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TINO COMERCIAL E MERCADOLOGIA BRUNO M. GUERREIRO "No comércio, a ocasião é tudo. Quem não prende o sucesso segurando-se à sua crina, perde a oportu- nidade de enriquecer." BALZAC Para os homens de emprêsa do passado a solução de seus problemas de venda dependia, antes de mais nada, de seu "tino comercial". Por tino comercial poderíamos com- preender sua capacidade de avaliar as oportunidades que se lhes apresentavam e sua habilidade de desenvolver e usar os meios para melhor aproveitamento dessas oportu- nidades. Entre os homens de emprêsa de hoje muitos são os que atingem o sucesso contando para isso apenas com o seu tino comercial. É, porém, crescente o número da- queles que melhor aproveitam seu tino comercial com o auxílio da Mercadologia. Para fixarmos a maneira pela qual a Mercadologia pode contribuir para que o homem de emprêsa alcance da ma- neira mais eficiente seus objetivos de vendas e, ao mesmo tempo, examinarmos os argumentos daqueles que ao ou- virem falar de Mercadologia dizem não ser ela uma novi- dade, confundindo-a com o que se considera tino comer- cial, examinaremos neste artigo um processo de mercadi- zação do comêço do século XIX, extraído da obra "His- tória da Grandeza e César Birotteau", de Honoré de Bal- BRUNO M. GUERREIRO - Professor-Adjunto e Chef-e do Departamento de Mer- cadologia da Escola de Adminisrraçâo de Emprêsas de São Paulo.

TINO COMERCIAL E MERCADOLOGIA - scielo.br · Para os homens de emprêsa do passado a solução de seus ... vatas dispostas como castelo de cartas e uma infinidade de outras seduções

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TINO COMERCIAL E MERCADOLOGIABRUNO M. GUERREIRO

"No comércio, a ocasião é tudo. Quem não prende osucesso segurando-se à sua crina, perde a oportu-nidade de enriquecer."

BALZAC

Para os homens de emprêsa do passado a solução de seusproblemas de venda dependia, antes de mais nada, de seu"tino comercial". Por tino comercial poderíamos com-preender sua capacidade de avaliar as oportunidades quese lhes apresentavam e sua habilidade de desenvolver eusar os meios para melhor aproveitamento dessas oportu-nidades. Entre os homens de emprêsa de hoje muitos sãoos que atingem o sucesso contando para isso apenas como seu tino comercial. É, porém, crescente o número da-queles que melhor aproveitam seu tino comercial com oauxílio da Mercadologia.

Para fixarmos a maneira pela qual a Mercadologia podecontribuir para que o homem de emprêsa alcance da ma-neira mais eficiente seus objetivos de vendas e, ao mesmotempo, examinarmos os argumentos daqueles que ao ou-virem falar de Mercadologia dizem não ser ela uma novi-dade, confundindo-a com o que se considera tino comer-cial, examinaremos neste artigo um processo de mercadi-zação do comêço do século XIX, extraído da obra "His-tória da Grandeza e César Birotteau", de Honoré de Bal-

BRUNO M. GUERREIRO - Professor-Adjunto e Chef-e do Departamento de Mer-cadologia da Escola de Adminisrraçâo de Emprêsas de São Paulo.

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zac, escrita em 1837, (1) que provàvelmente retrata per-sonagens e fatos de Paris do início do século XIX. Essaobra é famosa pela precisão com que trata dos pormeno-res da vida comercial da época, sendo considerada pelosadvogados de então como livro de consulta nos assuntosrelativos a falências.

Para melhor esclarecimento do que vai narrado a seguir,lembremo-nos de que são acontecimentos passados quasecem anos antes do aparecimento da palavra "Marketing"(Mercadologia) nos Estados Unidos, denominando umaárea específica de estudos.

César Birotteau e o Lançamento de Produtos

" ... César Birotteau era o primeiro caixeiro da Rai-nha das Rosas. Tendo adquirido as existências daRainha das Rosas a transportou para uma bela casaperto da Praça Vendôme. Durante o primeiro ano,César Birotteau pôs a mulher a par da venda e dasparticularidades das perfumarias, tarefa na qual seacertou admiràvelmente bem: parecia ter sido cria-da e trazida ao mundo para tratar com os fregueses.Terminado o ano, o balanço apavorou o ambiciosoperfumista. Resolveu, então, alcançar a fortuna maisràpidamente e a princípio teve a idéia de acrescen-tar a fabricação à venda a varejo. Alugou um gal-pão com um terreno no bairro do Templo e mandoupintar uma tabuleta com letras grandes: FÁBRICADE CÉSAR BIROTTEAU. Subornou e levou parasua companhia um operário de Grasse, com quemconstituiu uma sociedade para a fabricação de sabo-netes, essência e água-de-colônia. Essa sociedadenão durou mais de seis meses e terminou com perdasque êle suportou sozinho."

1) "A Comédia Humana" de Honoré de Balzac, Editôra Globo, 2.a edição,livro VIII, com Introduções, Notas e Orientação de Paulo Rónai.

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Lendo ABDECKER ou a arte de conservar a beleza, pre-tenso livro árabe, escrito por um médico do século XVIII,teve César Birotteau a idéia de consultar o sábio Vau-quelin,

"a quem pediu com tôda a naturalidade instruçõessôbre a maneira de conseguir um duplo cosméticoque produzisse efeitos apropriados aos diversos tiposda epiderme humana. Vauquelin protegeu o perfu-mista e permitiu-lhe que se intitulasse inventor deuma pomada para branquear as mãos cuja composi-ção lhe indicou".

César Birotteau deu a êsse cosmético o nome de DUPLAPOMADA DAS SULTANAS.

"A fim de completar a obra, aplicou o processo dapomada para as mãos numa água para o rosto quedenominou ÁGUA CARMINATIVA. Imitou, nasua indústria, o sistema do Pequeno Marinheiro (2)e foi o primeiro dentre os perfumistas a usar êssesluxos de cartazes, de anúncios e de meios de publi-cidade que se denominam, talvez injustamente, char-latanismo .""A Pomada das Sultanas e a Água Carminativa fo-ram introduzidas no mundo galante e comercial pormeio de cartazes coloridos encimados por estas pa-lavras: APROVADAS PELO INSTITUTO."

"Essa fórmula, empregada pela primeira vez, teveum efeito mágico. Não só a França, mas o conti-nente inteiro foi coberto de cartazes amarelos, ver-

2) "", Pequeno Marinheiro, a primeira das casas que a partir dessa épocase estabeleceram em Paris, com maior ou menor número de tabuletas pinta-das, bandeirolas flutuantes, vitrinas cheias de xales pendurados em cordas, gra-vatas dispostas como castelo de cartas e uma infinidade de outras seduçõescomerciais: preços fixos, fitas de papel, cartazes, ilusões e efeitos de óticalevados a tal grau de aperfeiçoamento que as f·achadas das lojas se transfor-maram em poemas comerciais, O baixo preço dos objetos chamados novidadesque havia no Pequeno Marinheiro deu-lhe uma popularidade incrível na zonade Paris menos favorável à popularidade e ao comércio,"

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melhos e azuis pelo soberano da Rainha das Rosas,que tinha em depósito, fornecia e fabricava, a preçosmódicos, tudo quanto dizia respeito ao ramo. Numaépoca em que só se falava no Oriente, dar a um cos-mético o nome de Pomada das Sultanas, prevendoa magia que exerceriam tais palavras num país ondeo homem tem tanta vontade de ser sultão como amulher de ser sultana, era uma inspiração que tantopodia ocorrer a um homem vulgar como a um ho-mem inteligente; mas o público, julgando, como sem-pre, pelos resultados, passou a considerar César Bi-rotteau um homem superior, comercialmente falan-do, tanto mais queêle mesmo redigiu um prospectocuja ridícula fraseologia constituiu um elemento desucesso, pois, na França, o povo somente acha graçadas coisas e dos homens que o interessam, e ninguémse interessa por aquilo que não triunfa. Eis o pros-pecto:

DUPLA POMADA DAS SULTANAS E ÁGUACARMINATIV A

de César Birotteeu

DESCOBERTA MARAVILHOSA

aprovada pelo Instituto de França!

Há muito tempo que uma pomada para as mãos euma água para o rosto que dessem resultado supe-rior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados dapele vinham sendo geralmente desejadas pelos doissexos na Europa. Após ter consagrado longas vigí-lias ao estudo do derma e da epiderme nos dois se-xos, que, tanto um como o outro, dão, com tôda ra-zão, o maior aprêço à suavidade, à maciez, ao brilho,ao aveludado da pele, o Sr. César Birotteeu, perfu-mista largamente conhecido na capital e no estren-

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geiro, descobriu uma pomada e uma água, justamen-te denominadas, desde sua aparição, maravilhosas,pelos elegantes e pelas elegantes de Paris. Com efei-to?esta pomada e esta água possuem admiráveis pro-priedades para agir sôbte a pele, sem enrugá-la pre-maturamente, conseqüência infalível das drogas queinconsideradamente têm sido usadas até agora e in-ventadas por ignorantes ambiciosos. Esta descobertabaseia-se na classificação dos temperamentos, que sedividem em duas grandes categorias indicadas pelacôr da pomada e da água, que são côt-de-rose parao derma e a epiderme das pessoas de constituição lin-fática e branca para as pessoas de temperamentosanguíneo.

Esta pomada é denominada POMADA DAS SUL-TAN AS porque já fôra descoberta por um médicoárabe para uso nos serrelhos , Foi aprovada peloInstituto de acôrdo com o perecer do nosso ilustrequímico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmu-la obedece aos mesmos princípios que ditaram a com-posição da Pomada.

Esta preciosa pomada, que exala os mais suaves per-fumes, apaga as sardas mais rebeldes, clareia as epi-dermes mais recalcitrantes e elimina os suores dasmãos de que tanto se queixam as mulheres e os ho-mens.

A AGUA CARMINATIVA faz desaparecer essas pe-quenas espinhas que em certos momentos acometeminopinadamente as mulheres e contrariam seus pro-jetos de ir a um baile. Refresca e reaviva as côres,abrindo ou fechando os poros segundos as exigênciasdo temperamento,· ela já é tão conhecida por sua pro-priedade de deter os ultrajes do tempo que muitasdamas, por gratidão, já a denominaram de A AMIGADA BELEZA.

A água de colônia é pura e simplesmente um perfu-me banal sem eficácia especial, ao passo que a DU-

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PLA POMADA DAS SULTANAS e a ÁGUA CAR-MINATIV A são duas composições operantes, dumafôrça motriz que age, sem perigo, sôbre as funçõesinternas, secundando-as; seus odores, essencialmentebalsâmicos e dotados duma faculdade recreativa,alegram admiràvelmente o coração e o cérebro, dãoencanto às idéias e as estimulam; são tão admiráveispor seu mérito como por sua simplicidade; enfim,constituem um atrativo a mais oferecido às mulherese um meio de sedução colocado à disposição dos ho-mens.

O uso diário de Água dissipa a ardência causada pelanavalha; preserva, igualmente, os lábios de grêtas eos mantém vermelhos; seu emprêgo continuado apa-ga naturalmente as sardas e acaba restituindo o tomà pele. Êsses resultados traduzem sempre, no ho-mem, um perfeito equilíbrio entre os humores, o quetende a libertar as pessoas sujeitas à enxaqueca dessaterrível moléstia. Finalmente, a ÁGUA CARMINA-TIV A, que pode ser empregada pelas mulheres emtodos os seus cuidados da pele, evita as afecçõescutâneas, sem prejudicar a transpiração dos tecidos,ao mesmo tempo que lhes comunica um aveludadopersistente.

Os pedidos, livres de porte, devem ser dirigidos aoSr. César Birotteau, sucessor de Ragon, antigo per-fumista da rainha Maria Antonieta, na RAINHADAS ROSAS, Rua São Honoreto, em Paris, próximoà Praça Vendôme.

O preço do pote de pomada é de três francos e o dovidro de água de seis francos.

O Sr. César Birotteeu, a fim de evitar as imitações,previne o público de que a Pomada vem envôlta empapel com a sua assinatura e que os vidros trazemseu monogrem« gravado."

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" O êxito foi devido, sem que César Birotteaudesse por isso, a Constança, queo aconselhou a en-viar a Água Carminativa e a Pomada das Sultanasem caixas a todos os perfumistas da França, e do es-trangeiro, oferecendo-lhes um lucro de trinta por cen-to se quisessem adquirir os dois artigos em grosas.A Pomada e a Água eram, realmente, melhores doque os cosméticos similares e seduziam os ignorantespela distinção estabelecida entre os temperamentos:os quinhentos perfumistas da França, atraídos pelolucro, passaram a adquirir anualmente de César Bi-rotteau mais de trezentas dúzias de Pomada e deÁgua cada um e essa procura lhe proporcionou lu-cros que, embora restritos quanto ao preço do artigo,foram enormes devido à quantidade das compras."

ANÁLISE DO CASO DA POMADA E DA ÁGUA CARMINATIVA

A leitura dos processos de mercadização de César Birot-teau nos mostra que em 1837 já havia, por parte de per-sonagens reais, ou no gênio criativo de Balzac, a com-preensão daqueles aspectos essenciais que devem ser in-tegrados para a obtenção do sucesso nas vendas.

No lançamento da Dupla Pomada das Sultanas e da ÁguaCarminativa, César Birotteau:

a) remove sua loja para um local mais apropriado;

b) decide entrar no setor industrial integrando vertical-mente seu negócio;

c) solicita a um técnico a criação de um produto adequa-do para satisfazer uma necessidade do consumidor;

d) apresenta o produto sob duas formas para fins diver-sos;

e) adota o uso de cartazes promocionais em sua loja;

f) dá nomes sugestivos aos produtos e cria suas marcas;

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g) utiliza cartazes ,coloridos para lançar seus produtos emtôda a Europa;

h) usa a técnica do testemunho na fórmula "Aprovadaspelo Instituto", como garantia da qualidade do pro-duto;

i) elabora prospectos em que dramatiza as vantagens deseu produto;

j) oferece boas margens aos seus possíveis revendedorescom a condição de comprarem em grandes quanti-dades

Contudo, é no segundo caso narrado na novela de Balzac,ou seja, no lançamento do Óleo Cefálico, que se apresen-tam aspectos ainda mais fascinantes, como veremos a se-guir.

POPINOT E o LANÇAMENTO DO ÓLEO CEFÁLICO

Prossegue César Birotteau:

" ... Popinot, és valente? - disse, fitando o empre-gado. - Tens coragem de lutar com uma coisa maisforte do que tu, de combater corpo a corpo? ..

Sim, senhor.

De sustentar um combate longo, perigoso?

De que se trata?

De derrubar o Óleo de Macassar! - Disse Bi-rotteau, erguendo-se como um herói de Plutarco. -Não nos iludamos, o inimigo é forte, sólido, temível.O Óleo de Macassar foi lançado com muita inteligên-cia. A concepção é engenhosa: as garrafinhas qua-drangulares têm a seu favor a originalidade da for-ma. Para o meu projeto pensei em fazer as nossas

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triangulares! Mas, depois de muitas reflexões, achoque preferiria umas garrafinhas de vidro muito finocobertas de uma cestinha de vime; teriam uma apa-rência misteriosa e o consumidor gosta de tudo queo intriga.

- É muito caro - disse Popinot. - Seria precisofazer tudo pelo menor preço possível, a fim de daruma grande margem de lucro aos varejistas.

- Bem, meu rapaz, aqui estão os verdadeiros prin-cípios. Pensa bem nisto, o Óleo de Macassar se de-fenderá! É atraente, tem um nome sedutor. Apre-sentam-no como uma importação estrangeira e nósteremos a infelicidade de ser nacionais. Então, Po-pinot, tens coragem de matar o Macassar? De inícioterás de levar vantagem nas expedições para ultra-mar, pois parece que o Macassar provém realmentedas Índias: será mais natural, assim, enviar o pro-duto francês para os indianos do que mandar-lhesde volta uma coisa que êles têm fama de nos forne-cer. Toma conta dos mascates! É preciso lutar noestrangeiro, lutar nos departamentos! Ora, o Óleo deMacassar foi muito bem introduzido, não nos deve-mos iludir a respeito de sua fôrça, já está lançado,o público o conhece."

" . .. - Inventei, Popinot, um óleo para estimularo crescimento dos cabelos, reavivar o couro cabeludoe manter a côr das cabeleiras masculinas e femininas.Essa essência não terá menor êxito do que a minhapomada e a minha água: Serás tu, meu filho, quelançarás meu óleo comageno. Lembrei-me de ti parafundar uma casa comercial de alta drogaria, na Ruados Lombardos. Depois do óleo comageno tentare-mos a essência de baunilha, o álcool de hortelão.Numa palavra, entraremos no comércio de drogas re-volucionando-o, vendendo produtos concentrados emvez de vendê-los ao natural."

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Alguns tempos depois, Popinot contrata Gaudissart, (3)o rei dos caixeiros viajantes e êste, entusiasmado, lhe diz:

" ... Vou tomar conta de todos os lojistas da Fran-ça e de Navarra. Oh! tenho uma idéia! Ia partir,mas resolvo ficar, vou pegar comissões do comércioparisiense.

Para quê?

Para estrangular teus rivais, inocente! De possedas tuas comissões, posso deixar por terra os seuspérfidos cosméticos, falando e ocupando-me {mica-mente do teu. Um golpe notável de viajante. Ireià Itália, à Alemanha, à Inglaterra! Carrego comigoos cartazes em tôdas as línguas, faço-os afixar emtôda a parte, nas aldeias, à porta das igrejas, em todosos lugares que conheço nas cidades da província!"

Popinot narra, então a César Birotteau suas atividades:

" . .. Temos conosco o ilustre Gaudissart, estamosmilionários! exclamou o perfumista. Temos aindaoutra coisa! disse o venturoso caixeiro, tirando dobôlso uma garrafinha achatada, facetada em formade abóbora. - Encontrei dez mil frascos iguais a êstemodêlo, já fabricados, prontos para entrega, a ...quatro sous ... com seis meses de prazo.

- Quatro sous! Seis meses de prazo! Uma forma ori-ginal! Sabes que podemos lançar o óleo a três fran-cos e ganhar trinta sous, deixando um lucro de vintepara os varejistas? A três francos o Óleo Cesariano!O Óleo de Macassar custa o dôbro . Gaudissart estámetido nisto, teremos cem mil francos por ano, poisperceberemos de tôdas as cabeças que se prezamdoze frascos por ano, dezoito francos! Digamosdezoito mil cabeças, são cento e oitenta mil francos!"

3) Gaudissart, vendedor especializado na chapelaria e no artigo de Paris (no-vidades), foi considerado mais tarde o rei dos caixeiros viajantes.

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Mais tarde, Gaudissart contrata Finot (4) para que êsteescreva o folheto que deveria acompanhar o óleo.

" . .. O impaciente Gaudissart tomou o manuscritoe leu em voz alta e com ênfase: Óleo Cefálico.

- Eu preferiria Óleo Cesariano - disse Popinot.

- Meu amigo - disse Gaudissart - não conhecea gente da província: há uma intervenção cirúrgicaque tem êsse nome. Essa gente é tão estúpida queiria pensar que o teu óleo fôsse para apressar os par-tos; e daí para levá-la até aos cabelos teríamos muitoque fazer. "

Gaudissart lê, então, o manuscrito:

"Medalha de Ouro na Exposição de 1824

Óleo Cefálico

Patentes de Invenção e de Aperfeiçoamento

Nenhum cosmético pode fazer nascer cabelos, domesmo modo que nenhum preparado químico os tin-ge sem perigo para a sede da inteligência. A ciênciadeclarou recentemente que os cabelos são uma subs-tância morta e que agente algum pode impedi-los decair nem de embranquecer. Para prevenir a Xera-sia e a Calvície, basta preservar o bulbo de onde êlessaem de tôda a influência exterior atmosférica emanter na cabeça o calor que lhe é próprio. O ÓleoCefálico, baseado nesses princípios estabelecidos pelaAcademia das Ciências, proporciona êsse resultadoimportante a que recorriam os antigos, os romanos, osgregos e as nações do Norte para os quais a cabeleiraera preciosa. Sábias pesquisas demonstraram que os

4) Finot, jornalista, fazia pequenas notas teatrais para o "Courrier des Spec-tacles". •

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nobres que antigamente se' distinguiam pelo compri-mento dos cabelos, não empregavam outro meio;acontece, porém, que a sua técnica de preparo, hàbil-mente redescoberta por A. Popinot, inventor do ÓleoCefálico, fôra perdida.

Conservar em vez de tentar um estímulo impossívelou nocivo sôbte a derme que contém os bulbos, talé, pois, a finalidade do Óleo Cefálico. Com efeito,êsse Óleo, que se opõe à esfoliação das películas, queexala um odor suave e que, pelas substâncias que ocompõe, entre as queis figura, como elemento princi-pal, a essência de avelãs, impede qualquer influênciado ar exterior sôbte as cabeças, ao mesmo tempo queevita os resiriedos, a coriza e tôdas as afecções do-lorosas do encéfalo, mantendo a sua temperatura in-terna. Desta maneira, os bulbos que contêm oslíquidos geradores dos cabelos nunca são atingidospelo frio nem pelo calor. A cabeleira - êsse magní-fico produto - a que os homens e as mulheres dãotanto valor, conserva, assim, até a idade avançada dequem se serve do Óleo Cefálico, êsse brilho, essa de-licadeza, êsse esplendor que tornam tão encantado-ras as cabeças das crianças. A maneira de usar acom-panha cada frasco e lhe serve de invólucro.

Êste óleo é vendido em frascos que levam a assina-tura do inventor, para impedir qualquer falsificação,e ao preço de três francos, na casa de A. Popinot, naRua dos Cinco Diamantes, bairro dos Lombardos,Paris.

PEDE-SE ESCREVER LIVRE DE PORTE

" . .. Aconselhado por Gaudissart e Finot, Popinotlançara o seu óleo com audácia. Dois mil cartazeshaviam sido afixados, nos últimos três dias, nos pon-tos mais visíveis de Paris. Ninguém podia evitar dedar com os olhos no Óleo Cefálico nem de ler umafrase concisa, inventada por Finot, sôbre a impossí-

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bilidade de fazer nascer cabelos - e o perigo de tin-gi-los, acompanhada da citação da memória lida porVauquelin à Academia de Ciências. Todos os cabe-leireiros de Paris. barbeiros e perfumistas haviam de-corado suas portas com molduras douradas conten-do um belo impresso, sôbre velino, ao alto do qualbrilhava a estampa de Hero e Leandro, reduzida,com esta asserção por epígrafe:

OS ANTIGOS POVOS DA ANTIGUIDADE CON-SERVAVAM SEUS CABELOS COM O EMPRÊ-

GO DO ÓLEO CEFÁLICO

Popinot prometeu a Finot quinhentos francos porjornal grande (e havia dez) e trezentos francos porjornal secundário (e havia outros dez) se falassemno Óleo Cefálico, três vêzes por mês.

Finot encontrava-se sempre na tipografia, ocupado,como se tivesse um artigo a revisar. Amigo de todos,fêz o Óleo Cefálico vencer a Pomada de Regnaud,a Mistura Brasileira e tôdas as outras invenções quehaviam sido as primeiras a ter o talento de percebera influência do jornalismo e o efeito de pistão pro-duzido sôbre o público por um artigo reiterado.

Êsses artigos alegravam a alma de Gaudissart, quese armava de jornais para destruir os preconceitos,e fazia, na província, isso que os especuladores, de-pois dêle, denominaram de "carga a fundo."

ANÁLISE DO CASO DO ÓLEO CEFÁLICO

No lançamento do Óleo Cefálico, constatamos um trata-mento ainda mais cuidadoso dos aspectos essenciais a umprocesso de mercadização:

1) avaliação das necessidades reais do consumidor e con-sulta a um técnico para o desenvolvimento de um produ-to adequado para a satisfação dessas necessidades;

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2) exame do produto concorrente quanto à sua qualida-de, efeitos de sua marca, vantagens de sua embalagem, seupreço para o consumidor final, e sua etapa de penetraçãono mercado;

3) análise dos motivos de compra dos consumidores po-tenciais e suas prováveis reações ao nome do produto, suaembalagem e apelos de venda;

4) análise e escolha do nome para o produto e criação damarca;

5) determinação do tipo de embalagem para maior dife-renciação do produto;

6) exame e determinação da margem para os revende-dores;

7) determinação do preço de revenda ao consumidorfinal;

8) elaboração dos prospectos para acompanhamento doproduto;

9) contratação do vendedor viajante;

10) afixação de cartazes nos diversos pontos da cidade;

11) utilização dos jornais como veículo de propaganda;

12) distribuição de cartazes aos revendedores para seremafixados na porta de suas lojas;

13) desenvolvimento de frases concisas a serem utiliza-das em todas os esforços promocionais.

ANÁLISE GERAL

No lançamento dos três produtos, verificamos que muitasdas decisões foram tomadas com base em impulsos, em de-corrência de circunstâncias ocasionais, enfim, fruto do "tinocomercial" de César Birotteau e de Popinot e, em certoscasos, das pessoas a êles ligadas. A embalagem que de-veria ser "misteriosa", recoberta de vime, acabou achata-da, em forma de abóbora.

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o nome dado ao produto seria derivado do nome do co-merciante, não fôsse a análise de Gaudissart. O cálculode César Birotteau relativo ao número de vidros a servendidos anualmente baseou-se em um número que ima-ginou de consumidores prováveis, como poderia ter sidoimaginado qualquer outro. Aparentemente, a determina-ção da margem para os intermediários não envolveu a con-sideração de qual a margem oferecida pelo produto con-corrente. Na estimativa do preço para o consumidor finalfoi considerada apenas a oportunidade de se oferecer oproduto a um preço razoàvelmente inferior ao do concor-rente. A elaboração dos prospectos no primeiro caso ficoua cargo do próprio comerciante que o elaborou de manei-ra extravagante, e no segundo caso ficou a cargo de umescritor falido que o elaborou pràticamente de improviso.

Nessas e em outras providências tomadas, verifica-se umatentativa de exame sistemático dos fatôres de vendas,mas com base apenas na experiência e no "tino comercial"dos personagens centrais e daqueles que vêm a participardo empreendimento.Por que, todavia, não poderíamos chamar a êsse processode Mercadologia? Respondemos, dizendo que a Mercado-logia não se confunde com o processo de levar um produ-to do fabricante ao consumidor final. O caso narrado é ahistória de um processo de mercadização, o qual, na época,não poderia inspirar-se na Mercadologia pois essa, como aentendemos, não existia. Mercadologia "é o estudo sis-temático da mercadização; e esta é a execução das ativi-dades administrativas pertinentes ao fluxo de bens e ser-viços do produtor ao consumidor final industrial ou comer-cial", (5) de acôrdo com a definição da "American Mar-keting Association" .Os casos narrados por Balzac constituem indubitàvelmen-te processos de mercadização, em que o sucesso decorreudo que se chamava e se chama, ainda, de tino comercial.

5) ln "A Emancipação do Administrador Mercadológico", de Raimar Richers,artigo publicado no volume I. n.? 1, desta Revista.

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Entretanto, um administrador moderno poderia aliar aoseu tino comercial uma enorme soma de conhecimentos,padrões de análise e técnicas que constituem hoje a Mer-cadologia, restringindo, dessa forma, a sua possibilidadede êrro nas tomadas de decisões necessárias ao desenvol-vimento de um processo de mercadização. Porém, é im-portante notar que, para que seja realizado o estudo sis-temático dos fatôres a serem considerados em quaisquerprocessos de mercadização, é necessário que o homem deemprêsa esteja consciente de que é a sua experiência, con-trolada e analisada, que, somada às experiências de outroshomens de emprêsa, proporciona a matéria-prima, ou abase sôbre a qual se desenvolve a Mercadologia.