”, quando
não indicados por meio de adjetivos ainda mais toscos. Os objetivos nada têm de nobres, pois vi-
sam, no fundo, a reforçar a crítica burguesa-conservadora ao “Custo Brasil” e a elevarem os lucros
do capital.
247 - As armas da reação miram as dimensões jurídicas que representam e garantem al-
guma efetividade às conquistas proletárias na selva da sociedade alienada. Para os lobbies con-
trarreformadores, as normas e a coerção devem velar, exclusivamente, os interesses egoístas e
imediatistas do capital, especialmente das instituições internacionais a serviço da oligarquia mono-
polista-financeira e das potências imperialistas. Suas campanhas tentam eliminar os quatro princi-
pais óbices institucionais específicos aos seus propósitos, mesmo que adstritos ao “horizonte limi-
tado do direito burguês”: a doutrina jurídica trabalhista; o arcabouço legal de proteção aos assalari-
ados e seus sindicatos; os órgãos e funções públicos de fiscalização ou garantia; a Justiça e o Mi-
nistério Público do Trabalho.
248 - Pode-se considerar que as PECs nº 19 e 20, de 1998, foram as duas primeiras gran-
des tentativas de transpor mecanicamente a lógica do mercado para o serviço público: sanciona-
ram a eficiência como princípio; relativizaram a estabilidade do funcionalismo; favoreceram a tercei-
rização, secundadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A seguir, as Leis nº 9.957, 9.958 e
10.101, de 2000, instituíram instrumentos privados de arbitragem extrajudicial para controvérsias
trabalhistas, ajudando a esvaziar a Justiça do Trabalho. Logo após, a Lei nº 10.243, de 2001, alte-
rando o artigo nº 458 da CLT, afastou a natureza salarial de várias remunerações. Ainda em 2001,
o governo enviou ao Congresso Nacional o PL nº 5.483, alterando o artigo nº 618 da CLT, para
permitir a supremacia do negociado sobre o legislado, que acabou estacionado na disputa eleitoral
de 2002.
249 - Após a sucessão presidencial, que resultou na vitória do republicanismo social-liberal
sobre o continuísmo neoliberal, o ímpeto liquidacionista se arrefeceu, mas sua lógica continuou
atuante e muito influente. A EC nº 41, de 2003, substituiu o tempo de serviço pelo de contribuição,
instituiu o aporte dos servidores inativos à previdência e reforçou o processo de terceirização. Em
2004, o Ministério do Trabalho e Emprego – MTE – manteve a CLT na berlinda, na perspectiva de
uma “reforma sindical” que logo se voltou contra alguns direitos históricos. Em 2005, a Lei nº
11.101, sobre a recuperação judicial, retirou do crédito trabalhista superior a 150 salários mínimos
a prioridade sobre outras dívidas empresariais e tentou eliminar a sucessão empregatícia. Os con-
servadores chegaram ao cúmulo de procurar extinguir a fiscalização estatal sobre as relações de
trabalho, por meio da Emenda nº 3 ao PLC nº 7.272, de 2005, afinal vetada pela Presidência, sob a
pressão sindical.
250 – A razia se voltou também contra o proletariado: a nova redação do artigo 114 da CF,
apresentada pela EC nº 45, de 2004, garantiu ao judiciário especializado – no caso em foco, à Jus-
67
tiça do Trabalho – a competência para expedir os chamados interditos proibitórios e ações
possessórias, ajuizadas pelo patronato contra as greves e os incidentes vistos como seus desdo-
bramentos causais. Instituiu, adicionalmente, a competência de conhecer as ações indenizatórias
que pretextem quaisquer prejuízos materiais e morais contra sindicatos, penalizando-os pelas per-
das e danos tidos como causados ao patrimônio, por supostos excessos praticados durante o
exercício da paralisação. Ampara tais conclusões a redação ampliada ao inciso II, em que o verbo
“envolver” abarca e coloca sob o cutelo da coerção legal, praticamente, o espectro inteiro do direito
em prática.
251 - Atenção especial merece a PEC nº 369, de 2005, preparada pelo chamado Fórum
Nacional do Trabalho, que altera dispositivos dos artigos 8o, 11, 37 e 114 da CF, sob o pretexto,
conforme o MTE, de realizar “uma ampla reforma sindical, dentro dos princípios da liberdade e au-
tonomia sindical”, em um dito “processo de modernização institucional”. Se olhados empírica e iso-
ladamente, alguns de seus aspectos seriam até adequados, como a organização de sindicatos por
ramo de produção: tal forma poderia fortalecer os sindicatos por categoria econômica contra a dis-
persão inerente ao critério de profissão, eco da antiga associação por ofícios existente na passa-
gem dos oitocentos aos novecentos e persistente na legislação do Estado Novo. Todavia, como
conjunto, a proposta presidencial – em sua inspiração doutrinária, em seus aspectos fundamentais
e em seu sentido político-prático – contrariou os interesses e as experiências do movimento operá-
rio brasileiro.
252 - Primeiramente, ao revogar o artigo 8o, II, da CF, visou a fragmentar as entidades
sindicais por meio do pluralismo liberal. A seguir, conforme os artigos 8o e 9o, §1o, tentou mantê-las
submetidas ao Estado, esse considerado como tutor de sua “personalidade”. Igualmente, buscou
vinculá-las aos representantes do patronato, por meio de princípios e órgãos dedicados à “consulta
tripartite”, como rezam os artigos 3o, 120, 121, 125, 126 e 133. Por fim, procurou atrelá-las,
organicamente, a centrais confessionais, segundo o dispositivo da “representatividade derivada”,
presente no artigo 10, II. Concomitantemente, os artigos 93 e 103 voltaram a insistir na
sobreposição do acordado subjetivamente às leis objetivas, propiciando acentuar-se a
hipossuficiência histórica do trabalho diante do capital, típica da sociabilidade burguesa, e retomar-
se à PEC no 252, de 2000.
253 – A PEC nº 369, de 2005, não merece, definitivamente, ser chamada de reforma. De
início, carece daquela carga valorativa própria das mudanças democráticas, progressistas e de
interesse majoritário, incorporadas à história e ao imaginário das lutas populares no Brasil. Nem
mesmo faz jus ao nome de “flexibilização”, pois, ao tentar eliminar dispositivos legais em torno dos
quais se estrutura a Justiça do Trabalho, realmente engessaria o domínio dos poderosos e seu
poder de pressão sobre a multidão proletária que precisa sobreviver, especialmente em períodos
de prolongada desmobilização e de crise. Na verdade, é uma contrarreforma sindical associada à
supressão de direitos e conquistas sociais. Também não é “moderna”, pois seus autores propõem
68
o recrudescimento do controle sobre as entidades e o retorno à desregulamentação pré-getulista,
própria da República Velha.
254 - Em 2008, quando a crise conjuntural se instalou na economia estadunidense, o
grande capital instalado no Brasil, com ativa participação da Vale S.A., da Volkswagen, da
Usiminas e da Embraer, pretextando a má situação financeira, deflagrou uma campanha para
“flexibilizar” as leis trabalhistas, bem como para chantagear os sindicatos e o Estado com massivas
demissões. Em suma, exigiu, para compensar a baixa tendencial da taxa de lucro e os efeitos da
superprodução, que o proletariado arcasse com o ônus da crise. No mesmo ano, o MTE editou a
Portaria nº 186, que dava plenos e unilaterais poderes à Secretaria de Relações do Trabalho para
conceder, alterar, suspender e até cancelar o Código de Enquadramento Sindical, instrumento que,
apesar de contraditório, sempre habilitou as entidades a receberem contribuições institucionais e
manterem sua unicidade.
255 - A breve calmaria que coincidiu com o esvaziamento da campanha patronal contra os
direitos trabalhistas, por ocasião do processo eleitoral em 2010, foi uma vitória parcial conquistada
pela resistência conjugada do movimento sindical, de setores partidários e de segmentos internos à
comunidade jurídica, assim como reforçada pela crise conjuntural instalada no Brasil, momentane-
amente responsável pela sobreposição dos interesses gerais do capital às pressões, meramente
corporativas, dos conglomerados monopolista-financeiros. Dois anos após, a ofensiva ultraliberal
voltou à carga. Em 2011, o PL nº 4.330, de 2004, que tentava liberar completamente a terceiriza-
ção, recomeçou a tramitar, merecendo a contraposição imediata do Fórum em Defesa dos Direitos
dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, com apoio de várias entidades locais e nacio-
nais.
256 - Mais preocupante tem sido a convergência entre governantes, instituições patronais e
entidades sindicais na intenção de suprimir as conquistas trabalhistas. Em 2012, um anteprojeto de
lei, nascido no campo cutista, propôs a criação do Acordo Coletivo Especial, que insistia na sobre-
posição do negociado ao legislado, enquanto a Confederação Nacional da Indústria defendia, à
guisa de “modernização”, a redução do custo exigido pelo emprego formal, que seria um entrave à
competitividade das empresas brasileiras. Em 2013, aos 70 anos da CLT, ergueu-se novamente o
coro liberal contra os direitos trabalhistas. O Decreto nº 8.243, de 2014, abriu brechas para inocu-
lar-se à legislação um caráter disponível, pois subordinado ao arbítrio das partes. Apresentada logo
após as eleições presidenciais, as Medidas Provisórias nº 664 e 665, de 2014 restringem a esfera
do seguro-desemprego e da pensão por morte.
257 - Na conjuntura de 2015, quando o Palácio do Planalto se viu premido pelo ciclo reces-
sivo aberto em 2014, submetido aos virulentos ataques da oposição conservadora e emparedado
pela crise político-institucional, a fração hegemônica da burguesia brasileira ou internalizada – os
conglomerados monopolistas financeiros urbanos e rurais ligados ao mercado nacional e interes-
sados na disputa mundial pelo fornecimento de commodities de produção local –, com respaldo
69
congressual e aquiescência da Presidente, que passou a ter como preocupação central a manu-
tenção de seu mandato, aproveitou a oportunidade para extrair mais concessões governamentais.
Recrudesceram-se e aguçaram-se as tentativas direcionadas à eliminação de conquistas proletá-
rias históricas, à supressão de direitos trabalhistas, ao congelamento do salário mínimo, à oferta de
migalhas compensatórias às demissões massivas, ao corte de investimentos públicos, à promoção
de políticas econômicas recessivas, ao aumento regressivo de impostos, ao aprofundamento do
pacote orçamentário-fiscal e assim por diante.
258 – Nas últimas décadas, a pressão ultraliberal acabou impregnando, não apenas a dou-
trina jurídica e as leis, como também a jurisprudência, notadamente no Tribunal Superior do Traba-
lho. No entanto, influenciada pelas mudanças na conjuntura política e marcada por sua típica ciclo-
timia, a Justiça do Trabalho, cujos agentes sempre se reivindicaram imparciais e aplicadores objeti-
vos das normas, acabou entrando algumas vezes em contradição com os cânones do chamado
pensamento único. Para tanto, pesou a militância de profissionais da área – advogados, procurado-
res, juízes, servidores e professores, com suas entidades representativas, todos mediadores insti-
tucionais indispensáveis –, tanto nos setores públicos quanto na lide privada, que se apoiaram in-
cansavelmente na doutrina, no arcabouço legal e na técnica específica de seu ramo, transforman-
do-os em meio de resistência.
259 - Eis por que a campanha pela reformulação das bases teóricas e políticas do direito do
trabalho insistiu diuturnamente no discurso de “flexibilização”: o propósito foi reler os princípios e
destruir a ideia de proteção ao polo hipossuficiente, vista como ultrapassada e demasiadamente rí-
gida em face dos propalados “novos paradigmas” do processo laboral. Não foi por acaso que a re-
forma do “Poder Judiciário”, pretendida pelo Banco Mundial, tenha preconizado a remodelação dos
cursos jurídicos para voltá-los à formação de profissionais adestrados em técnicas favoráveis ou
“sensíveis” à lógica do “mercado”. Também foi sintomático que uma proposta de reformulação da
estrutura departamental na Faculdade de Direito da USP tentasse fechar o Departamento de Direi-
to do Trabalho. Ademais, à época pululavam seminários e publicações que condenavam o princípio
protetivo.
260 - O ataque ultraliberal contava com a desmoralização do direito laboral e a consequente
extinção da Justiça do Trabalho, propósito até agora derrotado e enfraquecido por certa reversão
de expectativa. Ocorre que o atrito social no caminho do plano contrarreformista foi multilateral e
transcorreu em níveis diferenciados: esteve presente nos milhões de processos judiciais, individu-
ais e coletivos, movidos por empregados lesados; adentrou as discussões nas universidades; mo-
bilizou os profissionais da comunidade jurídica; gerou uma safra de publicações; penetrou nos par-
lamentos. Ressalte-se que o movimento operário e sindical, embora vivendo um período difícil, de
refluxo, divisão e fragmentação, tem sido a principal força da resistência e deve assumi-la como lu-
ta política decisiva.
70
XII – Sindicato de classe, de massas, de lutas, representativo, unitário e autônomo
261 - As duas últimas décadas foram marcadas, internacionalmente, por agressões ao
mundo do trabalho, no quadro de uma defensiva estratégica do movimento revolucionário, apesar
das mobilizações ocorridas em diversas conjunturas, regiões e nações. As recentes crises econô-
mico-cíclicas, transcorridas na longa fase depressiva mundial – nos EUA, em países da União Eu-
ropeia e também no Brasil –, são utilizadas como justificativas e precedentes para se urdirem no-
vos ataques aos interesses e direitos sindicais. Em última instância, o móvel se localiza na compul-
são do capital e dos partidos conservadores em compensarem, com mais exploração, a baixa ten-
dencial na taxa de lucros.
262 - As frações burguesas que hegemonizam e comandam o Estado se encontram cada
vez mais integradas, dispostas a fazerem valer seus privilégios e determinadas a conter as lutas
sindicais a qualquer custo, como tem ficado patente na forma como tratam os movimentos grevis-
tas no País. A tentativa de barrar as mobilizações virou lugar comum na prática patronal: começa
por campanhas para se desqualificarem as demandas apresentadas, passa pelo convite à acomo-
dação e à colaboração, até chegar à judicialização dos conflitos e à repressão aberta, tudo isso
considerado pelas autoridades públicas como políticas e medidas compatíveis à leis e ao chamado
“Estado de Direito”.
263 - A ação reacionária do capital é facilitada pela situação em que se encontra o mundo
do trabalho. No Brasil, a luta sindical ainda vive grandes dificuldades: transfúgios, vacilações, rear-
ranjos internos, influência liberal, dispersão e estreitamento em sua base. Ademais, alguns partidos
de direita conseguiram controlar e aparelhar, por meio de representantes diretos, várias entidades,
fenômeno novo no movimento e diferente do antigo peleguismo. A conjuntura é, portanto, bem dis-
tinta daquela existente no final dos anos 1970, quando os sindicatos unificaram amplos setores,
ganharam respaldo junto às grandes massas, desafiaram o patronato, romperam com a acomoda-
ção, ultrapassaram as leis então vigentes, colocaram em cheque a tutela do Estado e enfrentaram
o regime militar.
264 - Hoje, mesmo em um período geral de refluxo, acontecem manifestações grevistas,
não raro espontaneamente, passando por cima de hábitos burocráticos e representações omissas.
Aos poucos, a dependência de instâncias tripartites, as ilusões liberais, o culto à cidadania formal,
a conciliação de classes e as nunca aplicadas soluções conselhistas apresentam seus limites. Con-
tudo, o nível de consciência e organização das massas ainda é baixo e frouxo, aquém dos desafios
contemporâneos. O trabalho nos sindicatos precisa avançar muito para reconquistar a confiança
dos trabalhadores, ampliar os espaços de participação, romper o isolamento político e assumir um
protagonismo combativo nas lutas cotidianas, específicas ou gerais, econômicas ou políticas.
265 - A premência de uma militância qualificada entre as massas trabalhadoras se confunde
com a urgência de redefinir-se o próprio movimento sindical no Brasil. A longa fase depressiva da
71
crise capitalista e suas agudizações cíclico-conjunturais pelo mundo afora vêm suscitando, periodi-
camente, conforme reza o salmo neoliberal, o aprofundamento maior ou menor de medidas volta-
das à contenção nos gastos públicos, ao ajuste fiscal e à supressão de direitos sociais por parte
dos governos, além de arrocho salarial e dispensas por iniciativa patronal. Tal quadro, em que pe-
sem as dificuldades e a reação burguesa, aponta para atitudes e lutas de resistência, tornando ain-
da mais premente a preparação teórica, política e material da intervenção militante, ou seja, um
salto de qualidade no movimento sindical.
266 - As entidades ainda apresentam vícios a serem enfrentados e suplantados com urgên-
cia e decisão. A burocratização, o distanciamento em relação aos trabalhadores, a baixa represen-
tatividade e as formas de politização subsumidas no senso comum ou na hegemonia dominante,
são traços recorrentes. Ademais, frequentemente sob o argumento correto de que se faz necessá-
rio avançar, vêm predominando concepções e métodos que levam à subestimação dos problemas
concretos nos locais de trabalho, aos procedimentos exclusivamente de cúpula e à busca de maio-
rias a qualquer preço, que aguçam a impotência e a capitulação em face dos mecanismos especia-
lizados em domesticação.
267 - A via de cooptação tem mão dupla: enquanto as instituições privadas e públicas do
capital atuam na disputa por hegemonia nos sindicatos, vários diretores e quadros se acomodam
em face de pressões multilaterais. Na busca frenética por recursos financeiros junto ao Estado –
para garantir o acesso aos fundos –, alguns saem, agressivamente, à cata de entidades para filiar
e de expedientes para criar outras de cunho cartorial. O reconhecimento se baseia no número anu-
al de filiados às organizações de massas, induzindo e acirrando atritos de toda ordem na cúpula e
na base. Atualmente existem inúmeras centrais, das quais seis – no universo geral de 10.500 sin-
dicatos nos setores público e privado – obtiveram reconhecimento oficial ou judicial, pelos critérios
fixados na Lei Federal nº 1.990, de 2007.
268 - Sob as rixas e divisões sectárias, esconde-se, quando não o interesse pelego pelos
despojos materiais, o vício confessional, que substitui a noção de sindicatos e de central unitários –
capazes de reunirem e representarem o conjunto dos trabalhadores em cada categoria econômica
e no País, independentemente do Estado e dos patrões – pela fragmentação de suas bases em ni-
chos doutrinaristas, fideístas e partidarizados. As direções e correntes políticas, ao encamparem tal
critério, escravizarem-se à sua lógica ou mesmo conciliarem com seus resultados, passam a dispu-
tar no vale-tudo as entidades para angariar adesões, controlar aparelhos e até utilizá-los como
trampolim em disputas institucionais.
269 - Nesse ambiente sufocante e frequentemente degenerado, as entidades representati-
vas passam, na subjetividade dos militantes, funcionários e dirigentes, a ser declinadas possessi-
vamente: o “meu”, o “teu” e o “seu” sindicato, quando muito o “nosso” e o “vosso”. Assim, o confes-
sionalismo e o pluralismo acabam sendo duas concepções que se autoalimentam como faces da
mesma moeda liberal, conforme se expressam na Convenção 87 da OIT: o artigo 2º faculta aos in-
72
divíduos, desde que “trabalhadores e [...] empregadores, sem nenhuma distinção e sem autoriza-
ção prévia, [...] o direito de constituir as organizações que estimem convenientes, assim como o de
filiar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas”.
270 - Portanto, poderia haver sindicatos na mesma base sem qualquer limite, conforme o
desejo de indivíduos e grupos, inclusive ligados a patrões. Ora, a coluna vertebral do movimento
sindical não reside nas ideias, doutrinas, ideologias ou crenças de qualquer tipo, muito menos nos
interesses de aproveitadores e menos ainda nas tramas divisionistas de agentes empresariais infil-
trados para enfraquecerem as lutas. Está, sim, na contradição entre capital e trabalho, pois nessa
dimensão se estrutura, ontologicamente, a reprodução metabólica do valor e as relações sociais no
modo de produção vigente. Em torno dessa objetividade surgiram e se organizaram, historicamen-
te, as entidades sindicais, no Brasil e no mundo. Ignorar tal realidade é fechar os olhos ao funda-
mental e decisivo, dando margem à proliferação de especulações e conspirações.
271 - Os sindicatos são órgãos de massa representativos de trabalhadores que pertencem
a um ramo de produção ou serviço – mais precisamente, a uma categoria econômica –, em deter-
minada base territorial, ultrapassando-se o parâmetro meramente corporativo e superando-se a
fragmentação crônica da classe. Assim, há entidades que perderam razão de existir e outras que
devem ser fortalecidas. Faz-se também importante inovar, criando instituições de trabalhadores de-
sempregados, com ocupações descontínuas, com relações precarizadas ou com patrões terceiri-
zados, frações proletárias ou semiproletárias que o capitalismo contemporâneo – nas cidades e
nas zonas rurais – ampliou e tornou marginal em relação à classe formal.
272 - De qualquer modo, no interior do universo filiado – e, mais amplamente, representado,
o que remete a toda a categoria – sempre existirão as mais variadas concepções e opiniões, inde-
pendentemente da vontade dos dirigentes e também da burguesia. Eis por que, diferentemente de
um partido revolucionário – que deve ter propósitos, elaborações, organizações e políticas singula-
res, próprias de seu ambiente e projeto socialista, aceitos previamente pelos aderentes –, as enti-
dades precisam relacionar-se com o conjunto de sua base, sem a camisa de força de qualquer bula
confessional referente a definições filosóficas, religiosas, partidárias, doutrinárias, políticas, étnicas
ou culturais.
273 - Caso deixasse de agir com tal amplitude, o sindicato perderia seu caráter representa-
tivo, democrático e de massas, transformando-se em uma corrente de opinião a mais. Iria para o
gueto, mesmo que fosse um gueto maior: se, quando conduzido por forças ou pessoas adeptas do
confessionalismo, eventualmente conseguisse manter certa base de massas, causaria danos
igualmente nefastos, porque ainda assim jamais seria o todo. Ademais, prejudicaria a frente política
de unidade popular e o Partido, de vez que ambicionaria em vão substituí-los, bem como obstar a
consciência e a militância necessária para construí-los. Por fim, cairia no ecletismo e na confusão,
amalgamando-se com enunciados reformistas ou liberais, ao tentar adotar definições estratégicas
ou teóricas completas e “fora do lugar”.
73
274 - A concepção confessional sempre cumpriu, ao longo da história do movimento operá-
rio no Brasil e no mundo, um papel funesto para as lutas, as campanhas e as entidades nas quais
veio a predominar, de vez que as dividiu e as tornou a organização de apenas uma parte, enfra-
quecendo-as sem remédio. Ideológica e teoricamente, a instituição proletária de massas reunida
em torno de critérios religiosos e doutrinários se articula umbilicalmente ao pluralismo liberal – pra-
ticado pelo sindicalismo de corte, seja social-democrata, seja “revolucionário”, seja assumidamente
conservador –, que sempre se contrapôs à unidade e ao princípio da unicidade, isto é, ao critério
permanente de uma só representação na mesma base.
275 - Quando migra para posições mais à esquerda, o confessionalismo se associa, seja ao
dogma anarquista, coerentemente com sua negação permanente à organização política, que preci-
sa naturalizar no sindicalismo a qualidade revolucionária, seja à vinculação direta com frações in-
trapartidárias, em compatibilidade com o ambiente frouxo que vige nas agremiações político-
institucionais de massas, seja ao acolhimento automático de atribuições partidárias, por meio do
mecanismo conhecido como “correia de transmissão”. Em qualquer caso, revela seu parentesco
com a ideologia burguesa: embora invisível à primeira vista, a individualização – mesmo sob a for-
ma de grupos – das opções sindicais exprime, em última instância, a apropriação privada do capital
e de sua valorização, como acontece, de modo imanente, nas relações de produção dominantes.
276 - Sobre tal equívoco, a resolução do Comitê Central, intitulada A RC e os Dilemas Atu-
ais do Movimento Sindical Brasileiro, de 2012, afirmou: “No fundo, todos esses lamentáveis acon-
tecimentos estão ligados ao fenômeno do sindicalismo confessional. O entendimento que anima tal
concepção substitui a noção de sindicatos e de uma central unitários, capazes de reunirem e re-
presentarem as massas de maneira independente do Estado e dos patrões, pela fragmentação dos
trabalhadores em nichos e aparelhos – restaria sentido no uso da palavra central? – às vezes sob
influência negativa de grupos e partidos liberais ou doutrinaristas, não raro professando opiniões
ecléticas.”
277 - Depois, prosseguiu: “As centrais e correntes imersas nesse ambiente asfixiante e or-
ganizadas a partir de semelhante lógica passam a disputar, em verdadeira guerra civil sem quartel
e sem pudor, o mercado varejista dos sindicatos para controlar aparelhos e agregar adesões. [...]
Seu irmão siamês, o pluralismo sindical, tampouco é novidade. Funcionam de modo semelhante, a
título de exemplo, os sindicatos na Europa e nos EUA, onde o pequeníssimo peso real dos comu-
nistas e de outros revolucionários serve de advertência. De fato, a fragmentação confessional da
representação sindical proletária sempre nega ou subestima na prática o papel das entidades de
massa como representantes das classes exploradas na contradição entre trabalho e capital.”
278 - Para concluir: “Em seu lugar, no cotidiano dos debates sindicais, impõe-se a predomi-
nância das questões de doutrina e de projeto político global, abstrata e artificialmente, solapando
as bases do movimento em face da permanente pressão social, articulada à reprodução do senso
comum e permeada pela ideologia dominante. A fragmentação e o consequente enfraquecimento
74
dos sindicatos destroem o seu papel como provável trincheira da disputa contra-hegemônica – lu-
gar de constantes lutas econômicas e políticas que interessam ao mundo do trabalho – e os tornam
presas fáceis dos valores burgueses estabelecidos e das políticas patronais.”
279 - Com a consolidação do pluralismo liberal, desenhou-se no País um quadro de pulveri-
zação sindical, com várias centrais funcionando, umas reconhecidas e outras ainda pleiteando aval
do Estado, nos marcos legais. Nesse espectro, em que todos viram concorrentes de vida ou morte
entre si e o capital se delicia com a divisão dos oponentes históricos de classe, existem: de entida-
des gerais autoconsideradas depositárias do veio “combativo”, até outras praticantes da concilia-
ção, aberta ou veladamente, com o governo de plantão e mesmo com o patronato, em gradiente
que, por ordem alfabética, hoje, vai das já registradas CSB, CTB, CUT, FS, NCST e UGT, até ou-
tras cinco em busca de legalização.
280 - A despeito de tamanha dispersão, a melhor possibilidade para fortalecer a luta geral
dos trabalhadores reside na constituição de uma central unitária de caráter nacional, representati-
va, exclusivamente sindical e autônoma em face de governos ou patrões, por meio de congressos
de fusão. No atual período da luta de classes e na situação em que se encontra o sindicalismo bra-
sileiro, porém, tal princípio ainda é meramente abstrato, carecendo de concretude como palavra de
ordem para ação imediata. Sua função atual é explicitar posições, demarcar campos e abrir cami-
nhos, especialmente nos eventos que envolvam massas. Quando for o caso de apresentar propos-
tas para votação, é preciso ter sensibilidade para agir com mediação, participar de atividades unitá-
rias, construir plataformas em torno de questões cotidianas e criar órgãos de ação comum entre as
entidades, de preferência permanentes.
281 - Pode-se dizer que as iniciativas contra a terceirização e o fator previdenciário, em
2015, tiveram muita importância como atividades resistentes e meio de aproximação entre as enti-
dades. Contudo, foram pautas impostas pela burguesia e pelo governo federal, que acabaram cir-
culando em espaços tripartites para possível arreglo. Aliás, tal vem sendo a tônica das respostas
no interior de um refluxo prolongado, em que muitas conquistas históricas são eliminadas e os en-
tendimentos entre as centrais acontecem dentro de quatro paredes. Publicamente, prevalecem a
desunião política, o sectarismo no tratamento mútuo e a disputa por aparelhos. Nesse quadro, a fi-
delidade ao princípio da unidade é prioritária e a luta para consubstanciá-lo tem que ser cotidiana.
282 - Logo, a militância deve abster-se de apoiar a filiação a uma central em particular ou o
abandono de uma para aderir a outra, pois assim estaria contradizendo, enfraquecendo e desagre-
gando o critério unitário, assim como caindo na vala comum da refrega pluralista. A relação com
qualquer central jamais seria óbice para lutas, pois nenhuma tem autoridade e meios para coibi-las.
O mais importante é externar, com clareza e firmeza, o princípio da unicidade, posicionando-se
contrariamente à existência de várias entidades na mesma base territorial e defendendo um sindi-
calismo vertebrado pela contradição trabalho versus capital, que também se apresenta politicamen-
te. A questão chave é estar, não em determinada entidade geral, mas na luta pelos interesses ime-
75
diatos e gerais dos trabalhadores, sempre pugnando por ações conjuntas e fóruns permanentes.
283 - O principal desafio dos sindicalistas é se enraizarem na base e nos locais de trabalho,
lutando por reivindicações sentidas, elevando a consciência, melhorando o nível de organização e
atuando nas entidades com despojamento e dedicação. Nos debates internos aos sindicatos, seria
equivocado "quebrar lanças" em querelas infindáveis, como se a revolução socialista estivesse em
jogo em qualquer questiúncula. Melhor é marcar posição e seguir em frente. Nos entendimentos e
atividades, devem valorizar as atitudes práticas, a representatividade das entidades e a proximida-
de com uma linha sindical consequente, assim como construir as plataformas comuns e a unidade
de ação. Privilegiar a filiação partidária ou a retórica do “mais radical”, do “mais avançado” e do “re-
volucionário” seria uma ilusão: parafraseando Marx, não passaria de “aparência, e aparência pu-
ramente estética das grandes e pequenas robinsonadas”.
284 - Claro está que a FS tem uma política conservadora, apoia o capitalismo e pratica um
sindicalismo corporativo de “resultados”. A CUT adota o republicanismo social-liberal, defende um
capitalismo “humano” e nega autonomia às entidades de base por meio do sindicalismo “orgânico”.
A Conlutas também apresenta um programa partidário, além de ser uma entidade mista – sindical e
popular – e diluir o mundo do trabalho. E assim vai a nave confessional. Tais opiniões merecem crí-
ticas no âmbito da teoria revolucionária, mas o debate não deve aprisionar o movimento sindical,
como se tivesse condições de resolver-se nos seus fóruns e ambientes. Aliás, a insistência em co-
locá-las na pauta sindical é uma das maneiras de fazer o jogo de seus equívocos.
285 - O confessionalismo partidarizado tem facilitado o atrelamento dos sindicatos e cen-
trais ao regime político e ao Estado, quando o candidato apoiado vira governante, ou ao sectarismo
e à incapacidade para mobilizar amplamente, quando o adversário é eleito. A única maneira de
romper tal camisa de força é respeitar o ser social singular do processo sindical, com suas neces-
sidades intrínsecas e irrevogáveis. A crítica às confissões tem o propósito, não de apresentar outra
doutrina para as entidades – que seria a concepção marxista sobre o socialismo e a revolução –,
mas de rejeitar todas as pretensões voluntaristas e idealistas, porque dividem, enfraquecem e li-
quidam o amplo potencial da luta sindical, bem como deixam o terreno livre para o trabalho de sapa
da burguesia e dos políticos reacionários.
286 - Assim, as ações comuns não dependem de fórmulas abstratas – “os raios declamató-
rios”, como disse Lênin –, que mais escondem os problemas reais do que apontam caminhos. Os
compromissos práticos contrapostos aos interesses do capital na esfera específica ou geral, eco-
nômica ou política, residem na atitude assumida na luta de classes. Os oportunistas de direita se
denunciam quando fazem o jogo patronal nos dissídios, atrelam-se a governos e aceitam pactos de
austeridade. Todavia, o real caráter da retórica “combativa”, ostentada pelo sindicalismo missioná-
rio de ultraesquerda, revela-se apenas quando a relação causal dos exemplos é analisada à luz da
concepção marxista sobre a política, que esclarece o ser e a potencialidade de cada protagonista.
76
XIII – Princípios, diretrizes e plataforma do movimento sindical
287 - As características particulares dos movimentos proletários, com suas determinações
imanentes e suas experiências históricas, permitem à teoria revolucionária, como nos demais do-
mínios da práxis humana, a elaboração abstrata e a reiteração cotidiana de enunciados e valores
gerais que, impregnados de validade e duração para além dos terrenos parciais e das conjunturas
em que se desenvolvem, tornam-se princípios universal-concretos. A ideação parte da realidade
para depois, como elemento ativo, reencontrá-la. Tais postulados formais e fundamentais, em sua
ação de retorno abrangente e persistente sobre a sociedade civil e política, complementam, refor-
çam, estruturam e orientam, sob o ângulo do mundo do trabalho, a lógica de sua consciência, cul-
tura, política e atividade.
288 - Assim, para o movimento sindical, o princípio do compromisso básico traduz a defesa
intransigente de todos os interesses, diretos e indiretos, econômicos e políticos, pertencentes a ca-
da categoria econômica e aos trabalhadores em conjunto. O princípio da ação fundamental expres-
sa a interferência econômica e política do proletariado na contradição capital versus trabalho, sob
seus diferentes aspectos, com vistas a reduzir-se e combater-se a exploração patronal. O princípio
de classe manifesta a composição de sua base social calcada no proletariado, com extensão ao
campesinato e aos trabalhadores pequeno-burgueses urbanos sem empregados permanentes em
suas atividades-fim. O princípio de massas exprime a presença imperativa e cotidiana do conjunto,
associado ou não, na vida das entidades, em todas as situações administrativas e políticas, espe-
cialmente nos fóruns e lutas.
289 - O princípio da representatividade coagula a forma em que a legitimidade institucional
se estrutura em competência atribuída à entidade e aos seus dirigentes, efetivamente, pelo conjun-
to da categoria econômica, com fundamento no vínculo concreto e na delegação voluntária. O prin-
cípio da unicidade firma a existência de uma só entidade representativa na mesma categoria eco-
nômica e em determinado território. O princípio da unidade concretiza a disposição de convergir
posturas e ações para os mesmos objetivos, meios e procedimentos, a despeito das diferenças en-
tre os sujeitos envolvidos. O princípio da liberdade consubstancia a capacidade de impregnar com
sua vontade os próprios atos, sem ameaças, opressões e violações de direitos. O princípio da au-
tonomia representa a organização sem imposições patronais, estatal-governamentais e partidário-
eleitorais.
290 - O princípio da democracia sindical significa a cristalização formal de fóruns e procedi-
mentos internos às entidades, nos limites objetivos, para se garantirem a livre interlocução e deci-
são entre os diferentes indivíduos e opiniões, indispensáveis à efetivação da representatividade e
da ação unitária. O princípio da combatividade coagula a motivação, a iniciativa e o destemor no
desenvolvimento do compromisso básico e da ação fundamental, mesmo em face dos maiores
obstáculos. O princípio da solidariedade estabelece, nas entidades sindicais e em suas bases, a
77
disposição de agir em apoio e sustentação mútuos, dentro e fora das categorias econômicas, es-
pecialmente nos momentos de maior embate e carecimento. O princípio do internacionalismo prole-
tário projeta, em cada nação, o compromisso, a solidariedade, a unidade e a ação comum para a
esfera mundial.
291 - Para que os princípios, na condição de valores objetivados em forma abstrata, desdo-
brem-se e interfiram na vida cotidiana dos trabalhadores – reencontrando e coadjuvando as deter-
minações concretas que habitam no modo de produção capitalista, no complexo econômico-social
e na realidade de cada categoria proletária, enriquecendo-se e recriando-se nas particularidades
reencontradas –, torna-se indispensável a sua conversão em diretrizes mediadas e práticas. Tal é o
percurso que a concepção geral precisa cumprir para gerar ações efetivas na luta sindical real, tais
como a organização, a administração, o financiamento, a formação, as avaliações, os debates, as
deliberações, as campanhas, a propaganda, a agitação, as formas de luta, os confrontos, as nego-
ciações e as nuanças táticas.
292 - Em abordagem correspondente aos princípios, são diretrizes da atividade sindical as
orientações e providências destinadas a: auscultar e encaminhar os interesses dos trabalhadores;
priorizar a luta contra a exploração nas empresas e na reprodução ampla do capital; organizar a
base social proletária e fomentar a aliança operário-camponesa; promover a participação e o pro-
tagonismo das massas; abarcar o conjunto da categoria econômica na organização e nas deci-
sões; fortalecer representações exclusivas em cada nível; forjar a ação unitária entre dirigentes,
ativistas e toda a base; zelar pelas liberdades das entidades e do movimento; rejeitar qualquer vio-
lação à autonomia orgânica; aprofundar e manter os métodos democráticos de funcionamento in-
terno; colocar as lutas no centro das preocupações; cultivar a solidariedade; apoiar as mobilizações
do trabalho contra o capital no mundo inteiro.
293 - São também diretrizes gerais da atividade sindical: a concentração de forças direcio-
nada ao proletariado produtivo, especialmente aos seus setores fabris que transformam matérias-
primas – brutas ou elaboradas – e se reúnem nas grandes unidades físicas; a organização dos tra-
balhadores pela base em comissões de empresa; a interlocução e a vinculação permanente das di-
reções com as suas categorias; o reforço no aparato formado por instalações, equipamentos, ape-
trechos de uso cotidiano, fundos e quadros experientes; a preparação de planos que organizem o
funcionamento das entidades, anuais e para cada uma de suas iniciativas, com objetivos claros,
meios adequados e cronogramas factíveis; a realização da disputa contra-hegemônica multilateral,
seja em relação à sociedade civil, seja no que concerne à sociedade política, inclusive quanto à le-
gislação e ao direito do trabalho.
294 - Algumas diretrizes exigem maiores detalhamentos. Por exemplo, o apoio institucional
de entidades a um partido ou a uma candidatura no processo eleitoral, seja majoritário, seja pro-
porcional, dividiria sua base. Igualmente equivocado seria “lavar as mãos”, como se o sufrágio na-
da tivesse a ver com os trabalhadores e suas lutas: a “neutralidade” não passa de uma fantasia po-
78
sitivista. Mais adequado é combater as posições retrógradas e conservadoras em cada pleito, bem
como arrancar compromissos dos postulantes em torno de reivindicações imediatas e políticas.
Claro está que, individualmente ou partidariamente, cada militante deve manifestar seu voto e dis-
putar a preferência dos eleitores, inclusive declarar-se ideologicamente, mas de forma alguma po-
derá imputar sua preferência e decisão à instituição representativa de massa a que pertence. Aliás,
os dirigentes e filiados jamais serão enquadrados em torno da posição eventualmente majoritária
na diretoria.
295 - Ademais, visando a se fortalecerem, bem como a reconstituírem e defenderem
radicalmente sua representatividade, sua unicidade, sua unidade e sua democracia funcional, os
sindicatos precisam estabelecer que todos os trabalhadores da base, mesmo aqueles ainda sem
filiação, terão acesso – irrestrito e com plenos poderes – às discussões e deliberações sobre os
assuntos de interesse geral, tais como formas de vinculação à categoria, escolha das diretorias,
recursos a negativas de associação, convocação de consultas, deflagração de campanhas, decre-
tação de greves e gestão dos fundos para a solidariedade. As exceções, que continuam sendo
prerrogativas dos sócios, são os direitos estritamente internos à estrutura das instituições de
massa, a exemplo de candidaturas à diretoria, de assuntos especificamente administrativos e de
benefícios administrativos diretos.
296 - Outra diretriz: os sindicatos devem jogar peso na criação ou reativação das comissões
de empresa, no seu funcionamento permanente e na sua vinculação direta – quanto aos processos
de constituição, sucessão e atividade – à sua estrutura organizacional, que manterá e dirigirá suas
ações de solidariedade, deliberação, negociação e luta. Mais uma: pondo fim à discussão intermi-
nável e mecanicista sobre as relações das entidades representativas com o Estado, cabe estabele-
cer que a contribuição sindical, de no máximo um dia de trabalho por ano, tenha seus montantes e
objetivos definidos em assembleia-geral universal – aberta a todos os trabalhadores da categoria –,
no início de cada gestão, desde que direcionada para financiar o fundo de greve, o socorro aos
atingidos pela repressão, os planos de formação, o aluguel da sede e os veículos próprios de co-
municação.
297 - Por fim, os sindicatos não devem pretender substituir as organizações de todos os
segmentos populares oprimidos, seja por reconhecerem a importância de cada um como tal, que
jamais será suprida na lógica singular e cotidiana das categorias econômicas, seja por entenderem
que as características universal-concretas das entidades representativas dos trabalhadores não
comportariam as determinações específicas das concepções, métodos, prioridades e atitudes pró-
prias dos movimentos temáticos, sob a pena de se inocularem com novas doses confessionais.
Nas instituições sindicais, as lutas antirracistas, feministas, por liberdade na orientação sexual e ou-
tras necessitam ser entendidas como combate às dimensões concretas da exploração e da opres-
são exercida pelo capital sobre o trabalho.
298 - Não se trata, pois, apenas, de adotar uma angulação de classe, que é válida para to-
79
dos os terrenos da disputa sociopolítica. Revela-se indispensável, também, desenvolver posturas,
bandeiras e formas de organização adequadas e próprias à luta sindical. Assim, ao lado da solida-
riedade aos que exigem seus direitos fundamentais em quaisquer locais e circunstâncias, adquirem
interesse real os problemas dos jovens e mulheres no processo e no ambiente laboral, como assi-
metria salarial, impropriedade nas instalações ou equipamentos, carência de creches, desigualda-
de funcional, tratamento desrespeitoso, cuidados médicos inadequados e formação estreita, que
devem ser alvo de formulações específicas e adequadas a cada entidade. Sem tal compreensão,
os movimentos temáticos, além de ficarem fora de lugar nas empresas e nas categorias econômi-
cas, limitar-se-iam, na esfera geral da sociedade civil e política, à mera busca de melhor inserção
na dinâmica do capitalismo.
299 - Reconvertendo os princípios e diretrizes abstratos em ação concreta, o movimento
sindical precisa elaborar e manter reivindicações econômicas e políticas que unifiquem e norteiem
suas lutas. O Programa Mínimo aprovado no II Congresso da RC, de sentido democrático, anti-
imperialista, antimonopolista e antilatifundiário, cumpre o papel de referência geral e permanente,
pois seus eixos contêm propostas sobre os anseios populares e as questões relevantes da luta
proletária no período contemporâneo da luta de classes, permitindo-lhes, em cada conjuntura, o
desenvolvimento da solidariedade e de alianças amplas. Todavia, é indispensável que as entidades
de massa, das categorias econômicas até o nível nacional, organizem as exigências imediatas e
específicas das camadas sociais cujos interesses abarcam. O acúmulo atual permite trabalhar com
a seguinte plataforma:
- defesa e regulamentação do artigo 8º da Constituição Federal, de modo a garantir o pleno,
irrestrito e efetivo direito de greve para todas as categorias econômicas, inclusive para o funciona-
lismo público;
- manutenção e ampliação dos benefícios sociais vinculados ao processo de trabalho, es-
pecialmente os direitos básicos consagrados no artigo 7º da CF e complementados na CLT, como
férias remuneradas, 13o salário, hora-extra, adicional noturno, descanso semanal, licença materni-
dade e o auxílio paternidade, assim como do seguro-desemprego e da pensão por morte;
- consolidação da estrutura e do poder normativo da Justiça do Trabalho, contra quaisquer
tentativas de transformá-la em instrumento de práticas antissindicais, como criminalização das lu-
tas, repressão ao direito de greve e promoção de interditos proibitórios;
- extinção do “fator previdenciário” e consolidação da previdência social pública, tomando as
providências necessárias à sua expansão e transformação em um sistema nacional único e univer-
sal;
- recuperação dos direitos subtraídos aos servidores públicos e garantia de novas conquis-
tas, incluindo a reposição de sua força de trabalho por meio de concursos e a recuperação de suas
remunerações, bem como a paridade salarial e o fim da contribuição previdenciária dos aposenta-
dos;
80
- aumento real do salário mínimo, com base no custo de vida real, no crescimento da produ-
tividade, no maior reajuste concedido a agentes públicos e na reposição das perdas inflacionárias,
para “atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, conforme o artigo 7º,
IV, da CF;
- melhorias salariais para o conjunto do proletariado, inclusive para os trabalhadores que re-
cebem remunerações intermediárias e que são, frequente e abusivamente, classificados no rol das
pessoas “ricas”;
- instituição de pisos regionais nos Estados-membros da Federação, de modo a preservar a
remuneração sempre acima do salário mínimo para todas as categorias profissionais do setor pri-
vado;
- instauração de uma norma que garanta o trabalho semanal máximo de 40 horas diurnas e
30 horas noturnas, sem qualquer redução salarial e com maior taxação das horas extras;
- defesa de normas legais que regulamentem a carga horária, o descanso e a aposentado-
ria de cada categoria econômica, como a dos trabalhadores rodoviários;
- fim das formas remunerativas condicionadas e calculadas com base em critérios de resul-
tado e de produtividade;
- diminuição da carga tributária sobre os trabalhadores, especialmente os que recebem sa-
lários mais baixos, com destaque ao reescalonamento nas faixas adotadas pelo Imposto de Renda;
- combate à precarização do trabalho, com fortalecimento das instâncias e órgãos aplicado-
res de normas protetivas, inclusive a fiscalização estatal sobre as relações de emprego, reforçada
com um plano nacional para a erradicação do labor infantil, degradante e informal;
- proibição das terceirizações incidentes sobre os processos produtivos associados às ativi-
dades-fim das empresas;
- criação de um fundo para trabalhadores autônomos, com vistas a prover-lhes aposentado-
ria, pensão, férias, repouso, licença maternidade, proteção da natalidade, repousos médicos e ou-
tros direitos;
- implantação de um plano nacional contra acidentes e doenças profissionais, prevenindo
mutilações ou mortes e promovendo a saúde do trabalhador;
- ratificação e regulamentação das convenções nº 158 e 151 da OIT, que vedam a demis-
são imotivada e preservam a organização sindical para os funcionários públicos;
- garantia legal da organização dos trabalhadores por local de trabalho e estabilidade para
os membros das comissões por empresa;
- medidas contra ações patronais que provoquem demissões, visando a um sistema legal
que garanta a estabilidade no emprego;
- implantação do contrato coletivo, mas com primazia da legislação trabalhista sobre os
acordos e com vedação das brechas legais que permitam cortes salariais;
81
- extensão de todos os direitos trabalhistas urbanos ao proletariado rural, fiscalizando sua
efetivação e suspendendo contratos ou financiamentos públicos com empresas e proprietários que
descumpram suas obrigações laborais;
- eliminação do latifúndio, democratização da posse territorial e instauração de uma reforma
agrária com planejamento nacional, terra para os camponeses que as ocupam, concessão de
áreas devolutas para o trabalho socialmente útil e combate à violência no campo;
- anistia e reintegração ao emprego anterior para todos os trabalhadores demitidos em mo-
vimentos grevistas;
- divulgação dos atos repressivos cometidos pelo regime militar contra os trabalhadores e o
movimento sindical, na perspectiva da punição aos responsáveis;
- integração das entidades e lutas sindicais latino-americanas, organizando iniciativas de so-
lidariedade e ação comum.
300 - Tais bandeiras podem ser ratificadas ou alteradas em cada conjuntura, a depender
das particularidades configuradas nas situações concretas, nas correlações de forças e nas media-
ções indispensáveis à boa condução dos combates. No entanto, é preciso que sejam coerentes
com os interesses e anseios proletários gerados no desenvolvimento interno ao modo de produção
capitalista e à formação econômico-social, bem como coagulados como princípios e diretrizes for-
mais nas lutas. O decisivo é que a plataforma e suas consignas sempre sejam referências, não só
para as mobilizações das massas contra a exploração burguesa, mas também para a linha de corte
real que separa o mundo do trabalho e seu movimento da reação patronal e seus agentes internos.
301 - O fim da ordem burguesa, porém, exige muito mais. Pressupõe que a luta de classes
se combine à teoria revolucionária – filosofia, doutrina social, estratégia e tática geral –, condensa-
da em forma orgânica superior. Semelhante síntese supera as possibilidades e tarefas das entida-
des representativas, porquanto remete o conflito contra a burguesia, conforme Lênin, para além do
fluxo ascendente da espontaneidade e do contencioso político, atingindo nova qualidade. O sindi-
calismo é o ambiente privilegiado para que a consciência proletária extrapole a ideologia sensível,
pois apresenta condições fecundas para que os setores avançados, impelidos por suas experiên-
cias e convivências com os militantes marxistas, contraponham-se ao capitalismo na perspectiva
da transição socialista, aproximando-se do movimento comunista e das fileiras partidárias.
302 - Destarte, somente há uma maneira de ligar-se umbilicalmente às grandes massas do
proletariado: atuando nos sindicatos e em suas organizações gerais. Os outros meios e frentes de
inserção, por mais que precisem ser contemplados e tenham até finalidades estratégicas, estão
longe de oferecer as mesmas possibilidades no que diz respeito à ligação por baixo com a classe
fundamental. Eis por que os comunistas necessitam participar do movimento sindical real – isto é,
considerado tal como existe, com seus níveis de consciência, limites, virtudes e mazelas – e não
condicionando a militância revolucionária a formas criadas com base em algum devir ideal, que só
fariam fornecer obstáculos artificiais ou justificar a omissão.