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TEORIA DO CONHECIMENTO Caetano Ernesto Plastino Departamento de Filosofia da USP A questão do conhecimento ocupa lugar central na investigação filosófica. Diz respeito a nós mesmos e ao mundo , quando perguntamos “O que podemos conhecer ?” ou “Em que condições estamos justificados a acreditar que algo é o caso ?” Desafios céticos Desde o início se apresenta um desafio relevante, proposto pelo cético, que põe em dúvida nossa capacidade de conhecer. Na filosofia antiga i , os chamados céticos acadêmicos negavam que algo pudesse ser conhecido (apreendido) por nós. Segundo eles, nada conhecemos daquilo que comumente supomos conhecer acerca do mundo. Por sua vez, os céticos pirrônicos colocavam em dúvida até mesmo a visão de que o conhecimento é impossível. Caberia duvidar de tudo (exceto das aparências fenomênicas) e sempre suspender o juízo sobre como as coisas realmente são ou não são, visto que a toda asserção é possível opor outra de igual força persuasiva. Muitas foram as respostas às objeções céticas, cabendo aqui apenas indicar algumas. Como vimos, o cético acadêmico nega que possamos conhecer. Mas se nada podemos saber, também não podemos saber que o conhecimento é impossível. Para evitar qualquer resquício de dogmatismo, o cético pirrônico não dá assentimento a nenhuma proposição, nem mesmo àquela que afirma a impossibilidade do conhecimento. Trata-se de um desafio, não de

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TEORIA DO CONHECIMENTO

Caetano Ernesto Plastino

Departamento de Filosofia da USP

A questão do conhecimento ocupa lugar central na investigação

filosófica. Diz respeito a nós mesmos e ao mundo, quando perguntamos “O que

podemos conhecer?” ou “Em que condições estamos justificados a acreditar

que algo é o caso?”

Desafios céticos

Desde o início se apresenta um desafio relevante, proposto pelo cético,

que põe em dúvida nossa capacidade de conhecer. Na filosofia antigai, os

chamados céticos acadêmicos negavam que algo pudesse ser conhecido

(apreendido) por nós. Segundo eles, nada conhecemos daquilo que

comumente supomos conhecer acerca do mundo. Por sua vez, os céticos

pirrônicos colocavam em dúvida até mesmo a visão de que o conhecimento é

impossível. Caberia duvidar de tudo (exceto das aparências fenomênicas) e

sempre suspender o juízo sobre como as coisas realmente são ou não são,

visto que a toda asserção é possível opor outra de igual força persuasiva.

Muitas foram as respostas às objeções céticas, cabendo aqui

apenas indicar algumas. Como vimos, o cético acadêmico nega que

possamos conhecer. Mas se nada podemos saber, também não

podemos saber que o conhecimento é impossível. Para evitar

qualquer resquício de dogmatismo, o cético pirrônico não dá

assentimento a nenhuma proposição, nem mesmo àquela que afirma

a impossibilidade do conhecimento. Trata-se de um desafio, não de

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uma tese que nega a possibilidade do conhecimento. No entanto,

para que essa dúvida seja considerada plausível ou razoável, é

preciso examinar quais são os pressupostos da posição cética.

O ceticismo que pretende duvidar de tudo é, para Wittgenstein,

manifestamente um contrassenso, uma tentativa de transgredir as

precondições da linguagem. Com efeito, o próprio jogo da dúvida

pressupõe que ela não se aplique de modo universal.

Seguindo outro caminho, filósofos como Chisholm argumentam

que não estamos justificados a pensar que os pressupostos dos

cenários céticosii são mais razoáveis do que as proposições em que

acreditamos sobre objetos físicos familiares como casas e árvores. A

estratégia utilizada para enfrentar o cético não consiste em tentar

refutar (mostrar que é falsa) qualquer proposição possível ou

imaginária que se oponha ao que pensamos conhecer, ou que

implique alguma chance de erro.iii Se, de um lado, não há razões

positivas para defender as engenhosas hipóteses céticas, de outro,

também não estamos justificados a negá-las. Podemos concluir que,

não havendo boas razões para as dúvidas céticas, não é descabido

admitir, pelo menos inicialmente, que somos capazes de conhecer.

Cabe notar que nosso conhecimento do mundo não requer um

padrão epistêmico tão elevado como a infalibilidade (a imunidade ao

erro).iv Mesmo sendo falíveis, podemos, segundo Russell, “examinar

e apurar nosso conhecimento comum mediante um escrutínio

interno”, substituindo algumas crenças por outras mais sólidas e

menos questionáveis. A mera possibilidade de erro em nossas

crenças não nos condena à total ignorância ou à suspensão da

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crença em geral.v Podemos admitir a crítica a cada detalhe especial

sem colocar em xeque o conhecimento como um todo.

Em outra linha de raciocínio, alguns filósofos concluem que a

suposição realista da existência do mundo exterior é mais razoável

que as alternativas céticas que só admitem as aparências

fenomênicas, pois proporciona uma explicação (e predição) melhor

do mundo dos sentidos. Por exemplo, ao supormos que uma moeda

tem a forma redonda, poderemos explicar como ela aparece em

diferentes perspectivas.

Seja qual for o resultado dessa disputa filosófica, é preciso

reconhecer que as tentativas de rebater as investidas de diversos

oponentes céticos conduziram, ao longo da história, a importantes

revisões e correções dos projetos epistemológicos.

A definição tradicional de conhecimento e o problema de Gettier

Cabe também à epistemologia a tarefa de caracterizar a

natureza do conhecimento, oferecendo uma análise adequada aos

diversos usos do conceito. Segundo a definição tradicional,

formulada e discutida no diálogo Teeteto de Platão, conhecimento é

crença verdadeira justificada. Sendo p uma proposição, um sujeito S

sabe (conhece) que p se e somente se: (1) S acredita que p, (2) p é

verdadeira, e (3) p está justificada para S. Juntos, esses três

requisitos constituem condição necessária e suficiente para a

verdade da proposição “S sabe que p”.vi

Muitas vezes temos a atitude positiva de acreditar que p, mas

sem sabermos que p.vii Além disso, mesmo que algumas de nossas

crenças sejam verdadeiras, não temos conhecimento a menos que

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elas estejam acompanhadas de uma justificação racional.viii Assim, a

justificação epistêmica é que distingue o conhecimento de uma mera

opinião verdadeira, de um palpite feliz.ix

Em um pequeno artigo que se tornou clássico, Gettier

apresentou, em 1963, dois contraexemplos relativamente simples em

que crenças verdadeiras justificadas não são instâncias de

conhecimento.x Foram feitas muitas tentativas de acrescentar uma

qualificação para refinar a definição tradicional, mas nenhuma

solução foi amplamente aceita. No entanto, a ausência de uma

definição satisfatória não significa que não possamos identificar e

distinguir exemplos genuínos de conhecimento. (Do mesmo modo

como podemos decidir, sem uma definição geral, se um objeto é

cadeira ou não.) Uma explicação das condições a serem satisfeitas

para que tenhamos conhecimento ou crença justificada, ao mesmo

tempo “moderada e crítica”, deverá evitar dois casos extremos: nem

o ceticismo que tudo (ou quase tudo) exclui, nem o dogmatismo que

amplia demasiadamente o escopo do que considera ser nosso

conhecimento.

Níveis de justificação epistêmica

A avaliação epistêmica de uma dada proposição, para um

sujeito S, pode ser feita segundo diferentes categorias, em uma

estrutura hierárquica.xi Diz-se que uma proposição p é provável para

S se a crença em p está mais justificada para S do que a crença na

negação de p. Ou seja, quando p tem alguma presunção em seu

favor para S. É provável que seja vermelha a bola extraída

aleatoriamente de uma caixa com exatamente dez bolas vermelhas

e nove bolas brancas. Em uma escala mais elevada de justificação,

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situam-se as proposições que estão além da dúvida razoável, isto é,

aquelas em que a crença em p está mais justificada do que a

suspensão da crença em p.xii (Suspender a crença em p significa não

acreditar em p nem em sua negação.) Por exemplo, a crença de um

detetive, apoiada em várias linhas de provas e testemunhas, de que

o mordomo é o autor do crime pode estar mais justificada do que a

suspensão dessa crença.xiii (Não se deve confundi-la com a condição

mais forte de indubitabilidade, que significa estar além da dúvida

logicamente possível.)

No entanto, o conhecimento requer que a justificação tenha um

status epistêmico ainda maior, suficiente para atingir o nível da

evidência: a proposição p é evidente se e somente se (1) p está além

da dúvida razoável e (2) a crença em p é pelo menos tão justificada

quanto a suspensão da crença em qualquer outra proposição q. Por

exemplo, em certas condições, é evidente para mim que agora estou

percebendo que algo é uma árvore. (Ainda assim não está excluída

a possibilidade de erro.) Por fim, o padrão máximo de justificação é

a certeza: requer que (1) a proposição p seja evidente e que (2) não

exista nenhuma outra proposição q tal que a crença em q esteja mais

justificada do que a crença em p. Entretanto, não seria de bom senso

exigir que todo tipo de conhecimento tenha o mais elevado status de

justificação. Nossa percepção de objetos físicos é um caso em que

podemos atingir a evidência (e o conhecimento), mas não a certeza,

visto que estamos mais justificados a acreditar em proposições sobre

as quais temos certeza, como “Todo quadrado é retângulo” ou

“Penso que existo”.

Fundacionismo e coerentismo

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Como vimos, o conhecimento requer justificação. Ou seja,

conhecemos somente se as proposições em que acreditamos

estiverem justificadas para nós. Importa então examinar as

condições para que uma proposição esteja justificada para um sujeito

S.

Encontram-se na filosofia diferentes teorias da justificação

epistêmica. De acordo com o fundacionismo, algumas de nossas

crenças justificadas são básicas e servem de fundamento a todas as

demais crenças justificadas. Nessa estrutura, as crenças básicas

justificadas constituem, por assim dizer, as fundações da pirâmide do

conhecimento e a justificação delas não deriva de outras crenças.

Elas se justificam de modo direto e imediato. Por sua vez, a

justificação das crenças não-básicas é indireta e mediata, pois

depende inteiramente de outras crenças justificadas nas quais

assentam. Em última análise, a justificação das crenças não-básicas

se deve às crenças básicas justificadas que lhes servem de apoio.

Os defensores do fundacionismo argumentam que se a

justificação de uma crença sempre dependesse de outra crença, em

uma relação assimétrica de apoio, seríamos levados a uma

regressão infinita ou a uma circularidade. Portanto, é preciso que

essa série ou cadeia de justificações tenha término em alguma

crença que não esteja justificada com base em outra crença.

Colocam-se duas questões relevantes: (1) “Como se justificam

essas crenças básicas?” e (2) “De que modo as crenças justificadas

transmitem a justificação a outras crenças?”

São dois os exemplos clássicos de crenças básicas

justificadas. Em ambos os casos, atinge-se o grau máximo da

certeza.xiv De um lado, estão as proposições a priori, ou verdades da

razão, como “Tudo que é vermelho é colorido”. Também são casos

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típicos de proposições a priori as verdades da matemática e da

lógica. Ao compreender uma proposição a priori, podemos ter

conhecimento de sua verdade de modo independente da

experiência. E nenhuma evidência empírica pode se opor a ela.xv

De outro lado, estão as proposições sobre nossos próprios

estados mentais no presente instante, como pensar, imaginar,

desejar, esperar, recear, sentir etc. Chisholm diz que esses estados

se autoapresentam, no sentido de que, quando nos encontramos

nesse estado, é evidente para nós que nos encontramos nesse

estado. Para justificar a proposição “Eu imagino que João possua um

Ford”, basta que eu reflita sobre meus estados conscientes. Outro

exemplo é a proposição “Aparece-me que há um copo sobre a mesa”.

Ela diz respeito ao modo como as coisas me aparecem e não ao

modo como as coisas são. Essa apreensão básica está justificada

para mim ainda que de fato nenhum copo esteja sobre a mesa.

A segunda questão diz respeito aos princípios epistêmicos de

acordo com os quais uma proposição deriva sua justificação a partir

de outras proposições. Suponhamos que eu já tenha adquirido

vários conhecimentos que formam meu conjunto de evidência total.

Suponhamos também que, ao olhar pela janela de um lugar pouco

familiar, algo me apareça como uma árvore. Posso tomar que existe

algo que é uma árvore, mas não estar percebendo (sabendo) que

existe uma árvore. Eu poderia, por exemplo, ter ingerido um

medicamento que muitas vezes provoca alucinações visuais. Ou

poderia ter visto um holograma de árvore, em vez de uma árvore.

Mas se não houver em minhas evidências anteriores nenhuma

proposição que “sobrepuja” a proposição de que percebo que existe

uma árvore, então é evidente para mim que percebo que existe uma

árvore. Nessa situação, é mais razoável incluir em meu corpo de

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evidência total a proposição de que percebo que existe uma árvore

do que não incluir tal proposição.

Uma situação análoga se passa com a memória.xvi A memória

pode me enganar, mas, em certas condições favoráveis, é possível

justificar uma proposição sobre o passado (especialmente sobre o

passado imediato) a ponto de estar além da dúvida razoável. Por

outro lado, não temos conhecimento quanto ao futuro, mas nossas

previsões também podem estar além da dúvida razoável ou

oposição, especialmente após a repetição de muitos casos

semelhantes, “sem que jamais se tenha encontrado exemplo de falha

ou irregularidade”. xvii

O coerentismo se apresenta como uma alternativa à

epistemologia fundacionista. Entende-se que nada conta como razão

para se manter uma crença, a não ser outra(s) crença(s). Em um

sistema coerente, as crenças são consistentes entre si e interligadas,

recebendo e emprestando apoio, em maior ou menor grau.xviii Elas se

associam e se sustentam mutuamente, como uma balsa que flutua

livre de âncora e de amarras.xix

Um exemplo clássico é o diagnóstico médico em que todos os

sintomas concorrem juntos para o fato de que o paciente está com

uma determinada doença (o sarampo, por exemplo). Acrescentar à

descrição desses sintomas a afirmação de que o paciente está com

sarampo resulta em aumento da coerência. Mas afirmar que ele está

com dengue não leva a um resultado positivo para a coerência.

Portanto, é mais razoável eu acreditar que o paciente está com

sarampo do que acreditar que ele está com dengue, considerando as

informações relevantes disponíveis. A justificação se dá pela

coerência com o corpo de proposições que aceitamos (acerca dos

sintomas, nesse caso). Uma resposta à objeção cética pode seguir o

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mesmo caminho: a suposição de que agora estou sonhando ou tendo

uma alucinação ou sendo vítima de um gênio maligno não é coerente

com meu sistema básico de crenças, embora seja logicamente

possível. É mais razoável supor a existência de objetos físicos do

mundo exterior.

Dentre as proposições que aceitamos, encontram-se também

aquelas que dizem respeito a nós próprios como agentes de uma

investigação, quando tomarmos como dignos de crédito nossos

esforços para conhecer o mundo e evitar o erro. Reconhecemos que

em certas circunstâncias somos levados ao erro e buscamos corrigir

e aprimorar nosso corpo de crenças a partir de dentro dele. Admitir

que a percepção e a memória são falíveis não implica que seria

razoável, na maior parte do tempo, acreditar que não podemos

confiar nessas fontes.xx

Do ponto de vista do coerentismo, a famosa metáfora de

Neurath ilustra a situação em que nos encontramos na busca do

conhecimento: “Somos como marinheiros, que têm de reconstruir seu

navio em mar aberto, sem jamais poder decompô-lo em uma doca e

erigi-lo novamente a partir de suas melhores partes.” São mudanças

graduais, em que substituímos uma parte por outra, mantendo o resto

como apoio, que levarão a um novo navio.

Internalismo e externalismo

As teorias do conhecimento fundacionista e coerentista

examinadas analisam a justificação epistêmica a partir de nossos

estados mentais, aos quais temos acesso pela reflexão. São internos

à perspectiva do sujeito, como é o caso da crença e da experiência

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sensorial. Essas concepções são chamadas internalistas, pois

consideram que é acessível ao sujeito (por introspecção) aquilo lhe

que permite justificar uma crença. Para o coerentista, importa apenas

o apoio mútuo entre as crenças. Para o fundacionista, é preciso

considerar também o que nos aparece pelos sentidos e as verdades

a priori da razão.

Nas concepções externalistas, pelo contrário, a justificação

depende de fatores externos aos quais nós podemos não ter acesso

cognitivo. Uma crença pode ser considerada justificada porque

chegamos a ela mediante um processo confiável de formação de

crenças, isto é, um processo que tem grande êxito na produção de

crenças verdadeiras (mesmo que não acreditemos ou saibamos que

o processo é confiável). Isso se dá, por exemplo, quando a crença se

relaciona de modo causalmente apropriado com o fato em que se

acredita.

Em condições normais, a percepção da cor de uma parede é

um processo cognitivo confiável em nosso mundo, pois produz

crenças verdadeiras a maior parte do tempo. (O mesmo não se dá

com as crenças formadas pelo pressentimento ou pela fantasia, por

exemplo.) No entanto, não basta que o processo seja confiável.

Devemos acrescentar a cláusula de que não exista outro processo

disponível também confiável que possa afetar negativamente essa

crença. É o caso quando notamos que luzes coloridas são lançadas

sobre a parede e sabemos que elas podem alterar a cor que nos

aparece em circunstâncias normais.

Epistemologia da virtude

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Segundo Sosa, a avaliação epistêmica de uma crença envolve

dois diferentes aspectos. Para que uma crença seja apta é preciso

que resulte de um processo cognitivo confiável de um sujeito

motivado por virtudes intelectuais que permitam, na maioria das

vezes, alcançar a verdade e evitar o erro, em determinado contexto.xxi

Essas virtudes ou competências intelectuais podem estar em nossas

faculdades (acuidade da percepção, boa memória etc.) ou em nossos

traços de caráter (mente aberta a novidades, determinação para

levar adiante uma investigação etc.). Nesse sentido, podemos dizer

que uma criança tem crenças aptas acerca de objetos físicos em

situações comuns. Mas para que uma crença esteja justificada é

preciso que se ajuste de modo coerente a outras crenças e aos

princípios da perspectiva epistemológica do sujeito. Nesse caso, não

temos apenas um conhecimento animal, mas um conhecimento

reflexivo.

À semelhança da ética, a epistemologia tem uma dimensão

normativa que se perde quando a noção de justificação epistêmica é

definida apenas em termos de processos confiáveis ou de conexões

causais.xxii Se tratarmos o conhecimento como um fenômeno natural,

a ser explicado pela psicologia e pela neurofisiologia, não seremos

capazes de responder às questões tradicionais da epistemologia.

Para julgar se nossas crenças estão justificadas, devemos estar

cientes de quais são os processos que seguimos e ter boas razões

para acreditar que sejam corretos.

LEITURAS SUGERIDAS

1) Audi, R. Epistemology. Nova York: Routledge, 1998.

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2) Bolzani Filho, R. Acadêmicos versus pirrônicos. São Paulo: Alameda, 2013.

3) Chisholm, R. Theory of knowledge. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, terceira

edição, 1989. (A tradução brasileira, publicada pela Zahar Editores, utiliza a

primeira edição, de 1966.)

4) Dancy, J. Epistemologia contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1990.

5) Dutra, L. H. Introdução à epistemologia. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

6) James, W. A vontade de crer. São Paulo: Loyola, 2001.

7) Lehrer, K. Theory of knowledge. Boulder: Westview Press, 1990.

8) Lemos, N. An introduction to the theory of knowledge. Cambridge: Cambridge

University Press, 2007.

9) O’Connor, D. & Carr, B. Introduction to the theory of knowledge. Minneapolis:

University of Minnesota Press, 1982.

10) Pereira, O. P. Vida comum e ceticismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

11) Russell, B. Nosso conhecimento do mundo exterior. São Paulo: Companhia

Editora Nacional/Edusp, 1966.

12) Russell, B. Os problemas da filosofia. Lisboa: Arménio Amado Editor, 1977.

13) Sosa, E. Epistemologia da virtude. São Paulo: Loyola, 2013.

14) Sosa, E. Conhecimento reflexivo. São Paulo: Loyola, 2013.

A tradução do artigo de Gettier e de outros importantes textos de epistemologia

se encontra no site: < http://criticanarede.com/epistemologia.html >

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Questões dissertativas

1) Qual é a relevância do ceticismo no debate filosófico sobre o

conhecimento?

2) Mostre que, nos dois casos examinados no artigo de Gettier, Smith está

justificado a acreditar em uma proposição falsa.

3) É possível que uma proposição verdadeira não esteja justificada?

4) Podemos saber que não estamos em um mundo de sonho gerado em

computador, como aquele representado no filme “Matrix”?

5) O que podemos saber sobre o futuro? E sobre o passado de muitos

séculos atrás?

6) Explique por que, para o fundacionista, se algo é provável para S, então

S tem alguma certeza.

7) Em que condições o testemunho de uma pessoa pode transmitir

conhecimento?

8) Apresente um exemplo em que três proposições a, b e c se apoiam

mutuamente. Isto é, em que (1) a é provável em relação a b e c, (2) b é

provável em relação a a e c, e (3) c é provável em relação a a e b.

9) Qual é a diferença entre a justificação epistêmica de uma crença e a

explicação científica de sua formação? A história natural de uma crença

importa para a sua justificação?

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10) Uma tentativa de resolver o problema de Gettier consiste em

acrescentar, como quarta cláusula, que (4) não existe outra proposição

verdadeira q tal que, se S estivesse justificado a acreditar em q, então S

não estaria justificado a acreditar em p. Em cada um dos casos

examinados por Gettier, quais seriam as proposições verdadeiras q tais

que, se estivéssemos justificados a acreditar nelas, não estaríamos

justificados a acreditar em p?

i Para um estudo do ceticismo antigo, sugerimos a leitura dos livros “Vida comum e

ceticismo”, de Oswaldo Porchat Pereira, e “Acadêmicos versus pirrônicos”, de Roberto

Bolzani Filho.

ii Por exemplo, a hipótese cartesiana de um gênio maligno “que põe toda a sua indústria

em me enganar” ou, na versão contemporânea, a suposição de que somos cérebros em

uma cuba estimulados por um computador que produz uma ilusão perfeita da realidade.

Além, é claro, dos clássicos argumentos do sonho e da alucinação. O cético não se atém

apenas a exemplos de erros reais cometidos no passado, quando pensávamos conhecer

e depois descobrimos que estávamos enganados. Considera também os erros possíveis

ou imaginários aos quais estaríamos sujeitos nas condições epistêmicas em que nos

encontramos agora.

iii Segundo Russell, o ceticismo universal (segundo o qual a dúvida é possível em relação

a todo nosso conhecimento), “conquanto logicamente irrefutável, é praticamente

estéril; só pode, portanto, trazer certa hesitação a nossas crenças, e não pode ser usado

para substituí-las por outras”.

iv Chisholm questiona se o cético poderia, de modo consequente, se valer de alguma

informação sobre a falibilidade humana.

v Segundo Hume, nossa crença de que o fogo queimará não pode ser enfraquecida por

uma desconfiança geral ou por uma suspeita cética. A partir de uma longa sucessão de

experiências uniformes, somos levados pelo hábito (pela natureza humana) a projetar

para o futuro a ocorrência de acontecimentos em conjunção constante.

vi Há vários tipos de conhecimento ou saber. Entenderemos aqui o conhecimento no

sentido proposicional: “Eu sei que p”, sendo p uma proposição.

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vii A firmeza de uma crença, a profunda convicção subjetiva que me faz insistentemente

afirmá-la, em nada contribui para torná-la devidamente justificada. Não mais do que um

murro na mesa, para utilizarmos uma expressão de Popper.

viii Trata-se aqui de uma justificação epistêmica, não de uma justificação prática ou

moral.

ix Uma proposição pode ser verdadeira sem estar justificada, e pode estar justificada

sem ser verdadeira. Além disso, pode estar justificada para uma pessoa e não para outra.

Por outro lado, a verdade é “estável”. A proposição “A neve é branca” é verdadeira se e

somente se a neve é branca. Não importa se S acredita nela ou não, ou se ela está

justificada para S ou não.

x Podemos assim resumir um dos casos examinados por Gettier. Suponhamos que Smith

e Jones sejam candidatos a uma vaga de emprego. Suponhamos também que Smith

tenha fortes evidências de que Jones conquistará a vaga e de que Jones tem dez moedas

em seu bolso. Assim, Smith está justificado a acreditar que é verdadeira a proposição:

(a) A pessoa que conquistará a vaga tem dez moedas em seu bolso. Para sua surpresa,

o próprio Smith conquistará a vaga. E, sem que ele saiba, Smith tem dez moedas em seu

bolso. Desse modo, Smith tem crença verdadeira justificada em (a), mas não sabe que

(a) é verdadeira. A proposição (a) é verdadeira em virtude do número de moedas no

bolso de Smith, sem que ele saiba quantas são, e ele baseia sua crença em (a) nas

evidências sobre as moedas no bolso de Jones, que ele falsamente acredita ser a pessoa

que conquistará a vaga. (Sugerimos a leitura do artigo de Gettier, no qual se encontra

outro contraexemplo.)

xi Seguimos aqui a classificação proposta por Chisholm em “Theory of knowledge”,

terceira edição.

xii A um cético pirrônico, parece que é mais razoável suspender a crença do que

acreditar, quando considera que todas as proposições possam ser contrabalançadas nas

tentativas de justificação. Essa atitude prudente evita que se tenha uma crença não

justificada. Em resposta ao cético, afirma-se que, além de não cair em erro

desnecessário, é preciso também buscar o conhecimento, a crença justificada. Segundo

William James, “precisamos conhecer a verdade” e “precisamos evitar o erro” são duas

leis separadas, não sendo adequado tomar a segunda como fundamental e mais

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imperativa. O cético “submissamente obedece” ao medo de errar e com isso perde “a

chance de fazer uma suposição verdadeira”.

xiii Em uma categoria entre o que é provável e o que está além da dúvida razoável,

encontram-se as proposições aceitáveis: aquelas em que a crença em p é pelo menos

tão justificada quanto a suspensão da crença em p. Ou seja, em que a suspensão da

crença em p não é mais justificada que a crença em p.

xiv No fundacionismo clássico, requer-se a infalibilidade do conhecimento, de modo que,

ao saber que p, S não poderia estar em condição de errar acerca de p. No entanto, o

falibilismo pode ser admitido em versões moderadas de fundacionismo, nas quais a

justificação de uma proposição não exclui a possibilidade de sua falsidade.

xv Por sua vez, a crença razoável em uma proposição a posteriori requer evidências

empíricas. A experiência pode se opor a uma proposição a posteriori.

xvi Cabe notar que várias coisas podem acontecer quando nos referimos à memória.

Pode se tratar de um hábito (“Eu me lembro como voltar da escola para casa.”), de um

evento do qual eu mesmo tive experiência (“Eu me lembro de que conversei com meu

pai ontem à noite.”) ou de um fato passado (“Eu me lembro de que Salvador foi capital

do Brasil.”). Uma questão clássica é se nosso acesso ao passado se dá diretamente ou

mediante alguns traços adquiridos anteriormente que ligam o passado ao presente.

xvii Uma análise detalhada dos princípios epistêmicos normativos sobre a transferência

da justificação, em diferentes níveis, se encontra no livro de Chisholm.

xviii A coerência envolve consistência lógica e probabilística, mas não apenas isso.

Depende também do número e da força das conexões internas e explicativas, da

unidade do corpo de crenças, do modo como as crenças se formam (sem violar

princípios de racionalidade). Quanto a este último ponto, a fábula “A raposa e as uvas”

retrata um caso emblemático de processo enviesado em que as crenças são modificadas

apenas para se reduzir o peso do insucesso.

xix A crítica fundacionista da regressão infinita ou da circularidade não se aplica a esse

caso, pois não se trata de uma cadeia linear de justificação, mas de uma relação com a

totalidade das crenças.

xx O fundacionismo e o coerentismo muitas vezes não se apresentam em sua forma pura,

mas se combinam entre si, dando mais ênfase a um aspecto ou a outro. É o caso do

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coerentista que admite o papel da experiência perceptiva na periferia do sistema, ou do

fundacionista que considera relevante a coerência com o corpo de evidência total.

xxi Na ética da virtude, não se entende que o agente é virtuoso pelo fato de que realiza

boas ações. Pelo contrário, entende-se que, por estar de posse de virtudes morais, ele

atinge o bem. Como os arqueiros habilidosos que miram o alvo, na comparação de

Aristóteles. Algo semelhante podemos encontrar na epistemologia da virtude de Sosa.

xxii Muitos filósofos reconhecem que deveria haver uma cooperação, uma via de mão

dupla, entre a epistemologia e a ciência. O que muitas vezes se questiona é a tentativa

de eliminar totalmente a epistemologia tradicional em favor de um naturalismo radical.