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Testemunho :
Este documento foi escrito para:
- testemunhar o total desespero que a ausência de estratégias de compreensão em leitura pode provocar num leitor com dificuldades… e não entanto com boa vontade !
- Informar os professores que as ignoram demasiadas vezes, para que tomem consciência destas estratégias e possam depois, como verdadeiros profissionais da aprendizagem, ensiná-las a todos os leitores.
Ecos do meu primeiro encontro com a Julie.
por Hélène Delvaux
Começamos por nos conhecer. Eu explico-lhe como vamos trabalhar (nomeadamente com a gestão mental).
Ela diz-me que tem muitas dificuldades em compreender o que se passa nas suas aulas, que estuda imenso e que tem negativas em várias disciplinas.
Depois de a ter interrogado sobre os seus processos conseguidos (dança moderna e um curso para o qual os testes estão correctos), proponho-lhe uma actividade de compreensão em leitura.
Présentation:
A Julie tem 15 anos, está no 3º ano do ensino secundário. Está com problemas, o seu primeiro boletim de notas do ano tem várias negativas. Acaba de pedir ajuda. O seu olhar está sempre cabisbaixo, ela sente-se derrotada, quase não fala!
Apresentação:
h Com efeito, sinto-a muito stressada, pouco confiante em si mesma, hesitante em cada resposta, mesmo nos domínios em que tem sucesso; para continuarmos a conhecernos, parece-me útil propor-lhe uma pequena tarefa: ler uma pequena banda desenhada de quatro vinhetas. O documento parece-me muito simples e logo muito apropriado para esta primeira descoberta do funcionamento mental da Julie em situação de aprendizagem.
Vai descobrir o documento no diapositivo seguinte.
Peço simplesmente à Julie que leia esta banda desenhada para compreender o seu sentido; previno-a de que dispõe de todo o tempo necessário e de que depois lhe pedirei que me diga, em poucas palavras, o que compreendeu desta pequena história, sem olhar para o documento, que ocultaremos.
Início da leitura:
Eis o documento:
Não podemos continuar assim! É absolutamente necessário reduzir as despesas da casa!
Podíamos, por exemplo, passar sem frango ao domingo. E fazer menos vezes peixe. Está demasiado caro!
Ou então podíamos comer mais vezes massa!... E menos vezes carne! Os vegetarianos nunca comem carne e…
A Julie lê a BD e leva todo o tempo necessário. Alguns minutos depois, diz-me… que não percebeu.
Especifica qual foi o conjunto que ela não percebeu.
Decidimos procurar juntas o sentido, imagem por imagem.
Peço-lhe que me diga de imediato aquilo que ela não percebe. Previno-a de que a acompanho nesta busca de sentido, mas que não farei o trabalho por ela. Ela concorda.
Eis o relato dessa … aventura :
Imagem 1 :
- Esta imagem significa que é preciso fazer baixar os preços nas lojas. O que significa « assim » na primeira frase? - Boa pergunta (trata-se de procurar uma inferência, passo importante para um bom leitor e portanto importante para encorajar à compreensão). Vamos procurar a resposta juntas. Voltemos então à primeira explicação: «é preciso fazer baixar os preços nas lojas».
J
H
Vejamos aqui a seguir o diálogo entre a Julie e eu:
JH
H - O que é que percebeste nesta primeira imagem?
Não podemos continuar assim! É absolutamente necessário reduzir as despesas da casa!
H- A personagem que fala, na tua opinião, tem algum poder sobre os preços praticados nas lojas?
J - Não.
H- Então mudemos de hipótese e voltemos ao «assim». Eu associo-o ao «nós » inicial e pergunto-me quem é este «nós» ? Talvez isso nos dê uma resposta para o «assim»? (de novo a questão da referência, indispensável para uma boa compreensão – e ao mesmo tempo é interessante mostrar que compreender consiste em tirar todos os indícios com os quais elaboramos uma hipótese de sentido que depois verificamos).
J - Eu penso que são «as pessoas» em geral.
- E tu, quando vais às compras? É o cliente que decide fazer baixar os preços ?
J - … …
H
Não podemos continuar assim! É absolutamente necessário reduzir as despesas da casa!
J
H- Vejamos a imagem mais de perto: um homem está sentado no sofá e lê; há uma pequena mesa baixa, um candeeiro, adivinha-se um quadro na parede. Onde é que estamos, na tua opinião?
- Numa sala de estar.
H- Uma sala como em tua casa, uma sala como num hotel, como no cabeleireiro, … ?
J - Mais uma sala como em minha casa.
Chegamos então à conclusão de que a personagem que fala pode ser um pai de família (família de que não conhecemos a composição exacta, mas que podemos imaginar) . O «nós » representaria então toda a família.
(dizendo isto, eu «leio» a imagem, isto é, tiro índices significativos, passo que a Julie não conhece; ora uma imagem lê-se tanto como um texto)
Não podemos continuar assim! É absolutamente necessário reduzir as despesas da casa!
Notemos já agora que a Julie me referiu que não tinha olhado para a imagem e que nunca tinha pensado em retirar dela indícios para sustentar a sua compreensão. De facto, ela não sabe que também podemos ler uma imagem.
- Sabemos agora quem é o «nós », mas ainda não sabemos o que representa o «assim»! Vamos procurar na frase seguinte.
H
J - Não compreendo o que significam as «despesas da casa».
Apercebo-me nesse momento de que ela conhece as duas palavras separadamente , mas que não tem nenhuma ideia do que pode custar a vida quotidiana de uma família. Por diversas razões, ela nunca participa nas compras da casa.
Não podemos continuar assim! É absolutamente necessário reduzir as despesas da casa!
Ela apercebe-se de imediato o que significa a frase: e consequentemente compreende rapidamente que o «assim» significa que a família gasta demasiado e tem de reduzir as despesas.
Juntas procuramos o que pode ser caro numa casa: comida, electricidade, telefone, produtos de entretenimento, roupas, carro, aquecimento, etc.
Percebemos então todo o sentido da primeira imagem. Passamos à segunda.
Não podemos continuar assim! É absolutamente necessário reduzir as despesas da casa!
A Julie relê o texto e não percebe o sentido, porque não tem nenhuma ideia do custo de vida: nomeadamente carne e peixe.
Como os conhecimentos não estão lá, eu levo-lhos: mostro-lhe que a carne é muitas vezes cara e o peixe também. Nesse momento, ela diz-me que não compreende a expressão «demasiado caro».
Imagem 2 :
Note-se que o bom leitor sabe dizer quando não compreende e o que não compreende. Este passo continua pois a servir para encorajar.
Podíamos, por exemplo, passar sem frango ao domingo. E fazer menos vezes peixe. Está demasiado caro!
H
J
- Conheces a expressão«demasiado» ?
- Sim.
H - Conheces o sentido da palavra «caro»?
J - Sim .
H - Então, na tua opinião, o que é que poderia significar a expressão: «demasiado caro»?
J - Não sei.
H - Então, estabelece hipóteses e arrisca (compreender é arriscar, é importante voltar a dizê-lo, poucos alunos sabem isso e isso impede-os muitas vezes de ententer – isso supõe evidentemente que o professor esteja pronto a acolher erros) . O peixe está «demasiado» «caro» : O que é que isso poderá querer dizer? Vamos! Tenta e arrisca!
J - Isso significa que está barato.
H - Bravo ! Essa é uma boa hipótese. Verifica-a pelo resto da frase.
Podíamos, por exemplo, passar sem frango ao domingo. E fazer menos vezes peixe. Está demasiado caro!
Entre cada pergunta/resposta, a Julie pensa em silêncio: eu calo-me também e espero pela sua resposta; este tempo de silêncio é importante para que ela possa trabalhar em evocação.
J - Não, não é isso.
H - Então força. Tenta outra hipótese.
J - … que o peixe é demasiado caro!
H - Muito boa hipótese. Verifica-a.
J - Sim, faz sentido pelo início da frase!
É importante acolher favoravelmente todas as hipóteses, mesmo as que sabemos bem que não estão correctas. Porque o objectivo aqui é de levar o leitor em dificuldade a assumir o risco de produzir hipóteses, boas ou más.
Podíamos, por exemplo, passar sem frango ao domingo. E fazer menos vezes peixe. Está demasiado caro!
A Julie acaba de experimentar o risco e… o prazer de procurar ela própria e de dar um sentido a uma expressão que não conhece. Ela gosta da sensação.
Falta-nos ligar o texto à imagem: a personagem levantou-se do sofá, voltou a fechar o seu livro anda com um ar muito contrariado (expressão do rosto – mão) . Isso “cola” ao texto: ainda não há solução. Ele procura.
Podemos passar à terceira imagem.
Podíamos, por exemplo, passar sem frango ao domingo. E fazer menos vezes peixe. Está demasiado caro!
Imagem 3 :
A compreensão desta imagem é clara:
- A Julie sabe que as massas são baratas
- Ela conhece os vegetarianos
- Ela encontra a confirmação da compreensão anterior na frase «comer menos carne».
Ela observa a imagem e descobre que a atitude da personagem confirma a compreensão: o seu rosto está um pouco menos tenso, ele parece ter encontrado soluções, mesmo parecendo um pouco resignado.
Ou então podíamos comer mais vezes massa!... E menos vezes carne! Os vegetarianos nunca comem carne e…
Por vezes, não nos vêm à cabeça, mas frequentemente eles estão lá e o leitor não se lembra de os utilizar.
Notemos a importância dos conhecimentos anteriores:
Também isso pode fazer parte do papel do professor: J. Giasson propõe uma série de pistas para estimular estes conhecimentos.
Ou então podíamos comer mais vezes massa!... E menos vezes carne! Os vegetarianos nunca comem carne e…
Imagem 4 :
J
H
- Não percebo!
- O que é que tu não percebes?
J- Não sei o que é que o gato leva ao ombro.
H - Leva o seu saco e simbolicamente isso representa tudo o que ele tem!
Observamos a imagem: o gato parece entrar na sala, caminha com um passo decidido e não olha para o pai de família. Para onde vai? O pai de família está muito surpreendido: a sua atitude mostra-o e é confirmada pelo ponto de exclamação! O gato faz qualquer coisa inesperada, surpreendente.
Há aqui qualquer coisa a inferir. A Julie não encontra.
H- Em que é que se baseavam as economias imaginadas pelo pai de família?
J - Sobre a comida.
H - E o que é que um gato gosta de comer?
J - Carne.
E então a Julie compreende imediatamente: o gato, tendo ouvido os projectos de economia sobre a carne e o peixe, vai-se embora para outra casa.
Terminámos então a compreensão desta BD … que eu considerava simples desde o início.
Observações e comentários:
Desde a leitura da primeira imagem, a questão da referência coloca-se com o «assim» e o «nós». Não são fáceis porque o «nós» é inferido a partir da leitura da própria imagem e o «assim» é inferido a partir da frase seguinte, que ilustra o seu contrário.
Quanto à inferência, ela é omnipresente, no texto e na imagem.
As conexões lógicas são, ao contrário, claramente expressas e facilitam a compreensão: «por exemplo », «ou então», «e».
Para além disso, para compreender, é necessário mobilizar conhecimentos: Julie não tem o hábito de o fazer, é preciso dizer-lhe que o faça e acompanhá-la nesta tarefa, mostrando-lhe todo o risco que este processo comporta: procedendo assim, não temos sempre a absoluta certeza de encontrar uma resposta e menos ainda de encontrar a resposta correcta.
Alguns conhecimentos, que poderíamos considerar como «elementares» não estão presentes na sua cabeça; então, é preciso dar-lhos, sem julgamentos.
Perante uma palavra de vocabulário ou uma expressão nova, Julie fica passiva: ela tem o hábito de perguntar o seu significado, nunca de o procurar ela própria (talvez no dicionário, mas isso é tão aborrecido!).
Resumidamente, face a um texto,Julie não tem realmente o hábito de fazer todo o trabalho mental de compreensão: observar o que é dado, retirar indícios significativos tanto das palavras como das imagens, levantar questões, tentar associar informações, comparar com as suas vivências, elaborar hipóteses de sentido e verificá-las, etc.
Julie ignorava que havia todo este trabalho a fazer para compreender. Ela disse-me, aliás: ao chegar a sua casa, para mim, compreender queria dizer «que os meus olhos teriam percorrido todo o texto. Só isso!» .
Este é o eco do meu primeiro encontro com a Julie. Houve muitos outros ao longo dos quais praticámos pacientemente as estratégias de compreensão em leitura. E a Julie descobriu que tinha muito prazer em ler, mesmo se isso foi por vezes difícil para ela.
E de cada vez tivemos tempo para tomar consciência disso, indicar a estratégia, descrevê-la, evocar e
imaginar reutilizações possíveis. Sem esta primeira fase metacognitiva, o trabalho teria sido incompleto e
certamente muito menos eficaz.
Testemunho
Para o projecto « Signesetsens » 2007-09
Documento elaborado por Hélène Delvaux d’IF Bélgica.
Fotos : H. Delvaux