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Português Lenda do milagre das rosas, de Gentil Marques Chegara o mês de janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de Santa Clara, quase destruídas pelas cheias do Mondego, reconstruíram-se rapidamente. Isso fora possível porque a rainha D. Isabel velava por elas. Quando algum desgraçado se via sem pão, dentro de um lar, minado pela doença, logo procurava a sua rainha. E se nem sempre regressava com saú de para o corpo, pelo menos 5 trazia pão para a boca, e palavras tão lindas ressoando aos seus ouvidos que, por si só, já constituíam consolação para o seu espírito. De todos essa esposa e filha de reis cuidava, como se fossem pessoas suas. Levava o seu zelo ao ponto de ir, ela própria, vigiar os trabalhos em curso nas casas das monjas. E os operários, desvanecidos com a real presença, e ainda com os auxílios monetários que D. Isabel 10 trazia aos mais necessitados, trabalhavam com redobrado ardor. Porém, como sempre acontece neste mundo, a rainha não tinha somente amigos. E, certa vez, um despeitado da corte procurou azedar o ânimo de el-rei D. Dinis. Aproveitando um dos momentos em que estava a sós com o rei, encetou o diálogo que, há muito, andava bailando no seu cérebro: 15 – Perdoai-me, senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que me traz preocupado. O rei olhou-o, com certa altivez. – Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis. O cortesão mordeu os lábios e disse: – Senhor meu rei... A rainha, vossa digna esposa dispõe, com bastante liberalidade, do 20 vosso tesouro. D. Dinis franziu as sobrancelhas: – Que dizeis? Explicai-vos e já! O fidalgo tornou, com humildade fingida: – Meu senhor, acreditai no que vos digo... A rainha gasta de mais... 25 – Mas como sabeis isso? – Oh! É fácil de saber, meu senhor... Só os vossos bons olhos não querem ver a verdade. Se me permitis... O rei encolerizou-se. – Falai! Mas falai de uma vez! 30 O fidalgo baixou a cabeça e declarou, numa voz um tanto incerta: – Oh, meu rei e senhor! Só vos quero ajudar... O dinheiro desaparece, esgota-se, some- -se... São as esmolas, as obras das igrejas, os empréstimos, as dádivas, as doações a conventos… enfim... uma loucura, senhor! É necessária a vossa intervenção... Um grito do rei de Portugal cortou-lhe a frase: 35 – Basta! Eu sei bem o que hei de fazer!

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Lenda do milagre das rosas, de Gentil Marques

Chegara o ms de janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de Santa Clara, quase destrudas pelas cheias do Mondego, reconstruram-se rapidamente. Isso fora possvel porque a rainha D. Isabel velava por elas. Quando algum desgraado se via sem po, dentro de um lar, minado pela doena, logo procurava a sua rainha. E se nem sempre regressava com sa de para o corpo, pelo menos 5 trazia po para a boca, e palavras to lindas ressoando aos seus ouvidos que, por si s, j constituam consolao para o seu esprito. De todos essa esposa e filha de reis cuidava, como se fossem pessoas suas. Levava o seu zelo ao ponto de ir, ela prpria, vigiar os trabalhos em curso nas casas das monjas. E os operrios, desvanecidos com a real presena, e ainda com os auxlios monetrios que D. Isabel 10 trazia aos mais necessitados, trabalhavam com redobrado ardor. Porm, como sempre acontece neste mundo, a rainha no tinha somente amigos. E, certa vez, um despeitado da corte procurou azedar o nimo de el-rei D. Dinis. Aproveitando um dos momentos em que estava a ss com o rei, encetou o dilogo que, h muito, andava bailando no seu crebro: 15 Perdoai-me, senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que me traz preocupado. O rei olhou-o, com certa altivez. Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis. O corteso mordeu os lbios e disse: Senhor meu rei... A rainha, vossa digna esposa dispe, com bastante liberalidade, do 20 vosso tesouro. D. Dinis franziu as sobrancelhas: Que dizeis? Explicai-vos e j! O fidalgo tornou, com humildade fingida: Meu senhor, acreditai no que vos digo... A rainha gasta de mais... 25 Mas como sabeis isso? Oh! fcil de saber, meu senhor... S os vossos bons olhos no querem ver a verdade. Se me permitis... O rei encolerizou-se. Falai! Mas falai de uma vez! 30 O fidalgo baixou a cabea e declarou, numa voz um tanto incerta: Oh, meu rei e senhor! S vos quero ajudar... O dinheiro desaparece, esgota-se, some- -se... So as esmolas, as obras das igrejas, os emprstimos, as ddivas, as doaes a conventos enfim... uma loucura, senhor! necessria a vossa interveno... Um grito do rei de Portugal cortou-lhe a frase: 35 Basta! Eu sei bem o que hei de fazer! D. Dinis levantou-se, fazendo recuar o fidalgo. Em largas passadas pelo aposento, procurava acalmar a impetuosidade do seu temperamento belicoso. Seria verdade o que acabavam de dizer-lhe? Sim, devia ser verdade. A mentira representaria, nesse momento, um desmedido arrojo. E ao homem que ele tinha na sua frente sobrava-lhe, em mesquinhez, o que 40 lhe faltava em audcia. E todavia O vir sua presena, pr em cheque a prpria rainha, no seria j um ato destemido? www.escolavirtual.pt | Escola virtual 2 / 3

O rei parou de andar de um extremo ao outro da saleta. Olhou fixamente o fidalgo, que baixou os olhos e ordenou: Deixai-me s! Preciso de pensar no caso, sem a sensao de estar a ser espiado. 45 Inclinando a cabea, o fidalgo retirou-se em silncio. Conhecia bem o rei e sabia, de antemo, que as suas declaraes o tinham impressionado. Quanto ao monarca, logo que ficou longe das vistas do seu sbdito deixou-se cair numa cadeira, murmurando consigo mesmo: " isso! Tenho de pr cobro, de uma vez para sempre, aos hbitos excessivamente misericordiosos da rainha! E ser o mais breve possvel!" 50 Ora, se bem o pensou melhor o fez. Dias depois, quando D. Isabel saa dos paos de Coimbra, acompanhada pelas damas e pelos cavaleiros do seu squito, para se dirigir s obras de Santa Clara e espalhar as suas esmolas, surgiu-lhe de sbito, pela frente, a figura desempenada do rei. Ele cumprimentou-a, cortesmente: Bom dia, senhora! Ia partir para uma caada, mas lembrei-me de vos saudar. 55 Agradeo-vos a boa ideia, senhor. A rainha disse estas palavras sorrindo, mas instintivamente recuou um pouco, como a disfarar o que levava no regao. Porm esse gesto, embora mal esboado, no escapou perspiccia de D. Dinis. Tentando esconder a suspeita que o assaltara, perguntou de novo, com a cortesia prpria de um rei: 60 Podeis dizer-me, senhora, onde ides to cedo? D. Isabel empalideceu. O corao bateu-lhe mais apressado e, aps certa hesitao, respondeu com voz branda: Vou armar os altares do Mosteiro de Santa Clara. Ento el-rei olhou-a, de sobrecenho carregado. A sua voz tornou-se menos agradvel. O 65 sorriso corts desapareceu-lhe dos lbios, enquanto perguntava: E que levais no vosso regao, senhora? -la-f que pareceis receosa. Nem quero acreditar que pretendeis ir distribuir novas esmolas pelos vossos protegidos... Isso seria contra todas as minhas ordens e contra todos os meus conselhos. Dizei- -me, pois, o que levais no regao. 70 A rainha tornou-se ainda mais plida e, por momentos, permaneceu silenciosa. Elevava a Deus o pensamento pedindo-lhe, aflitivamente, o Seu divino auxlio. Alarmada, toda a comitiva olhava o rei, receosos da sua clera. D. Dinis fixou de frente a rainha, que dava a ideia de estar presente apenas em corpo. Sentiu fugir-lhe toda a calma de que se tinha revestido e gritou-lhe: Ento, senhora, terei de dar ouvidos aos rumores que circulam minha volta? Sempre 75 verdade que levais, no vosso regao, dinheiro para oferecer aos maltrapilhos que protegeis? D. Isabel olhou o rei, como quem torna de um sonho. O rubor voltava-lhe s faces, o sorriso brincava-lhe de novo nos lbios. E na sua voz melodiosa e pausada, respondeu: Enganai-vos, real senhor... O que levo no meu regao... so rosas, para enfeitar os altares do mosteiro! 80 D. Dinis sorriu com ironia. Rosas? Como vos atreveis a mentir, senhora? Rosas em janeiro?... Pois ficai sabendo: se aqui estou neste momento... se aqui vim, porque algum me garantiu que levveis dinheiro... Compreendeis agora? O rosto da rainha no se contraiu sequer, humildemente. E, ante o pasmo e a aflio de 85 quantos a rodeavam insistiu, com firmeza: Enganai-vos, senhor! E enganou-se tambm quem vos informou. So rosas o que levo no regao! www.escolavirtual.pt | Escola virtual 3 / 3

D. Dinis cerrou os dentes. Os seus olhos brilhavam de clera e a sua voz tornou-se ainda mais dura: 90 Insistis na vossa mentira, senhora? Ento... mostrai-me essas rosas! Serenamente, ante o olhar atnito do rei e de todos os que ali se encontravam, a rainha D. Isabel abriu o regao e deixou ver um ramo de rosas maravilhosas, enquanto murmurava: Vede, senhor... Vede com os vossos olhos! Houve um ligeiro murmrio de pasmo entre a comitiva. El-rei D. Dinis, diante de to 95 grande prodgio, olhava atnito para as flores e para as mos da rainha, sem conseguir pronunciar uma palavra. Estava certo de que acontecera algo de sobrenatural. Algo de estranho que o impressionava e confundia. E s passados alguns momentos conseguiu sorrir e murmurar: Perdoai-me, senhora, se vos ofendi... Mas nunca pensei ver rosas to lindas, neste tempo! 100 Ela sorriu-lhe meigamente. Havia felicidade no brilho dos seus olhos, na suave expresso do seu rosto, no bondoso sorriso dos seus lbios. Cumprimentando-a com galhardia o rei afastou-se, deixando que a rainha seguisse o seu caminho. Ento, de novo, D. Isabel elevou os olhos ao cu. O seu ar harmonioso e a paz que resplandecia do seu rosto entraram na prpria alma de quantos compunham a sua comitiva. 105 Ningum se atrevia a falar, a fazer um gesto sequer. Sentiam a solenidade do momento, com uma alegria interior de difcil exteriorizao. Foi a prpria rainha quem deu o sinal de continuar a marcha, a caminho do Mosteiro de Santa Clara. L a esperavam os desgraados que viviam das esmolas da sua mo benfeitora, do seu olhar carinhoso, da sua palavra to cheia de consolao. E l estavam tambm os altares, 110 esperando a sua graciosa ajuda. Dentro em pouco j toda a cidade de Coimbra se encontrava ao corrente do estranho prodgio, que representava o po e o dinheiro transformados em rosas. O povo proclamava, de lgrimas nos olhos: Foi um milagre! Foi um milagre! santa a nossa rainha! Bendito seja Deus, que a deu ao nosso reino! 115 E o povo, gente grande com alma de menino, dentro das suas inesperadas reaes, aquele cuja voz deve ecoar no cu. Assim, saltitando de boca em boca, o milagre das rosas chegou at ns e continuar para alm dos sculos. MARQUES, Gentil "Lenda do milagre das rosas". In Lendas de Portugal. Vol.IV Lendas Religiosas. 3. ed. Lisboa: ncora editora, 1999. 972-780-027-0. pp. 223-227.

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RealidadeFico

Reinado de D. Dinis

Transformao de po e dinheiro em rosas

Cidade de Coimbra

Milagre

Mosteiro de Santa Clara

Rio Mondego

Santidade da rainha

Assinala as opes corretas.

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