Texto Madri

  • Upload
    fcastro

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

texto1

Citation preview

O jaguar no Pantanal uma etnografia multiespciesFelipe Sssekind1.Dois vaqueiros passaram o dia todo trabalhando numa fazenda que ficava numa regio prxima ao rio Paraguai, no Pantanal sul. A fazenda ainda era nova, e no tinha nenhuma casa construda. No final da tarde, eles pararam de trabalhar, acenderam o fogo para cozinhar e armaram um pequeno barraco de lona, onde colocaram suas redes de dormir. Enquanto montavam o acampamento, comearam a ouvir uma espcie de som grave vindo da direo de umcorixo(um brao de rio) prximo, e o mais velho deles, que era um caador experiente, identificou imediatamente oesturroda ona-pintada.Durante todo o tempo em que preparavam sua comida, eles ouviram o barulho da ona vindo do outro lado do rio, e quando anoiteceu o som mudou de direo e se tornou mais prximo. O vaqueiro mais velho tinha apenas um antigo revlver 22. O mais jovem, que estava desarmado, resolveu improvisar umazagaia(uma espcie de lana usada na caa), amarrando um faco que tinha levado a um pedao de pau.Depois do jantar, eles alimentaram a fogueira do lado de fora do barraco com bastante lenha, para se assegurar que a ona no ia se aproximar, e foram se deitar. O velho caador assegurou ao jovem que ela no ia atacar se eles ficassem quietos e no mexessem com ela. Depois disso, ouviram-na rondando o lugar at tarde, mas estavam to cansados do trabalho que acabaram dormindo.Quando acordaram, o sol j estava saindo. Foi a que perceberam que a ona tinha vindo at o acampamento durante a noite. Ela tinha passado ao lado das redes em que estavam dormindo e chegou a remexer na lenha que sobrou da fogueira. O jovem vaqueiro comentou aliviado: bem que o senhor falou que ela no mexe com a gente, e o caador mais velho comentou que ela no estava com fome, e que ainda bem que nenhum deles roncava, porque a ona atrada pelo ronco.O caador da histria era Seu Incio, que foi quem me narrou o caso. Eu estava na fazenda Santa Sofia, localizada na bacia do rio Miranda, no Mato Grosso do Sul, para acompanhar as atividades de um projeto de pesquisa e conservao de onas-pintadas[1], e j tinha ouvido falar nele. Seu Incio tinha sido capataz de uma fazenda vizinha, e era um exemplo do tipo de caador mais tradicional no Pantanal, um vaqueiro que tocava a fazenda do patro e tinha se especializado na caa, criando seus prprios ces para perseguir as onas que atacassem a criao. Como era um bom caador e tinha ces de qualidade, costumava ser procurado tambm por outros fazendeiros da regio que estivessem tendo problemas com predadores. Na poca em que o projeto de pesquisa sobre as onas se estabeleceu na regio, em 2007, ele j tinha ido trabalhar como capataz em outra parte do Pantanal. Conheci-o em setembro de 2008, quando fez uma visita fazenda Santa Sofia.Algumas semanas depois desse primeiro encontro, visitei a fazenda para onde Seu Incio havia se mudado, no Pantanal do Nabileque. Ele queria me mostrar restos de alguns bezerros mortos pela ona, e fomos dar uma volta de cavalo. Depois de mais ou menos uma hora de cavalgada, apontou trs ossadas diferentes espalhadas num trecho de cem metros de campo, acompanhando a vegetao fechada de um capo. Ele contou que tinha levado os cachorros naquelas carnias, mas que a ona tinha escapado atravessando o rio Paraguai logo depois de comer cada um dos bezerros.As onas so caadoras de tocaia, que observam sua presa sem se deixarem ver, e isso traz uma dimenso especfica para a experincia de quem divide o espao com elas, uma sensao particular que marca a paisagem, que confere ao lugar uma qualidade prpria. Na histria de seu Incio, no incio deste texto, ele e o outro vaqueiro entram em uma relao predador-presa com a ona, um jogo de espreita, de espera, de ver quem observa e quem observado. De fato, eles no chegam a v-la em nenhum momento. A presena dela percebida, primeiro, a partir dos sons, e depois a partir dos rastros que deixa em volta do local onde dormiam; uma presena fantasmagrica, reconstituda atravs de indcios.2.Indagado sobre como tinha aprendido a caar, Seu Incio explicou que aprendeu com o av, que matava ona nazagaia. Ele narrou como ajudava o av, e a histria era muito semelhante a outras que eu j tinha ouvido na regio. O tema, que se repetiu em pelo menos trs outras entrevistas minhas, envolvia um narrador que abre uma picada para preparar o terreno onde acontece a luta entre ozagaieiroe a ona.Um bom exemplo o depoimento de um vaqueiro antigo, j aposentado, que entrevistei na cidade de Miranda, o qual reproduzo a seguir:E o senhor j viu caada na zagaia?Vi s uma vez. Foi aqui mesmo, no Nabileque, mas era um poconeano. Eu esqueci o nome dele, chamavam ele muito de gato. Era baixinho, um pouco mais baixo que eu, mas era troncudinho, assim; tinha muita fora. Cachorro tava acuando a ona, e ele falou: Vai limpando a pra mim, vai roando. Eu era bem mais novo, e ele falava: vai roando a, meu filho, no tenha medo no, eu estou aqui firme. E eu com a foice cortando, e ele falava: corta bem baixinho, bem rentinho, vai limpando tudo. E a ona l, os cachorros trabalhando ela. De vez em quando ela dava um bufo, e eu com um medo danado, mas fui roando.Ele falou: Pode sair da frente, que agora ela vem. E a ele mandou o cachorro mestre. O cachorro dava aquela avanada, e depois corria pro lado dele. E foi a hora que ela veio em cima dele. S que ele firmou a zagaia nela, e quando ele empurrou, assim parece que ela mesma se ferra. Eu sei que ela deu uma gatanhada ali. Ele empurrou e o bicho caiu de lombo, e ele deu um salto pra l, seguro no cabo da zagaia, deu aquele salto. Mas pegou mesmo no p do pescoo, bem no sangrador. Foi uma s. O bicho esperneando ali, no fez mais nada. De certo alcanou o corao logo, porque aquilo corta dos dois lados e tem ponta, a zagaia. Eu falei: eu no tento pegar na zagaia, no.O papel doszagaieiros, que eram contratados pelos proprietrios rurais paradesonardeterminadas regies a serem ocupadas por fazendas, foi explorado por Guimares Rosa no contoMeu tio o Iauaret(1961). O conto se desenrola em uma atmosfera tensa, uma espcie de jogo complexo entre presa e predador que envolve o visitante branco e o onceiro. Aquele que dormir primeiro, morre, o que nos remete de novo nossa histria inicial. No por acaso, o personagem um bugre, mestio de pai branco e me ndia; azagaia, essa lana rstica de cabo de madeira e ponta de ferro, remete diretamente a uma herana indgena.Em muitos casos, entretanto, o elemento indgena ocultado ou mesmo visto de forma negativa no universo das fazendas pantaneiras. Um exemplo disso o depoimento da cozinheira de uma fazenda em que estive. Ela era filha de uma ndia terena, mas no se identificava como ndia, e relatou que o pai, um vaqueiro de Miranda, no deixou que a lngua indgena fosse ensinada dentro de casa. Um antigo funcionrio dessa mesma fazenda, j aposentado, tambm era filho de uma terena e de pai gacho, e tinha sido criado numa aldeia guarani antes de ir trabalhar como empreiteiro e capataz de comitiva. Ele sabia falar guarani, mas no se lembrava de nenhuma palavra da lngua terena.Outro exemplo interessante para articular o tema doszagaieiroscom o da mestiagem o de Seu Celestino, um conhecido caador que viveu na regio do Pantanal do Miranda, filho de uma ndia Bororo com um homem branco de Cuiab. Ele j havia falecido quando comecei a pesquisa, mas tive a oportunidade de fazer uma entrevista com seu genro, para quem perguntei: verdade que nos tempos antigos o pessoal matava ona na zagaia?Matava. Meu sogro chegou aqui na fazenda Miranda Estncia, na poca, s pra matar. Veio com outro caador, s pra matar ona. Ele matou duzentos e oitenta onas. Quando acuava no cho, ele pegava na zagaia. Quando subia, atirava.E aonde foi que ele aprendeu?Ele aprendeu com o sogro dele, muito tempo atrs, quando ele era solteiro ainda. O sogro dele, diz que tinha um ditado, assim, que para casar com a filha dele tinha que pegar uma ona na zagaia. (risos) Ele gostava da filha dele, e a teve que encarar o velho e pegar uma ona na zagaia. (Ent. 2008)A partir de um extenso trabalho bibliogrfico sobre o grupo indgena Guat, que antigamente habitava o alto rio Paraguai e o So Loureno, Oliveira (1996) afirma, de forma semelhante que, para esses ndios, a caada de ona[f]az parte tambm de uma espcie de rito de passagem dos jovens (), pois cada ona caada poderia dar direito a uma esposa. (1996: 109). O autor afirma ainda, a esse respeito, que[p]ara os homens, quanto mais onas caadas, maior o seu status de caador (idem).Os Guatso conhecidos por terem sido exmios caadores de onas. Sasha Siemel, um caador lituano que ficou famoso nos EUA com as narrativas de suas caadas, relata em seu livro autobiogrficoTigrero!(1953) o aprendizado do manejo da zagaia com um ndio chamado Joaquim Guat. Pereira da Cunha (1949), militar brasileiro que acompanhou Theodore Roosevelt em caadas no Pantanal em 1913, descreve como um casal desses ndios era capaz de enfrentar a ona apenas com a zagaia e com flechas, usando o artifcio de imitar o esturro do felino para atra-lo. importante ressaltar, entretanto, que essas duas referncias aos zagaieiros so feitas por autores ligados a um tipo de caada muito presente na histria pantaneira, os safris que atraam visitantes ricos regio na primeira metade do sculo XX. O desenvolvimento das armas de fogo e a intensificao dos mtodos de manejo de gado, nessa poca, amplificaram a eliminao de onas e tornaram o processo cada vez mais sistemtico, levando extino da espcie em muitas reas do Pantanal.A legislao de caa regulamentada no Brasil desde 1967, quando a atividade foi declarada proibida para qualquer espcie da fauna silvestre nativa, e foi modificada pela ltima vez em 1988, estabelecendo punies mais severas para os caadores. Na prtica, no entanto, no h at hoje uma poltica efetiva do governo voltada para o manejo e a conservao dos animais silvestres, e muitos proprietrios rurais pantaneiros continuam a reivindicar o direito de abater os animais que ataquem o gado. Isso faz com que a caada tradicional seja apontada por especialistas como a principal ameaa para a conservao da populao da ona pantaneira atualmente.O encontro entre caador e ona evocado pelo tema doszagaieiros remete, por outro lado, a um tipo de caa artesanal, rstico, ligado ao passado indgena dessa regio. Minha inteno aqui tomar essa memria como uma pista para discutiralguns aspectos do encontro entre bilogos e caadores locais, especificamente em relao ao caso ao projeto de conservao da ona-pintada que acompanhei. O trao indgena reaparece adiante em algumas situaes envolvendo maus entendidos ou problemas ligados a uma espcie de choque cultural presente nesse encontro.3.A primeira das situaes a que me refiro aconteceu na fazenda Santa Sofia. Cheguei fazenda, em abril de 2008, com o intuito de acompanhar a captura de uma ona-pintada. Depois de capturada, a ona ia receber um colar equipado de sistema de rdio e GPS, e passaria a ser monitorada pelos pesquisadores, interessados em estudar seus movimentos e hbitos alimentares. A equipe envolvida na atividade de captura era composta por seis pessoas: o bilogo que coordenava o projeto, dois bilogos de campo, dois veterinrios, e um guia de campo. Este ltimo, seu Mariano, era um antigo morador da regio com experincia como caador, e era o principal responsvel pelos cuidados com os ces onceiros envolvidos na captura.Seu Mariano caava onas em uma fazenda da regio do Pantanal do Miranda at o final dos anos 1980. Quando a fazenda comeou a explorar o turismo ecolgico, ele passou a trabalhar como guia, e depois estabeleceu uma parceria com o bilogo que coordenava o projeto na Santa Sofia. A caada tradicional, com ces farejadores, tem sido um dos mtodos mais eficazes utilizado por bilogos desde os primeiros estudos sobre o tema desenvolvidos no Pantanal, no final dos anos 1970 (Schaller 2007). No caso da captura para a pesquisa cientfica, a bala da espingarda substituda pelo dardo anestsico da arma de ar comprimido, e o objetivo estudar e conservar, e no eliminar os animais. Ao envolver a utilizao de ces de caa e a assimilao de conhecimentos nativos, interessante, neste caso, como uma tradio ligada eliminao das onas pode ser redefinida como algo ligado sua preservao.Uma ona havia sido perseguida no dia anterior a minha chegada na Santa Sofia, sendoacuadapelos ces algumas vezes, mas ela no tinha subido, e no final havia escapado, deixando dois cachorros mortos e outros dois feridos durante a perseguio. As tentativas de colocar as coleiras de rdio nas onas pela equipe do projeto j se estendiam h dois meses, mas nenhuma havia sido capturada at ento, o que trazia uma tenso muito grande para os responsveis. Seu Mariano estava muito chateado com os ltimos acontecimentos. Refletindo sobre o assunto, ele observou que as onas tinham se afastado porque era poca da cheia, e a maior parte do gado tinha sido retirado da fazenda. Elas vo onde est o gado, comentou.Ele atribua os problemas ocorridos nas capturas tambm ao perodo da quaresma, em que estvamos, e esse o detalhe da histria que quero chamar ateno aqui. Seu Mariano me explicou que costume dos antigos no caar, alm de no comer carne vermelha nessa poca do ano. Afirmou que, se algum sai para caar na quaresma nada d certo, e que na sexta-feira santa os mais velhos nem acendem fogo, preparando toda a comida daquele dia na vspera. As evidncias apresentadas por ele de que no se devia caar incluam os problemas com os ces e tambm o mau funcionamento das duas armas de ar-comprimido que seriam usadas para anestesiar as onas, as quais tinham dado problema ao mesmo tempo. Ele comentou que uma delas havia inclusive disparado acidentalmente no laboratrio, quebrando o vidro da janela, mas que no insistia nesse tema com os bilogos porque eles eram da cidade e no acreditavam nessas coisas.Essas consideraes do caador a respeito da quaresma podem ser relacionadas a um tema muito amplo proveniente da literatura sobre os povos indgenas da Amaznia e do Brasil Central, que o tema doazar na caa. O tema foi abordado por Mauro Almeida (2007) em relao aos povos ribeirinhos da Amaznia, onde h, assim como no Pantanal, uma mistura de elementos indgenas e catlicos. Na Amaznia, oazar na caa designado genericamente pelo termopanema. Almeida descreve panemacomo um conceito abstrato, uma foracomo a gravidade, algo que pode ser experimentado e sentido no corpo, e que um componente generalizado da ontologia de caadores da plancie amaznica(2007: 9). O conceito parece se aplicar bem ao caso em questo:No se trata propriamente de infelicidade ocasional, m sorte, azar, mas de uma incapacidade de ao, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas e para as quais existem processos apropriados. () [O caador] acredita que ele prprio ou um dos instrumentos de que se utiliza, a linha, o anzol, a carabina, estejam epanemados. (Almeida 2007: 8)O argumento de Seu Mariano de que os bilogos no acreditam nessas coisas, no caso analisado aqui, aponta um contraste entre duas formas de apreenso do mundo e da vida animal em particular. A adeso a esses diferentes modos de entender (ou acreditar) apareceria ainda em outras situaes ligadas ao contato entre cientistas e pantaneiros, que dizem respeito a certos mal-entendidos que observei durante o trabalho de campo.Um primeiro exemplo o caso relatado por um dos bilogos de campo do projeto. Era comum que os cavalos da fazenda fossem encontrados pela manh com uma espcie de trana na crina, o que deixava alguns vaqueiros bastante ressabiados, pois consideravam que aquelas tranas eram obra do saci. O bilogo me explicou de forma convincente que as tranas eram fruto da ao dos pequenos morcegos vampiros que se embolavam na crina dos animais, mas esta explicao no parecia deixar os vaqueiros da fazenda menos preocupados.Eu no deixo criana andar meio-dia dizia Dona Lita, esposa do capataz da fazenda. O perigo era que as crianas fossem levadas pelosaci louro, criatura que os adultos no vem, mas que reconhecem por um piado agudo que no de nenhum pssaro. O bilogo que coordenava a pesquisa sobre as onas, ao ouvir essa histria, disse, em tom de brincadeira, que iacolocar coleira nesse saci. Vanderlei, outro funcionrio da fazenda que escutava a conversa, respondeu provocao afirmando que ele estavaigual o cara que o saci deixou amarrado no campo. Quando questionado a respeito dessa descrena do bilogo, Vanderlei me disse que no se deve duvidar dessas coisas, e comentou quea pessoa que estudada, que tem estudo, mais pela cincia. S que tem muitas coisas que na cidade no tem, voc no v. Essas coisas anormais assim no acontecem na cidade. Voc s v onde sossegado, onde tranqilo(ent. 2008)Um dos campeiros da fazenda, Raul, citou em entrevista uma criatura chamadaMaozo, um ser sobrenatural sobre a qual eu j havia lido na etnografia de Banducci (2007), pesquisador que trabalhou no Pantanal da Nhecolndia. O campeiro definiu-o como umpai do mato, umprotetor, que surge quando algum quer abrir uma clareira na floresta ou ento numa caa desmedida, quando o caador quer levar mais porcos do que pode comer. Seres desse tipo podiam ser encontrados, de acordo o relato do jovem vaqueiro, principalmente em certoscapescomo o aguauz, um tipo de mato onde, segundo ele, os bichos e o gadobagual se abrigam quando so perseguidos. Raul contou ainda a seguinte histria:Diz que h muito tempo, a bisav do meu pai foi pega a lao. Ela se perdeu, a ficou quase um ano assim, e a turma procurando. Mas a um dia, saram cedo e viram que num capo, tinha um gado parado. A turma s com cavalo bom mesmo, de pegar bem pego. E ela tava sentada, bem quebrando coco no coxo. Era ela, a bisav do meu pai. Ficou selvagem, bagual duma vez! Mas diz que corre duro! O cavalo suou pra dar nela. S um cara que alcanou, quase entrando no capo. Jogou lao, cerrou nela e puxou, mas ela vinha de unha e p. A jogaram outro lao, e juntou todinho o pessoal e pegou ela. A trataram, levaram na igreja, tudo, e ela voltou ao normal.Bagual o termo que designa o gado selvagem pantaneiro, hoje em dia muito raro ou mesmo ausente nesta regio do Pantanal. Obagualpode ser apontado ora como ndice de atraso, ora como smbolo da autenticidade da pecuria pantaneira. A doma do gado selvagem, ou bagualhao, faz parte das tradies locais, e representava um desafio e uma prova de coragem para os vaqueiros. Na narrativa, a meninacorre duroe pega no ao, como o gado selvagem. O interessante aqui ele dizer que a criana ficoubagual de uma vez, estendendo um termo usado para o gado a um ser humano.Os casos que acabo de citar eram, em sua maior parte, temas de brincadeiras durante o perodo em que estive na fazenda. Minha inteno levar esses casos a srio, como elementos de uma diferena constitutiva das relaes entre pantaneiros e cientistas. Eu poderia dizer que eles pertenciam a culturas diferentes, mas neste caso cairia na armadilha de pressupor que ambos compartilham uma mesma natureza, da qual cada um possui uma viso relativa. O problema deste argumento que eu estaria escolhendo um lado, na medida em que compartilho a crena na natureza ocidental moderna como uma realidade objetivamente acessvel pela cincia, e que, como os cientistas, no acredito na existncia dosaci, nem domaozo, como criaturas que podem ser encontradas na mata. O desafio que se coloca, neste ponto, o de se tratar esse encontro de modo a dissolver a assimetria inicial e tratar os dois lados no mesmo plano.4.Procurei expor ao longo deste artigo uma srie de aspectos do que seria umaheranaoumemriaindgena que se faz presente no Pantanal. Essa dimenso da memria aparece no tema doszagaieirosligada a um tipo de conhecimento especfico proveniente da caa, a um engajamento entre caador e ona situado numa relao de predao. Nos temas do azar na caae na histria doMaozo, essa reminiscncia surge ligada a uma economia ontolgica em que o domnio moral no algo exclusivamente humano. O trao indgena aparece, por fim, na reversibilidade entre bicho e gente, manso e brabo, evocada pela histria da menina selvagem.A figura doMaozopode ser aproximada do tema doCaiporaanalisado por Almeida (2007).Caipora oprotetoroudonodos animais com o qual os seringueiros da Amaznia interagem. Almeida argumenta, a partir dos aspectos de reciprocidade envolvidos na relao com esses seres, que Caiporas so partes de redes, e que essas redes envolvemconexes no hierarquizadasde pessoas, animais, instrumentos de caa, partes da floresta e partes da casa(2007: 12). Assim como o conceito depanema, oCaipora est inserido no que Almeida chama de umaeconomia ontolgica da caa(2007), a partir da qualpessoas, animais, instrumentos e seres da florestaso conectados numa mesma trama.O contraste entre pensamento cientfico ocidental e pensamento indgena remete ao clebre tema de Lvi-Strauss do pensamento selvagem. O contraste neste caso entre um conhecimento cientfico marcado pelos ideais de objetividade e um pensamento regido pela lgica do sensvel. H uma inverso da importncia dada s qualidades sensveis, como cor, textura, cheiro, etc, em relao nfase nas qualidades ditas primrias com os quais o pensamento civilizado, ou cientfico, trabalha.Mauro Almeida prope, de forma mais radical, que o confronto que se anuncia no horizonte no epistemolgico, mas sim ontolgico (Idem), e procura caracterizar uma ontologia animista como alternativa para se pensar o processo da vida, o desdobramento criativo dos organismos no mundo, humanos e no humanos. Nesse sentido, o trao indgena surge no como uma herana, uma sobrevivncia, no sentido de algo que no mais, mas sim como um ndice, um rastro, e nesse sentido um vir a ser ou devir indgena (nos termos de Deleuze e Guattari).Ao pensarmos em um contraste entre a ona como objeto do conhecimento cientfico e a ona como objeto de um conhecimento local pantaneiro, vemos que a prpria ideia de que ambos falam da mesma ona suspeita, na medida em que a palavra objeto est ligada a uma ontologia naturalista que tende a reduzir a ona um recurso, algo que pode ser manejvel, uma coisa. As relaes entre sujeitos e objetos, no entanto, tornam-se mais complexas se pensarmos nos termos da antropologia simtrica formulada por Bruno Latour (1994), sugerida pela referncia de Almeida noo de rede (2007: Op. Cit). A reduo da ona a um objeto, neste caso, diria respeito a um movimento especfico que remete ao fluxo do campo (ou do laboratrio, onde a pesquisa realizada) ao artigo cientfico, com a produo de dados estatsticos, grficos, dados mensurveis, a partir do que observado empiricamente. Mas, como demonstra Latour, este apenas um dos lados da cincia; o que acontece em campo uma produo incessante de hbridos, de misturas que s vo ser purificadas neste movimento de dentro para fora.Nas prticas analisadas aqui, o campo pode ser caracterizado, nesse sentido, como lugar do engajamento intersubjetivo, pessoal, perceptivo, onde objetos e sujeitos no esto previamente separados. Um lugar onde onas, gado, ces e outros animais podem ser tomados como agentes e no como objetos passivos, e onde diferentes ontologias podem entrar em composio, o que aponta para uma espcie de contrafluxo animista ao processo de objetificao presente no conhecimento cientfico.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASALMEIDA, Mauro W. B. 2007. Caipora e outros conflitos ontolgicos (mimeo). Conferncia Quartas Indomveis, So Carlos. Disponvel em:http://mwba.files.wordpress.com/2010/06/2008-almeida-caipora-e-outros-conflitos-ontologicos-_sao-carlosrev-_2010-02.pdf. Acesso em 06/2013.BANDUCCI JR., lvaro. 2007.A NATUREZA DO PANTANEIRO Relaes sociais e representao de mundo entre vaqueiros do Pantanal.Dissertao em Antropologia Social, USP, 1995.DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. 1997 (1980). Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptvel. In:Mil plats Vol. 4. So Paulo: Editora 34. (pp. 11-115)GARCIA, Uir, 2012.O funeral do caador: caa e perigo na Amaznia.Anurio Antropolgico, 2011/II: 33-50LATOUR, Bruno. (1994) Jamais Fomos Modernos Ensaios de Antropologia Simtrica.So Paulo: Editora 34. 2005.LVI-STRAUSS, Claude. 1976.O Pensamento Selvagem. So Paulo: Companhia Editora NacionalOLIVEIRA, Jorge Eremites de. 1996.Guat: argonautas do pantanal. Porto Alegre: EDIPUCRSPEREIRA DA CUNHA, Comandante H. 1949 (1922).Viagens e caadas em Mato Grosso.Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves.SCHALLER, George B. 2007.A naturalist and other beasts: tales from a life in thefield. San Francisco: Sierra Club Books.SIEMEL, Sasha. 1953.Tigrero!New York: Ace Books.SSSEKIND, Felipe. 2010.Orastroda ona: etnografia de um projeto de conservao em fazendas de gado do Pantanal. Universidade Federal do Rio de Janeiro.VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmolgicos e o perspectivismo amerndio. In: Mana, v.2, n.2. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1996. pp. 115-143

[1]Em pesquisa de campo para um trabalho de doutorado em antropologia pelo Museu Nacional, UFRJ (Sssekind 2010). Optei aqui por alterar utilizar nomes fictcios para as pessoas citadas e tambm para as fazendas.***FELIPE SSSEKIND doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, UFRJ (2010). Possui mestrado em Histria Social da Cultura pela PUC-Rio (2000) e graduao em Belas Artes pela UFRJ (1997). Desenvolve atualmente projeto de ps-doutorado em Filosofia na PUC-Rio. Fez pesquisa de campo sobre projetos de conservao da ona-pintada no Pantanal do Mato Grosso do Sul. Seu trabalho na regio gerou tambm um documentrio,Onceiros (2012),que pode ser assistido no link:https://vimeo.com/45760818.