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Titus Burckhardt ALQUIMIA Ciência do cosmos, ciência da alma 1

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Titus Burckhardt

ALQUIMIACiência do cosmos,

ciência da alma

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Fons VitaeLouisville Kentuchy

A partir da tradução inglesa de William StoddartTradução (amadora, para uso particular) para a língua

portuguesa: Bruno Costa Magalhães

Ilustração da capa: o casamento do rei e da rainha, do sol e dalua, sob a influência do mercúrio espiritual. Do Philosopher´s

Rosegarden´, de Arnaldus von Villanova, manuscrito naBiblioteca Vadiana, St. Gallen

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FONS VITAEALCHEMY

Filho do escultor suíço Carl Burckhardt,Titus Burckhardt nasceu em 1908. Sua juventude foi dedicada aestudos da arte, história da arte, línguas orientais e a viagens pelonorte da África e Oriente Próximo. Em 1942 ele tornou-sediretor da Urs Graf-Verlag, uma editora especializada em ediçõesfac-símile de manuscritos antigos. Lá permaneceu até 1968.Além de escrever livros em alemão, ele traduziu diversos eimportantes trabalhos do árabe. De seus trabalhos forampublicados em língua inglesa, An Introduction to Sufi Doctrine,Sacred Art in East and West, Moorish Culture in Spain, The Artof Islam, Sienna, Fez City of Islam, Chartres e uma coleção deseus ensaios Mirror of the Intellect. Os últimos três, assim comoAlquimia, foram traduzidos do alemão por William Stoddart.

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ALCHEMY

A editora Fons Vitae orgulha-se deanunciar a publicação de uma nova edição de Alchemy, dedicadaa Madame Edith Burckhardt. A realização espiritual tem sidofrequentemente descrita na terminologia da tradição alquímica,pela qual a natureza sombria que dirige o homem é reconduzidaao ouro, seu estado original. Isso tem sido frequentementetratado como 'alquimia espiritual'. Nesse volumemaravilhosamente esclarecedor somos conduzidos a algumasdessas metáforas que se têm mostrado úteis para estabelecerdeterminadas atitudes na alma, entre elas: confiança eresignação, responsabilidade e esperança. Por exemplo: há umaclara pertinência simbólica na seguinte analogia: qualquersubstância, ou entidade, submetida à dissolução (isso pode dar-seinclusive em um relacionamento) pode finalmente serrecristalizada em uma nova forma. Em outras palavras, um novoser é resolidificado em uma forma mais alta e mais nobre.

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ÍNDICE

Introdução 6

1 A origem da alquimia ocidental 9

2 Natureza e linguagem da alquimia 19

3 A sabedoria hermética 28

4 Espírito e matéria 50

5 Planetas e metais 68

6 A rotação dos elementos 82

7 Da materia prima 87

8 Natureza universal 104

9 “A natureza pode dominar a natureza” 111

10 Enxofre, mercúrio e sal 127

11 Do “casamento químico” 138

12 A alquimia da oração 145

13 O Athanor 148

14 A história de Nicolas Flamel e de sua esposaPerrenelle

159

15 Os estágios do trabalho 169

16 A Tábua de Esmeralda 180

17 Conclusão 186

Lista cronológica de autores herméticos e místicoscitados

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Bibliografia de trabalhos clássicos 190

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INTRODUÇÃO

Desde o Século do Iluminismo até os diasde hoje, a alquimia tem sido comumente considerada como aprecursora da química moderna. Por isso, quase todos osestudiosos que se dedicam a suas obras não têm tido motivo paraver nela algo além do que um estágio inicial de futurasdescobertas na área da química. Esse modo unilateral de tratar aalquimia tem pelo menos o mérito de causar a distinção a serfeita entre seu conjunto de documentos a respeito deexperiências artesanais tradicionais – na preparação de metais,corantes e vidros – e os procedimentos aparentemente irracionaisque desempenham um papel na alquimia como tal. Como esseconjunto de documentos a respeito das experiências artesanais é,como se sabe, longe de ser insignificante, a obediência teimosados alquimistas a fórmulas químicas sem significado do seumagistério não pode deixar de parecer mais peculiares. Aspessoas rapidamente concluem que o insaciável desejo deproduzir ouro persistentemente motivou os homens a acreditarem um grande número de receitas fantásticas, o que, a bem daverdade, não são nada mais que uma aplicação popular esupersticiosa da filosofia da natureza dos antigos; como se osalquimistas tivessem tentado, em parte através de procedimentosfísicos, e em parte através de evocações mágicas, tomar possedireta da materia prima aristotélica – o fundamento de todas ascoisas.

Nunca pareceu chamar a atenção deninguém como no mínimo improvável que uma 'arte' assim dessaespécie poderia, apesar de suas loucuras e decepções, terimplantado a si mesma por séculos a fio nas mais diversasculturas no ocidente e no oriente. Pelo contrário, as pessoas estãomais inclinadas a adotar o ponto de vista de que, há até umséculo, toda a humanidade estava sonhando um sonho estúpido,cujo despertar veio apenas com a nossa época. Como se afaculdade espiritual-intelectual do homem – seu poder dedistinguir o real do irreal – estivesse igualmente sujeita a algumaespécie de evolução biológica.

Esse modo de olhar para a alquimia écontradito por um determinado princípio de unidade organizado

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pela própria alquimia: descrições do 'grande trabalho' agitam-sea partir de várias culturas e vários séculos evidenciam, embora, ébem verdade, haja uma multiplicidade de símbolos,determinadas características invariáveis, que não são explicadasempiricamente. Essencialmente, a alquimia indiana é idêntica àocidental; e a alquimia chinesa, embora arranjada em umaatmosfera espiritual completamente diferente, pode lançar luzesem ambas. Se a alquimia não fosse nada além de uma impostura,a sua forma de expressão revelaria arbitrariedades e loucuras atodo momento; mas, na verdade, ela parece possuir todos ossinais de uma 'tradição' genuína, ou seja, uma orgânica econsistente – embora não necessariamente sistemática – doutrinae um claro corpo de regras estabelecidas e persistentementeexposta por seus adeptos. Assim, a alquimia não é nem umproduto híbrido ou fruto do acaso da história humana. Pelocontrário, representa uma profunda possibilidade para o espíritoe para a alma.

Essa também é a posição da auto-denominada 'psicologia profunda', que pretende encontrar nosimbolismo alquímico uma confirmação de suas próprias teses arespeito do 'inconsciente coletivo'1. De acordo com essa visão, oalquimista, na sua busca sonhadora, traz à luz do diadeterminados conteúdos da sua própria alma que eramdesconhecidos, e assim, sem pretender conscientemente fazê-lo,traz um tipo de reconciliação entre a sua consciência individual,superficial e cotidiana, e o poder do 'inconsciente coletivo', aindanão formado (mas em busca de formação) . Supôs-se que essareconciliação daria lugar a uma experiência de satisfação íntima,que subjetivamente tem sede no magistério alquímico. Essavisão, assim como as precedentes, é baseada na premissa de quea primeira intenção dos alquimistas é fazer ouro. Considerava-seque o alquimista se havia envolvido em alguma forma deloucura, ou auto-engano, e em razão disso havia sido levado apensar e a agir como alguém que está sonhando. Essa explicaçãopossui alguma plausibilidade, desde que, de alguma forma, ela seaproxima da verdade – apenas para se afastar dela

1Veja Herbert Silberer, Probleme der Mystik un thre Symbolik, Viena, 1914: C. G.Jung, Psychologie und Alchemie, Zurich, 1944 y 1952, y Mysterium Conjunctionis,Zurich, 1955 e 1957.

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imediatamente. É verdade que a realidade espiritual na qual oalquimista trabalha é uma espécie de iniciação, é algo de que oiniciante está mais ou menos inconsciente, é algo que estáescondido no fundo da alma. Apesar disso, esse 'segredoprofundo' não deve ser confundido com o caos do assim-chamado 'inconsciente coletivo' – tanto quando esse conceitoalgo elástico tenha algum significado preciso. A 'fonte dejuventude' dos alquimistas não surge em nenhum sábio a partirde um substrato psíquico obscuro; ela flui através da mesmafonte do espírito. Ela é escondida dos alquimistas no começo doseu 'trabalho', não porque está abaixo mas sim porque está acimado nível do processo de consciência mental.

A hipótese dos psicólogos se evapora namedida em que se compreende que os alquimistas genuínosnunca estiveram enredados em nenhum sonho de satisfação dedesejos de fazer ouro, nem perseguiam seu objetivo comosonâmbulos, ou por meio de 'projeções' passivas do conteúdoinconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam ummétodo deliberado, cuja expressão metalúrgica – a arte detransmutação de metais comuns em prata ou ouro –reconhecidamente enganou diversos pesquisadores não-iniciados, embora em si mesmo seja ele lógico e, ademais,realmente profundo.

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CAPÍTULO 1

A ORIGEM DA ALQUIMIA OCIDENTAL

A alquimia existe desde, pelo menos,metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmentedesde os tempos pré-históricos. À pergunta sobre como pôde aalquimia existir por milênios em civilizações tão amplamenteseparadas, como a do Oriente Próximo e a do Extremo Oriente, aresposta da maioria dos historiadores possivelmente seria a deque o homem tem repetidamente falhado na tentativa de ficarrico rapidamente buscando fazer ouro e prata através de metaiscomuns, até que os químicos empíricos do séc. XVIII finalmenteprovaram que os metais não podem ser transformados um emoutro. Na realidade, entretanto, a verdade é muito diferente e,pelo menos em parte, diametralmente oposta.

Ouro e prata já eram metais sagrados antesmesmo de serem transformados em medida de todas astransações comerciais. Eles são o reflexo terrestre do Sol e daLua, e assim também de todas as realidades do espírito e da almaque estão relacionadas os pares celestiais. Até mesmo na IdadeMédia o valor relativo desses dois metais nobres era determinadopela relação entre os tempos de rotação desses dois corposcelestes. Também as moedas antigas usualmente apresentavamfiguras ou sinais relacionados ao Sol ou à sua rotação anual. Parao homem dos tempos pré-racionalistas, a relação entre os metaisnobres e os dois luminares era óbvia, e todo um mundo denoções mecanicistas e os preconceitos acabaram necessariamenteobscurecendo a realidade auto-evidente dessa relação e fazendocom que ela acabasse parecendo um acidente estético.

Não se deve confundir um símbolo comuma mera alegoria, nem tentar ver nele a expressão de uminstinto coletivo algo nebuloso e irracional. O verdadeirosimbolismo depende do fato de que as coisas, se se podemmodificar em razão de tempo, espaço, natureza material, e devárias outras características limitativas, podem, por outro lado,possuir e exibir a mesma qualidade essencial. Elas, assim,aparecem como diversos reflexos, manifestações ou produções

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da mesma realidade – que, em si mesma, é independente detempo e de espaço. Assim, não é muito correto dizer que o ourorepresenta o Sol, ou que a prata representa a Lua;diferentemente, trata-se de que os dois metais nobres e os doisluminares são símbolos das mesmas realidades cósmicas edivinas2.

A magia do ouro, assim, vem da suanatureza sagrada, ou perfeição qualitativa, e apenassecundariamente do seu valor econômico. Em vista da naturezasagrada do ouro e da prata, a obtenção desses dois metais sópoderia ser uma atividade sacerdotal, assim como a cunhagem demoedas de ouro e prata era prerrogativa apenas de determinadoslugares sagrados. Em sintonia com isso está o fato de que osprocedimentos metalúrgicos relativos ao ouro e à prata, queforam preservados em algumas assim-chamadas sociedadesprimitivas dos tempos pré-históricos, revelam abundantes sinaisda sua origem sacerdotal3. Nas culturas 'arcaicas', ainda nãofamiliarizadas com a dicotomia do 'espiritual' e do 'prático', nasquais tudo era visto em relação com a unidade íntima do homeme do cosmos, a preparação dos minérios era sempre realizadacomo um procedimento sagrado. Como regra, era prerrogativa dacasta sacerdotal, chamada a esta atividade por comando divino.Onde não era assim, como no caso de determinadas tribosafricanas, que não possuíam suas próprias tradiçõesmetalúrgicas, o fundidor ou ferreiro, como um intruso nãoautorizado na sagrada ordem da natureza, caía na suspeição deenvolvimento com a magia negra4.

O que aos olhos do homem modernoparece superstição – e o que, em parte, apenas sobreviveu comotal – é na verdade um pressentimento de uma profunda relaçãoentre a ordem natural e a alma humana. O homem 'primitivo'estava bem consciente de que a produção de minérios no 'ventre'da terra e a sua violenta purificação pelo fogo era algo sinistro, echeio de possibilidades perigosas, mesmo que eles não tivessem

2Na obra etnológica de E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, capítulo «TheProblems of Symbols», Oxford at the Clarendon Press, 1956, há uma excelenteexplicação do que se pode entender por símbolo.3Veja Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, coleção «Horno sapiens», París,1956.4ibid.

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todas as provas de que a história da Era dos Metais tãoabundantemente nos proveu. Para a humanidade 'arcaica' – quenão separava artificialmente matéria de espírito – a chegada dametalurgia não foi simplesmente uma 'invenção', mas tambémuma 'relevação', porque apenas um comando divino poderiaautorizar à humanidade o acesso a tal atividade. No início,entretanto, essa revelação foi uma faca de dois gumes5; elarequeria uma prudência especial por parte de quem ela havia sidorecebida. Assim como o trabalho exterior do metalúrgico com osminérios e o fogo apresentava algo de violento em relação a ele,assim também a influência que pesava sobre o espírito e a alma –que eram inescapáveis neste chamado – era de uma perigosa edúbia natureza. Em particular a extração de metais nobres apartir de minérios impuros, por meio de solventes e de agentespurificadores como o mercúrio e antimônio, e em conjunção como fogo, era inevitavelmente realizada contra as resistências desombrias e caóticas forças da natureza, assim como a conquistada 'prata interior' ou do 'ouro interior' – na sua pureza imutável eluminosidade – demanda a conquista de todos os impulsosobscuros e irracionais da alma.

*

O diálogo seguinte, extraído daautobiografia de um senegalês, mostra como em determinadastribos africanas o trabalho com o ouro foi continuamente tratadocomo arte sagrada até os presentes dias6.

“... Assim que meu pai sinalizou, os doisaprendizes começaram a trabalhar o fole da pele de carneiro queestava situado em ambos os lados da fornalha e conectado a elapor meio de cachimbos de barro... As chamas no fornoespoucavam e pareciam ganhar vida – um gênio animado e mau.

“Meu pai, então, pegou a panela defundição com sua longa pinça, e colocou-a nas chamas.

“De repente todas as outras ocupações naforja cessaram, porque enquanto o ouro estava sendo fundido, e

5“Nós revelamos o ferro. Nele há força maligna e utilidade para os homens”(Corão, LVII, 25).6Camara Laye, L'Enfant noir, París, 1953.

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enquanto ele esfriava, era proibido trabalhar nas suasproximidades quer com o cobre, quer com o alumínio, paraevitar que uma partícula desses metais comuns entrasse napanela de fundição. Apenas o aço poderia continuar a sertrabalhado. Mas mesmo aqueles engajados em alguma tarefacom o aço geralmente deveria terminá-la rapidamente ou deixá-la de lado, para juntar-se aos aprendizes em volta do forno...

“Quando meu pai sentiu que seusmovimentos estavam começando a ser impedidos pelosaprendizes que se amontoavam em volta, fazia sinal para queeles se afastassem. Nem ele, nem ninguém, poderia pronunciarnenhuma palavra. A quietude era rompida apenas pelo chiadodos foles e pelo assovio do ouro. Mas embora meu pai nãodissesse nenhuma palavra, eu sabia que ele falava para si; eupodia vê-lo por seus lábios, que se moviam silenciosamenteassim que ele mexia no ouro e no carvão com uma vara – que,assim que pegava fogo, era substituída.

“O que ele dizia para si? Eu não sei dizercom certeza, já que ele nunca me disse. O que poderia ser senãouma invocação? Ele não invocava os espíritos do fogo e do ouro,do fogo e do vento – o vento que soprava através dos foles, dofogo que vem do vento e do ouro que estava aliado ao fogo?Certamente ele pedia ajuda e suplicava a sua cooperação ecomunhão; certamente que ele invocava esses espíritos queestavam entre os mais importantes, e cujo apoio era muitíssimonecessário para a fundição.

“O processo que acontecia diante de meusolhos não era apenas e por fora a fundição do ouro. Havia algoalém disso: um processo mágico que os espíritos poderiamfavorecer ou atrapalhar. Daí porque a quietude reinou em voltade meu pai...

“Não é notável que naquele momento umapequena cobra negra sempre permanecia escondida por baixo dapele do carneiro? Porque ela nem sempre esteve lá. Ela não vemvisitar meus pais todos os dias, e ela nunca deixa de vir quando oouro está sendo trabalhado. Isso não me surpreende. Desdeentão, em uma noite, meu pai me falou sobre o espírito da nossatribo, e eu achei muito natural que aquela cobra estivesse ali,porque a cobra conhece o futuro...

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“O artesão que trabalha o ouro deve antesde tudo purificar-se, deve lavar-se da cabeça aos pés, e, durante otrabalho deve abster-se de relações sexuais...”

*

Que existe um ouro interior, ou melhor, queo ouro tem uma realidade interior, assim como uma realidadeexterior, é apenas lógico para o modo contemplativo de olhar ascoisas, que espontaneamente reconhece a mesma 'essência' noouro e no Sol. É aqui, e em nenhum outro lugar, que as raízes daalquimia repousam. As origens da alquimia remontam à artesacerdotal dos antigos egípcios; a tradição alquímica que seespalhou pela Europa e pelo Oriente Próximo, e que talvez atémesmo influenciou a alquimia indiana, reconheceu como seufundador Hermes Trismegistos, o 'Hermes, o três vezes grande',que é identificado com o antigo deus egípcio Thoth, o deus quereina sobre toda a arte sacerdotal e científica, um pouco comoGanesha no Hinduísmo. A expressão alchemia deriva do árabeal-kimiya, que parece derivar do antigo egípcio kême – areferência à 'terra negra', que era uma designação do Egito, e quepoderia ter sido também o símbolo da matéria-prima dosalquimistas. Outra possibilidade é que a expressão deriva dogrego chyma ('fusão' ou 'fundição'). Em todo caso, os desenhosalquímicos remanescentes mais antigos estão em papirosegípcios. Que nenhum documento primitivo tenha chegado aténós não é surpresa, desde que é uma característica essencial deuma arte sagrada a sua transmissão oral; que seu registro escritopossa ser encomendado é usualmente o primeiro sinal dedecadência ou do receio de que a tradição oral será perdida.Assim, é completamente natural que o assim-chamado CorpusHermeticum, que compreende todos os textos atribuídos aHermes-Thoth, tenham chegado até nós em grego, e revestidomais ou menos em uma linguagem platônica. Que esses textossão, todavia, originados de uma tradição genuína, e que não sãofabricações pseudo-arcaicas dos gregos, é provado por suafecundidade espiritual. As evidência sugerem que a assim-chamada 'Tábua de Esmeralda' é também parte do CorpusHermeticum. A Tábua da Esmeralda declara-se uma revelação de

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Hermes Trismegistos, e é considerada pelos alquimistas queescreveram em árabe e em latim como nada menos que a 'tábuada lei' da sua arte. Não há nenhum texto primitivo da Tábua daEsmeralda. Ela chegou até nós apenas em tradições árabes elatinas – pelo menos tanto quanto se pesquisou até agora – masseu conteúdo evidencia sua autenticidade.

Em abono à origem egípcia da alquimia doOriente Próximo e do Ocidente está o fato de que toda uma sériede procedimentos artesanais, relacionados com a alquimia eprovendo-a de várias expressões simbólicas, apareceu como umconjunto coerente a partir dos últimos tempos egípicios,finalmente aparecendo nos livros prescritivos medievais. Estecorpo de procedimentos contém alguns elementos claramentederivados do Egito. Entre esses procedimentos, além do trabalhodo metal e da preparação de tinturas, está a produção de pedraspreciosas artificiais e vidros coloridos, uma arte que floresceu noEgito. De mais a mais, toda a arte egípcia dos metais e minerais,no seu esforço para extrair o a essência, secreta e preciosa, deuma 'substância' terrestre, mostra uma óbvia relação espiritualcom a alquimia.

A Alexandria egípcia, em seus últimostempos, foi sem dúvida o cadinho no qual a alquimia, juntamentecom outras artes e ciências cosmológicas, recebeu a forma naqual ela nos é hoje conhecida, sem por isso ser alterada emnenhum aspecto essencial. Pode muito bem ter sido nessa épocaque a alquimia também adquiriu alguns temas da mitologia gregae asiática. Isso não deve ser considerado um acontecimentoartificial. O crescimento de uma tradição genuína parece-se comum cristal, que atrai partículas homólogas a si próprio,incorporando-as de acordo com as suas próprias leis deharmonia.

Dessa época em diante, podem-se observarduas correntes na alquimia. Uma é predominante e naturalmenteartesanal; o simbolismo de um 'trabalho interior' aparece aquicomo um complemento a uma atividade profissional e é apenasocasional e incidentalmente mencionado; a outra faz uso de umprocesso metalúrgico exclusivamente como analogia. Então sepode até mesmo perguntar se esses procedimentos foramutilizados 'exteriormente'. Isso fez com que alguns cunhassem a

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distinção entre a alquimia artesanal – a qual se acredita seja maisantiga – e a assim-chamada alquimia mística, que se supõe dedesenvolvimento superior. Na realidade, entretanto, trata-se dedois aspectos de uma e mesma tradição, na qual o aspectosimbólico é sem dúvida o mais arcaico.

Será sem dúvida questionado como foipossível à alquimia, juntamente com o seu fundamentomitológico, ser incorporada nas religiões monoteístas: judaísmo,cristianismo e islã. A explicação para isso é que as perspectivascosmológicas próprias da alquimia, relativas tanto à esferaexterna dos metais (e minerais em geral) quanto ao terrenointerior da alma, estavam organicamente ligadas com ametalurgia antiga, e assim esse fundo cosmológico foi recebido,juntamente com as técnicas artesanais, simplesmente como umaciência da natureza (physis) no sentido mais amplo do termo,assim como o cristianismo e o islã se apropriaram das tradiçõespitagóricas na música e na arquitetura, e assimilaram acorrespondente perspectiva espiritual.

Do ponto de vista cristão, a alquimia eracomo que um espelho natural para as verdades relevadas: a pedrafilosofal, que transformava metais em ouro, é um símbolo deCristo, e a sua produção a partir do 'fogo que não se queima' doenxofre, e a 'água inabalável' do mercúrio simbolizam onascimento de Cristo-Emmanuel.

Através dessa assimilação pela fé cristão, aalquimia foi espiritualmente fecundada, enquanto o cristianismoencontrou nela um caminho que, através da contemplação danatureza, conduzia a uma verdadeira 'gnosis'.

Ainda com maior facilidade a artehermética entrou no mundo espiritual islâmico. Este sempreesteve pronto, em princípio, para reconhecer qualquer arte pré-islâmica que aparecesse sob o aspecto de 'conhecimento'(hikmah) como patrimônio dos primeiros profetas. Assim, nomundo islâmico, Hermes Trismegistos é algumas vezesidentificado com Enoch (Idrîs).

Foi a doutrina da 'unidade da existência'(wahdat-al-wujûd) – a interpretação esotérica da confissão de féislâmica – que deu ao hermetismo um novo eixo espiritual ou,em outras palavras, restabeleceu seu horizonte espiritual original

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em toda a sua plenitude e libertou-a da sufocação do recente'naturalismo' helenístico.

Enquanto isso, o simbolismo da alquimia,como resultado da sua incorporação gradual no tardio e clássicopensamento semítico, desenvolveu-se numa variadamultiplicidade. Apesar disso, alguns traços fundamentais,próprios da alquimia como 'arte', permaneceram como seu sinalespecífico através dos séculos: acima de tudo, mencione-se oplano preciso do 'trabalho alquímico', as fases individuais com asquais é caracterizado por meio de alguns processos 'simbólicos'que nem sempre podem ser levados a cabo na prática.

Em um primeiro momento, a alquimiaentrou na civilização cristã ocidental através de Bizâncio, edepois, e em maior medida, através da Espanha árabe. Foi nomundo islâmico que a alquimia alcançou a plenitude de seuflorescimento. Jâbir ibn Hayyân, um discípulo do sexto ShiiteImam Jafar as-Sâdiq, fundou no séc. XVIII d. C. uma verdadeiraescola, a partir da qual centenas de textos alquímicos fluíam.Sem dúvida que foi em razão de o nome de Jâbir ter-setransformado em uma marca de qualidade de grande erudiçãoalquímica, que o autor da Summa Perfectionis, um italiano oucatalão do séc. XIII d. C., também assumiu o nome, Gebe, na suaforma latinizada.

Quando, com o Renascimento, ocorreu agrande irrupção da filosofia grega, uma nova onda de alquimiabizantina alcançou o Ocidente. Nos séc. XVI e XVII váriostrabalhos alquímicos foram impressos, e até então existiamapenas manuscritos que haviam circulado mais ou menossecretamente. Como resultado disso, o estudo do hermetismoalcançou um novo patamar; foi em breve, contudo, que entrouem decadência.

O séc. XVII d. C. é algumas vezesconsiderado como marca do florescimento completo dohermetismo europeu. Na realidade, entretanto, a sua decadênciajá havia começado no séc. XV d. C. e prosseguia sem demoracom o desenvolvimento humanístico e já fundamentalmenteracionalista do pensamento ocidental, pelo qual qualquerperspectiva universal, espiritual e intuitiva, foi privado de seufundamento básico. É verdade que por determinado tempo,

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imediatamente anterior à era moderna, elementos de uma gnosisgenuína, que haviam sido, com dificuldade, tirados do terreno dateologia tanto pelo desenvolvimento sentimental unilateral dosúltimos místicos cristãos e pela tendência agnóstica inerente àReforma, encontraram refúgio na alquimia especulativa. Issosem dúvida explica fenômenos como os ecos de hermetismodetectados em trabalhos de Shakespeare, Jakob Boehme e GeorgGichtel.

A medicina que derivou da alquimia duroumais que a própria alquimia. Paracelsus chamou a isso de'spagyric medicine'. O termo vem das palavras gregascorrespondentes a 'divisão' e 'união' – correspondendo aos termosalquímicos solve et coagula.

Em geral, a alquimia europeia que seseguiu à Renascença teve um caráter fragmentário; como umaarte espiritual, carecia de fundo metafísico. Isso é especialmenteverdade a respeito de seus últimos vestígios no séc. XVIII d. C. –mesmo apesar do fato de que entre todos os 'queimadores decarvão', homens de real gênio tais como Newton e Goethe seocuparam dela, embora sem sucesso.

Nesse ponto parece oportuno dizercategoricamente que não pode haver alquimia 'independente' ehostil à Igreja, porque o primeiro pré-requisito de toda arteespiritual genuína é reconhecer tudo o que a condição humana,na sua supremacia e na sua precariedade, necessita em vista desua salvação. Que haja também uma alquimia pré-cristã denenhum modo prova o contrário; a alquimia sempre foi, emqualquer época, uma parte orgânica de uma tradição completa,integral, que em certo sentido congregava todos os aspectos daexistência humana. Na medida, entretanto, em que oCristianismo revelou verdades que estavam escondidas daantiguidade pré-cristã, isso deve ser levado em conta pelosalquimistas cautelosos. É, assim, um grande erro acreditar que aalquimia ou o hermetismo, por si sós, poderiam possivelmenteser uma religião auto-suficiente, ou mesmo um paganismosecreto. Qualquer atitude dessa espécie deve necessariamente servista como racionalismo e humanismo que paralisa desde oprincípio qualquer esforço em direção ao magistério interior.

É verdade que 'o Espírito sopra onde quer',

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e ninguém pode, de fora, impor delimitações dogmáticas em suasmanifestações; mas o Espírito não 'sopra' onde ele próprio – oEspírito Santo – é renegado em qualquer de suas revelações.

Na realidade, a alquimia, que não é elamesma uma religião, requer a confirmação de uma revelação –com os seus meios de graça –, que é endereçada a todos oshomens. Essa confirmação consiste no reconhecimento da via edo trabalho alquímicos pelos próprios alquimistas como um meioespecífico de acesso ao significado completo da mensagemeterna e salvífica da relevação.

Não devemos nos alongar na história daalquimia, que, em todo caso, não é conhecida em detalhes, semdúvida em grande parte em razão de que a transmissão de umaarte esotérica geralmente ocorre oralmente. Um último pontodeve, apesar disso, ser mencionado; o fato de que escritoresalquímicos assumam nomes fantásticos, fora de qualquer relaçãocom a cronologia, alegadamente como seus autores ou fontes,em nenhum sentido milita contra o valor dos textos em questão;porque, independentemente do fato de que o ponto de vistahistórico e o conhecimento alquímico não tenham nada a ver umcom o outro, esses nomes (como no caso do Geber latino) sãoindicações de uma dada 'corrente' da tradição, em vez depretender ser certificados de autoria. A questão sobre se dadotexto hermético é genuíno ou não, vale dizer, se ele procede deum conhecimento e experiência verdadeiros da arte hermética,ou se foi simplesmente coletado arbitrariamente, não pode serdeterminada nem pela filologia, nem pela comparação com aquímica empírica; o único critério é a unidade espiritual datradição mesma.

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CAPÍTULO 2

NATUREZA E LINGUAGEM DA ALQUIMIA

No meu livro a respeito dos princípios emétodos da arte sagrada7, mais de uma vez tive a ocasião demencionar a alquimia, a título de comparação, quando seconsidera a criação artística como aparece dentro da tradiçãosagrada, não do ponto de vista de seu aspecto estético externo,mas como um processo interno cuja meta é o amadurecimento,'transmutação', ou renascimento da alma do próprio artista. Aalquimia também foi chamada arte – precisamente a 'arte real'(ars regia) – por seus mestres e, com sua imagem datransmutação dos metais comuns em ouro e prata, se presta comoum magnífico símbolo evocativo do processo interno a que ela serefere. Efetivamente a alquimia pode considerada a arte datransmutação da alma. Ao dizer isso não estou buscando negarque os alquimistas também conheciam e praticavam osprocedimentos metalúrgicos, tais como a purificação e a liga demetais; seu trabalho real, entretanto, dos quais estesprocedimentos são meramente o suporte exterior, ou símbolosoperacionais, foi a transmutação da alma. O testemunho dosalquimistas nesse ponto é unânime. Por exemplo, no The Book ofSeven Chapters, que foi atribuído a Hermes Trismegistos, o paida alquimia ocidental e do Oriente Próximo, lemos: “Veja, euabri diante de você o que estava escondido: O trabalho[alquímico] está em suas mãos e juntamente com você; namedida em que se encontra dentro de você e é duradouro. Vocêsempre terá isso presente, onde quer que você esteja, na terra ouno mar...”8. E no famoso diálogo entre o rei árabe Khalid e osábio Morienus (ou Marianus) se disse como o rei questionou osábio sobre onde se poderia encontrar algo com que se pudesserealizar o trabalho hermético. A isso Morienus se silenciou, e foiapenas após muita hesitação que ele respondeu: “Ó rei, eu lhedigo a verdade, que Deus, em sua misericórdia, criou essa coisaextraordinária dentro de você; onde quer que você esteja, está

7Vom Wesen heiliger Kunst in den Weltreligionen, Origo-Verlag, Zurich, 1955, y Príncipes et méthodes de l’art sacré, Lyon, 1968.8 Bibliothèque des Philosophes Chimiques, ed. por G. Salmon, París, 1741.

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sempre com você e nunca pode ser separado de você...”9.A partir de tudo isso, veremos que a

diferença entre a alquimia e qualquer outra arte sagrada é que oconhecimento alquímico não é alcançado visivelmente, na planoexterno artesanal, como na arquitetura e na pintura, mas apenasno coração; porque a transmutação de chumbo em ouro, queconstitui o trabalho alquímico, de longe ultrapassa aspossibilidades do conhecimento artesanal. O caráter miraculosodesse processo – efetuando um 'salto' que, de acordo com osalquimistas, a natureza por si própria, apenas pode realizar emum tempo imprevisivelmente longo – destaca a diferença entreas possibilidades corporais e aquelas da alma. Enquanto umasubstância mineral – cuja solução, cristalização, fundição eaquecimento podem refletir até certo ponto as mudanças da alma– deve permanecer confinada em limites definidos, a alma, porsua parte, pode superar os limites 'físicos' correspondentes,graças ao encontro com o espírito, que não é confinado pornenhuma forma. O 'chumbo' representa o caótico, 'pesada' edoentia condição do metal ou do homem interior, enquanto oouro – 'luz congelada' e 'sol terreno' – representa a perfeição daexistência metálica e humana. Na perspectiva dos alquimistas, oouro é a efetiva meta da natureza metálica; todos os outrosmetais são passos preparatórios, ou experimentais, para esse fim.O ouro, em si mesmo, possui o equilíbrio harmonioso de todas aspropriedades metálicas e assim também possui durabilidade. O'cobre não encontra sossego até que se transforme em ouro', disseMestre Eckhart, referindo-se, na realidade, à alma, que anseiapor seu próprio ser eterno. Assim, em contraste com a acusaçãousual contra eles, os alquimistas não procuram, por meio defórmulas secretamente conservadas, nas quais apenas elesacreditam, fazer ouro de metais ordinários. Quem quer querealmente tenha desejado tentar isto pertence aos chamados'charcoal burners' que, sem nenhuma conexão com a tradiçãoalquímica viva, e puramente com base no estudo de textos queeles apenas podem compreender no sentido literal, buscaramalcançar o 'grande trabalho'.

9Ibíd. II. O relato do diálogo entre o rei árabe Chalid e o monge Morieno, omariano, foi provavelmente o primeiro texto alquímico treduzido do árabe para olatim.

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Como um caminho que pode conduzir ohomem ao conhecimento do seu próprio ser eterno, a alquimiapode ser comparada com o misticismo. Isso também é indicadopelo fato de que as expressões alquímicas foram adotadas pelamística cristã, e ainda mais pela islâmica. Os símbolosalquímicos da perfeição referem-se ao conhecimento espiritualda condição humana, ao retorno ao centro ao qual as trêsreligiões monoteístas chamam de reconquistas do paraísoterrestre. Nicolas Flamel (1330-1417), que foi um alquimista querecorreu à linguagem da fé cristã, escreveu sobre a conclusão dotrabalho, que ele 'transforma o homem em bom, afastando dele araiz de todos os pecados, especificamente a cobiça. Então eletorna-se generoso, benigno, piedoso, crente e temente a Deus,independentemente de quão mal ele havia sido anteriormente;porque, a partir de então, ele estará sempre cheio da graça emisericórdia com que ele foi recebido por Deus, e com o maisprofundo de seus maravilhosos trabalhos10.

A essência e o objetivo do misticismo é aunião com Deus. A alquimia não fala disso. O que tem relaçãocom o caminho místico, entretanto, é a meta alquímica dereconquistar a nobreza original da condição humana e o seusimbolismo; porque a união com Deus é possível apenas emvirtude daquilo que, a despeito do abismo incomensurável entrea criatura e Deus, une o antigo ao mais recente – e isso é o'teomorfismo' de Adão, que foi 'deslocado' ou se tornou inefetivopela Queda. A pureza do homem simbólico deve serreconquistada antes que a forma humana possa ser reassumidano seu arquétipo infinito e divino. Compreendida em seu aspectoespiritual, a transmutação do chumbo em ouro não é nada alémda reconquista da original nobreza da natureza humana. Assimcomo a inigualável qualidade do ouro não pode ser produzidapela soma exterior das propriedades dos metais tais como massa,dureza, cor etc., assim a perfeição 'adâmica' não é uma meraassimilação de virtudes. É tão inimitável quanto o ouro. E ohomem que tenha 'realizado' esta perfeição não pode sercomparado com os outros. Tudo nele é original, no sentido deque o seu ser está completamente acordado e unido com a suaorigem. Na medida em que a realização desse estado

10 Bibl, des Phil. Chim.

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necessariamente pertence à via mística, a alquimia pode, de fato,ser considerada como um ramo do misticismo.

Ademais, o 'estilo' da alquimia é tãodiferente do misticismo, que é diretamente baseado em uma féreligiosa, que alguns foram tentados a chamá-lo de 'misticismosem Deus'. Essa expressão, entretanto, é perfeitamentedisparatada, para não dizer completamente falsa, porque aalquimia pressupõe a crença em Deus, e praticamente todos osmestres dão grande importância à prática da oração. Essaexpressão é verdadeira apenas na medida em que a alquimia, emsi mesma, não possui nenhuma armadura teológica. Assim, aperspectiva teológica tão característica do misticismo nãodelimita o horizonte intelectual da alquimia. O misticismo judeu,cristão e muçulmano é centrado na contemplação de umaverdade revelada, um aspecto de Deus, ou uma 'ideia' no sentidomais profundo da palavra; ele é a realização espiritual dessaideia. A alquimia, por sua vez, não é primeiramente nemteológica (ou metafisica) nem ética; ela olha ao conjunto dospoderes da alma de um ponto de vista puramente cosmológico etrata a alma como uma 'substância' que deve ser purificada,dissolvida e cristalizada novamente. A alquimia age como umaciência ou arte da natureza, em razão disso todos os estados daconsciência íntima são vias da uma única 'natureza' que englobatanta as formas externas, visíveis e corporais quanto as formasinternas e invisíveis da alma.

Por tudo isso, a alquimia não está isenta deum aspecto contemplativo. De forma alguma isso consiste emmero pragmatismo vazio de intuição espiritual. A sua naturezaespiritual e, de certo modo, contemplativa reside diretamente nasua forma concreta, na analogia entre o reino mineral e o reinoda alma; essa similaridade pode apenas ser percebida por umavisão que seja capaz de olhar as coisas materiaisqualitativamente – intimamente, num certo sentido –, e quecompreenda as coisas da alma 'materialmente' – o que quer dizerobjetiva e concretamente. Em outras palavras, a cosmologiaalquímica é essencialmente uma doutrina do ser, uma ontologia.O símbolo metalúrgico não é meramente um improviso, umadescrição aproximada do processo interior; como todo símbologenuíno, é uma espécie de revelação.

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Com esse modo 'impessoal' de olhar para omundo da alma, a alquimia coloca-se em uma relação muitomais próxima com o 'caminho do conhecimento' (gnosis) do quecom o 'caminho do amor'. Porque é prerrogativa da gnosis – nosentido genuíno, e não no herético, da expressão – reconquistar aalma individual 'objetivamente', em lugar de experimentá-laapenas subjetivamente. Daí porque trata-se de um misticismofundado no 'caminho do conhecimento', que por acaso usoumodos de expressão alquímicos, se de fato não assimilou de fatoas formas da alquimia com os graus e os modos de seu próprio'caminho'.

A expressão 'misticismo' vem de 'segredo'ou 'afastamento' (do grego myein); a essência do misticismoimpede uma interpretação meramente racional, e isso soa bem nocaso da alquimia.

*

Outra razão por que a doutrina alquímicase esconde em enigmas é que ela não é feita para todos. A 'arterégia' pressupõe uma compreensão além da ordinária, e tambémum certo tipo de alma, sem os quais a prática envolve perigosrelevantes para a alma. 'Não se reconhece', escreve Artephius,um famoso alquimista da Idade Média11, 'que a nossa arte écabalística12? Com isso eu quero dizer que ela é transmitidaoralmente e é repleta de segredos. Mas você, pobre e iludidodiscípulo, você é tão ingênio a ponto de acreditar que podemosensinar clara e abertamente os maiores e mais importantes detodos os segredos, ao ponto de você poder interpretar nossaspalavras literalmente? Eu lhe asseguro, de boa-fé (porque eu nãosou tão ciumento como outros filósofos), que quem interpreteliteralmente o que os outros filósofos (isto é, os outrosalquimistas) escreveram, perder-se-ão a si próprios nos recessosde um labirinto do qual eles nunca escaparão, e quererão o fio de

11Artefius pode ser o nome latinizado de um autor árabe desconhecido (Veja E. von Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der Alchemie, Berlín, 1919). Provavelmenteviveu antes do ano 1.250.12“Cabalístico” significa, aqui, de acordo com a etimologia da palavra,“transmitido oralmente”.

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Ariadne para mantê-los no caminho correto, e levá-los comsegurança para fora...'13 E Synesios14, que provavelmente viveuno séc. IV d. C., escreveu: '(Os verdadeiros alquimistas) apenasse expressam por símbolos, metáforas e similares, assim elesapenas podem ser compreendidos pelos santos, pelos sábios epor almas dotadas de entendimento. Por essa razão, elesobservaram, em seus trabalhos, um certo caminho e uma certaregra, de tal modo que o homem sábio possa entender e, talvezapós alguns tropeços, atingir tudo o que é aí descritosecretamente'15. Finalmente Geber, que resume toda a ciênciaalquímica medieval na sua Summa, declara: 'Não se pode exporesta arte por palavras obscuras apenas; por outro lado, não sepode explicá-la tão claramente que todos possam compreendê-la.Por isso eu a ensino de um modo que nada permanece escondidoao homem sábio, embora possa repercutir em mentes medíocrescomo algo obscuro; os ignorantes, por sua vez, nãocompreenderão nada...'16. Alguns podem se surpreender com ofato de que, apesar dessas advertências, das quais muitos outrosexemplos podem ser fornecidos, muitas pessoas – especialmentenos séc. XVII e XVIII – tenham acreditado que através do estudodiligente dos textos alquímicos seriam capazes de encontrar umafórmula de fazer ouro. É verdade que os autores alquímicosfrequentemente deixam a entender que eles preservam o segredoda alquimia apenas para prevenir que alguém indigno adquiraum poder perigoso. Eles assim fazem uso de uma inevitávelequívoco para manter pessoas desqualificadas à distância.Ademais eles nunca falaram das finalidades aparentementemateriais de sua arte, sem mencionar ao mesmo tempo averdade. Quem quer que se tenha motivado por paixões terrenasfalhará automaticamente em compreender o essencial dequalquer explicação. Assim, no Hermetc Triumph está escrito: 'Apedra filosofial' (com a qual se pode transformar metal em ouro)concede vida longa e imunidade a doenças àquele que a possui, eatravés desse poder traz mais ouro e prata do que todos os maispoderosos conquistadores tiveram entre eles. Ademais, esse

13 Bibl. des Phil. Chim.14Tem-se discutivo se são a mesma pessoa este Sinésio e o homônimo Bispo deCirene (379-415), que fui discípulo da platônica Hipatia de Alejandría.15 Bibl. des Phil. Chim.16 Ibid.

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tesouro tem a vantagem sobre todos os outros nesta vida,especificamente o de que aquele que o usufrui será perfeitamentefeliz – a mera visão disso o faz feliz – e nunca será assaltadopelo medo de perdê-lo.'17 A primeira assertiva aparenta confirmara interpretação externa da alquimia, enquanto a segunda indica,tão claro quanto desejável, que a posse que aqui se discute éinterior e espiritual. O mesmo se encontra no já mencionado noThe Book of Seven Chapters: 'Com a ajuda do Deusmisericordioso, esta pedra (filosofal) libertará você e o protegerádas mais severas doenças; também o protegerá da tristeza e dosproblemas, e especialmente contra tudo o que puder prejudicar ocorpo e a alma. Levará você das trevas à luz, do deserto à casa eda indigência à riqueza.'18 O duplo sentido que se percebe emtodas essas assertivas está em relação com a frequentementemencionada intenção de ensinar o 'sábio' e de confundir o 'tolo'.

Porque o modo de expressão dosalquimistas, com todo o seu taciturno 'hermetismo', não é umainvenção arbitrária, mas algo inteiramente autêntico, Geber foicapaz de dizer, em um apêndice à sua famosa Summa: 'Quandoeu parecia falar mais clara e abertamente sobre nossa ciência, narealidade me expressei de modo mais obscuro, e ocultei o objetode meu discurso com maior intensidade, e ainda a despeito detudo isso, nunca revesti o trabalho alquímico com alegorias ouenigmas, mas tratei disso com palavras claras e inteligíveis, edescrevi com honestidade, tanto quanto eu o conhecia e aprendipor inspiração divina...' Por outro lado, outros alquimistas,propositadamente, compuseram seus textos em uma forma talque a leitura deles proporciona a 'separação das ovelhas doscabritos'. O último trabalho mencionado é um exemplo disso,pois Geber diz no mesmo apêndice: 'Por esse meio, declaro quenesta Summa não ensinei nossa ciência sistematicamente, mas aespalhei aqui e ali em vários capítulos; porque se eu a houvesseapresentado numa ordem lógica e coerente, o mal-intencionado,que poderia usurpar esse conhecimento, seria capaz de aprendertão facilmente como as pessoas de boa-fé...' Se alguém estuda deperto a intenção aparentemente metalúrgica da exposição deGeber, descobrirá no meio das descrições mais ou menos

17 Ibid.18 Ibid.

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artesanais dos procedimentos químicos consideráveis saltos depensamento: por exemplo, o autor, que não havia mencionadopreviamente uma 'substância' (em conexão com o 'trabalho'), derepente dirá: 'Agora pegue essa substância, que você conhecesuficientemente bem, e a coloque no recipiente...' Ou de repente,depois salientar que os metais não são transmutados em sentidoexterior, ele fala de um 'remédio que cura todos os metaisdoentes', transformando-os em prata e ouro. Em cada uma dessasocasiões, a compreensão é rudemente levada ao colapso, e issode fato é o propósito de uma exposição dessa espécie. Odiscípulo é levado a experimentar diretamente os limites de suaprópria razão (ratio). Então, finalmente, como Geber disse, elepode olhar para dentro de si mesmo: 'Voltando-me para mimmesmo, e meditando no caminho no qual a natureza produzmetais no interior da terra, percebo aquela real substância com aqual a natureza nos preparou, de modo a permitirmos aperfeiçoá-las na terra...' Aqui alguém notará uma certa similaridade com ométodo do Zen Budismo, que procura transcender os limites dafaculdade mental, através da meditação concentrada em certosparadoxos enunciados por um mestre.

Este é o limite espiritual que os alquimistasdevem ultrapassar. Os limites éticos, como temos visto, é atentativa de buscar a arte alquímica apenas por conta do ouro. Osalquimistas insistem constantemente que o grande obstáculo parao seu trabalho é a cobiça. Esse vício é para sua arte o que oorgulho é para 'o caminho do amor', e o que o auto-engano é parao 'caminho do conhecimento'. Aqui a cobiça é simplesmenteoutro nome para o egoísmo, para o apego do próprio ego nocaminho da paixão. Por outro lado, a exigência de que odiscípulo de Hermes deva apenas procurar transmutar elementoscom a intenção de ajudar os pobres necessitados – ou à próprianatureza necessitada – relembra a promessa budista de procurar ailuminação mais alta apenas em vista da salvação das criaturas.Somente a compaixão nos liberta da astúcia do ego, que de todomodo procura apenas olhar para si próprio.

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Pode ser objetado que a minha tentativa de

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explicar o significado da alquimia é uma violação do primeiropressuposto alquímico, especificamente a necessidade dereservar os ensinamentos ao seu próprio domínio. A isso pode serrespondido que, em todo caso, é impossível exaurir por meraspalavras o significado dos símbolos que contêm a chave para omais íntimo segredo da alquimia. O que pode ser explicado emlarga medida são as doutrinas cosmológicas fundamentais da artealquímica, a sua visão do homem e da natureza, e também o seumodo geral de proceder. E mesmo se alguém for apto ainterpretar todo o trabalho hermético, sempre haverá algodeixado de lado, que nenhum trabalho escrito pode transmitir, eque é indispensável para a perfeição do trabalho. Assim comotoda arte sagrada, no sentido genuíno do termo (como todo'método' que pode conduzir a uma realização dos altos estados deconsciência), a alquimia depende de uma iniciação: a permissãopara empreender o trabalho deve ser obtida geralmente de ummestre, e apenas em instâncias raras, quando as correntes dehomem a homem tenham sido quebradas, pode acontecer que ainfluência espiritual salta miraculosamente sobre o abismo. Nodiálogo entre o rei Khalid e Morienus, foi dito a esse respeito: 'Ofundamento dessa arte é que quem quer que deseje ultrapassá-ladeve receber os ensinamentos de um mestre... Também énecessário que o mestre a pratique em frente ao discípulo...Quem quer que conheça a sequência desse trabalho e já o tenhaexperimentado por si próprio não pode ser comparado comaquele que apenas o viu em livros...'19. E o alquimista DenisZachaire20 escreveu: 'Acima de tudo, gostaria que isso fossecompreendido – caso haja alguém que ainda não aprendeu – queessa filosofia divina ultrapassa em muito o poder humano;menos ainda pode ser adquirida através de livros, a menos queDeus a introduza dentro dos corações pelo poder do seu EspíritoSanto, ou nos tenha ensinado da boca de um homem vivo...'21

19 Ibid.20 Alquimista francês do século XVI.21 Bibl. des Phil. Chim. II.

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CAPÍTULO 3

A SABEDORIA HERMÉTICA

A perspectiva do hermetismo origina-se davisão de que o universo (ou macrocosmo) e o homem (ou omicrocosmo) correspondem-se como reflexos; o que quer quehaja em um deve também, de alguma maneira, estar presente nooutro. Essa correspondência pode ser melhor compreendidareduzindo-a ao relacionamento mútuo de sujeito e objeto, deconhecedor e conhecido. O mundo, como objeto, aparece noespelho do sujeito humano. Embora esses dois polos possam serdistinguidos teoreticamente, eles contudo nunca podem serseparados. Cada um deles apenas pode ser concebido em relaçãoao outro.

Para o bem da clareza, é necessárioexaminar os vários significados que podem ser dados ao termo'sujeito'. Se se diz que a perspectiva que o homem tem douniverso é 'subjetiva' isso geralmente significa que a perspectivaem questão depende da particular posição do homem no espaço eno tempo, e do maior ou menor desenvolvimento de suahabilidade e conhecimento; a dependência 'subjetiva' é aquiaquela de um indivíduo ou de um grupo de pessoas limitadotemporal ou espacialmente. Contudo, não é meramente limitadoem cada caso: é especificamente limitado em si mesmo, e nessesentido não há algo como um conhecimento puramente subjetivodo mundo colocado fora da esfera do sujeito humano. Nem aconcordância de todas as possíveis observações individuais nemo uso de significados que amplia o alcance dos juízos podem iralém deste âmbito, que condiciona tanto o mundo como umobjeto reconhecível, como o homem como um ser que conhece.A coerência lógica do mundo – que faz de suas múltiplasaparências um todo mais ou menos palpável – pertence tanto aomundo como à natureza unitária do sujeito humano. Apesardisso, todo conhecimento, embora possa ser interpretado peloindivíduo ou pela espécie, tem algo de absoluto. Do contrário,não haveria ponte do sujeito ao objeto, do 'eu' para o 'tu', nãohaveria unidade atrás dos inúmeros 'mundos' como vistos pelos

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diversos e muito grandemente variáveis indivíduos. Esseelemento incondicional e imutável, que é a raiz do 'conteúdo deverdade' mais ou menos escondido em toda porção deconhecimento – e sem o qual não seria conhecimento emabsoluto – é o puro Espírito ou Intelecto, que como conhecedor econhecido estão absoluta e indivisivelmente presentes em todoser.

De todos os seres neste mundo, o homem éo mais perfeito reflexo do universal – e, no que diz respeito à suaorigem, divino – Intelecto, e nesse respeito ele pode serconsiderado como o espelho ou a imagem total do cosmos.

Façamos uma pausa por um momento paraconsiderar as diferentes realidades que encaram como umespelho: primeiro e principalmente, há o Intelecto Universal ou“Sujeito Transcendental”, cujo objeto não é apenas o mundofísico aparente, mas também o mundo secreto da alma – tantoquando a razão; as operações da razão podem ser objeto deconhecimento, ao passo que o intelecto universal é incapaz dequalquer objetivação que seja. É verdade que o Intelecto temconhecimento direto e imediato de si mesmo, mas esseconhecimento está para além do mundo das distinções, então doponto de vista da percepção distintiva (dividida que está entreobjeto e sujeito), parece inexistente. Um pouco diferente é osujeito humano, dotado que está com as faculdades dopensamento, imaginação e memória, e dependente da percepçãosensorial, daí que ele, o sujeito humano, tem como objeto todo omundo corpóreo. É do Intelecto Universal que o sujeito humanoextrai sua capacidade de conhecimento. Finalmente hápropriamente o homem, composto de espírito (ou intelecto),alma e corpo, que são tanto parte do cosmos que é objeto de seuconhecimento, e que também, em virtude de sua especialcategoria (sua natureza eminentemente espiritual), aparece comoum pequeno cosmos dentro de um cosmos maior, do qual ele é acontrapartida, como uma imagem refletida. Assim, a doutrina dacorrespondência recíproca do cosmos e do ser humano é tambémfundada na ideia do Intelecto Transcendente e único, cujorelacionamento com o que é comumente chamado de 'intelecto'(ou simplesmente razão) é como a de uma fonte de luz para a sua

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reflexão para um meio limitado22. Essa ideia, que é uma ponteentre cosmologia (a ciência dos cosmos) e a metafísica pura23

não é de modo algum uma prerrogativa especial do hermetismo,embora ela seja exposta de um modo particularmente claro nosescritos de Hermes Trismegisto, o 'Três vezes grande Hermes'.

Em um desses escritos está dito a respeitodo Intelecto ou Espírito: 'O Intelecto (nous) se origina dasubstância (ousia) de Deus, na medida em que se pode falar deDeus tendo uma substância24; de que natureza essa substância éapenas Deus pode saber exatamente25. O Intelecto não é parte dasubstância de Deus, mas irradia deste como luz resplandecentevinda do sol. Nos seres humanos esse Intelecto é Deus...”26.

Não se deve deixar enganar pelo inevitáveldefeito da analogia aqui empregada. Quando alguém fala deirradiação ou resplandecência do Intelecto de sua fonte divinanão se quer significar alguma espécie de emanação material.

No mesmo livro está dito que a alma(psyque) está presente no corpo do mesmo modo que o Intelecto(nous) está presente na alma, e como a Palavra de Deus (Logos)está presente no Intelecto. (Vale dizer, pelo contrário, que ocorpo está na alma como a alma está no espírito ou intelecto, e oespírito está na Palavra). Deus é chamado o Pai de tudo.

Será visto quão próximo essa doutrina estáda teologia joanina – fato que explica como o círculo cristão daIdade Média foi capaz de ver nos escritos do CorpusHermeticum (assim como naqueles de Platão), as sementes pré-cristãs do Logos27.

Embora a doutrina da unidade

22O entendimento se parece a uma lente condensadora que projeta a luz do espíritoem uma direção determinada e sobre um campo limitado.23Entendemos por Metafísica a ciência do não-criado. A maior parte da“Metafísica” aristotélica é, simplesmente, cosmologia. Distintivo da verdadeiraMetafísica é seu caráeter “apofático”.24Traduzimos ousía por substância, de acordo com os usos da Escolástica. Narealidade, aqui se trata da essência de Deus.25Vale dizer, a substância ou o ser de Deus não pode ser reconhecida por nada queesteja fora de si mesmo, pois está além de toda dualidade e de toda diferenciaçãoentre sujeito e objeto.26Corpus Hermeticum, trad. por A.-J. Festugière, París, “Les Belles Lettres”, 1945.Capítulo “D'Hermes Trismégiste: sur l'Intellect commun, à Tat”.27 Veja os escritos herméticos, entre outros, de Santo Alberto Magno.

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transcendente do Intelecto seja afirmada por todas as escriturassagradas, não obstante ela permanece esotérica naquilo que nãopode ser transmitida para todos sem um risco de umasimplificação enganosa. O principal perigo é que no seu esforçopara compreender a imaginação pode conceber a unidade doespírito e do intelecto como uma espécie de unidade material.Isso pode conduzir à obscuridade da distinção entre Deus e acriação, assim como àquela entre a singularidade essencial decada criatura individual.

O Intelecto Universal não é numericamenteum, mas um na sua indivisibilidade. Desse modo estácompletamente presente em cada criatura, e a partir dele cadacriatura adquire sua singularidade. Porque não há nada quepossua mais unidade, completude e perfeição do que aquilo peloqual é conhecido.

Um exemplo dessa falsa visão a respeito doIntelecto único presente em todos os seres é fornecida pelaopinião filosófica de que quando um ser espiritual, individual,deixa o corpo no momento da morte, ele imediatamente retornapara o Intelecto Universal, daí que não há sobrevivênciaseparada após a morte. Entretanto, aquilo que durante a vidaconfere uma limitação à individualidade na luz infinita dointelecto não é o corpo, mas a alma. Agora a alma sobrevive apósa separação do corpo, mesmo quando, durante a vida, ela tenhasido inteiramente orientada em direção ao corpo e de fatoaparentou não haver nada além do que isso28.

Desde que o Intelecto, como polo cognitivoda existência universal, não é acessível ao conhecimentodiscursivo, o conhecimento dele não transformará a experiênciado mundo – pelo menos não no campo dos fatos. Oconhecimento essencial pode, entretanto, determinar aassimilação interior dessa experiência, i.e., a apreensão de suaverdade. Para a ciência moderna, 'verdades' (ou leis gerais) –sem as quais a simples experiência será nada mais do que areiasmovediças – são apenas descrições simplificadas de aparências,úteis mas sempre 'abstrações' provisórias. Para a ciênciatradicional, por outro lado, a verdade é uma expressão ou

28 Daí os tormentos que, ao abandonar o corpo, sofrem as almas que só sepreocuparam com o corporal.

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'cristalização' (em uma forma acessível à razão) da possibilidadecontida no Intelecto Universal, e desde que essa possibilidadeestá contida permanente e imutavelmente no Intelecto, ela podetambém ser manifestada no mundo exterior. A ideia da verdade éassim muito mais absoluta na tradição do que na ciênciamoderna – sem, contudo, que as formas conceptuais de verdade,se tenham transformado em um fim em si mesmas, já que acaptação da verdade pela razão e pela imaginação não é nadamais do que um símbolo das possibilidades contidas no Intelectoeterno.

De acordo com o ponto de vista moderno, aciência é construída exclusivamente com base na experiência.Para o ponto de vista tradicional a experiência não é nada sem onúcleo de verdade que vem do Intelecto, e em torno do qual aexperiência individual pode-se cristalizar. Assim, a ciênciahermética é baseada em determinada tradição simbólica quederiva da revelação espiritual. A expressão 'revelação' é usadaaqui no sentido mais largo do que dado pela teologia, mas nãonum sentido puramente poético. Em termos hindus, o processoespiritual em questão pode ser considerado como uma revelaçãode 'segundo grau', como smriti em lugar de shruti. Em termoscristãos, pode-se falar de uma inspiração do Espírito Santo,endereçada não a toda a comunidade de fiéis, mas apenas adeterminadas pessoas capazes de um certo modo e grau decontemplação. Foi nesse sentido, de qualquer modo, que osalquimistas cristãos consideravam a herança do hermetismo. Ohermetismo é, na verdade, um ramo da revelação primordial que,persistindo através das eras, estendeu-se também ao mundocristão e islâmico.

As possibilidades imutáveis contida noIntelecto não podem ser absorvidas imediatamente pela razão.Platão chamou essas possibilidades de ideias ou arquétipos.Faríamos bem em preservar o real significado dessas expressões,e não aplicá-las a meras generalizações – que, no melhor doscasos, não são mais que reflexos das verdadeiras ideias – nem aocampo puramente psicológico, conhecido como 'inconscientecoletivo'. Essa última distorção é especialmente enganosa,porque envolve uma confusão da indivisibilidade do intelectocom a impenetrabilidade da profundidade passiva e obscura da

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alma. Os arquétipos são encontrados não abaixo, mas acima donível da razão. E tanto é assim que o que quer que a razão possadiscernir a respeito deles não passa de um aspecto severamenterestrito daquilo que eles são em si mesmos. Apenas a união daalma com o Espírito – ou o seu retorno à unidade indivisível doespírito – opera uma certa reflexão das possibilidades eternasque têm lugar na consciência formal. O conteúdo do Intelecto,que é, por assim dizer, a 'faculdade' do Espírito, assimrepentinamente 'cristaliza-se', na forma de símbolos, na razão ena imaginação.

No livro do Corpus Hermeticum,conhecido como 'Poimandres' está descrito como o IntelectoUniversal revela-se a si mesmo a Hermes-Thoth: '... Com essaspalavras, ele olhou-me longamente na face, o que me fezestremecer. Então, assim que ele levantou sua cabeça novamente,eu vi como, no meu próprio espírito (nous), a luz que consiste deinumeráveis possibilidades transformou-se um infinito Todo,enquanto o fogo, cercado e contido por um poder sagrado,atingiu sua posição imóvel: foi isso o que eu fui capaz deapreender racionalmente desta visão... Enquanto eu estavacompletamente fora de mim mesmo, ele disse novamente: vocêagora, no intelecto (nous) viu o arquétipo, a origem e o começoque nunca termina...'29

Um símbolo, nos planos da alma e docorpo, é aquilo que reproduz os arquétipos espirituais. Emconexão com esta reflexão de realidades superiores em planosinferiores, a imaginação possui certa vantagem sobre opensamento abstrato. Em primeiro lugar, é capaz de múltiplasinterpretações; ademais, não é tão esquemática como opensamento abstrato e então, na medida em que se 'condensa' emuma imagem pura, baseia-se na correspondência inversa queexiste entre o terreno corporal e espiritual, de acordo com a leisegundo a qual 'o que está embaixo é reflexo do que está acima',como está colocado na Tábua de Esmeralda.

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Na medida em que o intelecto humano,

29Corpus Hermeticum, op. cit., capítulo “Poimandrès”.

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como resultado de uma união mais ou menos completa com oIntelecto Universal, afasta-se da multiplicidade das coisas, e porassim dizer sobe em direção à unidade indivisa, assim oconhecimento da natureza que o homem obtém de tal intuiçãonão pode ser de uma espécie puramente racional e discursiva.Para ele o mundo agora se mostra transparente: nessa aparênciaele vê o reflexo de 'arquétipos' eternos. E mesmo quando essaintuição não é imediatamente presente os símbolos que saltamdele, contudo desperta a memória ou a 'recordação' dessesprotótipos. Esta é a visão hermética da natureza.

O que é decisivo para este ponto de vistanão é a natureza mensurável e inumerável das coisas,condicionada que é pelas causas e circunstâncias temporais; éprecisamente suas qualidades essenciais, que podem serimaginadas como os fios verticais (urdidura) de um tecido,tomado como representação do mundo, na qual se entrelaçam osfios horizontais (trama), fazendo assim do tecido um materialunificado e compacto. Os fios verticais são o conteúdo imutávelou 'essência' das coisas, enquanto os fios horizontais representamsua natureza 'substancial', dominada pelo tempo, espaço econdições similares30.

Dessa comparação pode-se ver como avisão do cosmos baseada na tradição espiritual num senso'vertical' pode estar correta, ainda que ela possa parecer inexatanum sentido 'horizontal' – vale dizer, num sentido de observaçãodiscursiva e analítica. Assim, por exemplo, não é necessárioconhecer todo metal existente em vista de conhecer diretamenteo arquétipo do metal em si mesmo. É suficiente levar emconsideração os sete metais mencionados pela tradição – ouro,prata, cobre, estanho, ferro, chumbo e mercúrio – em vista decompreender a possível gama de variações dentro de um tipo.(Aqui nos preocupamos apenas com o aspecto qualitativo dometal). É o mesmo que considerar o conhecimento dos quatroelementos31, que na alquimia desempenha um papel tãoimportante. Esses elementos não são os constituintes químicos

30 Sobre o simbolismo do tecido, veja René Guénon, Le Symbolisme de la Croix,París, 1931.

31 Os hindus falam de cinco elementos, pois incluem o éter (akasha), aquintessência dos alquimistas.

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das coisas, mas são as determinações qualitativas da matéria emsi mesma. Tanto que no lugar de se falar em terra, água, ar efogo, pode-se também falar no modo sólido, líquido, aéreo ouígneo da existência dos materiais.

A evidência analítica de que a águaconsiste em duas partes de hidrogênio e de uma parte deoxigênio não nos diz absolutamente nada sobre a essência doelemento água. Pelo contrário, esse fato, que apenas pode serconhecido circunstancialmente, e por assim dizer abstratamente,na realidade obscurece a qualidade essencial 'água'. Além disso,a abordagem científica a rigor limita a realidade em questão aum plano determinado, apesar de que a intuição imediata esimbólica do elemento desperta um eco que ressoa através dosníveis de consciência, a partir do corpóreo ao espiritual.

A ciência moderna 'disseca' as coisas, coma intenção de possuir a manejá-las no seu próprio nível. Esseobjetivo está acima de toda a tecnologia. O racionalismo apega-se à crença de que através dos materiais e das análisesquantitativas, pode-se descobrir a verdadeira natureza das coisas.Característico desse ponto de vista é a opinião de Descartas deque as definições escolásticas do homem como um 'animaldotado de razão' não diz nada a respeito dele, a não ser atravésdo estudo de seus ossos, tendões, tecidos etc32. Como se umauma substância não fosse mais próxima da realidade, quantomais ampla fosse! O entendimento analítico é, em últimainstância, nada mais que uma faca que investiga na articulaçãodas coisas. Fazendo assim ele permite uma visão mais claradelas. Mas a essência não é acessível à mera dissecação. Goetheentendeu isso muito bem quando disse que o que a natureza nãonos revelou na luz do dia não pode ser retirado à força dela pelas'alavancas e parafusos'.

*

A diferença entre a cosmologia tradicional,a exemplo da cosmologia hermética, e a ciência analítica,dominada apenas pela razão, mostra-se mais claramente na sua

32Descartes, La recherche de la Vérité par les lumieres naturelles, citado emMaurice Dumas, Histoire de la Science. «Encyclopédie de la Pléiade», pág. 481.

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perspectiva astronômica. A mais antiga concepção do mundo, naqual a Terra é vista como um disco coberto por um céu deabóboda estrelada, está cheia de significados os mais gerais eprofundos – significados que são tanto menos obsoletos quantoesta imagem do mundo continua sendo verdade, não sendo outracoisas que não a experiência natural e imediata de todo serhumano. O céu, por seu movimento o medidor de tempo, adeterminação do dia e da noite e das estações, a causa do subir ebaixar dos luminares, o distribuidor das chuvas, manifesta o poloativo e masculino da existência. A Terra, por outro lado, que porinfluência do céu se fertiliza, traz à tona plantas e nutre todas ascriaturas vivas, corresponde ao polo passivo e feminino. Esserelacionamento entre o céu e a Terra, da existência ativa epassiva, é o arquétipo e modelo de várias dualidades analógicas,tal como o par conceitual 'forma essencial' (eidos, forma) e'matéria' ou 'substância' (hyle, materia), e a dualidade,compreendida à luz de Platão, do espírito ou intelecto (nous) ealma (psyche). O movimento circular dos céus pressupõe aexistência de eixos imóveis e invisíveis, correspondentes aointelecto, que está presente imutavelmente em todas ascircunstâncias do mundo. Do mesmo modo, o percurso do Soltraça uma cruz regular composta de pontos cardinais – Norte eSul, Leste e Oeste – após o que as qualidades cósmicas quegovernam toda a vida distribuem-se respectivamente como friose quentes, secos e úmidos. Podemos ver mais tarde como essaordem é repetida dentro do microcosmo da alma humana.

O percurso solar, na medida em queaparece sobre o horizonte, segue um círculo cada vez mais largodo solstício de inverno ao solstício de verão, e então um círculocada vez mais curto, até que todo o ano se transcorra.Basicamente isso corresponde a um espiral que se vai 'liberando',e que após várias voltas transforma-se numa espiral que se vai'enrolando' – uma imagem que foi retratada numa variedade desinais, como a espiral dupla,

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a espiral de dois vórtices, conhecida comoo yin-yang chinês, e não menos importante no grupo de Hermes(os caduceus) nos quais duas cobras são entrelaçadas em umeixo – o eixo do mundo33. A oposição se manifesta nas duas fasesdo curso solar (o ascendente e o descendente), correspondendo,em um certo sentido, à oposição entre céu e Terra – com adiferença de que aqui os dois lados são móveis, e então no lugarde uma oposição de causas, trata-se de uma questão dealternância de forças. Céu e Terra estão acima e abaixo; os doissolstícios estão um no Sul e outro Norte; eles estão relacionadosum com o outro como expansão e contração. Nós podemos maisuma vez nos depararmos com essa oposição, que tem váriossignificados, em conexão com o magistério alquímico, onde elaaparece como oposição entre o enxofre e o mercúrio.

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33A esse respeito, René Guénon, Le Symbolisme de la Croix y Julius Schwabe,Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951.

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Uma forma irlandesa ou anglo-saxônica dos dois dragões naárvore do universo. A suástica no tronco da árvore (que

corresponde ao eixo universal) representa o movimento doscéus. Cada dragão é composto de doze sóis e estrelas, que

podem corresponder aos doze meses.De uma minuatura do séx. XVIII, extraída das 'Cartas paulinas

de Northumberland', na Biblioteca da Universidade deWürzburg.

A concepção do universo de Ptolomeu (na

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qual a Terra, como um globo, representa o centro, ao redor doqual os planetas giram em uma variedade de órbitas e esferas,cercados pelo céu de estrelas fixas e, na parte externa, peloempíreo sem estrelas) não afasta o significado da antigaconcepção de universo, e nem retira a experiência imediata que oser humano tem dela. Ademais, isso coloca em jogo umsimbolismo diferente, especificamente aquele do carátercompreensivo do espaço. A graduação das esferas celestes refletea ordem ontológica do mundo, segundo a qual cada nível deexistência procede de um mais alto, de modo que um nívelsuperior 'contém' o inferior, assim como a causa 'contém' oefeito. Assim, quanto maior for a esfera celeste na qual asestrelas se movem, mais puro, menos condicionado e maispróximo da origem divina será o nível de consciência a que issocorresponde. O empíreo sem estrelas, que envolve os céusestrelados e que aparenta compartilhar seu movimento com ofirmamento das estrelas fixas (a rotação mais rápida e maisregular de todas as esferas), representa o primeiro motor(primum mobile) e assim também o Intelecto Divino que abrangetudo.

Essa é a concepção de mundo de Ptolomeuadotado por Dante. Antes dele já se encontrava em textos árabes.Há também um manuscrito hermético anônimo, do séx. XII,escrito em latim e provavelmente de origem catalã34, no qual osignificado espiritual das esferas celestes que se abarcam éapresentada de uma forma muito parecida com a da DivinaComédia. A ascensão através das esferas é descrita como umasubida através da hierarquia dos níveis espirituais (ouintelectuais), por meio da qual a alma, que sucessivamenteassimila isso, gradualmente se desloca dos limites doconhecimento discursivo às formas de uma visão indiferenciadae imediata na qual sujeito e objeto, conhecedor e conhecido sãoum. Essa descrição é ilustrada por desenhos que demonstram asesferas celestes como círculos concêntricos, através dos quais ohomem sobe, como se estivesse nas escadas de Jacó, à mais alta

34Publicado em M. T. d'Alverny, Les pélégrinations de l’Ame dans l'autre Monded’après un anonyme de la fin du XIIè siècle, en «Archives d'Histoire doctrinale etlittéraire du Moyen Age», 1940-1942. Segundo investigações posteriores de M.T.d’Alverny, o manuscrito que se conserva na Biblioteca Nacional de Paris foi escritoprovavelmente na Bolonha, inspirado em um antecedente espanhol.

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esfera, o Empíreo, no qual Cristo está sentado em seu trono35. Oscírculos celestes são complementados em uma direçãodescendente – ou seja, em direção à Terra – pelos elementos.Próximo à esfera lunar está o círculo do fogo; abaixo está ocírculo do ar, que confina a água, que imediatamente envolve aTerra. Vale ressaltar que esse escrito anônimo, cujascaracterísticas herméticas são evidentes, reconhece a validade detodas as três religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo eIslamismo. Isso demonstra claramente como a ciência hermética,graças à sua linguagem cosmológica simbólica pura, baseada nanatureza, pode ser combinada com qualquer religião genuína,sem conflitos com os respectivos dogmas.

Como a revolução do oitavo céu, ofirmamento de estrelas fixas é a medida básica do tempo. Entãoo céu externo sem estrelas (que confere ao oitavo o seumovimento ligeiramente atrasado, em razão da assim chamadaprocessão dos equinócios) deve representar a linha divisóriaentre tempo e eternidade, ou entre todos os modos de duraçãomais ou menos condicionados36 e o eterno 'agora'. A alma, que érepresentada como ascendendo através das esferas, uma vezalcançado o Empíreo, deixará para trás o mundo damultiplicidade e das formas e condições mutuamente exclusivase alcançará o Ser indiviso e todo envolvente. Dante representaessa passagem – que envolve uma completa reversão dopanorama – confrontando a ordem cósmica das esferasconcêntricas, que amplia sucessivamente da limitação da Terra àInfinidade Divina, com uma ordem invertida, cujo centro é Deus,e ao redor de quem o coro dos anjos gira, em cada vez maiorescírculos. Eles giram mais rapidamente onde eles estão maispróximos da origem divina – em contraposição com as esferascósmicas, cujo aparente movimento cresce em proporção comsua distância do centro terrestre. Com essa 'transformação' daordem cósmica em ordem divina, Dante antecipa o profundosignificado da concepção heliocêntrica.

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35 Veja as lâmitas l e 2; e a explicação correspondente adiante.36 Segundo Averróis, o movimento ininterrupto do ciclo sem estrelas é a interseção

entre tempo e eternidade.

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Figuras 1 e 2. A ascensão da alma através

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das esferas. Duas representações análogas de um manuscritohermético anônimo do final do séc. XII (MS Latin 3236A daBiblioteca Nacional de Paris; publicado pela primeira vez porM. T. d´Alverny nos Arquivos de História doutrinal e literal daIdade Média, 1940-42).

A página 90 mostra em seu topo Cristosentado no trono, sobre as esferas. Ao lado estão as palavras:'Creator omnium Deus –Causa prima– Voluntas divina –Voluntas divina' (O Criador de todas as coisas, Deus – aPrimeira causa – a Vontade divina – a Vontade Divina). Os doiscírculos mais altos contêm as palavras 'forma em potência' e'matéria em potência'. Estes são os dois polos forma e materiaprima, Ato Puro e Receptáculo Passivo, que são aquiconcebidos como possibilidades contidas no Ser Puro, e aindanão manifestadas. Esta é a razão por que eles repousam do ladode fora do universo espiritual, quando ele é visto na suarealidade manifestada ou criada, que é representada pelopróximo círculo: 'Causatum primum esse creatum primumprincipium omnium creaturarum continens in se creaturas'(Primeiro ser criado, princípio de todas as criaturas, contendotodas as criaturas em si mesmo). Como estágios dentro doEspírito Universal, seguem-se dez faculdades intelectuais oucognitivas ('intelligentiae'), aos quais correspondem um númerosimilar de coros angelicais. Curiosamente a ordem na qual elesaparecem é exatamente oposta à doutrina de Dionísio a respeitoda hierarquia celeste; de cima para baixo, eles são: 'Angeli','Archangeli', 'Troni', 'dominationes', 'virtutes', 'prmcipatus','potestates', 'Cherubim', 'Seraphyn' e 'ordo senorum', (coro dosanciãos). Essa inversão da ordem pode ser imputada ao erro deum copista que tivesse um esquema teocêntrico na cabeça.

Abaixo dessas dez esferas do espíritosupra-formal encontram-se quatro esferas da alma: 'Animacelestis', 'Anima rationabilis', 'Anima animalis' e 'Animavegetabilis'.

Até aqui a ordem concêntrica das esferaspretende-se puramente simbólica, enquanto que a sucessiva (ecada vez menor) esfera do mundo corporal devem serentendidas simbólica e espacialmente: o mundo corporal éenvolvido pelos seus círculos exteriores: 'Natura principium

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corporis' (Natureza como princípio dos corpos). Aí estão asesferas astronômicas, a mais externa das quais corresponde àrevolução de área dos céus: 'Spera decima – spera supremaqua: fit motus de occidente ad orientem et est principium motus'(Décima esfera – esfera superior: na qual ocorre o movimentodo Ocidente ao Oriente, e que é o princípio de todo omovimento). Dentro dela está a esfera que determina aprocessão dos equinócios: 'Spera nona –spera motus octavespere qua fit motus eius de septentrione ad meridien et econverso' (Nona esfera – que move a oitava esfera, e causa apassagem do Norte a Sul e vice-versa). A seguinte, na ordemdescendente, do Céu das estrelas fixas e das esferas planetárias:'Spera octava – spera stellata; Saturnus – spera saturni; Jupiter– spera iovis; Mars – spera martis; Sol – spera solis; Venus –spera veneris; Mercurius – spera mercurii; Luna – spera lunae.'Aí repousam os quatro elementos em círculos concêntricos, aoredor do centro da Terra (o círculo mais externo correspondetanto ao domínio dos elementos em si mesmos como ao elementosuperior fogo): 'Ignis – corpus corruptibilis quod est quatuorelementa' (Fogo – corpo corruptível consistente nos quatroelementos): 'aer'; 'acqua'; 'terra'; 'centrum mundi'.

Através desses círculos dos mundosespiritual, psíquico e corporal o homem ascende a Deus comoque por uma escada. A figura inferior continua limitada aodomínio dos elementos, e um companheiro o arrasta para cima,segurando-o pelos cabelos. Ao lado do grupo superior estáescrito: 'O mi magist[er]' (Oh, meu mestre!), ao lado dopróximo: ´[e] phebei' ('jovens´), ao lado do grupo do meio:'socii omnes' (todos os companheiros), ao lado do inferior:'cetera turba' (a multidão remanescente). Trata-seprovavelmente de uma referência a diferentes graus dasabedoria ou iniciação.

A outra miniatura, na p. 89, repete amesma ordem, dessa vez com círculos completos, mas apenascom inscrições parciais.

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A concepção universal na qual o Solrepresenta o centro, ao redor do qual estão os planetas, incluindoa Terra, girando, não é uma descoberta original da Renascença.Copérnico simplesmente ressuscitou – e sustentou comobservações – uma ideia que já era conhecida dos antigos37.Como um símbolo, a concepção heliocêntrica é o necessáriocomplemento à geocêntrica. Porque a origem divina do mundo –vale dizer, o Intelecto Único ou Espírito através do qual Deuscria o mundo – pode ser facilmente considerado como o TodoEnvolvente (correspondente a espaços ilimitados), assim comopode ser considerado como o único centro 'radiante' de todas amanifestação. Precisamente em razão de que a origem divinaestá tão acima de todas as diferenciações, cada representaçãodela deve ser complementada pela sua própria parte invertida,como se vistas em um espelho.

A concepção heliocêntrica, entretanto, é defato usada pelo racionalismo para provar que a concepçãogeocêntrica tradicional – e todas as interpretações espirituaisconectadas com ela – são puros enganos. E daí surge o paradoxode que uma filosofia que fez da razão humana a medida darealidade resultou numa concepção astronômica na qual ohomem acabou aparecendo mais e mais como um grão de areiaentre outros grãos de areia, um mero acidente sem qualquerespécie de procedência cósmica, enquanto a perspectivamedieval, baseada não na razão humana, mas na revelação e nainspiração, colocou o homem no centro do cosmos. Essaflagrante contradição é, apesar de tudo, fácil de se explicar. Oponto de vista racionalista esquece completamente que tudo o

37O sistema heliocêntrico era ensinado já por Aristarco de Samos (320-250 a.C.).Nicolau Copérnico, no prólogo dedicado ao Papa Paulo III, de sua obra Sobre aÓrbita dos Astros (1543), refere-se a Hicetas de Siracusa e a certas indicações dePlutarco. Aristóteles, em seu livro Sobre o Céu, escreveu: “Enquanto que a maioria(dos físicos) opinam que a Terra está no centro (do Universo), os filósofos itálicos,chamados pitagóricos, dissentem deles, pois afirmam que no centro está o fogo; aTerra, pelo contrário, que é um dos astros, gira ao redor do centro...” É de supor quetambém certos astrônomos hindus da Antiguidade conheciam o esquemaheliocêntrico do Universo.

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que se pode expressar a respeito do universo permanece comoconteúdo de consciência humana, e que o homem, precisamenteporque ele pode olhar para a existência física a partir de umponto de vista superior – como se ele não fosse limitado de fato aesta terra – claramente demonstra que ele é o centro cognitivo domundo, precisamente porque o homem é o portador privilegiadodo Intelecto, e portanto pode conhecer essencialmente tudo o queé, a perspectiva tradicional o coloca no centro do mundo visível,cuja posição de fato corresponde inteiramente com a experiênciasensorial imediata. Na mesma esteira, especificamente a dacosmologia tradicional, a concepção heliocêntrica, na qual ohomem é, por assim dizer, periférico ao Sol, só pode ter umsignificado esotérico, a saber aquele que Dante concebeu na suadescrição teocêntrica do mundo angélico: do ponto de vista deDeus, o homem não está no centro, mas no limite extremo daexistência.

Que a concepção heliocêntrica possaparecer mais correta a partir de um ponto de vista físico-matemático é em uma indicação de que esse ponto de vista, emsi e a seu respeito, algo de não muito humano... Ele se recusa aconsiderar o homem como um todo, como um ser composto deespírito (intelecto), alma, e corpo, em benefício de umaconsideração exclusiva do plano material quantitativo, e então setransforma em reflexo 'inferior' do ponto de vista que vê ohomem sub specie aeternitatis.

Nenhuma concepção de mundo pode estarsempre absolutamente correta, porque a realidade da qual nossaobservação toma conhecimento é condicionada, dependente, emultiplamente indefinida.

Acreditar no sistema heliocêntrico comoalgo absoluto criou um tremendo vazio: o homem foi privado desua dignidade cósmica, e foi transformado em um grão de areiasem significado entre todos os outros grãos de areia ao redor doSol, mostrou-se incapaz de realizar uma visão satisfatória eespiritual das coisas. A concepção cristã, centrada na encarnaçãode Cristo, não estava preparada para isso. Ser capaz de ver ohomem como um desaparecente nada no espaço cósmico, e aomesmo tempo como o seu centro cognitivo e simbólico, excede acapacidade da maioria.

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Mais tarde, quando o Sol foi consideradoele próprio dentro de uma corrente sem fim de milhões de outrossóis (talvez também cercados de planetas), talvez com milhares emilhões de anos-luz entre eles, nenhuma concepção, em qualquersentido real do tempo, é mais possível. A 'construção' do mundonão é mais imaginável, resultando daí que o homem perdeu a suacapacidade de se integrar num todo dotado de sentido. Isso pelomenos é o efeito frequente, nos ocidentais, da concepçãomoderna. O modo budista de ver as coisas, que sempreconsiderou o mundo como uma areia movediça, pode trazer umadiferente reação às teses científicas.

Se o conhecimento científico anda de mãosdadas com uma valoração espiritual das aparências, pode-se verno sucessivo abandono de todos os, por assim dizer, sistemasfechados, a prova de que toda visão do mundo não é nada maisdo que uma imagem ou reflexo, e como tal não é de modo algumincondicional. Para este mundo, o Sol que nossos sentidospercebem é a soma total de luz e o símbolo natural daquelaorigem divina que ilumina todas as coisas e em volta de quetodas as coisas giram. Ao mesmo tempo, entretanto, é apenas umcorpo luminoso, e como tal não é único, mas um entre outros domesmo tipo.

Aqui não é o lugar para mostrar como cadanova concepção de mundo é promovida, nem tanto pelasobservações científicas, como pela sua 'unilateralidade' lógica.Isso se aplica também à mais recente concepção de espaço. Acosmologia medieval imaginou a totalidade de espaço como umagrande esfera, imensurável, espiritualmente englobada pelos céusmais exteriores. Filósofos racionalistas consideraram que oespaço era infinito. Desde que considerado, contudo, comoextensão limitada, pode muito bem ser indeterminado, mascertamente não é infinito, o próximo passo científico conduz aum conceito praticamente inimaginável de um espaço curvofluindo de volta a si mesmo!

A homogeneidade incondicional de espaçoe tempo é abandonada pelos mais recentes matemáticos em favorde uma relação constante entre espaço e tempo. Se, contudo, oespaço é aquilo que contém tudo o que é observadosimultaneamente, e o tempo é aquilo que constitui a sucessão de

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observações, então automaticamente as estrelas fixas não estãomais separadas de nós por muitos anos-luz, mas estão situadasonde visível e simultaneamente tem o seu limite mais externo.Em face desse paradoxo, deixe-nos simplesmente dizer que emúltima instância toda concepção 'científica' de mundo écondenada a contradizer-se, ao passo em que o significadoespiritual que manifesta a si mesmo, de um modo ou de outro, atodas as coisas visíveis, e que se revela a si mesmo de modotanto mais convincente quanto mais primordial e mais adaptadaao homem a concepção for, não sofre mudanças de qualquerespécie. Se falamos aqui de um significado, não nos referimos anada conceitual. Usamos a expressão 'significado', pornecessidade e seguindo o exemplo dos escritos tradicionais, paradesignar o conteúdo imutável das coisas, que apenas o intelecto écapaz de alcançar.

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Por meio das observações precedentes,arespeito da concepção astronômica do mundo, talvez acabamosmostrando que há dois meios mutualmente opostos de olhar parao mundo ou para a natureza, num sentido amplo da palavra. Oprimeiro, fomentado pela curiosidade científica, esforça-se emdireção a uma inexaurível multiplicidade de aparências e, namedida em que se acumulam as experiências, tornam-se, em si,múltiplos e desmembrados. A outra esforça-se na direção docentro espiritual, que é ao mesmo tempo o centro do homem edas coisas, enquanto suporta a si mesmo no caráter simbólico dasaparências, a fim de pressentir e contemplar as realidadesimutáveis contidas no Intelecto Divino. Esse último ponto devista leva à simplificação, não no que diz respeito ao que sepercebe como gradação múltipla, mas com respeito àquilo queconsidere ser essencial. A mais perfeita visão com a qual ohomem pode alcançar é simples, no sentido de que sua riquezainterior é desprovida de características diferenciadas. Essa visãosuperior, ou contemplação, tem relação com um texto herméticosírio, do qual gostaríamos de citar alguns trechos, comoconclusão desse capítulo sobre o conhecimento hermético (otexto em questão fala de um espelho secreto, que está

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estabelecido atrás das sete portas, que corresponde às sete esferasplanetárias): '… O espelho é feito de modo que nenhum homempode ver-se a si mesmo materialmente nele, porque tão logo eledele se afasta, esquece sua própria imagem. O espelho representao Intelecto Divino. Quando a alma nele se vê a si mesma, eladescobre a desonra que há em si mesma, e a afasta de si. Assimpurificada, ela se assimila ao Espírito Santo, e o toma comomodelo; ela se transforma no Espírito; ela alcança paz e sempreretorna a esse estado superior, no qual se conhece (Deus) e se éconhecido por ele. Então, tendo voltado sem sombras, ela éliberta de suas próprias correntes e daquelas que elacompartilhava com o corpo... Qual é o adágio dos filósofos? –Conheça-te a ti mesmo! Isso se refere ao espelho intelectual ecognitivo. E o que é o espelho senão o Intelecto Divino eoriginal? Quando o homem olha-se a si mesmo e vê a si mesmono espelho, ele se afasta de tudo que suporta o nome de deusesou demônios, e unindo-se a si mesmo com o Espírito Santo,transforma-se em um homem perfeito. Ele vê Deus dentro de simesmo... Esse espelho está colocado além das sete portas... quecorresponde aos sete céus, além do mundo sensível, além dasdoze mansões (celestiais)... Além de tudo isso está este olho dossentidos invisíveis, este olho do Intelecto, que está onipresente ealém de todas as coisas, então se vê esse Espírito perfeito, emcujo poder tudo está contido...'.38

38 Berthelot, La Chimie au Moyen Age, París, 1893, II. 262-263.

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CAPÍTULO 4

ESPÍRITO E MATÉRIA

Para os homens da antiguidade, o que nóshoje chamamos matéria não tem o mesmo significado atual; omesmo se diga do conceito e da experiência. Isso não quer dizerque os assim chamados homens primitivos apenas enxergavamatravés de um véu de 'imaginações mágicas e compulsivas',como certos etnologistas supuseram, ou que seu pensamento era'alógico' ou 'pré-lógico'. As pedras eram tão duras quanto hoje, ofogo era tão quente quanto, e as leis da natureza, tão inexoráveisquanto. O homem sempre pensou logicamente, mesmo se, alémdos dados sensoriais, ou mesmo através deles, ele estavaacostumado também a levar em conta realidades de uma ordemdiferente. A lógica pertence à essência do homem, e a suadecomposição em imaginações compulsivas, de caráterparcialmente materialista, parcialmente sentimental, não éencontrada em pessoas 'primitivas', nem nos selvagens maisespiritualmente degenerados, mas apenas na decadência de umacultura exclusivamente urbana.

Que a matéria pudesse ser concebida comoalgo completamente afastado do espírito, como no caso, nomundo moderno, tanto na teoria como na prática – e não obstantecertas correntes filosóficas contraditórias 39 – não é de modoalgum auto-evidente. Isso é resultado de um desenvolvimentomental particular, para o qual Descartes foi o primeiro a darexpressão filosófica, sem 'inventá-lo'; de fato, foi profunda eorganicamente condicionado pela tendência geral de reduzir oespírito a mero pensamento e limitá-lo à razão discursiva, quesignifica privá-lo de toda a significação supra-mental e, portanto,também de toda presença e imanência cósmica.

De acordo com Descartes, espírito ematéria são duas realidades completamente separadas, quegraças à ordenação divina, andam juntas em apenas um ponto: o

39Certas teorias modernas que pretendem entender o desenvolvimento das formasinorgânicas e orgânicas como uma “evolução” do espírito não são, no fundo, senãouma continuação do materialismo, já que atribuem ao espírito, que em essência éimutável, um devir.

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cérebro humano. Assim, o mundo material, conhecido como'matéria', é automaticamente privado de seu conteúdo espiritual.Enquanto o espírito, por sua vez, transforma-se na contrapartidada mesma realidade puramente material, porque o que ele é em simesmo, acima ou além disso, permanece indeterminado.

Para o homem dos tempos antigos, matériaera como que um aspecto de Deus. Nas culturas que sãocomumente chamadas arcaicas, essa perspectiva era imediata, erelacionada com a experiência sensorial, porque o símbolo damatéria era a terra. Essa representava, na sua realidade perene, oprincípio passivo de todas as coisas, enquanto o céu representavao princípio ativo e geracional. Os dois princípios são como asduas mãos de Deus, e eles estão relacionados um com o outrocomo macho e fêmea, pai e mãe, e não podem ser separados umdo outro – porque em tudo o que a terra produz o céu estápresente como poder criativo, enquanto a Terra, por sua vez, dáforma e corpo às leis celestiais. Assim, o modo arcaico de ver ascoisas era 'sensível' e espiritual ao mesmo tempo, porque averdade metafísica por trás dela permanece independentementedessa simplória concepção de universo.

Para a philosophia perenis, que até achegada do racionalismo era comum tanto no oriente como noocidente, os dois princípios, o ativo e o passivo, eram, para alémde todas as manifestações visíveis, os primeiros e todo-determinantes pólos da existência. Nessa visão, a matériapermanece um aspecto ou função de Deus. Ela não é algoseparado do espírito, mas seu complemento necessário. Em simesma, ela não é mais do que a potencialidade de receber umaforma, e todos os objetos perceptíveis aí sustentam a marca dasua contrapartida ativa, o espírito ou palavra de Deus.

É apenas para o homem moderno que amatéria se transformou em uma coisa, e deixou de ser o espelhocompletamente passivo do espírito. A matéria se tornou maiscompacta, vale dizer, na medida em que agora arroga-se a simesma, sozinha, a qualidade da extensão espacial, e tudo o quese relaciona com esta. Ela se tornou massa inerte, ao contrário doespírito livre. É completamente exterior e espiritualmenteimpenetrável. É um mero fato. Na verdade, mesmo para aspessoas da antiguidade, a matéria corporal possuía esse aspecto

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contingente e relativamente não-espiritual, mas esse aspecto nãofez a mesma afirmação, mas não tinha essa pretensão de ser aúnica realidade. Acima de tudo, ela nunca foi considerada comoalgo que pudesse ser estudada por si mesma, independentementedo espírito, a visão de que a extensão espacial era a característicadistintiva da matéria teve sua primeira expressão filosófica emDescartes. Daí em diante, a matéria foi considerada como massae extensão. O resultado disso foi que o homem buscoucompreender tudo o que era espacial, e finalmente todas asqualidades sensivelmente percebidas num modo puramentequantitativo. Em certo sentido, isso é possível, especificamentena medida em que isso pode ser uma vantagem em uma ciênciadevotada exclusivamente para a manipulação exterior das coisas.Contudo, nem a extensão espacial, nem qualquer outra qualidadesensorialmente percebida, pode ser complemente esgotada emlinhas puramente quantitativas. Como René Guenon mostroucom maestria, no livro O Reino da quantidade e o sinal dostempos (Luzac, Londres, 1953), não há extensão espacial quenão possua um aspecto qualitativo – tanto quanto umquantitativo. Pode-se ver isso mais facilmente nas formasespaciais mais simples, como é o círculo, o triângulo, umquadrado etc. Cada uma dessas figuras têm algo de único,qualitativamente falando, que não pode ser sujeito a umacomparação puramente quantitativa40. É de fato impossívelreduzir o mundo da percepção sensorial a categoriasquantitativas, pois ele poderia se desintegrar em um puro nada!Mesmo os mais simples 'modelos de pensamento' da ciênciaempírica – por exemplo, os modelos que indicam a estrutura dosátomos ou moléculas – contém elementos qualitativos, ou pelomenos dependem indiretamente desses elementos. Pode-seexpressar a diferença entre o vermelho e o azul em figurasexplicando as cores em termos de oscilações e expressando issoem figuras; mas um homem cego, que nunca teve umaexperiência direta das cores, nunca vai conhecer a essência do

40Isso é válido inclusive para os números, porque cada número não representa sóuma quantidade, senão, ao mesmo tempo, também um aspecto da unidade ou douno, como o que tem caráter de dois, três, quatro etc. A diferença qualitativa dasformas se manifesta com a maior claridade das unidades numerais, e essa é a razãopela qual os teotemas pitagóricos consideravam aos números simples como aexpressão dos arquétipos.

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vermelho e do azul em virtude dessas figuras. E o mesmo seaplica ao conteúdo qualitativo de qualquer outra percepçãosensorial. Deixe-nos imaginar um homem que foi surdo edaltônico desde o nascimento, mas se acostumou com adescrição científica dos sons e cores. A descrição científica nãolhe transmitirá nem a essência dos sons e das cores, nem aprofunda diferença entre os dois tipos de percepção sensorial. Eo que é verdade a respeito das mais simples e mais elementaresqualidades aplica-se, primeiro e principalmente, a formas quesão expressões de uma unidade viva. Isso, por sua próprianatureza, evita não apenas qualquer medida e toda contabilidade,mas também, e acima de tudo, qualquer perspectiva que busque'dissecá-la'. É sempre possível, obviamente, mapear,quantitativamente, as fronteiras de uma forma particular, semcompreender sua essência. No campo das artes, ninguémcontestar isso, mas é frequentemente esquecido que isso tambémé válido em outros domínios a essência, o conteúdo, a unidadequalitativa de uma coisa, nunca pode ser abarcada por umprocesso de cálculo 'passo-a-passo', mas apenas por umaexperiência compreensiva e imediata ou 'visão'.

O conteúdo qualitativo das coisas nãopertence à matéria, que é meramente um espelho dele, que entãopode ser visto, mas não ao ponto de que pode ser limitadojuntamente com o plano material. Uma ciência baseada emanálises quantitativas, que 'pensa através de ações ou age atravésde conceitos' (ao invés de ver e experimentar integral ediretamente), tem necessariamente que ser cega à fertilidadeinfinita e à essência multifacetária das coisas. Para uma talciência, o que os antigos chamavam de 'forma' de uma coisa (i.e.,seu conteúdo qualitativo) não tem praticamente nenhum papel.Essa é a razão pela qual ciência e arte, que nas eras pré-racionalísticas eram mais ou menos sinônimas, são agoracompletamente divorciadas uma da outra. E também porque abeleza, para a ciência moderna, não oferece o menor acesso emdireção ao conhecimento.

A doutrina tradicional que faz a distinçãoentre eidos e hyle (ou entre forma e matéria) é aquela que maiscompletamente faz justiça ao fato de que as coisas têm váriossignificados em diferentes níveis, e que elas têm qualidades tanto

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quanto quantidades. A doutrina tradicionalista, que efetivamentediscrimina, não apenas divide ou desmembra, mas leva em contaos dois 'pólos' na sua complementaridade mútua. Aristóteles deuuma expressão dialética a essa doutrina, mas ele não a 'inventou',pois ela está na natureza das coisas, e corresponde à perspectivaespiritual do homem primitivo.

A forma, no sentido peripatético dapalavra, é a síntese das qualidades que constituem a essência deuma coisa. Forma significa a realidade inteligível de uma coisa, eé bastante independente da existência material das coisas. Nessesentido, não se deve, portanto, confundir 'forma', nesse sentido,com forma no sentido cotidiano, de algo que é espacialmente, oude outra forma, limitado, mais do que qualquer um deveequiparar 'matéria', que recebe 'forma' e lhe dá existência finita,com matéria no sentido moderno do termo.

A imaginação pode ser ajudada acompreender as ideias de 'forma' e 'matéria' pela analogia entreartista ou artesão, que confere certa forma, pré-concebida em seuintelecto, a uma matéria tal como argila, madeira, pedra oumetal, assim criando uma imagem do objeto. Mas isso não passade uma comparação, porque o material do artesão não écompletamente sem formas. Mesmo que ele seja relativamente'informe', ele contudo já possui certas propriedades ouqualidades – de outro modo, a argila não poderia ser distinguidada madeira, ou a pedra do metal. A matéria completamente 'semforma' não pode nem ser representada nem imaginada, pois ela épotencialidade pura (tendente a ganhar forma) e não tem em simesmo qualquer caractere discernível. Ela somente pode serconhecida em relação com 'forma'. Mesmo 'forma', entretanto,não pode ser representada separada da matéria, porque qualquerforma que já foi revelada participa de uma matéria. Isso se aplicaaté mesmo a uma forma imaginada, na medida em que se podedizer que a imaginação reveste a essência espiritual da formacom um tipo de 'matéria' mental.

Em razão de que a essência de uma forma,independentemente do seu 'revestimento' material, permanece omesmo (de tal modo que se pode ainda chamar uma formamaterialmente limitada de 'forma'), o conceito padece de umacerta ambiguidade. Pode-se reconhecer prontamente que em

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certas circunstâncias à mesma palavra forma pode ser dados doissignificados opostos: como 'figura' exterior de um ser ou umtrabalho, 'forma', no aspecto 'material' das coisas, é oposta aoespirito ou conteúdo. Como uma causa que dá forma, contudo,que cunha sua marca na matéria, 'forma' se localiza do outro lado– aquele do espírito ou essência.

Quando comparamos o modo cartesiano dever a matéria como essa doutrina, notamos, entre outras coisas,que a extensão espacial que Descartes atribui à matéria contradiza teoria tradicional, porque a extensão espacial, privada dequalquer forma qualitativa, é inimaginável. Mesmo o sentido,como René Guenon demonstrou41, é de natureza qualitativa.Matéria, entretanto, é em si mesma completamente sem forma.Tudo o que ela tem é quantidade, pura quantidade que não édeterminada por nenhum número finito, e assim não pode seralcançada de nenhuma maneira. Ela corresponde, como Guenóntambém assinalou, a materia signata quantitate, que osescolásticos consideraram a base do mundo corporal. Vale dizer,ela não corresponde à matéria-prima, privada que é de todoatributo, mas apenas à matéria secunda relativa, determinada emdireção ao mundo corporal. Da matéria-prima, a substânciaprimordial, apenas se pode dizer que ela é puramente receptiva,com respeito à causa que dá forma à existência, e isso é aomesmo tempo a raiz da 'alteridade', porque é através dela que ascoisas são limitadas e múltiplas. Na linguagem bíblica, amatéria-prima é representada pelas águas, sobre as quais, noinício da criação, o Espírito de Deus se movia.

Assim como a materia, quando se procuraapreendê-la, frustra cada avanço da razão e retira-se ao pólopassivo da existência, então a forma essencial (forma) pode serrastreada no pólo ativo da existência, esvaziando-osucessivamente de qualquer camada de manifestação que écondicionada por qualquer materia, por tênue que seja.Aristóteles, que rastreou os dois conceitos (forma e matéria oueidos e hyle) apenas até onde sua ontologia pode serdemonstrada logicamente, não alcançou o limite onde suasoposições paradoxalmente se dissolvem numa unidade superior.Entretanto, está claro que a causa formal, correspondendo ao Ato

41 No Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos, Ed. Gallimard, París, 1943.

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puro, e a sustância receptiva, que é puramente passiva,complementam-se uma à outra reciprocamente; e assim, como aspossibilidades fundamentais e atemporais, elas não podem serseparadas uma da outra. Essa referência de todas as aparências,aos dois pólos primários obviamente não abole o milagre dacriação; trata-se apenas de indicar os seus limites perceptivosmais extremos. O pólo ativo pode também denominar-se, de ummodo geral, como 'essência', e o pólo passivo como 'substância'.Em um certo sentido, essência corresponde ao espírito ouintelecto, na medida em que a formae ou predeterminaçõesessenciais das coisas estão contidas no Intelecto divino comoprotótipos ou 'arquétipos'. Pode-se objetar que a ideia de 'forma'não pode ser alargada em uma direção superior sem se abolir adistinção manifestações 'formal' e 'supra-formal'. Vale dizer, adistinção entre o terreno 'individual' e o terreno 'universal', que éaquele do Espírito único. A isso se pode responder que o termo'formal' apenas pode ser aplicado àquilo que, através de umaforma, é impresso em uma substância. Em si mesma, a formapode ser vista não apenas como limitação ou contorno, mastambém como 'feixe' de qualidades não 'substancial' ou'materialmente' determinadas. Nesse último sentido, ela pode seraplicada até a aspectos unitários do Ser. Até mesmo nos escritosdos teólogos medievais de todas as três religiões monoteístas,deparamo-nos com a expressão 'a forma de Deus' (forma Dei; emárabe as-sûratu ´l-ilâhiyah) para a totalidade das qualidadesdivinas. A 'essência' de Deus, que revela-se a si mesma atravésdessas qualidades, é nela própria incondicionada e acima detodas as qualidades.

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Figura 3. Dois candelabros da sepultura deSão Bernardo, bispo de Hildesheim (993-1022). São Bernardo,tutor de Otto III, filho da princesa bizantina Theophano, fundouoficinas de metalurgia, ouriversaria, caligrafia e pintura.

Nos pedestais dos dois candelabrosencontrados em seu túmulo, está escrito: 'Bernwardus Praesulcandelabrurn hoc puerum suum primo hujus Artis flore nonauro, non argento, et tamen, ut cernis, conflare jubebat'(Bernardo, o Superior, no primeiro florescimento desta arte,

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pediu a seu aprendiz para projetar este candelabro não em pratanem em ouro, mas de qualquer modo, como se vê, para projetá-lo). Os dois candelabros consistem em uma mistura de prata comcobre e ferro; a superfície apresenta sinais de dourados.

O pedestal de ambos os candelabrosconsistem em três pares de dragões entrelaçados, sobre os quaishomens nus estão cavalgando. Os rebentos de videira, em voltado eixo, brotam dos dentes de um leão. Nisto os homens sobem,e os pássaros sentam-se neles. As velas estão sustentadas porsalamandras. Os pares de dragões representam os dois poderespsíquicos primários em seu estado selvagem, caótico. Elescorrespondem aos caduceus. A videira que brota da boca do leãosolar é um símbolo primordial da vida, assim como uma fonte deágua lançada a partir da máscara leonina. Para o Cristianismo,isso é também um símbolo da palavra de Deus. A salamandra éum animal de fogo.

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Figura 4. A flor da sabedoria. No ovohermético está o dragão Uroboros, que como simbolo daNatureza não redimida ou da matéria informe, devora a suaprópria cauda. Para fora do ovo cresce a flor vermelha de ouro,a flor branca de prata e, entre elas, a 'flor da sabedoria' azul.Embaixo está o Sol e a Lua, e entre eles está a estrela doMercúrio 'filosofal'. – Página do 'Manuscrito Alquímico' de1550, na Biblioteca da Universidade da Basiléia.

No seu livro The Sceptical Chymist,publicado em 1661, Robert Boyle atacou a doutrina tradicionaldos quatro elementos como fundamento de toda a materiacorporal. Ele demostrou que a terra, água e ar não são corposindivisíveis, mas são compostos de vários constituintesquímicos. Ele acreditou que, fazendo assim, ele haveriadestruído a alquimia em suas raízes. O que ele na verdadedestruiu não foi a alquimia verdadeira, mas uma concepçãoimperfeita e mal-compreendida da doutrina tradicional dosquatro elementos, já que os verdadeiros alquimistas nuncaconsideraram terra, água, ar e fogo como substâncias corporais equímicas, no atual sentido da palavra. Os quatro elementos sãosimplesmente as qualidades primárias e mais gerais através dasquais a substância amorfa e puramente quantitativa de todos oscorpos revelam-se em formas diferenciadas. A essência imutávelde cada elemento também não tem nada a ver com qualquerindivisibilidade corporal. E na realidade, o fato de que a águaseja composto de hidrogênio e oxigênio, e o ar de hidrogênio enitrogênio, de nenhuma forma altera a experiência imediata dasquatro 'condições' fundamentais da materia corporal, de queterra, água, ar e fogo são os exemplos mais gerais. Mesmo osconstituintes químicos nos quais os três primeiros itens podemser decompostos reduzem-se a estas categorias. Uma certadificuldades em compreender a doutrina a respeito dos quatroelementos pode surgir do fato de que enquanto esses quatro'modos de manifestação' são, de um lado, a diferenciaçãoqualitativa primária de materia, eles, contudo, na medida em quesua relação com os corpos verdadeiros é considerada,desempenha o papel de substâncias passivas e que podem ser

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moldadas. Nesse último aspecto, especificamente comofundamentos materiais ou substanciais, os quatro elementospodem ser comparados – como foi feito por ar-Râzî (Rhazes),por exemplo – com estados mais ou menos densos de substânciascorporais, ou até mesmo com vários tipos de vibração, emboratodas essas analogias sejam apenas aproximadamente adequadas,já que os elementos em si mesmos permanecem além (ou aolado) de manifestação corporal, na medida em que a materia detodo o mundo corporal é ela mesma imperceptível.

De tudo isso pode-se ver que uma alquimiaconsciente de seus fundamentos cosmológicos não poderiaacreditar que seria através de procedimentos químicos que osquatro elementos foram reduzidos um ao outro, e a suassubstâncias comuns subjacentes – como a arte herméticaensinou. Se esse ensinamento era de fato seguido em seu sentidoreal, ela apenas poderia distanciar de um nível de empirismoexterior a uma 'dimensão' ontológica completamente diversa. Deacordo com os alquimista ocidentais e orientais, os elementosnunca estão presentes nos corpos em sua forma pura. Cadasubstância corporal contêm todos os quatro elementos, com apreponderância de um ou outro, e assim imprimindo seucaractere na aparência corporal. Assim, a água comum não éidêntica ao elemento de mesmo nome, embora seja suamanifestação mais imediata, e ao mesmo tempo é essencialmenteuma, tanto com ela como com o aspecto passivo da substânciaprimordial ou universal. O fato de que em todos os lugares, nosvários níveis da existência, há ligações 'verticais' com osarquétipos universais, significa que a concepção cosmológica danatureza – e também toda arte nela baseada – possui umamultiplicidade de significados hierarquicamente arranjada.

A base comum dos quatro elementos,quando se olha às coisas em geral e de um modo sintético, não énada além do que a materia prima do mundo. Olhando às coisasmais exatamente, entretanto, os elementos não procedemdiretamente da matéria-prima, mas de sua primeiradeterminação, o éter, que preenche todo o espaço igualmente, eque nos escritos alquímicos é chamado tanto de materia, quandouma quintaessentia – dependendo se é visto material ouqualitativamente.

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A mais completa exposição dos quatroelementos é encontrada na cosmologia hindu de sankhya. Deacordo com ela, os elementos corporais, ou bhutas, quepertencem ao mundo material, no sentido mais amplo do termo,correspondem em número às medidas 'essenciais' ou tanmâtras,que estão contidas no sujeito cognitivo. Ambos os grupos dedeterminações primordiais, os tanmâtras tanto quanto os bhutas,derivam, em última instância do prakriti (materia prima). Elessão filtrados através do ahankâra, o principium individuationisou consciência egóica, e divididos nos pólos objetivos esubjetivos do mundo manifesto.

Essa exposição dos elementos correspondeexatamente à concepção hermética. Ela também mostra como asaparências visíveis podem ser transpostas para o campo interior,porque as tais tanmâtras também 'medem' fenômenos psíquicos.

Se os elementos são listados na ordem deseu 'quilate' ou 'sutileza', a terra ocupa o lugar mais baixo e o ar,o mais alto. Se, contudo, eles são ordenados de acordo com asdireções do seu movimento, o fogo ocupa o lugar mais alto; aterra é caracterizada pelo seu peso: ela possui uma tendênciadescendente. A água é também 'pesada', mas também tem acapacidade de 'extensão'. O ar tanto aumenta como se estende, aopasso que o fogo apenas aumenta.

De acordo com a tradição hermética, aordem natural dos elementos é representada tanto por uma cruz,cujo ponto central então corresponde a quinta essencia, ou porcírculos concêntricos, em cujo caso a terra é o ponto mediano, eo fogo o círculo mais exterior. De novo, ela pode serrepresentada pelas partes individuais do 'Selo de Salomão', queconsiste em dois triângulos equiláteros, que se intercedem. Otriângulo que aponta para cima △ corresponde ao fogo, e otriângulo que aponta para baixo ▽ corresponde à água. Otriângulo representando o fogo, com o lado horizontal do outrotriângulo, representa o ar & enquanto o oposto desse símbolorepresenta a terra %. o Selo de Salomão completo Y representa asíntese de todos os elementos, e assim a união de todos osopostos.

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A concepção tradicional de materia como ofundamento passivo e receptivo de toda a multiplicidade ediferenciação torna possível aplicar o mesmo conceito fora dodomínio corporal. Assim, pode-se falar de materia da alma, dadoque o plano psíquico também consiste de uma 'impressão'múltipla e mutável de formas essenciais, e assim possui um póloativo (ou essencial) e passivo (ou substancial ou 'material').

O pólo substancial da alma, em outraspalavras sua materia, é expressado na sua capacidade de assumire manter formas, vale dizer, na sua 'receptividade' pura eilimitável. Este é o seu lado feminino – e pode-se concebê-loquase literalmente, já que na natureza da mulher esse aspecto daalma predomina, e mesmo se mostra fisicamente. Na mulher,alma e no corpo estão relativamente fechados um ao outro, comoresultado das características 'passivas' comuns a ambos – um fatoque enobrece o corpo mas vincula a alma.

As 'formas' assumidas pela 'substância' ou'matéria' da alma vêm tanto de fora como de dentro. Issosignifica que, empiricamente, eles vêm de fora, através dossentidos. Eles são formas essenciais apenas na medida em quecorrespondem aos arquétipos imutáveis contidos no Intelecto,que constitui o conteúdo real de todo o conhecimento. O póloessencial da alma é assim o Intelecto (ou Espírito). Ele é sua'forma'. Essa expressão pode muito bem soar peculiar. Ela nãodeve ser considerada de modo a significar que o Intelecto em simesmo tem qualquer 'forma' particular. Se até mesmo o termo'forma essencial' pode ser aplicado ao Intelecto, é apenas porquena sua ação sobre a materia de uma dada alma ele imprime a'forma pessoal' da alma, e então, juntamente com esse último,forma o ser pessoal. Pelas mesmas razões – ou seja, havendoconsiderado o inter-relacionamento do espírito e alma, e emrazão de que a singularidade qualitativa da pessoa vem doEspírito –, é possível falar de 'espírito' de um ser particular, ou de'espíritos' no plural. Assim, é no caso de uma luz, de que um raio– ou um feixe de raios – é interceptado numa superfície refletora:a luz em si mesma não tem nenhuma direção particular, ela seespalha por todo o espaço. No seu relacionamento com asuperfície reflexora, contudo, ela tem uma direção, e parece, sem

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qualquer mudança essencial de natureza, como se fosse um raio.Então tudo o que é espírito é 'feito de conhecimento' ecompletamente um com a Luz da Verdade. E ainda quando oespírito está presente na alma, ele aparece como um serindividual.

Como espírito e alma não podem sercircunscritos como duas coisas corporais, qualquer comparaçãoque se possa fazer para transmitir seu relacionamento recíproco éde alguma muito simplista e muito imperfeito. Apesar disso, taiscomparações transmitem muito mais do que um esforço dedescrição psicológica, que necessariamente relaciona tudounicamente ao plano psíquico, resultando que o pólo espiritualapenas é percebido indiretamente, como um aspecto particulardo mundo psíquico. Isso ocorre, por exemplo, na distinçãopsicológica entre animus e anima, que tem a mais remotaconexão real entre espírito e alma, como é mostrado pelo fato(entre outras coisas) de que animus recebe uma inclinação'racional'. Na realidade, é apenas uma reflexão psíquica e passivado espírito.

No seu livro On the Adornment of theSpititual Marriage (Livro II, Capítulo 4), Ruysbroek escreve:'Em todo homem há, por natureza, uma tripla unidade, que alémdisso, no caso dos justos, é sobrenatural. A primeira e mais altaunidade encontrada no homem é Deus, já que todas as criaturasdependem da Unidade Divina para a perfeição de seu ser, vida eexistência. Se eles pudesse dissolver esse relacionamento, elescairiam no nada e seriam aniquilados. Essa unidade é em nósessencialmente natural, quer sejamos bons ou maus. Sem nossacooperação, não nos faz nem santos nem bem-aventurados.Enquanto essa unidade está em nós, ela está ao mesmo tempoacima de nós como fundamento e suporte de nossa vida.

'A segunda união, ou unidade, está damesma forma presente em nós naturalmente. Trata-se da unidadedas faculdades superiores, uma unidade que deriva do fato deque, considerando-se sua atividade, essas faculdades saltamnaturalmente da unidade do próprio Espírito. Ela continua amesma unidade que nós possuímos em Deus, mas aqui ela éconsiderada do lado ativo, e não do ponto de vista da essência. OEspírito está tão presente em uma unidade como em outra, com

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toda a completude do seu ser. Essa segunda unidade nóspossuímos em nós mesmos, bem acima do terreno dos sentidos.Dela derivam o pensamento, a razão, o desejo e todas aspossibilidades da atividade espiritual. Aqui a alma comporta onome de espírito.

'A terceira unidade que em nós estánaturalmente consiste no domínio das faculdades inferiores, quetem sua sede no coração, a base fonte da vida animal. É nocorpo, e especialmente na ação do coração, que a alma possuiessa unidade, a partir da qual todas as atividades do corpo e oscinco sentidos procedem. Aqui leva seu verdadeiro nome, alma,pois é a 'forma' do corpo que ela anima, o corpo que ela faz vivere mantém vivo.

'Essas três unidades que estão no homempor natureza constituem uma só vida e um só reino. Em suaunidade inferior essa vida é sensorial e animal; na unidadeintermediária ela é racional e espiritual; na unidade superior, elaestá contida na sua própria essência. Isso pertence a todos oshomens por natureza...'

Ruysbroek caracteriza a alma no sensoliteral da palavra (anima, psyque), por sua tendência em direçãoàs faculdades sensoriais, através do que ele faz menção aosníveis da alma individual empírica, em contraposição ao espírito.Mas o relacionamento espírito-alma pode também ser visto deuma outra forma. Quando ele fala da alma como materia doespírito, nós não queremos apenas significar o mero tecido deuma consciência egóica, mas antes a capacidade passiva ereceptiva que subjaz em maior profundidade, e que precisamenteé velada pela habitual relação feita entre alma e sentidos. Apossível confusão da alma, considerada como ego, com o corpo atorna fragmentária e, num certo sentido cristalizada, e isso aimpede de refletir o Espírito livremente e sem distorções.

O que corresponde à alma caótica no planomineral é a condição dos metais comuns, especialmente ochumbo, que na sua obscuridade e peso assemelha-se a umamassa imperfeita. De acordo o famoso místico islâmico Muhyi´d-Dîn ibn ´Arabî, o ouro corresponde às condições saudáveis eoriginais da alma que, livremente e sem distorções, reflete oEspírito Divino na sua essência, enquanto o chumbo corresponde

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à sua condição 'doente', distorcida e 'morta', que não reflete maiso Espírito. A verdadeira essência do chumbo é o ouro. Cadametal comum representa uma quebra no equilíbrio que somenteo ouro possui.

Em busca de libertar a alma de suacoagulação e paralisia, a sua forma essencial e a sua materiadevem ser dissolvidas da sua combinação imperfeita e unilateral.É como se o espírito e a alma devessem ser separados um dooutro, com o objetivo de, após esse 'divórcio', 'casarem-se'novamente. A materia amorfa é queimada, dissolvida epurificada, em vista de ser cristalizada novamente na forma deum cristal perfeito.

A forma da uma alma assim 'renascida' édistinguível do Espírito que tudo abarca, na medida em quecontinua pertencente à existência condicionada. Mas ao mesmotempo ela é transparente à Luz indiferenciada do Espírito, e emuma união vital com a materia primordial de todas as almas;porque o fundamento 'material' ou 'substancial' da alma, assimcomo seu fundamento essencial ou ativo, tem uma naturezaunitária. Que todas as almas são 'feitas de uma substância' podeser conhecido do fato de que os 'movimentos' (emoções) da almade todas as criaturas vivas – apesar da imensa variedade deespécies e níveis de consciência – são feitos de maneira similar.Pode-se dizer que eles são como as ondas de um mesmo mar.

A doutrina e o simbolismo alquímicosnunca tiveram em vista a 'extinção' completa (espiritual) doindividual, como o moksha hindu, o nirvana do Budismo, o fanâ´u ´l-fanâí Sufi, e como a unio mystica ou deificatio cristã nosentido mais alto dessas duas expressões. Isso porque a alquimiaé baseada em uma visão puramente cosmológica, e por isso podeapenas ser transportada indiretamente para o campo meta-cósmico ou divino. Desde que, entretanto, as realizaçõesalquímicas podem ser representadas como um caminho para omais alto de todas as metas, ela foi contudo incorporada nomisticismo cristão e islâmico. A transmutação alquímica permiteo contato direto do centro da consciência humana com aqueleraio divino que irresistivelmente atrai a alma para cima, e apermite saborear por antecipação o Reino dos Céus.

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A aplicação de conceitos mutualmentecomplementares de forma e materia ao âmbito da alma tornaclaro em qual senso determinadas informações sensíveis, comoos quatro elementos, podem ser transpostos ao plano psíquico.Assim como a materia corporal, que se manifesta maisfacilmente nos quatro elementos, assim a materia da alma, noseu desenvolvimento, tem diversas tendências mutualmenteopostas. Ela tem uma tendência 'descendente' em direção à inériae à densidade terrena; ao mesmo tempo, ela tem a tendênciaascendente, como o elemento fogo, em direção ao Espírito.Novamente, tem uma tendência em relação à expansão – umainércia tanto passiva como relativamente inerte, como aquela daágua, ou mais ativa e móvel, como aquela do ar. Aplicada à alma,'terra' é aquele aspecto ou tendência que causa um mergulhodentro do corpo, e que o vincula a este. 'Fogo' tem o mesmocaráter purificador e transmutador do fogo visível. 'Água' é capazde assumir todas as formas. Na sua natureza original eincorrupta, a água é, nas palavras de São Francisco de Assis,umile e preziosa e casta. Para a alma, o 'ar', livre e móvel,envolve todas as formas de consciência.

Os signos dos quatro, derivados do Selo deSalomão, são particularmente claros quando aplicados à alma. Apartir deles, pode-se ver que a pluralidade dos elementos origina-se da oposição do fogo △ e água ▽, ou seja, do par atividade-passividade (que obviamente corresponde ao par forma-materia).É a mesma oposição que encontraremos na forma do enxofre edo mercúrio. Através da união dos opostos Y a alma setransforma em 'fogo fluído' e 'água ígnea', e ao mesmo tempotambém adquire as qualidades positivas dos outros elementos, demaneira que a sua água é 'sólida' e o seu fogo 'não se queima';pois o 'fogo' da alma é o que dá solidez à sua 'água', enquanto à'água' da alma confere ao 'fogo' a suavidade e a ubiquidade do'ar'.

Os 'elementos interiores' podem tambémser considerados como qualidades puras do espírito, e, em últimainstância, como aspectos imutáveis do Ser. Vistos por esse lado,a sua união e reconciliação consiste no fato de que em cada

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qualidade individual dos elementos os outros estão tambémcontidos, porque o Ser puro é ao mesmo tempo simples einexaurivelmente rico. O significado superior da alquimia é oconhecimento de que tudo está contido em tudo, e o seumagisterium não é outro além da realização dessa verdade noplano da alma. Essa realização é efetivada através da criação do'elixir', que concentra em si próprio todos os poderes da alma, eassim atua como um 'fermento' transmutador' no mundopsíquico, e de uma maneira indireta, também no mundo visível.

Assim como não há nenhuma substânciacorporal que é completamente separada dos modos superiores deser, é possível em certas circunstâncias transportar os poderespertencentes a alma ou espírito a uma substância corporal, eentão, em determinado sentido, eles se unem a ela. Assim, oelixir interior dos alquimistas pode ter, em alguns casos, umacontrapartida exterior.

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CAPÍTULO 5

PLANETAS E METAIS

Os alquimistas designam os vários metaisatravés dos mesmos símbolos que eles atribuem aos planetas, emuitas vezes até mesmo dão aos metais e planetas o mesmonome. Ao ouro eles chamam 'sol', à prata, 'lua', ao mercúrio,'mercúrio' (quicksilver), ao cobre, 'vênus', ao ferro, 'marte', aoestanho, 'júpiter', e ao chumbo, 'saturno'. As correspondênciasassim estabelecidas demonstram claramente o relacionamentoentre a alquimia e a astrologia, uma relação baseada naquela leique a Tábua da Esmeralda expressa nas seguintes palavras: 'Oque está embaixo é como o que está acima'.

A astrologia e a alquimia, que na sua formaocidental derivam da tradição hermética, relacionam-se uma àoutra como céu e terra. A astrologia interpreta o significado dozodíaco e dos planetas; e a alquimia, o significado dos elementose dos metais. Os doze signos do zodíaco são uma imagemsimplificada dos arquétipos imutáveis contidos no IntelectoDivino. Os elementos fogo, ar, água e terra, por outro lado,manifestam simbolicamente a primeira e fundamentaldiferenciação da substância primordial (materia prima, hyle).Considerando que os planetas, em virtude da posição de um emrelação ao outro, manifestam de modos diferenciados etemporais as possibilidades contidas no zodíaco, e assimrepresentam os caminhos de ação do Espírito Divino, 'descendo'do Céu à terra, os metais, por sua vez, representam os primeirosfrutos da substância elemental42, 'amadurecido' pelo Espírito ouIntelecto.

A alquimia ensina que os metais foramgerados no ventre escuro da terra, sob a influência dos seteplanetas – sol, lua e os cinco planetas visíveis a olho nu. Essemodo de ver as coisas não deve ser considerado uma explicaçãofísica. Ele indica como as manifestações materiais derivam –essencialmente mas não fisicamente, dos dois principais pólos da

42Expressado com certa ousadia, o metal é uma forma espiritual da matériacorporal, enquanto que os planetas ou os astros representam em geral uma formacorporal do espírito.

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existência. Nos regimes complementares de estrelas e metais, jáum tipo de escala ontológica, para o qual todos os aspectos danatureza podem ser relacionados. Isso é verdade não apenas nocaso da natureza 'visível', o macrocosmo, mas também para omicrocosmo, o que vale dizer, a constituição psicofísica dohomem. Assim como na alquimia há metais interiores, assimtambém na astrologia há planetas interiores.

Uma certa mutabilidade noemparelhamento de metais e planetas surge do fato de quealgumas escolas alquímicas consideram o mercúrio, em razão desua 'volatilidade' e o seu efeito sobre outros metais, não comoum metal ou 'corpo', mas como um agente volátil ou 'espírito'.Em tais casos, um metal diverso do mercúrio toma seu lugar naescala dos sete metais – algumas vezes uma liga. O que éessencial é que cada um dos sete metais representam um 'tipodefinitivo', que inclui todo um grupo de metais mutualmenterelacionados43.

A dualidade dos pólos ativo e receptivo daexistência expressa no complementarismo de céu e terra, ou deplanetas e metais, reflete-se em cada um dos dois grupos norelacionamento entre sol e lua e entre ouro e prata. O sol, ououro, é, de certo modo, a encarnação do pólo ativo e gerador daexistência, enquanto que a lua, ou prata, encarna o póloreceptivo, a materia prima. Ouro é sol; sol é espírito. Prata, oulua, é alma.

Os outros metais, e os outros planetas,participam em diferentes graus nos dois pólos da existência.Nenhum dos pólos manifesta-se completamente em qualquer umdeles.

A graduação das qualidades cósmicas –manifestada ativamente nos planetas e passivamente nos metais– é claramente expressa nos sete símbolos que representam tantoplanetas quanto metais. Eles estão listados aqui na ordem dasórbitas planetárias como vistas da terra:

43 Alguns alquimistas helenos colocam o elétron no lugar do mercúrio.

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R s t q v w

Lua Mercúrio Vênus Sol Marte Júpiter Saturno

Prata Mercúrio Cobre Ouro Ferro Estanho Chumbo

Em contraposição ao modo usual derepresentar o símbolo de marte – com uma seta u (uma fórmulaque desvia completamente do estilo dos outros símbolos), marteé aqui representado por um círculo com uma cruz sobre ele.Podemos supor que marte era antigamente designado dessaforma e que o símbolo atualmente mais usado foi introduzidocom o fim de distingui-lo de vênus, em mapas do céu sem umaindicação clara de onde estava a parte superior e onde a parteinferior. O uso do símbolo antigo para marte como umadesignação da terra, apenas surgiu com a concepçãoheliocêntrica, e ele não é diferente do símbolo Cristão do globoencimado pela cruz.

Assim, os sete símbolos planetários sãoformados a partir de três figuras básicas: o círculo, o semicírculoe a cruz. Como o círculo é também o símbolo do sol, e osemicírculo o da lua, essas duas figuras podem ser consideradascomo representações da órbita completa e de meias órbitas dosol, respectivamente. A interpretação espiritual de modo algumfoi alterada por isso, já que a meia órbita do sol, que mede umadas duas fases do ano, está contida na órbita completa, assimcomo a luz da lua procede inteiramente do sol. A terceira figurabásica, a cruz, recorda, astronomicamente falando, a cruz dasquatro direções do espaço, e alquimicamente falando, os quatroelementos. Inscritas, as três figuras básicas dão origem à 'rodaCelestial': ;.

Assim, nos sete símbolos nós encontramosuma expressão da hierarquia cósmica integral, que foimencionada acima. Essa hierarquia é o resultado da polarizaçãoda existência em um pólo ativo, ou masculino q e um passivo,ou feminino R, e essa origem deve-se ao fato de que a influênciado primeiro no último (que desempenha o papel da materiaplástica) é imprimir condições nesse último, que 'se cruzam'

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mutuamente +. Que sol e lua correspondam aos dois pólos daexistência pode ser visto tanto na relação entre a fonte da luz e asuperfície que a reflete como no fato de que a forma da luamuda-se, enquanto a do sol sempre permanece a mesma. Oporvir pertence ao lado passivo, enquanto o Ato Puro daEssência permanece imóvel. A terceira figura básica dossímbolos planetários, a cruz, é o mais genérico dos símbolos querepresentam a diferenciação (sob a influência do pólo ativo) daspossibilidades latentes na materia passiva. É a cruz dos quatroelementos.

É importante lembrar que o sol, ou ouro,não é o pólo ativo como tal, mas apenas seu principal reflexo emum determinado domínio. O mesmo é verdade a respeito da lua,ou prata, que corresponde ao pólo passivo. Estritamente falando,o símbolo do pólo passivo não tem forma própria, assim como amateria prima também não tem forma. Ela pode assim apenasser o complemento ou a fragmentação do símbolo do pólo ativo,daí porque o semicírculo, a lua crescente e a meia-órbita solarsimbolizam a causa passiva. Assim, é essa unidade do ouro em simesma toda 'luz metálica' ou toda 'cor', enquanto a prata, comoum espelho, é incolor.

Os planetas (exceto o sol e a luz) e osmetais comuns, são variações de um único protótipo, que seencarna totalmente apenas no sol e no ouro. Neles tanto a causasolar como a causa lunar são predominantes – sem, contudo,realizarem expressão completa, porque as diversas combinaçõesde círculo e semicírculo com a cruz significa uma determinadaruptura do equilíbrio original dos elementos. Toda ruptura desseequilíbrio (consoante, nesse símbolo, a figura solar ou lunaresteja localizada acima, abaixo ou no traço horizontal da cruz) éassociada a uma qualidade diferente. Assim, no símbolo deSaturno (w) ou chumbo, o crescente está ligado à parte inferiorda cruz, no ponto mais baixo, vale dizer, de ordem material – ochumbo, de fato, sendo o mais denso e 'caótico' dos metais. Nosímbolo de Júpiter (v), o crescente está ligado à linha horizontal.Do ponto de vista alquímico, isso corresponde à posiçãointermediária do estanho entre o chumbo e a prata. O símbolocom o crescente na parte mais alta da cruz não existe. Elepoderia corresponder ao símbolo da lua, porque onde a causa

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lunar é predominante, ela dissolve as diferenciações elementares,matéria-prima sendo pura receptividade informe, como a água.De outro lado, há um símbolo (de Vênus ou cobre – t) no qual osol aparece sobre uma cruz, porque a causa formal ativa nãodissolve as diferenciações elementais, mas, em lugar disso, asreforça, antes de trazê-las ao equilíbrio perfeito, na forma deouro. De acordo com Basilius Valentinus, o cobre contém umexcesso de poder solar não-fixado, como uma árvore que temmuita resina. Seu oposto, tanto no que respeita o seu símbolocomo a sua natureza, é o ferro; nele o sol pode ser encontradoabaixo da cruz, e assim escondido na escuridão da terra. Naconcepção geocêntrica, Marte (U) e Vênus (t) estão próximosum do outro; eles são o par mitológico de amantes.

O único símbolo, aquele de Mercúrio(Mercury or quicksilver) contém todas as três figuras básicas: acruz, o círculo e o semicírculo. Nele a causa lunar predominasobre a solar, que por sua parte 'fixa' a cruz dos pares de opostoselementais. Nós podemos voltar frequentemente a esse símbolo,porque ele é a chave verdadeira para o trabalho alquímico, assimcomo o Mercúrio, ou Hermes, é o predecessor da alquimia.Entretanto, deixe-nos dizer que esse símbolo e metal a que elecorresponde expressa materia prima, como o portador de todasas formas. O metal mercúrio é do mesmo modo o 'ventre' detodos os metais, enquanto a prata assemelha-se à condiçãovirginal da pura materia prima. Isso também explica porque osalquimistas representam a causa feminina ou 'materia' – materia– na medida em que isso entra em seu trabalho tanto pela luz (ouprata) como pelo mercúrio (quicksilver). Esse últimocorresponde ao poder produtivo da materia, seu aspectodinâmico, assim como o enxofre, o 'oposto' do mercúrio, é opoder ativo da causa solar ou masculina. Em certo sentido, ateoria chinesa a respeito do sol e da lua pode ser aplicada ao ouroe à prata: o sol, dizem os chineses, é yang cristalizado, e a lua,yin cristalizado. Do mesmo modo, o ouro é 'enxofre' cristalizadoou estático, e a prata é 'mercúrio' cristalizado. É necessárioobservar que todas essas relações não podem ser compreendidasem sentido físico, mas no contexto de uma cosmologia que vaipara além do domínio corporal.

A série de sete símbolos dos planetas e

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metais pode ser considerada como uma representaçãosimplificada de um dado domínio cosmológico. Em todo odomínio há o que podemos chamar centro, vale dizer, um pontoalto qualitativo, no qual o protótipo ou causa, que governa todo odomínio, revela a si mesmo de modo mais completo e imediato.Assim é o ouro entre os metais, a pedra preciosa entre outraspedras, a rosa ou o lótus entre as flores, o leão entre osquadrúpedes, a águia entre os pássaros, e o homem entre ascriaturas vivas na terra. Em cada caso, a manifestação 'central' é'esplêndida', porque, como símbolo, é tão completa e integralquanto possível. Pelo contrário, as manifestações 'periféricas' sãomais ou menos 'básicas', na medida em que elas expressamapenas qualidades ou aspectos incidentais de um protótipo44.

Aqui pode ser notado que enquanto ohomem, na sua natureza específica, sempre representasimbolicamente o centro do domínio terrestre, isso não énecessariamente dessa forma em relação à sua individualidade.O animal sempre permanece fiel à forma essencial de suaespécie. Em um modo passivo, ele participa daquele raio doIntelecto Divino que se releva nele, através da sua existênciamesma. (O assim chamado 'instinto' dos animais pertence à suaparticipação passiva no Intelecto.) O homem, por outro lado, écriado com o propósito de participar ativamente do IntelectoDivino, do qual ele é o reflexo 'central'. Apenas quando ele ageassim é que ele é verdadeiramente o centro do mundo terreno, eaté mesmo em proporção à sua identificação com o Intelecto detodas a manifestação formal ou do cosmos inteiro. A 'realização'do centro do mundo terreno é a meta real da alquimia, e tambémo significado mais profundo do ouro. Ouro é um 'corpo' como osoutros metais, mas a massa, a densidade e a divisibilidade doscorpos nele foram transmutadas em qualidades puras esimbólicas. Ele é luz encarnada. Os próprios alquimistas muitasvezes descrevem a meta do seu trabalho como uma 'volatizaçãodo sólido' ou uma 'solidificação do volátil' ou como uma

44Deve-se observar, sem embargo, que só um campo completo da existência possuium centro indiscutível; só o homem é o centro induscutível de toda a existênciaterrena. Pelo contrário, há campos parciais com centros relativos que se manifestamfrequentemente em formas diversas, as quais se complementam entre si. Porexemplo, no reino das aves temos, além da água, o rouxinon, a pomba, o pavão, ocisne e inclusive a coruja, que, cada um a seu modo, representam um centro.

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'espiritualização do corpo' e uma 'encarnação do espírito'. O ouronão é nada além disso.

Apenas no símbolo do ouro o ponto centraldo círculo é indicado, o que significa que apenas no ouro aunidade essencial do arquétipo, com seu reflexo material,encontra expressão. Do mesmo modo, é apenas no homemperfeito que a similaridade da criatura com Deus éespiritualmente efetiva.

*

Nas palavras da 'Tábua da Esmeralda' – deacordo com as quais o que está abaixo é como o que está acima,e o que quer que esteja em cima é como o que está abaixo – háuma referência a uma espécie de inversão, como em um espelho,nos dois lados. Na realidade, a 'graduação' dos metais (de acordocom a sua maior ou menor similaridade com o ouro) é inversaàquela dos planetas, que gozam de uma classe superior, quantomais distantes estiverem suas órbitas do centro da terra. Umaexceção aqui é o sol, que corresponde ao ouro, e cuja esfera estáno meio entre duas séries de três órbitas planetárias. Acima doSol, de baixo para cima, estão as órbitas de Marte, Júpiter eSaturno. Abaixo dele, em ordem descendente, em direção àTerra, estão as órbitas de Vênus, de Mercúrio e a Lua. Se, emdireção para cima e para fora, adicionarmos as estrelas fixas àsesferas planetárias, então as séries podem ser completadas, nadireção descendente e na direção do centro, pela adição da Terra.

De um modo ou de outro, mesmo naconcepção geocêntrica, o Sol representa um centro,independentemente do fato de que como fonte de luz para todosos planetas ele é mesmo o seu centro. A combinação das duasordens simbólicas (nas quais, de um lado, a maior ou menorlargura dos 'céus' é soberana e, por outro, a posição central doSol) também surge na aplicação das qualidades planetárias aosseres humanos. Aqui isso adquire um significado que éparticularmente instrutivo à medida em que a concepção demundo comum tanto à alquimia como à cosmologia éconsiderada.

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Saturno, cuja órbita, é a maior do ponto devista da Terra, corresponde à inteligência, ou mais exatamente aointelecto, enquanto a Lua, cuja órbita é a mais próxima do centroda Terra, é análoga ao 'espírito vital', que liga entre si alma ecorpo. Estes são os dois pólos extremos da capacidade da alma,porque o espírito vital, que governa as atividades voluntárias docorpo, como crescimento e digestão, e que por essa razão temum caráter mais 'existencial' que 'racional', é em certo sentidooposto ao intelecto. Entre esses dois pólos extremos, as outrasfaculdades da alma estão localizadas. Eles são comumentedesignados e relacionados aos planetas dependendo de qual lado,o do 'conhecimento' ou o da 'vontade', leva-se mais em conta.Em todo caso, o Sol corresponde a uma faculdade que está nomeio do caminho entre os dois pólos e em um certo sentido osunifica. De acordo com Macrobius (que em seu comentário aoSonho de Cipião considera a hierarquia dos planetas em conexãocom a doutrina pitagórico-órfica da descida da alma do céusuperior à terra) o Sol é análogo à faculdade que anima os cincosentidos e sintetiza suas impressões. O Sol é assim o arquétipoda vida da 'alma sensitiva'. De acordo com outra e mais profundavisão das coisas, aquela de ´Abd al-Karîm al-Jîlî, por exemplo,no seu livro sobre o 'Homem Universal' (al-insân al-kâmil)45, o

45Veja a minha tradução parcial: Abd al-Karîm al-Djîlî, De l'Homme universel,

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Sol é análogo ao coração (al-qalb), o órgão do conhecimentointuitivo, unificador, que transcende completamente todas asoutras faculdades da alma. Assim como o Sol dá aos planetas asua luz, assim a luz do coração (morada do espírito ou intelecto)ilumina todas as outras faculdades da alma.

'Inteligência' é aqui usada para traduzirratio no sentido antigo (e não no 'racionalista') da palavra (grego:nous; árabe: al-´aql). Como faculdade do pensamentofundamental e compreensivo, a inteligência, nesse sentido – ou ointelecto humano – está relacionada ao Intelecto Divino que tudocompreende. No Intelecto Divino, contudo, os dois aspectos'Conhecimento' e 'Ser' são ambos presentes, enquanto que nointelecto humano só há o aspecto 'conhecimento', porque emcerto sentido o intelecto humano é separado daquilo que eleconhece. Quanto maior e mais compreensiva a sua visão maisseparado do seu objeto. O 'espírito vital', de outro lado, é(subjetivamente e de acordo com a experiência comum)incondicionalmente imerso na existência corporal. Esses são osdois limites extremos da consciência individual, e pode-se dizerque essa consciência é dividida entre mente (nous) e corpo. Ocogito ergo sum ('penso, logo existo') é imediatamente refutadopelo fato de que o pensamento não é capaz de abarcar o seupróprio ser. A expressão 'existo' é tanto a expressão de umacerteza, transcendente e sempre presente, infinitamente acima detodo pensamento, ou meramente da experiência comum daexistência corporal e individual, que não faz nada mais do queacompanhar passivamente o pensamento, por mais que issopossa ser envolvido por uma verdadeira rede de imaginações. Oconhecimento e o ser são refletidos separadamente naconsciência individual, como mente e corpo. Para libertar-sedessa dualidade, a consciência deve retornar ao 'Sol' do coração.Como dizem os alquimistas, o 'corpo' deve de novo tornar-se'espírito' e o 'espírito', 'corpo'.

A respeito dos outro planetas, Júpiter égeralmente comparado à faculdade da decisão (em árabe: al-himmah). Ele assim representa a forma espiritual ou intelectualda vontade. À Marte pertence a coragem; Al-Jîlî a ele atribui a'imaginação ativa' (al-wahm). Ambos os atributos estão

Argel y Lyon, 1953.

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relacionados à vontade do 'demiurgo', inclinada para a terra. Deacordo com Macrobius e todos os cosmologistas helenísticos,Vênus é a estrela da paixão amorosa. Para Al-Jîmî é acima detudo é o arquétipo da 'imaginação passiva' (al-khiyâl), e estárelacionado à imaginação ativa de Marte como está a cola para oselo. Para todos os cosmologistas, Mercúrio é o arquétipo dopensamento analítico (al-fikr). À Lua Macrobius atribui afaculdade de formação e movimento do corpo. Isso é definidoainda mais exatamente por Santo Alberto Magno como motusquos movet, in sequendo naturam corporis, ut atrahendo,mutuando, augendo et generando, e esses são exatamente osmodos de ação do espírito vital (spiritus vitalis, ar-rû), que al-Jîlîatribui à Lua.

A hierarquia dos planetas é descendente, ea dos metais correspondentes, ascendente. Os primeiros sãoativos; os segundos, passivos. Como matéria inerte, o metal nãopode ser símbolo nem da faculdade 'cognitiva' nem da 'volitiva'.Assim, em razão de sua natureza estática e informe, ele é aexpressão de um estado similarmente estático de consciência,vale dizer de uma consciência íntima que não é limitada porformas mentais. Isso não é outra coisa que a consciência íntimado corpo individual. Isso é a sua 'forma da alma'. Desse 'metal' osalquimistas podem extrair 'alma metálica' e o 'espírito metálico'.A consciência corporal caótica e 'opaca', sobrecarregada compaixões e hábitos, é um metal comum. Nele alma e espíritoaparecem sufocados, sombrios, misturados com a terra. Por outrolado, a consciência corporal 'iluminada' (metal 'nobre') é elamesma um modo espiritual de existência. A alma deve primeiroser extraída de um metal comum, dizem os alquimistas. O corporemanescente deve ser purificado e queimado até que não ficanada além de cinzas. Então a alma deve ser reunificada com ele.Quando o corpo é assim 'dissolvido' na alma, então ambosconstituem uma materia pura, o Espírito age na alma e confere aela uma forma incorruptível. Vale dizer, ele transmuta aconsciência corporal individual de volta à sua própriapossibilidade puramente espiritual, onde, em toda a suacompletude e de acordo com a sua própria essência, elapermanece imóvel e indivisível. Basilius Valentinus comparaesse estado com o 'corpo glorioso' do ressuscitado.

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Enquanto que a astrologia, em suaqualidade de ciência teórica, parte sempre do mais alto, ou seja,dos arquétipos cujos símbolos celestes são os doze signos dozodíaco e, baseando-se nas posições dos planetas, os projeta eentrelaça em sentido descendente, a alquimia, como arte queenobrece a matéria 'metálica', parte da matéria ainda sem forma,vale dizer, do mais baixo e, portanto, não se funda na formaessencial, no arquétipo, mas sim na matéria-prima, que, comocorresponde à sua natureza passiva, encontra-se 'embaixo'.(trecho extraído da tradução espanhola – não consta da traduçãoinglesa)

Ao lado da hierarquia planetária,estabelecida em sentido inverso à ordem dos metais, há tambémuma ordem diversa e mais antiga dos planetas que é paralela àordenação alquímica. Trata-se da sua gradação de acordo com'casas', cuja distribuição no zodíaco apenas ganha significadoquando seus eixos ordinários estão localizados no lugar em que,com toda a probabilidade, ela estava situada no zodíaco originalde aproximadamente 2.000 anos antes de Cristo. No momentoem que o eixo do solstício passa entre Leão e Câncer na partesuperior, então, como resultado, as assim chamadas 'casasplanetárias' ficam simetricamente arranjadas. Como JuliusSchwabe mostrou46, há muitas sugestões de que essa posição doscéus foi fundamental para todo o simbolismo astrológico. Alémdisso, porque o significado alquímico dos símbolos planetários éidêntico ao astrológico, pode-se presumir que a mesma ocasiãotambém assistiu ao nascimento da alquimia na forma tradicionalna qual ela existiu até os tempos modernos.

46 J. Schwabe, Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951.

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As 'Casas' Planetárias, c. a. 2000 A.C.

Cada planeta possui duas casas adjacentes,uma esquerda e uma direita, ou uma feminina e uma masculina,com exceção da lua e do sol, que têm apenas uma casa cada, eregem, respectivamente, a metade feminina e a metademasculina do zodíaco. Na posição inferior dessa figura dos céus,nos dois lados do solstício de inverno, no lugar da escuridão e damorte, 'habita' Saturno, que corresponde ao chumbo entre osmetais. Seu símbolo (W) mostra o crescente lunar na posiçãoinferior. Simbolicamente isso representa a imersão caótica daconsciência no corpo. Por outro lado, o símbolo de Júpiter, ouestanho (V), que no crescente ocupa a posição superior seguinte,também indica o primeiro passo na perda da alma a partir dospares de opostos elementais. A 'lua' da alma toca aqui a linhahorizontal da cruz, que significa a expansão cósmica.Imediatamente abaixo do eixo médio horizontal de todo ozodíaco estão as duas casas de Marte e, imediatamente, as deVênus. Seus dois símbolos (U e T) são como imagens espelhadasum do outro. O símbolo de Marte, que corresponde ao ferro,exibe uma cristalização ou um mergulho do espírito no corpóreo.No símbolo de Vênus, ou cobre, por outro lado, o 'sol' do espíritoaparece sobre a 'árvore' das tendências elementais. A cor do ouro

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se torna visível, mas ainda não está purificada. Sobre ele estão asduas casas de Mercúrio (ou quicksilver). Seu símbolo (S) é oúnico que contém as figuras tanto do sol como da lua. Omercúrio (quicksilver) contém em sua 'água' lunar o germeardente, ígneo, do sol, assim como o poder original da alma trazconsigo o germe do Espírito essencial. Para os alquimistas, omercúrio (quicksilver) é a 'mãe do ouro' e o primum agens do seutrabalho. O sol e a lua colocam-se um em oposição ao outro emsuas casas no topo do zodíaco. A lua (R) é análoga à alma em seuestado de pura receptividade, e o sol é análogo ao espírito, oumais exatamente, à alma transmutada e iluminada pelo espírito,representando a perfeita união do espírito, da alma e do corpo.

O sol não apenas meramente governa emsua própria 'casa'. Ele também atravessa todo o zodíaco, subindoatravés do seu lado 'masculino' e descendo através do lado'feminino'. O 'solstício' entre o descendente e o ascendente estáno domínio de Saturno, e no seu 'caos' plúmbeo a vida do sol edo ouro está escondida.

'Finis corruptionis et principio gerationis' (O fim da corrupção eo começo da geração). A luta entre as duas forças primordiaisdo sol e da lua, do Enxofre e do Mercúrio no círculo celestial. –Do assim chamado 'Ripley Scrowle', na Biblioteca do BritishMuseum.

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O mito alquímico do Rei Ouro, que deveser morto e enterrado, a fim de que possa despertar de novo paraa vida, e que, ascendendo através das sete dominações (régimes)alcança a sua glória suprema, não é nada além de uma expressãodesse simbolismo astrológico. Esse simbolismo, entretanto, é areflexão cósmica de uma lei secreta: a centelha divina no homemcorresponde ao sol. Ela parece morrer quando a alma entra nacasa de Saturno. Na verdade, entretanto, ela surge outra vez e,ascendendo através dos sete níveis de consciência, transforma-seem um 'leão vermelho' – o elixir que tudo transmuta.

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CAPÍTULO 6

A ROTAÇÃO DOS ELEMENTOS

Como dito acima, a alquimia espiritual nãose envolveu necessariamente em operações metalúrgicasconcretas, ainda que tenha feito uso delas por analogia. Não sedeve, contudo supor que originalmente o trabalho interno eexterno andam de mãos dadas, porque dentro do quadro de umacivilização orgânica, orientada em direção à meta maior dohomem, uma profissão apenas pode ter um significado quandoserve à via espiritual. Uma forma simbólica de expressão, porsua parte, apenas encontra sua justificação na experiênciaimediata. Desse modo, é apropriado neste ponto olhar alguns dosmais simples procedimentos metalúrgicos, que sempre serviramcomo suportes simbólicos para a alquimia.

Apartados dos procedimentos puramentemetalúrgicos (tais como extração de metal a partir de minériomisto ou impuro, e sua fundição e, se necessário, a suacombinação com outros metais, para tornar benéficos seusdefeitos específicos), há também a produção daquelassubstâncias químicas que atuam sobre os metais (tantopurificando-os ou dando-lhes propriedades específicas, comouma maior fusibilidade, uma maior dureza ou uma corparticular). Entre tais substâncias estão o antimônio e o enxofre,assim como o mercúrio que, embora metal em si mesmo,também atua como um solvente de outros metais.

Como a produção e o uso desses produtosquímicos também estão na competência dos metalúrgicos,veremos que o objetivo dessas atividades correspondem a todosos intentos e propósitos dos químicos modernos. Daí porqueofícios relacionados, tais como a produção de vidros coloridos epedras preciosas artificiais, e a preparação de cunhas, foramtambém incorporadas na tradição basicamente metalúrgica daalquimia e da sua linguagem simbólica.

Famosos alquimistas, como Jâbir ibnHayyân, Abu Bakr ar-Râzî (morto em 925) e Geber, mencionamem seus trabalhos toda uma série de operações fundamentais

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que, ainda que sejam obviamente químicas por natureza, tambémservem como símbolos do processo interior, por causa do seucaráter genérico e típico.

De acordo com Jâbir, há quatro processosque governam o trabalho alquímico: primeiramente a purificaçãode substâncias, então sua solução, seguida por uma novacoagulação e finalmente a sua combinação. Ar-Râzî incluidiversas outras operações – a maioria delas também encontradasna Summa Perfectionis de Geber – das quais aqui apenasmencionaremos as mais importantes: volatilização ousublimação serviram, como continuam a servir hoje, para separaruma substância evaporável de uma mistura, e então obtê-la emestado puro. Como é sabido, o enxofre é produzido dessamaneira. Descensão, por outro lado, foi usada para separar umasubstância fundível (um metal) pela drenagem, a partir deminerais não-fundíveis. A destilação era a filtragem desubstâncias solúveis. A queima ou calcinação transforma o metalem um óxido solúvel, que, quando dissolvido (dissolução), podeser separado de substâncias insolúveis com ele misturadas. Eleentão deve ser trazido de volta ao seu estado não-oxidável, pelacoagulação e redução renovadas. Substâncias voláteis podem ser'fixadas' e tornadas estáveis pelo fogo, e substâncias sólidaspodem ser tornadas como cera, ou tornarem-se fundíveis, pelaincineração. Nessas operações, ao lado de agentes puramenteminerais, agentes orgânicos como azeite e urina também sãoutilizados.

Se a alquimia prática permanece sem oconhecimento analítico que está à disposição da químicamoderna, a sua visão, por essa mesma razão, é mais nítida paraos aspectos qualitativos da matéria e para as suastransformações. Nesse aspecto, seus métodos foram muitas vezesextremamente bons, e é possível que eles, algumas vezes,tenham tido acesso a área que a ciência moderna não leva emconta. A natureza tem diversas facetas.

O símbolo mais impressionante é atransformação que uma única substância pode sofrer, tornando-sesucessivamente líquida, gasosa e então sólida novamente; outendo sido quebradiça, torna-se flexível como uma cera; ou,perdendo sua forma em uma solução, repentinamente adquire

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uma nova forma, desta vez cristalina; ou, na mudança de seuestado, ela adquire uma nova cor. Essa capacidade detransformação, por parte de uma única substância, simbolizamais claramente do que qualquer outra coisa a materia primaúnica do cosmos, capaz de assumir todas as formas e estadospossíveis, sem uma alteração essencial. Isso também joga luz nanatureza da alma, que de igual modo expõe vários estados epropriedades, todos de algum modo pertencendo à sua (não-imediatamente discernível) essência. Assim, no forno ou balãode ensaio dos alquimistas, pode-se ver em miniatura o 'jogo' daNatureza (quer seja no domínio corporal, quer seja no domíniopsíquico).

Ao interpretarem as mudanças corporaiscomo expressão de uma lei geral, os alquimistas remetem, porum lado, aos quatro elementos, e por outro às quatro qualidadesnaturais (quente, frio, úmido e seco), que, como modos de açãoda natureza, são 'ativos' na sua relação com os elementos. Oesquema dessas relações também foi mencionado por Aristóteles.

As quatro qualidades sensíveis são assim'móveis' em relação à matéria, e parecem de fato terem acapacidade de transformar um elemento no seu próximo: assim,é pelo calor que a água é absorvida pelo vento; é pela frieza queela se congela e se torna similar à terra sólida. Na realidade,

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entretanto, não são os quatro elementos que se modificam, mas amateria corporal que, sob a influência das qualidades sensíveis,migram através dos estados 'elementais'. Nesse sentido,efetivamente apenas o calor e a frieza atuam como forçasmotrizes, e, como a segunda qualidade não é nada além de umanegação da primeira, cuida-se que, em última análise, é o calormesmo a origem da 'rotação'. É o efeito do fogo, sozinho, quetorna a substância, no forno dos alquimistas, sucessivamentelíquida, gasosa, ígnea e, uma vez mais, sólida. Assim, ela imitaem miniatura o 'trabalho' da Natureza mesma.

O esquema esboçado acima também temum significado em relação à alma; e aqui as qualidadesexpansão, contração, dissolução e solidificação tomam oslugares de quente, frio, úmido e seco. Podemos retornar a issomais tarde. Já se fez menção da correspondência entre os quatroelementos e os estados da alma; a importância 'especulativa'dessa alquimia – no sentido antigo de speculatio, vale dizer, um'espelhamento' de verdades espirituais – repousa no fato de que aobservação de um único caso visível pode ser a chave aosgrandes ritmos da natureza. A penetração no substrato invisívelde uma substância individual, que os químicos modernos têmcomo sua meta, não contribui para essa utilidade, mas pelocontrário fornecem informações bastante diversas, que nãofacilitam uma visão total do mundo corporal e do mundo daalma.

O conteúdo da visão hermética da naturezapode ser visto na seguintes palavras de Muhyi ´d-Dîn ibn ´Arabî:'O mundo da natureza consiste de diversas formas que sãorefletidas em um espelho único – ou melhor, é uma forma única,refletida em diversos espelhos47'. O paradoxo expressado aqui é achave ao significado espiritual das aparências.

Não é por acaso que o esquema doselementos e das qualidades naturais ('modos de ação') dadosacima assemelha-se à roda cósmica, cujo arco é a órbita solar ecujos raios são as quatro direções cardinais.

Alquimicamente falando, o eixo da roda é aquintaessentia. Através disso faz-se referência tanto ao póloespiritual de todos os quatro elementos ou a seu fundamento

47 Veja a minha tradução de Fusûs al-Hikam, op. cit. pág. 139.

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substancial comum, o éter, no qual todos eles estão contidosindivisivelmente contidos. Para mais uma vez atingir o seucentro, o desequilíbrio dos elementos diferenciados deve serreparado; a água deve tornar-se ígnea; o fogo, líquido; a terra,sem peso; e o ar, sólido. Aqui, contudo, deixa-se o plano dasaparências físicas e entra-se no reino da alquimia espiritual.

Synesios escreveu: 'É assim claro o que osfilósofos querem dizer quando descrevem a produção da suapedra como alteração de naturezas e a rotação de elementos.Você agora percebe que por 'incorporação' o úmido se torna seco;o volátil, imóvel; o espiritual, corpóreo; o fluído, sólido; a água,em substância flamejante; e o ar, algo como a terra. Assim, todosos quatro elementos renunciam à sua própria natureza e, pelarotação, transformam-se um em outro... Assim como no iníciohavia um Único, assim também nesse trabalho tudo vem doÚnico e retorna ao Único. Isso é o que quer dizer aretransformação dos elementos...'48

48 Bibl. des Phil. Chim.

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CAPÍTULO 7

DA MATERIA PRIMA

De acordo com os alquimistas, os metaiscomuns não podem ser transmutados em prata ou ouro semprimeiro serem reduzidos à sua materia prima. Se os metaiscomuns são considerados como sendo análogos ao estado“coagulado” unilateral e imperfeito da alma, então a materiaprima a qual eles devem ser reduzidos não é nada além da“substância fundamental” subjacente, vale dizer, a alma no seuestado original, como ainda incondicionada por impressões epaixões, e “não-cristalizada” em sua forma definitiva. Apenasquando a alma é liberta de toda a sua rigidez, e contradiçõesinternas, ela se transforma na substância plástica na qual oEspírito ou Intelecto, vindos do alto, pode imprimir uma nova“forma” – uma forma que não limita ou vincula, mas aocontrário completa, porque vem da Essência Divina. Se a formade um “metal” comum é uma espécie de “coagulação”, e assimum grilhão, a forma de um “metal” nobre é um símboloverdadeiro, e como tal uma ligação imediata com o seu próprioprotótipo em Deus.

De acordo com os alquimistas, a alma, emseu estado original de pura receptividade, é fundamentalmenteuma com a materia prima do mundo inteiro. De algum modoisso não é senão a restauração da premissa teorética de toda aalquimia, especificamente a correspondência recíproca entremacrocosmo e microcosmo. Ao mesmo tempo, isso é tambémuma expressão da meta do trabalho alquímico. A unidade daalma com a matéria-prima é verdadeiramente “vivida” econhecida apenas na medida em que o trabalho tenha progredidopelo caminho que produz à sua realização. - e aqui nós tocamosno segredo real da alquimia, porque tudo o que é dito a esserespeito deve necessariamente permanecer nada mais que umaindicação e um símbolo.

A materia prima, a substância fundamentalda alma (psyque), é em primeiro lugar a substância daconsciência individual egóica; e então de todas as formas físicas,

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independentemente dos seres individuais; e finalmente do mundointeiro. Todas essas interpretações são válidas; porque, se a“teia” do mundo não é fundamentalmente da mesma naturezaque aquela da alma, todo indivíduo estaria preso em seu própriosonho – o que é um absurdo. Mesmo se, em relação ao Espíritoimutável, o mundo é um “sonho”, o “sonho” é não-obstanteconsistente por si mesmo. “Nós somos feitos da mesma matériados sonhos”, disse Shakespeare, em sua peça hermética ATempestade. A oposição entre “interno” e “externo”, do mundoda alma, e do mundo físico, são tecidas neste sonho.

Simbolicamente, a matéria-primapermanece “abaixo”, porque ela é completamente passiva, e elaaparece como “escura”, porque como o absolutamente não-formado, ela ilude todo avanço da inteligência. Esta é a fonte dodesentendimento que confunde a materia prima dos alquimistascom o “inconsciente coletivo” da psicologia moderna. A materia,entretanto – ao contrário daquele mal-definido domínio psíquico– não é a fonte do impulsos irracionais e mais ou menos“exclusivamente psíquicos”, mas, como foi dito, a base passivade todas as percepções. Além disso, a palavra “coletivo”, talcomo a aplicam os psicólogos, encerra uma contradição: ou bem,segundo sua etimologia, designa um conjunto de coisas – nesteexemplo disposições psíquicas herdadas –, caso em que é difícilcompreender como pode aqui haver qualquer unidade, já que aherança não apenas se acumula mas também se ramifica; ouentão é usada imprecisamente para significar “geral”, no sentidodo que é comum a todo homem – mas isso é então a natureza daalma e do corpo. Neste caso, entretanto, resta demostrar como ospsicólogos que observam e acessam o assim chamado“inconsciente coletivo” – de cima, de onde ele parece fazê-lo umobjeto de um estudo “objetivo” – não pensa ou age, ele próprio,como resultado desse substrato “coletivo”. Seja como for, a suaposição continua aquela do homem que, sentado em um barco,deseja esvaziar o mar.

Pode-se fazer uma distinção entre, de umlado, a mais ou menos tenebrosa camada da consciência, deitadaabaixo da consciência cotidiana (cuja camada, de modo algum,pode ser completamente inconsciente naquilo que, de algumamaneira é absorvido conscientemente) e, de outro lado, há a real

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e puramente passiva, e assim em si mesma amorfa, terreno daalma, com a sombria camada acima referida (que se assemelha aum tipo de crepúsculo, com uma tendência decrescente emdireção à densidade, mais do que uma noite completamenteescura) é preenchida com os sedimentos de impressões psíquicase modos comportamentais. O verdadeiro fundamento da alma,por outro lado, não é em si mesmo nem escuro nem claro; nemtampouco um vulcão com erupções irracionais. Pelo contrário,quando não está completamente velado, e então estáaparentemente escuro, é o espelho fiel do seu polocomplementar, o Espírito Universal49, e assim de todas asverdades que, quando a força latente da imaginação se aproximada condição pura da materia prima, ocasionalmente expressa a simesma na forma de símbolo. Isso pode ocorrer em sonhos, aindaque raramente, pois em geral a concepção de mundo dos sonhosé o brinquedo dos mais variados impulsos; e como a alma, emestado de sonho, está a mercê de toda sorte de possibilidades deinfluência, isso também pode ser uma “endiabrada” ou mesmosatânica distorção de símbolos. Outro não menos importante dosperigos da moderna “psicologia profunda” é que ela confundedesesperadamente símbolos verdadeiros com suas distorções.Isso acontece, por exemplo, quando as mandalas do ExtremoOriente são colocadas no mesmo nível das pinturas concêntricasdo doente mental50. Um simbolo verdadeiro nunca é “irracional”.O “supra-racional” nunca deve ser confundido com “irracional”.

*

Com o intuito de demonstrar que a materiaprima contém em potência todas as formas de consciência e,assim, todas as formas do mundo efêmero, o alquimistas árabedo Séc. IX, Abu´l-Qâsim al-Irâqî escreveu: “(...) A materia

49Analogicamente, voz populi, vox Dei, em que “pessoa”, no verdadeiro sentido dapalavra (uma característica da coletividade que a coletividade moderna mais oumenos aboliu) corresponde exatamente ao real fundamento da alma.50 Como na introdução feita por C. G. Jung na tradução alemã feita por RichardWillelm do livro taoísta The Secret of the Golden Blossom [ Das Geheimnis derGoldenen Blüte] (Munich, 1929). Algumas das pinturas de doentes mentaisreproduzidas neste livro e comparadas com mandalas são realmente caricaturas, nasquais imaginações infantis de doutrinas secretas orientais podem ser detectadas.Outras são ninharias inofensivas e insignificantes.

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prima pode ser encontrada em uma montanha, que contém umaincontável quantidade de coisas incriadas. Nessa montanha estátodo tipo de conhecimento que pode ser encontrado no mundo.Não há conhecimento, entendimento, sonho, pensamento,habilidade, interpretação, consideração, sabedoria, filosofia,geometria, política, poder, coragem, distinção, satisfação,paciência, disciplina, beleza, criatividade, viagem, ortodoxia,liderança, exatidão, crescimento, comando, autoridade, riqueza,dignidade, conselho ou negócio que não esteja contido nela. Mastambém não há ódio, malevolência, engano, infidelidade,confusão, ilusão, tirania, opressão, corrupção, ignorância,estupidez, baixeza, despotismo, ou excesso, e não há música,jogo, flauta ou lira, ou casamento, nenhuma brincadeira, nenhummembro, nenhuma guerra, nem mesmo sangue ou homicídio quenão esteja contido nela (...)”51. A montanha em que a materiaprima pode ser encontrada é o corpo humano, pois a redutio àsubstância universal procede metodicamente da consciênciacorporal, que deve primeiro ser “dissolvida” a partir de dentro,antes que o homem possa alcançar a alma além do nível dasformas – e não simplesmente e de modo indireto através de suasexperiências sensoriais. Isso explica a interpretação que BasiliusValentinus fez da palavra-chave alquímica V.I.T.R.I.O.L.: Visitainteriore terrae; rectificando invenies occultum lapidem (“Visiteo interior da terra, através da purificação você encontrará a pedraescondida”). O interior da terra é também o interior do corpo,isto é, o centro íntimo e indiferenciado da consciência. A pedraescondida não é outra senão a materia prima.

*

A partir do ponto de vista “interior”, a“redução dos metais à sua substância primária” não tem nada aver com uma imersão sonambúlica da consciência no“inconsciente”. A “redução” ocorre apenas depois de umcombate árduo contra as tendências conflituosas da alma, nasquais todos os “nós” ou “complexos” irracionais devem emprimeiro lugar ser dissolvidos. O trabalho alquímico não é umtratamento para doenças mentais.

51 Texto fornecido por Dr. S. Hussein Nasr, Teheran.

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No caminho a partir da consciênciadiferenciada para a indiferenciada então intervem a escuridão,correspondente ao caos. Essa é a condição da materia que já nãoestá em posse de sua pureza original, mas cujas possibilidadesdiferenciadas continuam confusas e desordenadas. Tal é acondição da “crueza material”. Se entretanto a consciência sedirige a alcançar o nível mais profundo ela percebe o espelho dofundamento da alma, que, embora não seja alcançável em sua“realidade substancial”, entretanto revela sua natureza – isso érefletir, desembaraçadamente, a luz do Intelecto. O caos da almaé como o chumbo. O espelho do fundamento da alma é como aprata. Também é possível compará-la a uma fonte pura. Trata-seda mítica fonte da juventude, de cujas profundezas emana a águada vida, semelhante ao mercúrio. Esse é o significado dasseguinte nota do alquimista Bernardus Trevisanus:

“Aconteceu que em uma noite eu tinha deestudar em vista de uma disputa que haveria no dia seguinte. Noentanto eu encontrei uma pequena fonte, bonita e clara, ecompletamente cercada por uma linda pedra. A pedra estava notronco de um velho carvalho oco, completamente cercada por ummuro, para prevenir que de vacas e outros animais irracionais –incluídos os pássaros – não se banhassem na fonte. Como euestava muito sonolento, eu me sentei na beira da fonte, e eu vique ela estava coberta em cima, e assim completamente fechada.

“Então se aproximou um velho sacerdote eeu lhe perguntei por que a fonte estava completamente fechada,por cima, por baixo e por todos os lados. Ele se virouamavelmente em minha direção, e começou a responder assim:'Senhor, a verdade é que essa fonte possui um poder terrível,maior que qualquer outro nesta terra. Este poder é apenas para orei deste lugar, a quem ela conhece bem e que a conhece. Porduzentos e oitenta e dois anos, o rei se banha com este podernesta fonte. Fazendo isso o rei se rejuvenesce bastante a sipróprio. Então nenhum homem pode vencê-lo (...)”

“(...) Ao ouvir isso eu retorneisecretamente à fonte e comecei a abrir todas as toda asfechaduras (que funcionavam perfeitamente). Então eu comeceia olhar o livro que eu havia ganhado (em uma disputa) e apreciarseu belo esplendor. Mas como eu estava bastante sonolento, ele

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caiu na fonte, entristecendo-me sobremaneira, já que eu desejavaguardá-lo, pois se tratava de um prêmio honorífico. Então eucomecei a olhar (para dentro da fonte) até que o meu sinalsurgiu. Eu então comecei a esvaziar a fonte e eu fiz isso tão beme tão cuidadosamente que apenas faltava a décima parte – que,apesar da minha enérgica atividade, permaneceu como umamassa. Como eu assim trabalhei, pessoas de repente começarama vir (…) e pela minha transgressão eu fiquei preso por quatrodias. Quando, depois desses quatro dias, eu deixei a prisão, eufui de novo olhar a fonte. Então eu vi nuvens negras e escuras,que se mantiveram por um longo tempo. Finalmente, entretanto,eu vi tudo o que o meu coração desejava, e eu não tiveproblemas a esse respeito. E você também não terá nenhum, sevocê não se perder em um caminho mal e traiçoeiro,negligenciando essas coisas que a Natureza requer52.

*

Os alquimistas dão à materia prima – queeles consideram tanto a substância primeira do mundo como asubstância básica da alma – um grande número de nomes. Oobjetivo dessa multiplicidade não é tanto proteger o hermetismodos desqualificados, mas sim sublinhar o fato de que estamateria está presente em todas as coisas, e do mesmo modo elacontém todas as coisas. Eles a chamam “mar”, porque ela trazdentro de si todas as formas, como o mar traz em si as ondas, ou“terra”, porque ela nutre tudo o que “nela” vive. Ela é a “sementedas coisas”, a “umidade básica” (humiditas radicalis), o hyle. Elaé “virgem” em razão da sua pureza e receptividade infinitas e“meretriz”, porque ela parece abraçar-se a todas formas. Tambémé comparada, como já vimos, à “pedra secreta”, embora em suaprimeira condição deve ser distinguida da “pedra filosofal”, queé o fruto de todo o trabalho. A materia prima pode serconsiderada como “pedra”, apenas naquilo que permaneceimutável. A sua designação como pedra lembra o gohar persa e ojawhar árabe, que significa literalmente “pedra preciosa”, e emum sentido metafórico é utilizada para significar “substância”

52 Do Le Livre du Trévisan de la philosophe naturelle des métaux, na Bibl. des. Phil. chim.

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(em grego, ousia).A materia prima é também o “depósito de

minério” de todos os metais. De outro ponto de vista, entretanto,é o homem que é chamado “depósito dos minerais”, a partir doqual a materia do trabalho deve ser extraída, como Morienusexplicou ao Rei Khalid: Haec enim res a te extrahitur; cuiusetiam minera tu existis (“Isto é extraído de você, porque você ésua mina”).

Nessa condição caótica na qual nem é puranem modelável, nem dotada de formas claras, a materia échamada de “coisa comum”, já que, como “materia bruta” éencontrada em todo o lugar. Ademais, ao mesmo tempo, é uma“coisa bastante preciosa”, porque a partir dela o elixir com o qualse pode fazer ouro é obtido. A matéria bruta, que em comparaçãocom a materia prima representa a materia secunda é comparadacom o chumbo (no qual a natureza do ouro está escondida) oucom o gelo (que pode ser derretido), ou com um campo (queapenas produz frutos quando está arado e semeado). HenrichKunrath disse: “(...) A terra encharcada, úmida, gordurosa elamecenta de Adão, materia prima, da qual esse imenso mundo,nós mesmos, e nossa poderosa pedra foram criados, faz a suaaparição (…)53.

Como uma árvore, a materia prima estáunificada com a árvore do mundo, cujos frutos são o Sol, a Lua eos planetas. Na “árvore” da materia crescem o ouro e a prata, outodos os metais, ou de novo as variadas fases do trabalhoalquímico, com suas cores simbólicas preto, branco e vermelho,e algumas vezes o amarelo entre o branco e o vermelho. Abu´l-Qâsim al-Irâqî escreveu a respeito desta árvore, que tem suasraízes não na terra, mas no mar do universo. Aqui “mar” é amateria da alma, anima mundi. A árvore cresce nas “terras doOeste”, portanto na terra do Sol poente. Daí que materiacorresponde ao Ocidente, assim como forma, o protótipoessencial, corresponde ao Oriente. A “árvore” pode assumir aforma de uma criatura viva, já que é a forma interna do homem.Dela é obtida a materia prima do trabalho, pois no fruto aorigem da árvore mesma permanece escondida.

A materia prima, que pode produzir a

53 Henrich Kunrath, Thatrum sapientiae aeternae.

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forma do elixir, é obtida a partir de uma única árvore, que crescenas “terras do Ocidente”. Ela tem dois ramos, que são muitoaltos, para que qualquer um que coma seus frutos não o faça semtrabalho e esforço, e dois outros cujos frutos são secos e maisenrugados que os daquela. A flor do primeiro dos dois ramos évermelha, e a flor do segundo está entre o branco e o preto. Aárvore tem dois outros ramos, que são mais fracos e mais levesque os primeiro quatro. A flor do primeiro desses dois ramos épreta, e a do segundo é branca e amarela. Essa árvore cresce nasuperfície do oceano, assim como outras plantas crescem nasuperfície da terra. Quem quer que coma dessa árvore éobedecido tanto pelos homens como pelos gênios (jinn). Esta é amesma árvore daquela que Adão – que a paz esteja com ele! –estava proibido de comer. Quando ele comeu dela, ele foitransmutado de uma forma angélica para uma forma humana.Esta árvore pode transformar-se em qualquer criatura viva(...)54”.

A materia prima dos alquimistas é tanto aorigem como o fruto do trabalho, porque o caos da materia éobscuro e opaco apenas na medida em que as formas estão nelecontidas – e inclusive “brotadas” – não atingem seu completodesenvolvimento. Toda “potência” (potentia) é, na essência,impenetrável. Isso é assim no caso de um mineral que aparentaser bruto e opaco na sua condição amorfa, mas que, a partir domomento em que ganha forma como um cristal, é claro etransparente. Entretanto, não se deve concluir a partir disso quetodas as possibilidades fundamentalmente presentes na almanecessariamente serão manifestadas, porque, em primeiro lugar,a sua multiplicidade é inexaurível, e, em segundo, a grandevariedade do conteúdo das almas é um obstáculo à realizaçãodessas “forma” essencial, ou seja, o estado unitário e harmoniosoda consciência, que é um perfeito espelho do “Ato Divino”.Assim, a verdadeira natureza da materia prima revela-se a simesma na medida em que recebe e assume a verdadeira forma.

Assim como a substância universal(materia prima) apenas pode ser apreendida por meio doconhecimento do Puro Ser, de que é sombra, assim também overdadeiro fundamento da alma apenas pode ser conhecido em

54 Texto fornecido por Dr. S. Hussein Nasr, Teheran.

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sua reação ao Puro Espírito. A alma apenas se revela a si mesmaquando unida como noiva do Intelecto-Espírito. É isso que émencionado quando se fala do casamento do Sol e da Lua, do reie da rainha, do enxofre e do mercúrio.

*

O “descobrimento” do aspecto receptivoda alma e a “revelação” do Espírito Criativo vieram ao mesmotempo. Eles não podem ser separados um do outro. Apesar disso,as várias fases e aspectos do trabalho interior podem fazerreferência a um ou a outro polo. Todo caminho de realizaçãoespiritual visa à preparação do “produto”, ou substância,receptivo, e o “trabalho” ou influência do Ato espiritual oudivino sobre ele. Dependendo do caminho seguido, entretanto, aênfase – tanto doutrinal como prática – irá repousar-se tanto emum como em outro dos dois processos internos, e, em vista disso,a meta espiritual irá ser também definida sobre o “Ato imóvel”ou sobre o aspecto imutável e puro da alma. O simbolismoartesanal da alquimia, que consiste no “enobrecimento” de umasubstância mineral, requer que a alma seja concebida como uma“substância”, e inclusive que uma ideia de “primeira substância”(materia prima) seja colocada no centro de todas asconsiderações. Mesmo o efeito do Intelecto transcendente, que é“antípoda” da “matéria” da alma é, na linguagem simbólica daalquimia, expressada “substancialmente”, como umatransformação química. O fato de que essa transformação excedapossibilidades puramente artesanais indica que sua origem não émeramente substancial.

Os dois aspectos ou fases da realizaçãoespiritual são claramente ilustrados em determinada formatradicional de crucifixo, decorada com símbolo. Como exemplodisso, nós selecionamos uma cruz prateada relicária, do começodo Séc. XIII, que está conservada no monastério de Engelberg ecuja decoração prova que a alquimia esteve ligada à arte daourivesaria. O crucifixo é decorado com gravuras em ambos oslados. À frente (reconhecível por seu relevo mais profundo) trazno centro a figura do Salvador crucificado, e nas extremidades

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dos seus quatro membros representações dos quatro evangelistas,juntamente com seus símbolos animais. Esta foi umacomposição muito difundida da arte cristã da Idade Média. Masaqui ela aparece em uma forma relativamente “naturalística”.Nas cruzes litúrgicas antigas, a figura do Cristo, ou do Cordeiro,é cercada apenas por quatro animais celestiais, que conferem aosimbolismo uma grande austeridade, e ao mesmo tempo umagrande amplitude. De um modo semelhante, as costas docrucifixo mostram no centro a Santíssima Virgem entronizadacom o menino Jesus, e nas quatro extremidades os símbolos dosquatro elementos. O foto está acima, o ar na direita (doexpectador), a água à esquerda e a terra abaixo.

Os dois lados da cruz podem serconsiderados como representações do “essencial” e do“substancial”, do “ativo” e do “passivo”, da forma e da materiado cosmos: a frente trazendo os personagens humanos da PalavraDivina e os seus quatro “modos de revelação” (os evangelistas)claramente corresponde (em sua relação com o simbolismo dolado reverso) ao Ato Divino ou “forma essencial” do cosmos. Olado oposto, por outro lado, corresponde à materia prima, oumelhor, ao mundo que daí procede. A Virgem, no centro,simbolicamente assume o papel do éter que, de um determinadoponto de vista hermético, deve ser identificado com a materiaprima. Os quatro elementos, por sua vez, manifestam as quatrodeterminações fundamentais da materia prima, e assim tambémos quatro fundamentos de todo o universo formal. O inviolávelequilíbrio da materia prima, sua natureza “virginal”, torna-seclaro pela posição central dada à Virgem, correspondente aosquatro símbolos do fogo, ar, água e terra.

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Cruz-relicario del abad de Engelberg Heinrich von Wartenbach,hacia 1200. Anverso. Monasterio de Engelberg.

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La misma cruz. Reverso.

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É desnecessário acrescentar que ainterpretação cosmológica que a interpretação cosmológicadessas imagens cristãs não é de modo algum depreciada em seusignificado teológico. Pelo contrário, há coincidência entre asduas “perspectivas” espirituais em um e mesmo símbolo conferea ele uma importância ainda maior – de ambos os pontos devista. Isso revela ainda mais claramente o seu conteúdoverdadeiramente metafísico, que dá amostras das possibilidadescompletamente ilimitadas da pura contemplação, que está abertaao artista experimentado na arte hermética, e ao mesmo tempoenraizado na fé cristã.

A conexão intrínseca entre as duasconcepções simbólicas – encontradas respectivamente na frente eno verso da cruz – encontra expressão na pomba do EspíritoSanto, retratada como que descendo em direção à Virgem, e noMenino Jesus presente no seu colo. A pomba representa apresença do Espírito não-criado, sob cuja influência a materiaprima sofre seu desenvolvimento formal, tanto quanto sob Suasombra a Virgem concebe e dá à luz. Como o Menino, nascidodela, o Espírito Divino ganha forma. Ele continua o mesmo emessência, mas se reveste da substância dada a Ele por Sua mãe.Ele adapta-Se aos diferenciados aspectos da matéria55.

A forma mesma da cruz, que expressa a leide todo o cosmos, pode ser encontrada em cada um dos polos.Ao mesmo tempo corresponde à relevação quádrupla da PalavraEterna e aos dois pares de opostos contidos na materia prima.Assim, todo trabalho espiritual procede tanto do Ato Essencial,quanto do Seu receptáculo substancial. A alma não pode sertransmutada sem a cooperação do Espírito, e o Espirito ilumina aalma apenas na medida da sua preparação passiva econformidade com o seu modo. A oposição entre os dois polos ésuperada apenas no nível mais alto, no puro Ser. Aqui a“substância” receptiva mesma não é nada mais do que aprimeira, imediata e interna determinação do Espírito Divino,que assim desce apenas em direção àquele que já é seu,

55 Assim, de acordo com a doutrina dos místicos islâmicos, a Revelação (tajallî) deDeus no coração assume a forma e a prontidão que a última lhe confere. Verminha tradução de Fusûs al-Hikam, de Muhyi-d-Din Ibn' Arabî: La Sagesae desProphètes, Ed. Albin-Michel, París, 1955.

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assumindo sua forma e modos56.As interpretações dadas às quatro imagens

descritas acima podem ser complementadas por diversos outrosdetalhes. Assim, cada uma das quatro extremidades da cruz temno final três semicírculos. Desse modo, o grupo dos quatroevangelistas e os quatro elementos aumenta para o grupo dosdoze apóstolos e os signos do Zodíaco. Na frente da cruz, anjosseguram um círculo sobre a cabeça do Cristo, enquanto atrásimagens de São Pedro e de vários santos bispos cercam a figurada Virgem. Nessas duas disposições, podem ser reconhecidas ashierarquias celestes e eclesiásticas, que, de acordo com SãoDionísio Areopagita, se colocam frente a frente, dando erecebendo.

Outros detalhes se referem de modo aindamais explícito à alquimia. No tronco da cruz pode-se ver Moiséssustentando o polo com uma cobra de bronze. Trata-se tanto deum protótipo da Crucificação no Antigo Testamento, como umsímbolo da fixação alquímica do mercúrio. O mesmo processo étambém expresso no grupo de animais em combateimediatamente ao lado do pé do Cristo crucificado. Certamente oprimeiro e mais imediato significado deste grupo é a vitória doLeão de Judá sobre os dragões infernais. Mas a mesma imagempode também ser interpretada como a sujeição do mercúrio“volátil” pelo Leão Solar do Enxofre.

56 Dante tinha essa verdade em mente quando chamou a Bem-Aventurada Virgemde “Filha do seu Flho” (figlia del tuo figlio). (Paraíso, começo do Canto 33).

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A cruz de Cristo crescendo como um lírio azul parafora da Santíssima Virgem, que está ajoelhada na Luacrescente. O lírio com cinco pétalas corresponde àquintessencia. E a Mãe de Deus corresponde àmateria prima. Extraída de uma miniatura noalquímico Book of the Holy Trinity, na BibliotecaEstatal de Munique.

Há um paralelo extremo oriental a essaiconografia cristã que, apesar de distante no espaço e no tempo,serve ainda mais fortemente para reforçar a validade universal do

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simbolismo em questão. Nós temos em mente determinadaforma de mandala que é usada no Shingon japonês, um dosramos do Mahayana budista. A mandala consiste em umainsígnia pintada dos dois lados. Em um lado está a representaçãodo “mundo dos indestrutíveis” ou dos “elementos diamantinos”,e do outro lado está uma representação do “elemento uterino”.No centro, dos dois lados, está uma das formas de manifestaçãodo “grande iluminador” o Buddha Mahâvairochana, sentadosobre o lótus. Na primeira representação – aquela dos protótiposimutáveis – o buda tem um semblante contemplativo. Sua cabeçaestá cercada por uma auréola branca, o símbolo da atividade.Isso significa que aqui o polo “substancial” é considerado em seuaspecto dinâmico, correspondente, na doutrina tao budista, comotendo relação com a essência ativa da não-ação e da essênciapassiva da ação. A meditação a respeito da representaçãoprimeiramente mencionada leva ao conhecimento do modo delibertação do porvir, enquanto que a meditação a respeito dosegundo tem como fruto o conhecimento das quatro ciênciascosmológicas57.

*

A interpretação da materia prima como umespelho do Espírito Universal pode também ser encontrada nosimbolismo extremo oriental do espelho. Espelhos chinesesrituais ou mágicos usualmente tem do seu lado reverso umarepresentação de um dragão celestial. Isso corresponde aoEspírito Universal ou Logos. No Shinto, a religião pré-budista doJapão, o espelho sagrado (que reflete a imagem do Deus solarAmaterasu) é obviamente também um símbolo da alma no seuestado de pureza espiritual, no qual ela pode receber e refletir aVerdade – supra-conceitual, Verdade original. Isso nos leva devolta à assimilação hermética da materia prima com o fundo daalma.

Ainda mais surpreendente, o mesmosimbolismo pode ser encontrado entre determinados gruposindígenas norte-americanos, especificamente os Corvos e osShoshonis. Aqui o espelho é inclusive um espelho mágico, por

57 Ver E. Steinnilber-Oberlin, Les Sectes boudhiques japonaises, París, 1930.

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meio do qual o Xamã pode encontrar coisas perdidas ouesquecidas. (Ele as vê nas profundidades do espelho). Nasuperfície do espelho uma linha vermelha em zig-zag é pintada,representando um relâmpago que, para os indígenas, é o símboloGrande Espírito e da Revelação, assim como é também (para osindígenas) a água voando pelos céus, e descendovertiginosamente como um trovão.

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CAPÍTULO 8

A NATUREZA UNIVERSAL

Um importante adágio dos alquimistas é oseguinte: “A arte é a imitação da natureza no seu modo deoperação”. O modelo para o trabalho alquímico é a natureza. Anatureza vem em assistência do “artista” que dominou seu modode operação, e aperfeiçoa, na sua “atividade”, o que ele começoucom trabalho e esforço. “Natureza” tem aqui um significadomuito preciso. Não significa simplesmente o “porvir”involuntário das coisas, mas antes um poder unitário, um poder ucausa unitários cuja essência pode ser conhecida pela apreensãode seu ritmo todo abrangente – um ritmo que regula tanto omundo visível quando o invisível.

Como a alquimia ocidental geralmente usaa linguagem da metafísica platônica, podemos a ele fazermenção com o fim de apreciar em toda a sua extensão tudo o queestá incluído nas expressões natura ou physis. A descrição maissignificativa da natureza pode ser encontrada nas Enéadas (III,8), de Plotino, onde ele escreveu: “Se se pudesse perguntar ànatureza por que ela faz o seu trabalho, ela poderia responderassim – se realmente ela aceitasse responder: seria maisadequado não perguntar (ou seja, não investigar com a mente),mas aprender silenciosamente, mesmo quando eu estou emsilêncio. Pois este não é o meu modo de falar (em contraposiçãoao Espírito, que se revela a Si Mesmo em palavras). Mas issovocê deve aprender, que tudo o que acontece é o objeto da minhacontemplação silenciosa, uma contemplação que minha posseoriginal, pois eu mesmo nasci de uma contemplação(especificamente a contemplação da alma universal), quecontempla o Espírito Universal, tanto quanto este contempla oInfinito). Eu amo a contemplação, e aquilo que em mimcontempla imediatamente engendra o objeto dessacontemplação. Assim os matemáticos registram figuras comoresultado de sua contemplação. Eu, entretanto, não registro nada.Eu apenas observo. E as formas do mundo material surgem,como se elas procedessem de fora de mim...”.

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Assim a natureza, em sua essênciareceptiva, está relacionada à materia prima; e, de fato, ao lado damateria prima (hyle), ela está situada abaixo das três hipóstasescognitivas do universo platônico. Acima dela está a “almauniversal” (psyque), e acima desta está o Espírito Universal(nous), que sozinho contempla o Uno inefável, e ao contemplá-loprocura manifestá-lo sem cessar. Abaixo da natureza está apenasa materia prima, o fundamento passivo de toda manifestação,que por ela mesma não participa do porvir, e assim permaneceeternamente “virgem”. Pode-se chamar a natureza o aspectomaterno da materia prima, já que é ela quem “dá a luz”. Ela éoperativa e móvel, enquanto que a materia prima, em si mesma,permanece imóvel.

Muhyi ´d-Din ´Arabi´, “o grande mestre”(ash-sheikh al-akbar) do misticismo islâmico, e o grandeenunciador dos princípios herméticos, concebe a naturezauniversal (tabi´at al-kull) como o lado feminino ou materno doato criativo. Ela é o “'sopro' misericordioso de Deus” (nafas ar-rahmán), que confere existência diferenciada às possibilidadesindiferenciadas latentes no “não-ser” (´adam). Esse “sopro” émisericordioso, já que as possibilidades que estão em vias de sermanifestadas estão já sedentas por manifestação; mas o mesmopoder tem um aspecto obscuro e confuso. A multiplicidade, em simesma, é desilusão e separação de Deus58.

A explicação de Ibn Arabi a respeito danatureza universal como compreensiva e maternal, mas aomesmo tempo confusa, como poder de origem divina, é aqui deespecial importância, porque ela constitui uma ponte em direçãoà ideia hindu de shakti, o poder produtivo feminino de Deus.Sobre essa ideia de shakti estão baseados todos aqueles métodosespirituais tântricos que estão mais proximamente relacionados àalquimia do que qualquer outra arte espiritual. Os hindus, a bemda verdade, consideram a alquimia mesma como um métodotântrico.

Assim como Kâlî, o shakti é por um lado amãe universal, que amavelmente abraça todas as criaturas, e poroutro lado é o poder tirânico que os conduz à destruição, morte,tempo e espaço (que causa separação). Algumas vezes ela é

58 Ver a minha tradução de Fusûs-al-Hikam, op. cit.

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retratada como tendo uma beleza sublime, algumas vezes comotendo traços que causam terror. Sua cor é escura, como umaessência “sombria”. O shakti é também mâyâ, a arte divina, queconfere aos seres suas múltiplas formas e assim também as afastada sua única e infinita origem.

Esse modo de considerar o poder criativodivino pode parecer surgido de um ponto de vista um poucodiferente daquele da teologia escolástica, ainda que ele nãocontradiga esse último, já que a concepção de que a existência étanto um presente divino quanto (do ponto de vista do puro ser)uma limitação, também pode ser encontrada na ontologiaclássica ensinada pelos padres da Igreja.

A particularidade da concepção aquidescrita, que combina a metafísica de Ibn Arabi com a doutrinahindu do shakti, é que elas se atribui ambos os aspectos daexistência (ou do “porvir”), tanto o positivo quanto o negativo, auma única e mesma causa-raiz, especificamente a naturezauniversal, que é retratada como sendo tanto maternal comoterrível. Em contraposição à ação pessoal de Deus, que é oobjeto real da teologia em si mesma, Sua ação ou operação nomundo é aqui representada de um modo impessoal. Issocorresponde inteiramente ao ponto de vista especial da alquimia– que não é por essa razão agnóstica, embora o conceito de“natureza”, como usado e confundido pelos filósofos iluministas,indiretamente deriva da natura hermética. Que essa naturapudesse ter-se transformado, com a secularização edessacralização da ciência, em um vago e descompromissadosubstituto de Deus, não está inteiramente desconectado com oconcomitante estreitamento do horizonte teológico, que tornoumais difícil uma visão simultânea dos aspectos “pessoais” e“impessoais” da revelação que Deus faz de Si Mesmo.

No que se refere ao trabalho exterior daalquimia, a natureza é o poder direcionador por trás de todas astransmutações – a “energia potencial”. Na alquimia interna elaaparece como o poder maternal, que liberta a alma da suaexistente ignorante, árida e estéril. Assim ela é o poder do desejoe da ansiedade que há no momem, e ao mesmo tempo muitomais, já que como potência inexaurível, “natureza” desenvolvetodas as capacidades escondidas na alma, contra ou juntamente

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com os desejos ou com o ego, dependendo de se esse últimoassimila o poder da natureza ou se transforma em sua vítima. Elaé sempre feminina – tanto como senhora natureza como tambémem seu aspecto terrível como o grande dragão que vaga atravésde todas as coisas.

A natureza, em forma de mulher e árvore, sai rejuvenescida dosbalões de destilação, que são o Sol e a Lua. Os pássaros são as“sementes” de ouro e prata. As duas direções de seu voorepresentam, respectivamente, “solução” e “coagulação”. - Dolivro 'Alchemical Manuscript', de 1550, na Biblioteca daUniversidade da Basiléia.

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De acordo com uma interpretação(associada com o nome da “natureza” ainda hoje), a natureza trazsempre algo de coação. Isso marca uma diferença essencial entreela e a operação do livre-arbítrio humano. Ela possui esteaspecto também na alquimia, pelo menos em um sentido, porque,de um certo ponto do trabalho, essa coação é transmutada em umritmo cósmico, que não prende mas liberta. Dante chamou issode “o amor que move o Sol e as outras estrelas”.Psicologicamente falando, aquilo que no começo do trabalhoaparece como um perigosa e distorcido impulso se transforma,com o acúmulo da perícia, em uma força que conduz aconsciência a esferas mais altas. Esta é uma lei presente em todaverdadeira ascesis, distinguindo-a do puritanismo, já que naverdadeira espiritualidade não se trata de destruir as forçasnaturais, mas antes de domesticá-las, de modo que elas setransformem em veículos do Espírito. Aquilo que por si só deveser destruído é a tendência egoísta, que deforma a genuínaessência desses poderes. Esse, de fato, não é nem bom nem malem si mesmo, mas naturalmente inocente. Fala-se comumente de“sublimação”, assim emprestando uma expressão alquímica a umprocesso psicológico, que contudo é completamente incapaz desuperar determinadas tensões em bases puramente profanas, esem a ajuda de uma arte sagrada ou da Graça. Pode-se apenasfalar de uma extensão cósmica dos poderes da alma, em conexãocom uma arte espiritual genuína; para atingir algo cósmico (eindiretamente divino), o homem deve primeiro entrar – por meiodo símbolo revelado e de sua aplicação fiel – antes que ele possase perder a si mesmo, para meras arbitrariedades, e atingir umaliberdade verdadeira. É sob essa luz que se devem considerarcertos exercícios que imitam ritmos da natureza, como porexemplo a regulação da respiração – um procedimento queprovavelmente era considerado pela alquimia. Não se trata deuma técnica automática, mas algo que pode servir à meta darealização espiritual apenas na esteira de certas condiçõesexternas e internas. Na mesma categoria há diversossignificados especiais – dúbios à primeira vista, e de todo modoperigosos – de despertar o poder interior, tais como acontemplação da senhora natureza na beleza de um corpofeminino – um método que é praticado tanto no tantra como no

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cavalheirismo hermético59.Pode-se perguntar com acerto se a

distinção familiar entre desenvolvimento “natural” e a operação“sobrenatural” da Graça tem algum significado do ponto de vistahermético. A resposta é negativa, no sentido de que o trabalho daGraça não se derrama fora do universo natural e, além disso,sempre tem repercussão dentro da ordem natural no sentidoestrito. Apesar disso, justifica-se a distinção quando se consideraqualquer nível da natureza, cuja sujeição relativa a “compulsão”pode ser sempre superada pela Graça, que irromperepentinamente e sem constrangimento, como uma iluminação.Assim a expressão “natureza” abrange caso a caso o maior oumenor domínio de realidade.

Um texto alquímico anônimo, intituladoPurissima Revelatio60 diz que a natureza como um “livro” noqual apenas aquele que recebeu a iluminação de Deus pode ler.Também se diz que ela é “uma grossa madeira na qual muitospenetraram com o fim de tentar sacar dele os seus sagradossegredos. Mas eles foram engolidos, porque não tinham as armassutis, as únicas que podem conquistar o terrível dragão queguarda o bracelete de ouro. E aqueles que não foram mortostiveram que refazer seus passos, aterrorizados e cobertos devergonha e desgraça. A natureza é também aquele mar imenso noqual os argonautas se estabeleceram. Desventura para osmarinheiros que não conhecem sua arte! Eles que devem viajaraté o fim da vida sem alcançar o ponto. Eles não encontrarãorefúgio nas terríveis tempestades. Queimados pelo sol econgelados pelos ventos gélidos, eles sem dúvida perecerão, amenos que implorem ajuda do mais alto e poderoso Senhor...Porque não é dado a muitos alcançar a margem da Cólquida...Apenas os sábios argonautas, que observam estritamente as leisda natureza e são completamente devotados à vontade do Todo-Poderoso, podem conquistar o bracelete de ouro, com a qualMedéia, a personificação da natureza, irá se render, contra aordem do seu obscuro pai, e para a grande raiva do dragão

59Veja Maurice Aniane, Notes sur l'alchimie, 'yoga' cosmologique de la chrétientémédiévale, em 'Yoga, science de l’homme intégral', Cahiers du Sud, Paris, 1953, e J.Evola, Metafísica del Sesso, Atanòr, Roma, 1958.60 Tradução francesa de Roberto Buchère em Le Voile d´Isis (Paris), 1921, p. 183.

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surpreso...”. Medéia é uma imagem do lado “sombrio” danatureza. A natureza universal, como mâyâ, tem duas direções oumovimentos – um que tende a se afastar do centro espiritual emdireção à multiplicidade (e que no homem está ligada àspaixões), e uma que, a partir da multiplicidade, conduz de volta àdireção ao centro espiritual. O primeiro está relacionado aquiligado à Medéia, e o último à Sophia ou sabedoria. Ambos sãofemininos em relação com a vontade humana, sendo ambosamantes ou noivas: “... E maldito aquele que, como Jason, tendovencido com o auxílio de Medéia, deixa-se seduzir pela suaperigosa astúcia, e submete feiticeira à natureza, no lugar depermanecer constante e fiel à sua noiva divina, a sabedoria. Poroutro lado, bem-aventurado aquele que, assegurado pelasabedoria, sabe como seduzir aquela natureza feiticeira, com ofim de atingir seus segredos, que ela não mais pode negá-lo, eque retorna à casa, na posse do bracelete de ouro, e fiel ao seuvirtuoso noivo...”. Como os métodos tântricos, o trabalhoalquímico desperta um poder natural terrível, e destrói osdespreparados e desqualificados, mas que eleva o sábio emdireção à supremacia espiritual. Esse poder reside no homem,mas seu nome indica que não se trata de algo individual oulimitado, mas uma parte ou aspecto de um ritmo impessoal e semfim. Essa é única interpretação irrefutável que foi conservada naexpressão “natureza”.

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CAPÍTULO 9

“A NATUREZA PODE DOMINAR A NATUREZA”.

No mundo das formas, o “modo deoperação” da natureza consiste em um ritmo contínuo de“dissoluções” e “coagulações”, ou de desintegrações eformações, daí que a dissolução de qualquer entidade formal nãoé senão a preparação para uma nova conjunção entre a forma e asua materia. A natureza age como Penélope que, para se livrar depretendentes indignos, desenrola à noite o vestido de casamentoque ela teceu durante o dia.

Os alquimistas também trabalham dessemesmo modo. Seguindo o adágio solve et coagula, ele dissolveas coagulações imperfeitas da alma, reduzindo-as à sua materia,e as cristaliza novamente em uma forma mais nobre. Mas elepode realizar esse trabalho apenas em uníssono com a natureza,por meio de uma vibração natural da alma que desperta durante ocurso do trabalho e conecta os domínios humano e cósmico.Assim, por sua própria vontade, a natureza vem em auxílio daarte, de acordo com o adágio alquímico: “O progresso dotrabalho agrada muito à natureza” (operis processio multumnaturae placet).

As duas fases da natureza – dissolução ecoagulação – que parecem se opor a partir de um ponto de vistasuperficial mas que na verdade são mutuamente complementarespodem, em um certo sentido, ser relacionadas aos dois polos,essência e substância, embora eles, obviamente, não estejampresentes na natureza como pura oposição de Atividade ePassividade, mas meramente como reflexões relativas dessesúltimos. Na natureza é o enxofre alquímico que corresponde aopolo ativo, e o mercúrio alquímico que corresponde ao polopassivo. O enxofre é relativamente ativo; é o enxofre que confereforma. Mercúrio assemelha-se à matéria passiva, que é assimmais imediatamente relacionado com a natureza mesma e com oseu caractere feminino. Desde que o enxofre representa o poloessencial da sua refração natural, diz-se que ele é ativo no modopassivo, enquanto o mercúrio, em vista do caráter dinâmico da

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natureza, pode ser chamado de passivo no modo ativo. A relaçãomútua das duas forças primordiais é assim similar àquela dohomem e da mulher na união sexual.

O melhor símbolo para a dupla enxofre-mercúrio é o padrão chinês Yin-Yang, com o polo preto novórtice branco e o polo branco no vórtice preto, como indicaçãode que o passivo está presente no ativo e de que o ativo estápresente no passivo, assim como no homem está contida anatureza da mulher e na mulher a natureza do homem61.

Na alma o enxofre representa a essência,ou espírito, enquanto o mercúrio corresponde à alma mesma, emseu polo receptivo e passivo.

De acordo com Muhyi ´d-Dîn ´Arabi, quesempre tem as mais altas interpretações em vista, o enxofrecorresponde ao “Comando divino”, vale dizer, ao fiat lux pormeio do qual o mundo se transformou em um cosmos a partir docaos, enquanto o mercúrio representa a Natureza universal, acontrapartida passiva do primeiro62. Assim, muito embora nodomínio específico da alquimia os dois polos apareçam comoforças mais ou menos condicionadas, é bastante útil recordarseus protótipos incondicionados, já que só assim se podeentender, por exemplo, em que aspecto o enxofre corresponde aodesígnio espiritual, e o mercúrio à capacidade “plástica” da alma.Em um sentido imediato, e em sua interpretação psicológicageral, o desígnio espiritual se origina de um ideal e se esforçapara formar a alma de acordo com ele. Em seu sentido original,entretanto, que revela a si mesmo apenas dentro dos limites de

61 Isso não tem apenas uma base psicológica, mas também e acima de tudoontológica.

62 Futûhât al-Mekkiyah.

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uma arte espiritual tradicional, o desígnio espiritual é umavibração vindo do centro do ser, um ato espiritual que rompeatravés do pensamento e que no plano da alma efetiva duascoisas: uma ampliação e aprofundamento do “senso do ser” euma clarificação e estabilização dos conteúdos essenciais daconsciência. De acordo com isso, a capacidade “plástica” daalma, que corresponde ao Ato do Espírito original, não émeramente a imaginação passiva que assume e desenvolveformas, mas uma capacidade que gradualmente se estende paraalém dos confins da consciência individual vinculada ao corpo.

*

O enxofre, poder masculino original, e omercúrio, poder feminino origina, ambos empenham-se nadireção da completude de seu único e eterno protótipo. Esseúltimo é ao mesmo tempo a razão para sua oposição e da suamútua atração – tanto quanto as naturezas masculina e femininaalmejam à integridade do estado humano, e como resultado desseprocura, a separar-se um do outro e a unir-se um com o outro.Por meio dessa união física, ambos tentam restabelecer aimagem de seu protótipo eterno comum. Esse é o casamento dohomem e da mulher, enxofre e mercúrio, Espírito e alma.

No reino mineral é o ouro que nasce daunião perfeita dos dois princípio geradores. O outro é overdadeiro produto da geração metálica. Qualquer outro metal étanto um parto prematuro ou um aborto, um ouro imperfeito e,desse ponto de vista, o trabalho alquímico não é senão umaparteira ou ajudante, que a arte oferece à natureza, daí que essaúltima pode perfeitamente amadurecer o fruto cuja maturação foiprejudicada por certas circunstâncias temporais63. Isso pode serentendido tanto no sentido mineral como no microcósmico.Muhyi ´d-Din ibn Arabi considera o ouro como símbolo doestado original e incorruptível (al-fitrah) da alma, a forma naqual a alma humana foi criada no começo. De acordo com aconcepção islâmica, a alma de toda criança inconscientemente se

63 As mais recentes descobertas no campo da fissão nuclear parecem confirmar queos metais qualitativamente mais baixos são os mais instáveis. O urânioassemelha-se rigorosamente ao chumbo.

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aproxima do estado adâmico, antes de ser conduzida para longedele novamente pelos erros impostos nela pelos adultos64. Oestado incorrupto possui um equilíbrio interno de forças. Isto éexpressado pela estabilidade do ouro.

De acordo com uma concepçãocosmológica amplamente difundida – já citada por Aristóteles –a natureza é caracterizada por quatro propriedades, manifestadasno nível sensorial por calor, frio, umidade e secura. O calor e asecura são associados com o enxofre; frieza e umidade, com omercúrio. As duas primeiras propriedades, assim, têm o caráterpredominantemente ativo e masculino; as duas últimas, o carátermais passivo e feminino. O que isso significa pode ser visto maisclaramente quando se relaciona o calor à expansão, o frio àcontração, a umidade à dissolução, e a secura à coagulação.

O calor, ou o poder de expansão peculiarao enxofre, causa o crescimento de uma determinada forma apartir do seu centro essencial, e essa força da natureza éintimamente ligada com a vida. A secura do enxofre coagula ou“fixa” a forma no plano de sua materia, então ela imita aimutabilidade do seu protótipo de um modo passivo e material.Em outro sentido, o poder de expansão do enxofre é o dinâmico– e portanto relativamente passivo – aspecto do Ato essencial, e acoagulação é o contrário ou o aspecto menos predominante daimutabilidade da Essência. O Ato puro é imóvel e a Essênciaverdadeira é ativa. A frieza, ou o poder de contração, domercúrio se opõe ao poder de coagulação do enxofre, na medidaem que envolve as formas a partir do exterior, como se ele fosse,e os prendesse rapidamente, como um útero cósmico65. O caráterúmido e dissolvente do mercúrio, entretanto, assemelha-se àreceptividade feminina que, como a água, pode assumir todas asformas, sem desse modo ser alterado.

As quatro propriedades naturais ou “modosde operação”, que têm relação de paridade com o enxofre e omercúrio, pode, em suas sucessivas coagulações e dissoluções,

64 Esta doutrina não deve ser confundida com a opinião de J.-J. Rousseau de que ohomem é bom em si mesmo. A recapitulação inconsciente do estado primordialna criança não exclui as tendências negativas ou os defeitos hereditários.

65 Sobre o poder de contração do mercúrio, veja-se René Guenón, A Grande Tríade,publicado pela La Revue de la Table Ronde, Paris, 1946, capítulo entitulado“Enxofre, mercúrio e sal”.

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entrar em uma variedade de combinações um com o outro. Ageração apenas tem lugar quando as propriedades do enxofre edo mercúrio mutuamente se penetram. Quando a secura doenxofre se junta unilateralmente com a frieza do mercúrio, entãoa coagulação e a contração vão juntas (sem a consequente açãodo calor expansivo do enxofre ou da umidade dissolvente domercúrio), segue-se uma completa rigidez da alma e do corpo.Em termos da vida, esta é a sonolência da idade avançada e, nonível ético, a avareza. Mais genericamente e mais profundamenteisto é o encerramento da consciência egóica em si mesma, umacondição mortal da alma que perdeu a sua receptividade evitalidade originais, tanto espiritual como sensorialmente. Pelocontrário, uma conjunção unilateral de calor e umidade (i. e.,expansão e dissolução) resulta em uma volatilização de poderes.Isso se assemelha à condição da paixão que consome, vício edissipação de espírito. Caracteristicamente, os dois tipos dedesequilíbrio usualmente são encontrados juntos. Um gera ooutro. A congelação das potências da alma conduz à dissipação, eo fogo vivo da paixão desenfreada traz a morte íntima. A almaque é avara consigo mesma e se fecha ao Espírito é transportadaao largo no vórtice de impressões dissolventes. O equilíbriocriativo apenas é produzido quando o poder expansivo doenxofre e o poder contrativo do mercúrio mantêm o equilíbrio, equando ao mesmo tempo o poder coagulante masculino entra emuma frutífera união com a capacidade dissolvente feminina. Esseé o verdadeiro casamento dos dois polos do ser, que sãorepresentados inter alia pelos triângulos interseccionados do selode Salomão Y – o signo que também simboliza a síntese dosquatro elementos. As aplicações dessa lei são efetivamenteilimitadas; apenas algumas poucas consequências psicológicas e“vitais” foram mencionadas aqui. Pode-se acrescentar que amedicina tradicional está fundada nos mesmos princípios, osquatro elementos que correspondem aos quatro humores66.

66 Ao ar corresponde o vermelho constituinte do sangue; ao fogo, a bile amarela; à água, a fleuma; e à terra, a bile negra. Todos os quatro humores estão contidos nosangue.

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Figura 5. Representação simbólica do trabalho alquímico. Odragão do caos, ou natureza não-domesticada, descansa naárvore da materia prima física, que tem suas raízes na terra damateria prima cósmica. Os sete sóis correspondem aos setemetais, planetas e fases do trabalho. Do sol, no topo da figura,emergem dois raios que representam os poderes masculino efeminino. Entre eles estão equilibradas as duas águias querepresentam o mercúrio masculino e feminino. Suas cores são opreto, o branco, o amarelo e o vermelho e então reúnem em simesmos as quatro principais cores do trabalho. Em determinadosentido o dragão é o início e águia é a forma final do mercúrio.– De um manuscrito alquímico MS 428 da Biblioteca Vadian, St.Gallen.

A alma, em sua completa amplitude, como

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desdobrada no curso do trabalho alquímico, é governada pelasduas forças fundamentais, enxofre e mercúrio, que adormece, noestado “caótico” da alma adormecida, como o fogo na pedra e aágua no gelo. Quando eles despertam, antes de tudo, manifestamsuas oposições em uma certa tensão externa. A partir destatensão, eles continuam a crescer um sobre o outro, e na medidaem que eles se tornam livres, eles se compenetram, já que elesestão predestinados um ao outro como homem e mulher. A essasduas fases do seu desenvolvimento estão relacionadas as duasprimeiras cláusulas da fórmula hermética: “A natureza se deleitana natureza; a natureza contém a natureza; a natureza podedominar a natureza.” Essa última cláusula significa que os doispoderes, quando eles cresceram ao ponto de um abranger ooutro, reúnem-se em um plano superior e então sua oposição,que previamente limitava a alma, agora se transforma em umacomplementaridade frutífera por meio da qual a alma adquiredomínio sobre todo o mundo das formas e correntes psíquicas.Assim, a natureza, como uma força libertadora, domina anatureza como tirania e opressão.

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Figura 6. “Aquila volans et bufo gradicussup. Terra est magisterium”. A águia ascendente representa aparte liberada, espiritual, da materia alquímica, e o sapo a suaescória obscura mas fértil. A lua crescente corresponde à almapurificada enquanto a serpente presa por um nó é a imagem daforça latente da natureza. Do manuscrito Egerton 845 no MuseuBritânico. Séculos XV-XVI.

*

Quando o Ato divino imutável que governao cosmos é simbolicamente representado por um eixo verticalimóvel, o “curso” da natureza, em relação a ele, é como uma

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espiral que gira ao redor desse eixo; então com cada volta eleconcebe um novo plano ou grau de existência. Esse é o símboloprimordial da serpente ou dragão, que se faz girar em torno doeixo da árvore do mundo67. Quase todos os símbolos da naturezaprocedem da espiral ou do círculo. O ritmo desses sucessivosgirar e desenrolar da natureza, do solve et coagula alquímico, érepresentado pela dupla espiral: , cuja forma está também nabase das representações zoomórficas do Shakti. Tambémrelacionada a isso é a representação das duas serpentes oudragões em direções mutuamente contrárias em torno de umgrupo de árvores. Elas correspondem às duas fasescomplementares da natureza ou às duas forças fundamentais68.Esta é a herança antiga de imagens da natureza sobre as quaistanto a alquimia, e determinadas tradições do Oriente(especialmente o tantrismo) extraíram.

Também se pode notar aqui que o uso deuma serpente ou de um dragão como imagem de um podercósmico pode ser encontrado em todas as partes do mundo. Éespecialmente característico daquelas artes tradicionais tais comoa alquimia, que estão preocupadas com o mundo sutil. Um réptilse move sem pernas, e por meio de um ritmo ininterrupto de seucorpo, então trata-se da incorporação, por assim dizer, de umaoscilação sutil. Além disso, a sua essência é tanto inflamávelcomo fria, deliberada e elemental. A semelhança em questão étão real que a maioria, senão todas as culturas tradicionais,consideram as serpentes de portadores ocasionais de poderespsíquicos sutis. Basta pensar nas serpentes como guardiãs dostúmulos na antiguidade ocidental e extremo oriental.

Na Iaya-yoga, um método espiritualpertencente ao domínio do tantrismo, cujo nome significa união(yoga) alcançada através da dissolução (laya), o despertar doShakti dentro do microcosmo humano é comparado com odespertar da serpente (Kundalinî), que até então permanecia

67 Ver René Guenón, O simbolismo da cruz.68 Ver René Guenón, op. cit.

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enrolada no centro sutil conhecido como mûâdhâra. De acordocom determinada correspondência entre as ordens sutil ecorporal, esse centro é localizado na extremidade interior dacoluna vertebral. A Kundalinî é despertada por determinadosexercícios em concentração espiritual, por meio dos quais elegradualmente ascende, em espiral, o eixo espiritual do homem,trazendo à cena mesmo os maiores e mais altos estados deconsciência, até que finalmente restaura a plenitude daconsciência do Espírito supra-formal69. Nessa representação, quenão deve ser considerada literalmente, mas como uma simbólica– embora lógica e consequente – descrição do processo interior,pode-se novamente reconhecer a imagem da natureza ou Shaktigirando ao redor do eixo do mundo. Que os poderes emdesenvolvimento podem vir “de baixo”, está em sintonia com ofato de que a potência (potentia) – como a materia prima – emsua passividade representa a “base” do cosmos, e não o ápice.

Na tradição hermética, a naturezauniversal, em sua condição latente, é representada da mesmaforma como um réptil enrolado. Esse é o dragão Uroborus que,ondulado dentro de um círculo, morde sua própria calda.

A natureza, na sua fase dinâmica, por outrolado, é retratada por meio das duas serpentes ou dragões, que naforma do bem conhecido modelo do Báculo de Hermes, oucaduceus, gira a si mesma ao redor de um eixo – aquele domundo ou do homem – em direções opostas. Essa duplicação daserpente primordial tem também uma contrapartida em laya-yoga, já que Kundalinî é também dividida em duas forças sutis,Idâ e Pingalâ, que em direções opostas giram a si mesmas aoredor de Merudanda, o prolongamento microcósmico do eixo domundo. No começo do trabalho espiritual o Shakti está presentenesta forma dividida, e apenas depois que as duas forças sãoativadas alternativamente por meio de uma forma deconcentração baseada na respiração, Kundalinî desperta de seusono e começa a ascender. Tão logo ela alcança o limiar daconsciência, as duas forças opostas se dissolvem completamentenela. Na alquimia as duas forças representadas como serpentesou dragões são o enxofre ou o mercúrio. Seu protótipomacrocósmico são as duas fases – de aumento e diminuição – do

69 Veja Arthur Avalon, O Poder da Serpente, Madras, 1931.

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curso anual do Sol, separado um do outro pelos solstícios deinverno e de verão70. A conexão entre o simbolismo tântrico ealquímico é óbvio: das duas forças Pingalâ e Idâ, que giram a simesmas ao redor de Merudanda, a primeira é descrita comosendo quente e seca, caracterizada pela cor vermelha, e, como oenxofre alquímico, comparada com o Sol. A segunda força, Idâ,é considerada como sendo fria e úmida, e na sua palidezprateada, é associada com a lua.

Os sete “shakras” ou centros de poder do corpo sutil dohomem, com os dois fluxos de poder “Ida” e “Pingala”, quegira ao redor do eixo central. Representação tântrica extraídade O Poder da Serpente, de Arthur Avalon. A folha desenhadana cabeça representa o shakra superior: “o lotus de milpétalas”.

Em seu livro Sobre as figuras

70 Ver Julius Schabe, op. cit.

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hieroglíficas, Nicolas Flameu escreveu a respeito da relaçãomútua do enxofre e do mercúrio: “... aí estão as duas serpentesque são fixadas ao redor do caduceus, ou Báculo de Mercúrio, epor meio do qual o mercúrio domina seu grande poder etransforma a si mesmo de acordo com seu desígnio. Quem querque destrua um, diz Haly71, também destrói o outro, porque cadaum deles somente pode ser destruído juntamente com o seuirmão (por meio da destruição deles, ambos passam para umnovo estado)... Após ambos terem sido colocados no “vaso” dotúmulo (vale dizer, o vaso interior, “hermeticamente fechado”),eles passam a ferir-se um ao outro, com selvageria, e em razãode seu magnífico veneno e fúria cruel, não se soltam – a menosque o frio possa detê-los – até que ambos, como resultado de seuveneno úmido e ferimentos mortais, são banhados em sangue(por tanto tempo quanto a natureza permanece “selvagem”, aoposição das duas forças é manifestada de modo destrutivo ou“venenoso”), então eles finalmente se destroem e submergem emseu próprio veneno, que, após sua destruição, irá transmutá-losem água viva e perpétua (na qual eles são reunidos em um nívelsuperior), após eles haverem perdido, com sua queda edecomposição, suas formas primeiras e naturais, com o intuito deadquirir uma forma simples, nova, mais nobre, melhor...”72.

Essa fábula complementa o mito herméticodo Caduceu de Hermes. Hermes, ou Mercúrio, golpeou com estebáculo, um par de serpentes que combatiam entre si. O golpedominou as serpentes que, feridas, se enroscaram em torno davara e lhes conferiu o poder teúrgico de “ligar” e “dissolver”.Isso significa a transmutação do caos em cosmos, do conflito emordem, através do poder de um ato espiritual, que tanto separaquanto une.

71 Provavelmente o nome árabe ´Ali.72 O amorfo, ou sem forma, é o oposto de ultraformal, ou supra-formal. Este último

não carece de forma, ele a possui essencialmente, sem ser limitado por ela. Poressa razão, o supra-formal – quer dizer, o Espírito puro – apenas pode serconcebido por meio de uma forma perfeita.

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O Báculo de Hermes, ou Caduceu, de um desenho de HansHolbein, o Jovem.

Na tradição judaica, como contrapartida aoCaduceu de Hermes, e ao símbolo hindu de Brahma-danda73, nósencontramos o Bastão de Moisés, que realmente se transformouem serpente. No misticismo islâmico o bastão de Moisés, que,“sob o comando de Deus”, se transformou em uma serpente e, aoser “apreendido” por Moisés, retornou à forma de bastão, écomparado à alma passiva (nafs), que através da influência doEspírito Divino pode ser transformada em um poder prodigioso.Porque ele incorpora um poder espiritual, o Bastão de Moisés,transformado em serpente, pode vencer a serpente engendradapelos feiticeiros egípcios, feita de poderes mágicos – e por issomesmo psíquicos; porque o espírito prevalece sobre a alma e seudomínio74. Esta interpretação da história do bastão de Moisés,

73 Ver René Guenón, op. cit.74 Veja minha tradução de Fusûs al-Hikam, capítulo sobre Moisés.

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mencionada no Alcorão, lembra a distinção hindu entre vidyâ-mâyâ (Natureza Universal em seu aspecto “iluminador”) eavidyâ-mâyâ (Natureza Universal como poder de ilusão). Nessadistinção, entretanto, também se pode ver o senso profundo doprovérbio hermético: “a natureza pode dominar a natureza”. Doponto de vista alquímico, a transformação do Bastão de Moisésem serpente, e sua subsequente solidificação, correspondeexatamente ao solve et coagula do grande trabalho.

Par de dragões, de um talismã árabe.

Na arte cristão medieval há umarepresentação do Caduceu de Hermes que a fábula de Flamel trazvivamente à lembrança. A figura do par de serpentes, ou dragões,entrelaças e se mordendo mutuamente, também era comum naantiga arte irlandesa e anglo-saxã. Na escultura romanesca, istoocorre com muita frequência e desempenha um papel tãomarcante na decoração das construções sagradas75, que se poderapidamente concluir que se trata de um tipo de “assinatura” dedeterminada escola cristã hermética. Além disso, o mesmo temaestá conectado com o símbolo do laço, cujo significadocosmológico está no fato de que quanto mais fortemente se puxa

75 De fato este tema pode ser encontrado em todas as igrejas romanescas.

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o nó mais firmemente os seus dois componentes permanecemjuntos. Isso ilustra, inter alia, a mútua neutralização das duasforças quando em estado de “caos”76.

Par de dragões, do cororomanesco da Catedral daBasiléia.

Forma romanesca docaduceu, na porta principalda Igreja de Saint Michael´s,em Pavia.

Algumas vezes um dos dois répteis querepresentam o enxofre e o mercúrio é alado, enquanto o outronão tem asa. Ou no lugar dos dois répteis há um leão e umdragão em combate. A falta de asas refere-se sempre à natureza“firme” do enxofre, enquanto o animal alado, seja um dragão,um grifo ou uma águia, representa o mercúrio “volátil”77. O leão,que vence o dragão, corresponde ao enxofre, que “fixa” omercúrio. O leão alado, ou um grifo leonino, podem representara união das duas naturezas, e têm o mesmo significado que aimagem do andrógino masculino e feminino.

76 Isso explica o papel dos nós na magia.77 Ver Senior Zadith, Turba Philosophorum. Bibl. des. phil. chim.

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De um manuscrito alquímico de 1550, na Biblioteca daUniversidade da Basiléia.

Finalmente o dragão sozinho poderepresentar todas as fases do trabalho, contanto que ele sejaprovido de pés, barbatanas ou asas, ou está sem quaisquermembros. Dessa forma considera-se que ele pode viver tanto naágua, no ar ou na terra e, como uma salamandra, até mesmo nofogo. O símbolo alquímico do dragão, assim, parece-se muitoproximamente com aquele do dragão universal extremo oriental,que primeiro vive como um peixe na água, e então como umacriatura alada elevada aos céus. Isso também lembra o mitoasteca de Quetzalcoatl, a serpente plumada, que sucessivamentese move debaixo da terra, sobre a terra, e no céu.

Todas essas correspondências comimagens alquímicas de animais foram mencionadas com o intuitode mostrar como a sabedoria cosmológica dos mais diversospovos é refletida na alquimia, de um modo particular, e comlimites específicos.

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CAPÍTULO 10

ENXOFRE, MERCÚRIO E SAL

É em virtude de sua natureza, e do papelque eles exercem no ofício dos metalurgistas, que as duassubstâncias químicas normalmente chamadas de enxofre emercúrio são tomadas como símbolo das duas forças criadorasprimárias. Elas atuam nos metais, mas são em si mesmas“espíritos” voláteis. O mercúrio, em particular, pode ser sólido,líquido ou gasoso. Ele pertence aos “corpos”, aos metais e aos“espíritos”. O caráter “masculino” do enxofre pode ser visto nasua “inflamabilidade”, e também no fato de que ele pode fixar edar cor ao mercúrio volátil. A combinação dos dois produz oCinabre. A coloração, pelo enxofre, corresponde à atribuição deforma.

O mercúrio ordinário possui um grandedesejo de se ligar aos metais correspondentes. Com o mercúrio,os metalurgistas podem fazer ouro e prata líquidos. O amálgamade mercúrio tem sido usado desde os tempos antigos para dourarobjetos metálicos. Após a aplicação do amálgama líquido omercúrio pode ser eliminado pelo fogo, e o dourado permanece.O ouro pode também ser extraído de outros minerais através dalimpeza destes com o mercúrio. O significado do solve etcoagula alquímico também pode ser visto nesse exemploartesanal, também como a função decisiva do fogo espiritual.

De acordo com a mesma analogia, omercúrio carrega em si mesmo a “semente do Sol”, assim comoo mar primordial da materia prima, que os hindus chamamprakriti contém o ovo dourado do mundo – o hiranyagarbha domito indiano. No plano da alma o mar primordial não é nadaalém do que a anima mundi. O mercúrio, que anima e dissolve o“metal” interior é, em um certo sentido, a rebentação desse marprimitivo, que como a mãe de todas as coisas permaneceinalcançável. Por essa razão o mercúrio é também conhecidocomo “sangue materno” (menstruum), porque quando ele nãoflui “para fora” e perece, ele nutre a semente no útero alquímicoou “athanor”.

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Cristo na forma da água-dupla do mercúrio emergindo daSantíssima Virgem (materia prima). De um manuscritoalquímico do século XVI. Biblioteca Vadiana, S. Gallen.

Tendo em mente o fato de que o enxofreem certo sentido corresponde ao Espírito, e o mercúrio à alma,pode causar uma confusão o fato de que quase todos osalquimistas chamam o mercúrio um spiritus (“espírito”),enquanto alguns deles (por exemplo, Basilius Valentinus)comparam o enxofre à anima (“alma”). Isso contradiz o que vemsendo dito acima apenas aparentemente; porque na linguagemdesses autores alma significa a alma imortal, assim sendo a“forma” essencial e imutável do homem, enquanto a expressãospiritus não significa o espírito transcendente ou o intellectusagens, mas o “espíito vital”, aquele poder sutil que une a almaindividual com o corpo e com o universo corporal como um

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todo. O espírito vital corresponde ao mercúrio porque ele estáligado apenas parcial e espontaneamente à esfera do ego, e assimrepresenta a materia ainda em formação. A expressão árabe rûhtambém pode ter o mesmo significado. Ela é usada neste sentidopelos cosmologistas, independentemente do fato de que a mesmapalavra também designa o espírito metafísico. A razão para esseduplo significado pode ser a de que spiritus como rûh e também(e também o ruah hebreu) lembra o movimento do ar narespiração (em árabe, “vendo” é rîh). Por um lado isso poderepresentar a respiração criativa do Espírito universal e, poroutro lado, a mobilidade do “Espírito vital”, e sua conexão com a“atmosfera” sutil deste mundo. O “Espírito vital” se prolonga portodo o “espaço” cósmico. Ele é assimilado pelos seres como o aro é na respiração. Trata-se da constante nutrição do “corpo” sutilde seus poderes vitais.

Os hindus chamam esse poder de prâna.Determinadas tribos indígenas norte-americanas chamam deorenda78. Ela pode ser assentada por meio de uma arte espiritual.Para os Shaivas hindus trata-se do Shakti.

Se se procura determinar com base emdescrições alquímicas o que significa exatamente mercúrio, seele pertence ao reino do corpo ou da alma ou se é meramente umsuporte subjetivo ou mesmo cósmico, pode-se facilmente perdero fio da meada, se não se sabe que está na essência da alquimia –e também de outros métodos similares – sempre aproximar odomínio da alma dos seus pontos de referência corporais, e oUniversal, de seus traços existenciais concretos.

No nível corporal, o mercúrio está presenteno sangue e no sêmen. Em um nível um pouco mais elevado –intermediário entre o corpo e a alma – ele está no coração e narespiração. Trata-se então do portador da “substância” da alma.Seu ritmo é a imagem da “solidificação” dessa substância nocampo da força da consciência individual, e de sua eventualdissolução no Todo. A substância da alma, por sua vez, é aportadora da realidade espiritual.

78 Ver Paul Coze, L´Oiseau-Tonnere, Paris-Geneva, 1938. De acordo com Averróis,que se baseia em Galeno, o espírito vital é uma substância pura presente noespaço estelar, que é assimilada por meio de um processo similar à resporação eé transformada em vida no coração.

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De acordo com o mestre chinês Ko Ch´ang-Kêng79, que incorporou a alquimia ao Budismo Dhyâna(Zen), a ação do mercúrio pode ser concebida de três modos: deacordo com a primeira concepção, o mercúrio é o coração, quese faz líquido pela meditação (dhyâna) e ígneo pelas faíscas doEspírito, enquanto o chumbo, que ele pode transmutar,corresponde ao corpo. De acordo com a segunda concepção, omercúrio é a alma, e o chumbo e a respiração; e segundo aterceira, o mercúrio é o sangue e o chumbo é o sêmen. Em cadacaso o mercúrio tem o papel de elemento dissolvente evivificador. Em última análise, é a substância que “flui” em todasas formas psíquicas e mentais. Os alquimistas hindus chamam omercúrio de “sêmen de Shiva”. Shiva é deus como autor de todatransmutação80.

Talvez o leitor possa perguntar como sepode, de algum modo, provar o que, na alquimia interior, érealidade e o que é meta imaginação. O critério para isso está narealização alquímica mesma, que em última análise não traznenhum conteúdo novo para a consciência humana, mas antesrevela sua real substância, que precede toda a experiência. Embusca de uma melhor expressão pode-se chamar isso de “aaquisição da consciência do ser”. O ser não é nem “objetivo”,nem “subjetivo”, mas inclui ambos ou está acima de ambos. Aconsciência do ser é também necessariamente um conhecimentoda unidade, já que unum et esse convertuntur.

Em primeira instância o mercúrio é apenasa manifestação da materia prima. Em última análise, entretanto,é a materia prima mesma. No livro de Fra Marcantonio A luzque procede da escuridão está dito que “Eu conheço bem que oseu mercúrio secreto não é outro senão o espírito vivo,onipresente e inato que, na forma de um nevoeiro etéreo (umainfluência sutil) continuamente desce do céu à terra (e aoshomens da terra) com o fim de impregnar os corpos porosos daterra. Eu sei que ele é subsequentemente nascido no meio doenxofre impuro (as substâncias corporais), e então, tendo tidouma natureza volátil, ele pode adquirir uma firme (i. e.Imutável), e ao fazer isso ele assume a forma da umidade

79 Ver Micea Éliade, Forgerons et alchimistes, capítulo sobre a alquimia chinesa.80 Ver Mircea Éliade, op. cit., capítulo sobre a alquimia indiana.

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primária (humiditas radicalis)... “81.O enxofre tem aparentemente dois

aspectos contraditórios: como causa formativa, ele efetua, emprimeiro lugar, a coagulação da “substância” ou “corpo” que serátransmutado, e assim também a sua secura e dureza. Ele entãoaparece como um impedimento à purificação, e apenas quando a“substância” tenha sido complemente dissolvida de suacoagulação, o enxofre revela-se como a causa criativa da formanova e “nobre”. A dissolução é patrocinada pelo mercúrio.Assim, em primeira instância, esse último e o enxofre trabalhamcom propósitos contrários, arrebatando-lhe sua “substância” como fim, subsequentemente, de oferecer “a si mesmo” a “ele” comouma substância nova, ilimitada e mais receptiva. Do ponto devista psicológico isso é o mesmo que ocorre quando a atração danatureza feminina dissolve a natureza masculina do seu torpor eao mesmo tempo suscita, como resultado dessa tensão entre osdois polos, seu verdadeiro poder masculino e ativo. Há ummétodo tântrico que opera esse processo alquímico peloincremento da atração natural entre o homem e a mulher ao maisalto grau, e então promove uma reavaliação espiritual, similar aoFedeli d´Amore (ao qual Dante pertenceu), que tambémconheceu e praticou tal método82.

No casamento químico de ChristianRosenkreutz, de Johann Valentin Andrae, a seguinte alegoria érelatada: um belo unicórnio, branco como a neve, adornado porum colar dourado, aproxima-se de uma fonte e se ajoelha, comose desejasse prestar honras ao leão que lá estava. Esse leão, queem primeiro lugar, em razão de sua imobilidade, parece ser depedra ou metal, imediatamente agarra uma brilhante espada queele mantinha sob suas patas, e a quebra em duas. Ambas aspartes caem dentro da fonte. Então ele solta um longo rugido, atéque uma pomba branca, com um ramo de oliveira, começa a voarem sua direção. A pomba dá-lhe o ramo de oliveira. O leãodevora-o e permanece em silêncio. O unicórnio retorna feliz esaltitante ao seu lugar. O unicórnio branco, um animal lunar, é omercúrio em seu estado puro. O leão é o enxofre que, emprimeiro lugar, como forma essencial do corpo, parece tão rígido

81 Bibl. des. Phil. Chim.82 Ver Julius Évola, Metafísica do Sexo.

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como uma estátua. Ele é despertado pela reverência do mercúrioe começa a rugir. A sua voz é o seu poder criativo. De acordocom os fisiólogos, o leão traz seus filhos natimortos à vida pormeio da voz. Ele quebra a espada da razão e os fragmentos delacaem na fonte, onde eles são dissolvidos. O leão apenas sesilencia novamente depois que a pomba do Espírito Santo lhedeu comer o ramo de oliveiras da Sabedoria Divina.

Figura 7. O casamento do enxofre e do mercúrio no vasohermético. Do manuscrito Egerton 845, no Museu Britânico.

Em certo sentido, o enxofre “rígido” é oentendimento teorético. Ele contém o ouro do espírito em formafértil. Ele deve primeiro ser dissolvido em mercúrio antes depoder se transformar em um “fermento” vivo, que podetransmutar outros metais. Vale dizer, ele deve libertar-se de suaslimitações conceituais, e se tornar-se completamente “ativo”.

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Figura 8a. A luta dos dois poderes primordiais: o podermasculino tem o sol como cabeça, e está montado em um leãode enxofre; o feminino tem a lua como cabeça e está montadoem um grifo de mercúrio. Os ornamentos nos escudos,entretanto, estão invertidos: no escudo do poder solar estádesenha a lua; e naquele do poder lunar, o sol. De ummanuscrito alquímico Ph. 172 da coleção gráfica da bibliotecacentral de Zurique.

Figura 8b. Representação do trabalho alquímico: em primeirolugar, o material bruto é submetido no tubo como uma massa, eentão “servido” no vaso hermético. O dragão, que estádevorando sua própria cauda, representa o poder ainda nãoredimido da natureza; a água é o “espírito” em fase delibertação; na sua cabeça está sentado o corvo damortificação. Do mesmo manuscrito.

O poder dissolvente e desintegrante domercúrio tem um aspecto terrível. Ele é o “dragão venenoso”,

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que devota tudo; é água que faz estremecer e que traz opressentimento da morte. Artephius escreveu: “todo segredo estáem nosso conhecimento a respeito de como extrair o mercúrionão-inflamável do corpo da magnésia... vale dizer, deve-seextrair uma água viva e não e incombustível e então coagulá-lacom o corpo perfeito do sol, que se dilui nesta água em umasubstância branca, cremosa, até que tudo se transforma embranco. Mas antes, contudo, o sol irá perder o seu esplendor, seráextinto e se tornará negro, como resultado da putrefação edissolução (resolutio) que ele sofre nessa água...83 Por outrolado, entretanto, o mercúrio é a “água da vida” (aqua vitae) e afonte na qual o sol e a lua, o espírito e a alma, devem-se banharpara serem rejuvenescidos. Tudo isso também pode ser dito arespeito da materia prima, já que o mercúrio é a suamanifestação psíquica mais direta e todos as característicasaplicáveis ao primeiro também podem ser transpostas para oúltimo. Synesius escreveu: “...coloque de lado o que é misturadoe tome o que é simples, porque o último é a quintessência doprimeiro. Lembre-se de que nós possuímos dois corposverdadeiramente perfeitos (ouro e prata, espírito e alma, coraçãoe mente), que estão ambos preenchidos com mercúrio. Tire deleso nosso mercúrio, e daí você fará o remédio chamadoquintessência, porque ele possui um poder duradouro e semprevitorioso. Ele é uma luz viva que ilumina toda alma que chegoua contemplá-lo. Ele é o nó e o laço de todos os elementos quenele estão contidos, assim como ele é também o espírito quenutre e anima todas as coisas, e através do qual a natureza age nocosmos. Ele é o poder, o começo, o meio e o fim do trabalho, epara dizer-lhe tudo em poucas palavras, meu filho, saiba que aquintessência e a coisa escondida que é a nossa pedra não é nadaalém do que nossa alma viscosa (porque aderente a todas ascoisas), celestial e gloriosa, que através de nosso magistério nósextraímos de sua mina (o corpo, ou o ser humano), que sozinho aproduz. Não está em nosso poder produzir essa água por meio dequalquer arte, como a natureza sozinha pode gerar. Essa água étambém o vinagre verdadeiramente forte, que faz um espíritopuro a partir do corpo de ouro. Eu lhe aconselho, meu filho, adesprezar todas as outras coisas, porque elas são todas vãs,

83 Bibli. des phil. chim.

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exceto essa água que queima, alveja, dissolve e congela. Elasozinha tem o poder de decompor e de germinar....”84.

Como todo trabalho alquímico tem omercúrio como seu meio e ponto de partida, o enxofre e omercúrio são algumas vezes chamados o mercúrio masculino-feminino “duplo”. Quando a natureza do enxofre alcança seudesenvolvimento no mercúrio, ela é representada pelo símbolo S.O crescente lunar é aqui recolocado pelos chifres do carneiro“incandescente” (Aries) do Zodíaco. Trata-se da “águaincandescente” e do “fogo não-inflamável”.

Como já foi dito, o “ouro vivo” é obtidoatravés da perfeita união do enxofre e do mercúrio. De outroponto de vista, porém, cada metal tem três componentes, a saber,enxofre, mercúrio e sal. “Onde quer que haja metal”, diz BasiliusValentinus, “há enxofre, mercúrio e sal... espírito, alma e corpo”.Assim esses três poderes ou princípios juntos constituem anatureza do metal – ou do homem. O sal é, em certo sentido, oelemento estático, e assim também neutro, do ternário.

Transposto ao homem, o sal não ésimplesmente o corpo na sua forma externa e visível; é a suaforma psíquica, e como tal tem um duplo aspecto: por um lado, oda limitação, e por outro, o de um símbolo.

O enxofre produz a combustão, o mercúrioa evaporação. O sal é a cinza que sobra e serve para firmar oespírito “volátil”.

Não apenas na alquimia, mas também emdiversos métodos contemplativos do Oriente e do Ocidente, aconsciência corporal purificada faz as vezes de um “fixador” ousuporte para um estado mais elevado do espírito, em cujarespiração e originalidade ilude todas as limitações conceituais.Que o corpo, liberto das febres da paixão, possa servir comosuporte a tal estado contemplativo, justifica-se tanto o seu caráterrelativamente estático, que se destaca como um pilar sólido nacorrente das aparências psíquicas que flui constantemente, etambém no fato de que, em contraste com o conteúdo puramentesubjetivo da consciência, ele representa a, por assim dizer,interseção objetiva entre o microcosmo humano e omacrocosmo. Em um certo sentido, o corpo é o mais claramente

84 Bibli. des phil. chim.

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circunscrito, externo e simples de todos os reflexos do cosmo. Omais baixo corresponde ao mais alto, diz a regra enunciada na“Tábua da Esmeralda”.

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CAPÍTULO 11

DO “CASAMENTO QUÍMICO”

O casamento do enxofre eu do mercúrio,do sol e da lua, do rei e da rainha, é o símbolo central daalquimia. Somente com base na interpretação desse símbolo éque se pode fazer uma distinção entre, de um lado, alquimia emisticismo, e do outro entre alquimia e psicologia.

De um modo geral, o ponto de partida domisticismo é aquele de que a alma se tornou separada de Deus ese voltou para o mundo; consequentemente, a alma deve serreunificada com Deus. E isso se faz descobrindo nela mesma aSua presença imediata e toda iluminada. A alquimia, por outrolado, é baseada na visão de que o homem, como resultado daperda do seu estado “adâmico” original, está dividido dentro desi mesmo. Ele recupera sua natureza integral apenas quando osdois poderes, cuja discordância tem causado sua impotência, sãode novo reconciliados um com o outro. Essa dualidade interna, eagora “congênita”, na natureza humana, é, além disso, umaconsequência de sua queda de Deus, assim como Adão e Evaapenas se tornaram conscientes de sua posição após a queda eforam expulsos para o curso da geração e da morte.Inversamente, a recuperação da natureza integral do homem (quea alquimia expressa pelo símbolo do andrógino masculino-feminino) é o pré-requisito – ou de outro ponto de vista, o fruto –da união com Deus.

Se a distância – e o relacionamento – entreo homem e Deus é representado por uma linha vertical, então adistância entre o homem e a mulher, ou entre os dois poderescorrespondentes da alma, é representado por uma linhahorizontal – o que resulta em uma figura como um T invertido.No ponto em que as duas forças opostas estão balanceadas, querdizer, no centro da linha horizontal, esta é tocada pelo eixovertical, descendendo de Deus, ou subindo a Ele. Issocorresponde ao espírito supra-formal, que une a alma com Deus.

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O andrógino hermético – rei e rainha ao mesmo tempo – sobreo dragão da natureza, entre a “árvore do sol” e a “árvore dalua”. O andrógino tem asas e carrega em sua mão direita umacobra enrolada; e na sua mão esquerda uma traça com trêscobras. A sua metade masculina está vestida de vermelho; afeminina, de branco. Do manuscrito de Michael Cochem (ca.1530) na Biblioteca Vadiana, St. Gallen.

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Embora de acordo com esta imagem asduas forças ou polos da natureza humana (o enxofre e o mercúriodo trabalho alquímico interno) estejam no mesmo nível, hácontudo uma diferença de categoria, similar àquela que há nasmãos direita e esquerda, daí que se pode dizer que o polomasculino está colocado sobre o feminino. E certamente oenxofre, como polo masculino, desempenha um papel em relaçãoao mercúrio, o polo feminino, que é similar àquele do espíritoem sua ação na alma toda.

Como todo conhecimento ativo pertenceao lado masculino da alma, e todo o passivo, ao lado feminino, aconsciência, dominada pelo pensamento (e portanto claramentedelimitada), pode em certo sentido ser atribuída ao polomasculino, enquanto todos os poderes involuntários ecapacidades conectadas com a vida como tal aparece como umaexpressão do polo feminino. Isso pode parecer assemelhar-se àdistinção feita na psicologia moderna entre o consciente e oinconsciente. Há, portanto, uma tentação de interpretar o“casamento químico” (expressão de Valentim Andreae)simplesmente como uma “integração” dos poderes inconscientesda alma na consciência egóica, como é afirmado pela entãochamada “psicologia profunda”.

Para estabelecer quão distante essainterpretação está da verdade, e em que extensão ela deve sercorrigida, é necessário recordar o relacionamento tripartite quefoi representado acima por um T invertido. A verdadeira uniãodos dois poderes da alma apenas pode ocorrer naquele pontoonde o espírito supra-formal, o raio divino, toca seu nívelcomum. Isso significa, contudo, que o que o homem consideracomo o seu próprio “eu” pode nunca se tornar o eixo de umaintegração real, já que de acordo com as tradições espirituais, o“eu” que a psicologia moderna considera como o núcleo da“personalidade” é precisamente o obstáculo que impede aconsciência de ser inundada pela luz do puro Espírito ou, emoutras palavras, que oculta o Espírito de nossa consciência.Assim o “casamento químico” não é uma “individuação”, dequalquer maneira não no sentido de um processo interior por

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meio do qual o ego imprime em uma onda de instintos coletivosa sua fórmula particular – uma forma necessariamente limitada,tanto temporal como qualitativamente. Pode muito bem ser que oinfluxo de influências inconscientes passadas possam ampliar aconsciência egóica, porque ela se encontra ao alcance de umasublimação ordinária no sentido psicológico da palavra. Apesardisso ela tem limitações muito bem definidas, que são de fatoaquelas da consciência egóica ordinária.

O casamento do rei e da rainha, sol e da lua, sob a influênciado mercúrio espiritual. Extraído de “Philosophers´ Rosegarden

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´, de Arnaldo de Vilanova, manuscrito que se conserva naBiblioteca Vadiana, St. Gallen.

A consciência humana pode apenas atingirdomínio sobre o tempestuoso mar do inconsciente com odespertar de um poder criativo dentro de si, que deriva de umaesfera superior àquela da consciência egóica. Essa esferasuperior é também inconsciente, mas apenas provisoriamente edo ponto de vista da consciência ordinária, já que em si mesma épura luz indivisa. Essa luz é inacessível à observaçãopsicológica, tanto em sua essência quanto em todas as suasemanações, já que a psicologia, assim como todas as ciênciasempíricas, é sujeita à razão, que atua sobre si mesma, e a razãonão pode penetrar além de si mesma à sua fonte de iluminaçãomais que um espelho pode jogar luz no sol. É por isso muito vãoo desejo de descrever psicologicamente a essência real daalquimia, ou o segredo do “casamento químico”. Quanto maisnos esforçamos por eliminar os símbolos e por substituí-los porconcepções científicas de uma espécie ou de outra, tanto maisrápido aquela presença espiritual desaparece – aquela que é overdadeiro coração da questão, e que apenas pode ser transmitidapor símbolos, cuja natureza é ser conceitualmente inexaurível.

Em um sentido, portanto, a consciênciaegóica está entre dois domínios inconscientes, um abaixo, que nasua natureza latente e ainda não-formada, nunca pode se tornarcompletamente consciente, e o outro acima, que apenas aparececomo inconsciente visto “desde de baixo”. À medida em que aluz supra-conceitual atua no domínio da alma, o poder “natural”da consciência “inferior” é tomado e assimilado. O processoalquímico tem, assim, um aspecto duplo e ambíguo, já que odesenvolvimento dos dois poderes fundamentais da alma(enxofre masculino e mercúrio feminino), trazido à tona pelaconcentração espiritual, é capaz de refletir o Espírito não-conceitual, à medida em que ele inclui os domínios involuntáriose nesse sentido naturais. A razão para isso é que a Natureza, emseu aspecto não-conceitual e mais ou menos inconsciente ouinvoluntário, é a imagem inversa do espírito criativo, de acordocom as palavras da Tábua da Esmeralda, segundo as quais o queestá acima é como o que está abaixo e vice-versa. Assim, os

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poderes fundamentais masculino e feminino estão ancorados nanatureza inconsciente e instintiva do homem. Os dois poderesexperimentam o seu completo desenvolvimento no plano daalma, mas realizam a sua completude apenas no espírito, já queapenas aqui a receptividade feminina alcança a sua maioramplitude, e a sua mais pura pureza, e é completamenteunificada ao Ato masculino vencedor.

Por outro lado, pode-se dizer que anatureza involuntária, enraizada no inconsciente, apenas alcançasua unidade viva à medida em que o Espírito supra-conceitualatua nela. O raio do Espírito atua na natureza original como umapalavra mágica, e isso não se aplica meramente na naturezainterna, a natureza da alma (desligada da atmosfera psíquicaexterna, nem tanto pelo corpo como pela consciência conceitualegóica): efetivamente a presença direta do Espírito no homematua sobre todo o ambiente sutil ou psíquico, e através delepenetra em maior ou menor extensão também no ambientecorporal. Isso explica, entre outras coisas, certos milagres queocorrem nas proximidades dos santos.

Retornemos ao nosso símbolo original doT invertido e o amplifiquemos para uma cruz. A parte superiordo eixo vertical obviamente indica a origem da luz espiritual. Aparte inferior desce até a escuridão da natureza inconsciente. Osdois traços horizontais “medem” o desenvolvimento dos doispoderes polares da alma, que a alquimia chama de enxofre emercúrio. Pode-se dizer agora que através da reconciliação oucasamento dessas duas forças inicialmente hostis, a oposiçãoentre “acima” e “abaixo” também desaparece, à medida em quede fato a escuridão é dissipada pela luz. Se as duas forças sãorepresentadas por duas serpentes, girando-se se a si mesmas eixovertical acima, até que no nível da linha horizontal elasfinalmente se encontram e se juntam no centro,subsequentemente sendo transmutadas em uma única serpenteerguida na parte superior da cruz, então temos uma imagem decomo a natureza “obscura” é transmutada na natureza“luminosa”.

O casamento das forças masculina efeminina finalmente se mistura ao casamento do espírito e daalma, e assim como o espírito é o “divino no humano” – como

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está escrito no Corpus Hermeticum, esta última união estárelacionada também com o casamento místico. Assim, um estadose funde em outro. A realização da completude de alma conduzao abandono da alma ao espírito, e assim o símbolo alquímicotem uma multiplicidade de interpretações. O sol e a lua podemrepresentar os dois poderes na alma (enxofre e mercúrio); aomesmo tempo eles são símbolos do Espírito e da alma.

Intimamente ligado ao simbolismo docasamento está o simbolismo da morte. De acordo com algumasrepresentações do “casamento químico”, o rei e a rainha, nocasamento, são mortos e enterrados juntos, apenas pararessuscitarem rejuvenescidos. Que essa conexão entre ocasamento e a morte está na natureza das coisas é indicado pelofato de que, de acordo com a experiência antiga, um casamentono sonho significa uma morte, e uma morte em um sonhosignifica um casamento. Essa correspondência é explicada pelofato de que qualquer nova união pressupõe a extinção de umestado anterior diferenciado. No casamento do homem e damulher cada um deles abre mão de parte da sua independência,ao passo que, por outro lado, a morte (que em uma primeira vistaé uma separação) é seguida pela união do corpo com a terra e daalma com sua essência original.

No “casamento químico”, o mercúrio trazem si mesmo enxofre, e o enxofre, mercúrio. Ambas as forçasmorrem, como adversárias e amantes. Então a lua mutável ereflexiva alma une-se ao sol imutável do espírito de modo queela, ao mesmo tempo, é extinta e iluminada.

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CAPÍTULO 12

A ALQUMIA DA ORAÇÃO

Tanto quanto a alquimia contém umaciência da natureza – essa última compreendendo tanto asmanifestações grosseiras ou corporais como as sutis ou psíquicas–, suas leis e concepções podem ser livremente transpostas aodomínio das outras ciências tradicionais, por exemplo a medicinahumoral (que considera o organismo humano como um todoindivisível) e também à correspondente ciência da alma e àsterapias a elas relacionadas. Mais importante para nós, napresente conexão, é a transposição de perspectivas alquímicas aomisticismo, já que ele oferece um paralelo ao que foi dito acimaa respeito do “casamento químico”. Aqui será feita apenas umabreve menção a essa transposição particular, por meio deindicação e amplificação, sem um esforço de procurar todas assuas ramificações.

No quadro do misticismo, a alquimia é,acima de tudo, a alquimia da oração. Pela palavra oração deveser entendido nem tanto uma petição individual, mas sim aarticulação interna – e algumas vezes também externa – de umafórmula ou nome dirigida a Deus e evocando a Deus, assimespecialmente as chamadas “preces jaculatórias”. A excelênciadessa espécie de oração está no fato de que a palavra ou fraserepetida, como um meio de concentração não foi escolhida porum ser humano ou outro, mas sim deriva completamente darevelação ou contém um nome divino (se de fato ela não consisteexclusivamente deste nome). Assim a palavra pronunciada pelapessoa orante é, graças a sua origem divina, um símbolo dapalavra eterna e, em última análise, em vista de seu conteúdo ede poder de benção é Una com esse último: “O fundamento destemistério (ou seja, a invocação de um nome divino) é, de um lado,que “Deus e seu nome são um” (Ramakrishna), e de outro queDeus mesmo pronuncia seu nome nele mesmo, portanto naeternidade e fora de toda a criação. Portanto, Sua incomparável eincriada palavra é o protótipo da prece jaculatória e até mesmo,em um sentido menos direto, de toda prece” (Frithjof Schuon,

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Stations of Wisdom85).Assim, fundamentalmente, o nome divino,

ou a fórmula sagrada da oração jaculatóia, estão relacionados àalma passiva, assim como a palavra divina, o fiat luz, à naturezapassiva ou materia prima do mundo. Isso nos traz de volta àcorrespondência (mencionada por Muhyi 'd-Dîn ibn 'Arabi) queexiste entre de um lado o comando divino (al-amr) e a natureza(tabî'ah) e por outro lado enxofre e mercúrio, os dois poderesfundamentais que, na alma, são (respectivamente) relativamenteativo e relativamente passivo. No seu sentido imediato, e doponto de vista do “método”, enxofre é a vontade, que se liga como conteúdo da palavra pronunciada na oração, e age de um modoformativo sobre o mercúrio, ou a alma receptiva. Em últimaanálise, porém, o enxofre é a luz espiritual penetrante contida naspalavras sagradas, como o fogo na pedra, e cuja aparência efetuaa real transmutação da alma.

Essa transmutação passa pelas mesmasfases determinadas pelo trabalho alquímico, pois a almainicialmente se congela ao se afastar do mundo exterior, então sedissolve como resultado do calor interno, e finalmente, tendosido uma corrente mutável e volátil de impressões, transforma-seem um cristal imóvel preenchido de luz.– Essa é de fato aexpressão mais simples a qual esse processo interior pode serreduzido. Se se fosse descrevê-lo em grandes detalhes serianecessário repetir quase tudo o que foi dito neste livro sobre otrabalho alquímico e relacionar isso com a ação íntima daoração, e dentro do quadro da correspondente contemplaçãoespiritual86.

Bastará aqui mencionar que a alquimia daoração é tratada de um modo particularmente completo dosescritos dos místicos islâmicos87. Aqui eles estão em estreitarelação ao método de dhikr, uma expressão arábica que pode sertraduzida por “recordação”, “reminiscência” e “alusão”, etambém como “prece jaculatória”. Recordação tem aqui umsentido da anamnesis platônica: “A razão suficiente para a

85 Publicado por John Murray, Londres, 1961. Capítulo intitulado “Modes ofprayer”.

86 Ver Frithjof Schuon, obra citada, capítulo “Stations of Wisdom”.87 Ver minha Introdução à doutrina Sufi, p. 101Ff, publicada por Ashraf Lahore,

1959.

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evocação do nome (divino) está em que isto é uma “recordação”de Deus; e isto, em última análise, é consciência do Absoluto. Onome atualiza esta consciência e, no fim, o perpetua na alma e ofixa no coração, e então ele penetra todo o ser, e ao mesmotempo o transmuta e o absorve...” (Frithjof Schuon, obra citada).

A lei básica desse tipo de alquimia interiorpode ser encontrada na fórmula cristã da Ave Maria, a “saudaçãoangélica”. Maria corresponde tanto à materia prima quanto àalma em estado de pura receptividade, enquanto que as palavrasdo anjo são uma prolongação do fiat lux divino. O “fruto doventre da Virgem” corresponde ao elixir miraculoso, à pedrafilosofal, que é a meta do trabalho interno.

De acordo com interpretações medievais, oanjo cumprimenta a virgem mutans Evae nomem: Ave é, de fato,o inverso de Eva. Isso indica a transmutação da alma caótica emum espelho puro da palavra divina. À objeção de que o anjo nãofalou latim, de que Eva em hebreu é Khawwa pode-se responderque no domínio do sagrado não há acaso, e inclusive aquelesfatos que parecem mera coincidência são, na realidade, pré-ordenados. Isso explica por que na Idade Média os menoresdetalhes das Escrituras, mesmo os nomes, eram estudados evariadamente interpretados de acordo com o seu simbolismo – ecom uma inspiração que rejeita qualquer mancha deartificialidade.

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CAPÍTULO 13

O ATHANOR

“Athanor”, do árabe at-tannûr (“forno”), éa palavra usada pelos alquimistas para designar o forno no qual oelixir é preparado. Nos manuscritos alquímicos ele é usualmenterepresentado na forma de uma pequena torre encimada por umaabóboda. Ele contém um receptáculo de vidro (usualmente emforma de ovo), que permanece em uma capa de areia ou umacova cinza situada imediatamente acima do fogo. Tudo isso temtanto um significado literal como simbólico, pois embora sejacerto de que aqueles fornos desse formato foram de fato usadospara todo tipo de operações químicas e metalúrgicas, overdadeiro athanor – até onde o “grande trabalho” se interessou –não foi outro senão o corpo humano, e assim também umaimagem simplificada do cosmos.

Que o forno dos alquimistas seja umareminiscência do corpo humano já foi notado por outrosescritores modernos que escreveram sobre a alquimia88. É umailusão, porém, tentar estabelecer essa semelhança sobre uma baseanatômica, pois do ponto de vista “metódico” da alquimia, o“corpo” não significa o corpo visível e tangível, mas uma sériede poderes da alma que tem o corpo como seu suporte, e que sãoacessíveis via consciência corporal. Quando se diz que o amorhabita o coração, assume-se uma relação entre a alma e o corposimilar àquele que, de uma maneira muito mais gradualmentesutil, está na base do símbolo alquímico do athanor. Nele otríplice envoltório (consistindo em um forno terrestre, cova decinzas ou recipiente de vidro) refere a outros tantos envoltóriosou “estratos” da consciência corporal ou vital.

O elemento mais importante no forno é ofogo. Os alquimistas salientam que o calor que transmuta amateria contido nos recipientes deve ser tríplice, a saber, o caloraberto do fogo, o calor uniformemente distribuído da cova decinzas ou de areia (em cuja vala o recipiente de vidro está comoum ovo em um ninho), e finalmente o calor latente que é

88 Ver H. K. Iranchär, Enthüllung der Geheimnisse der wahren Alchemie, Zurich.

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atualizado na substância mesma, um calor que depois disso setorna ativo por seu próprio direito. (Esse último é o que hojepode ser chamado – em um nível puramente físico – o calor dareação química.)

Athanor, do “Mutus Liber”.

O fogo corresponde claramente ao podergerativo que é primeiro despertado e então domado para servir àcontemplação interior. A partir disso pode-se imediatamenteentender por que os alquimistas sempre se acautelaram contraum fogo violento e instável. Uma chama violenta podeperfeitamente consumir as “flores de ouro”. O calor indireto dacova de cinzas, que pode ser “moderado, envolvente epenetrante” – significa a concentração da alma, que éindiretamente trazida e mantida pelo fogo “aberto”. A cinza ématéria viva queimada, que não pode mais inflamar-se – valedizer que não é mais alcancável pelas paixões. Algumas vezes sediz que as cinzas devem ser de madeira de carvalho. O carvalhoé o símbolo do homem, e especialmente do corpo humano.Finalmente o calor que se desenvolve na matéria enclausurada, ea qual, de acordo com os alquimistas, já está presente em todosos corpos e substâncias, e apenas deve ser despertada, é umsímbolo da força vital mais interior.

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Athanor, o livro de Basilius Valentinus: “A respeito da GrandePedra dos antigos...”, Leipzig M. DC. J ii.

Os mestres alquimistas também falam detrês fogos: um artificial, um natural e um “anti-natural”. Issocorresponde à distinção entre a contemplação metódica, a“vibração” da alma que é posta em movimento pelo primeiro e àintervenção do Espírito espontaneamente ocorrida, que é tambémdescrita como um “enxofre incombustível”, e que é um modo degraça.

O fogo é revigorado tanto por umacorrente de ar que entra através dos buracos de oxigenação doforno como pelo uso dos foles. Isso é uma indicação de que naconcentração espiritual, como praticada pelos alquimistas, a

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regulação da respiração desempenha um papel, assim como nayoga.

O fato de que o vaso hermético ou “ovo” éfeito de vidro ou de cristal, e é assim transparente, indica suaconexão com a alma. Ele não é mais que consciência defletida domundo exterior, que veio para dentro, constituindo, por assimdizer, uma esfera isolada. Durante a “ebulição”, ele devepermanecer “hermeticamente fechado”. Os poderes que sãodesenvolvidos nele não devem vazar, se o trabalho alcançou seuêxito. Dependendo do processo no qual se pretende usá-lo, ovaso hermético pode ter diversas formas. Pode ser estranguladono meio, como uma abóbora. Ele pode ter uma ou maisprotuberâncias bulbosas. Ele pode consistir em uma ilha defiltração, ou para o método “seco” de um cadinho aberto. Cadauma dessas formas corresponde tanto a um uso artesanal como aum determinado aspecto do trabalho espiritual. A forma maisgenérica do vaso, porém, é em forma de ovo. A posição do vasono corpo humano corresponde ao plexo solar.

Athanor, do Livro da Santíssima Trindade

Alambique com balão

O ovo hermético é o reflexo microcósmicodo “ovo universal” (hiranyagarbha) da mitologia hindu, que

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representa o “embrião” sutil do mundo visível. Como o ovouniversal, o ovo hermético contém sinteticamente todos oselementos e propriedades a partir dos quais o mundo corporal sedesenvolve. Essa é a razão por que o progresso do trabalhoalquímico é comparado com a criação do mundo.

Recipiente hermético que contém as três forças primárias(enxofre, mercúrio e sal) e o dragão “volátil” e “sólido” (ouespiritual e corporal) da natureza. De Basilius Valentinus: “Arespeito da Grande Pedra dos antigos...”.

Uma réplica muito singular do fornoalquímico pode ser encontrada no cachimbo sagrado dos índiosnorte-americanos, que da mesma forma representam o corpohumano. Como o athanor, ele não é tanto uma “imagem” docorpo, mas uma espécie de paradigma daqueles poderes eprocessos vitais que ligam o corpo com o mundo da alma, etambém com todo o cosmos. Para os indianos, o fogo quequeima no forno, ou no cachimbo sagrado, é derivado do sol. Amateria, entretanto, que ele consuma e transmuta em fumaça,vem de todas as coisas e seres. Antes de encher o cachimbo, osacerdote indiano distribui o tabaco sobre os diferentes

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elementos de uma figura geométrica do universo, uma espécie derosa dos ventos. Então ele coloca no cachimbo, invocando todosos variados poderes cósmicos que esses elementos representam.Então, através do oferecimento da fumaça, o mundo inteiro, etambém toda a alma humana, pode ser transmutada89. A ascensãoda fumaça simboliza a ascensão da alma individual ao Infinito, eassim corresponde à sublimação alquímica. Quando os índios emoração oferecem seu cachimbo primeiro aos céus, e depois àterra, isso é análogo à “espiritualização do corpo” e à“incorporação da espírito” alquímicos. O fogo no cachimbosagrado é revivido pelo ar. O canal do cachimbo corresponde àcoluna vertebral, ou mais exatamente ao canal sutil que é a viado espírito vital.

Em oposição ao vaso hermético, no qual amateria apenas se move dentro de um circuito fechado, o bojo docachimbo sagrado é aberto. A fumaça escapa. Mas mesmo naalquimia há um processo similar a esse. De acordo com o entãochamado método “seco”, a materia é exposta diretamente aofogo, e esse método é o mais curto, mas também o mais perigosocaminho para o conhecimento profundo.

O cachimbo sagrado dos índios é oprotótipo e a garantia da mais alta dignidade do homem, suacapacidade de reconciliar o céu com a terra. No mesmo sentido,embora com menos obviedade, também está presente na formado athanor.

*

As considerações seguintes, que podemparecer saídas de nossa subjetividade, podem ajudar a clarificar arelação mútua de espírito e corpo. Primeiramente, deixe-nosrecordar que em determinadas doenças mentais é impossíveldeterminar se a causa é mental ou física. Em tais casos, de fato,os distúrbios de equilíbrio se seguem alternadamente. A doençamental resulta em veneno acumulado no corpo, e esse por suavez confunde ou paralisa a mente, sem que seja possível saber sea causa inicial pode ser procurada na mente ou no corpo. –

89 Ver The Sacred Pipe, de Black Elk. Editado por Joseph Epes Brown,Universidade de Oklahoma Press, 1953.

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Determinadas doenças, sem dúvida alguma, surgem de causasmais fundamentais. Elas são, em certo sentido, condicionadaspelo tipo humano.

Semelhante, até certo ponto, são os estadospsíquicos produzidos pelos narcóticos. Tais estados devem terum conteúdo espiritual, mas apenas sob condições particulares,porque o narcótico não pode fazer nada além de induzir umprocesso interior, ele não pode determinar sua qualidade.Quando, em determinados cultos, bebidas intoxicantes sãousadas para promover estados espirituais extraordinários, não é abebida intoxicante como tal que produz os estados em questão. Asua função apenas pode ser preparatória. O ímpeto “qualitativo”deve vir de um domínio diferente.

A maturidade sexual no homem não é averdadeira razão pela qual ele reconhecer a beleza na mulher. Eaté mesmo a ausência dessa maturidade – como resultado de umdefeito físico – pode muito bem indicar que uma beleza que emsi mesma é independente da atração sexual nunca penetrará aporta da consciência. Finalmente deve ser dito que mesmo aatividade do cérebro, sem a qual determinadas intuiçõesespirituais são irrealizáveis, é dependente do corpo. De outromodo, é também possível que estados espirituais incomuns, paraos quais a mente como tal não está adaptada, podem temporáriaou permanentemente danificar o cérebro. Nesse caso – que émais conhecido em civilizações com uma tradição espiritual – oconteúdo, por assim dizer, rompe o vaso, e isso prova, em umsentido negativo, quão importante é a base corporal, física, deuma arte espiritual.

A interação natural do espírito e do corposeduz o observador superficial em direção ao materialismo. Atémesmo aquele que vê as proporções verdadeiras das coisas irápelo contrário chegar à intuição de que os dois níveis darealidade correspondem um ao outro como protótipo (espiritual)e reflexo (corporal). Todo o cosmos é construídosimbolicamente. O olho não pode vê-lo porque ele é capaz, deum certo modo, de focalizar raios de luz; ele vê porque, em umnível corporal, ele reflete o olho espiritual; daí porque eletambém tem a mesma forma que os corpos celestes. O ouvidoouve porque ele assemelha-se ao espaço cósmico, no qual a

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palavra eterna ressoa. As leis da acústica, de acordo com as quaisele é formado, não é senão uma expressão do mesmo protótipo.Então, assim também é que as faculdades interiores trabalhamapenas em virtude de sua consonância simbólica com realidadessuperiores. A memória não seria capaz de armazenar asimpressões das coisas se ela, no mesmo plano da alma, não seassemelhasse à permanência eterna das possibilidades principaisdo Divino Espírito. A imaginação seria sem significado se ela, aseu modo, não participasse da capacidade plástica da materiaprima, e as palavras não teriam significado se o Espirito nãofosse a palavra de Deus.

É assim inerente à natureza de uma artesagrada, que naturalmente nasce em formato simbólico, utilizar odesenho do corpo em seus trabalhos, e mesmo para fazer delesua base “metódica”. O desprezo ascético pelo corpo se aplicaapenas ao corpo como sede das paixões, e não ao corpo comosímbolo.

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Figura 9 – O andrógino hermético representando a união dasduas forças primordiais homem-mulher. A águia correspondeao mercúrio homem-mulher perfeito e harmonioso. O morcegoe a lebre representam aqui o sutil e o corpóreo. Do manuscritoPh 172 na Biblioteca Central, Zurich.

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Figuras 10 e 11 – A flor que brota das cinzas e a virgem brancado elixir lunar. Representação das duas fases do trabalhoalquímico. De um manuscrito anônimo antigo MS Sloane 256 Pdo Museu Britânico. – O vaso hermético, aqui, tem quase aforma de um coração. Ele está sobre a terra. A flor dos sábiosbrota de três raízes, que corresponde aos três princípios doenxofre, do mercúrio e do sal.

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Figura 12 – A lápide do alquimista Nicolas Flamel (ca. 1330-1417) da Igreja de St. Jacques-la-Boucherie; agora no MuseuCluny em Paris. No painel superior esta Cristo com o globo domundo, entre o sol e a lua, acompanhado dos apóstolos Pedro ePaulo. No painel inferior, está desenhado o corpo de Flamelem decomposição. Da inscrição consta: “Feu Nicolas Flamel,jadis escrivain a laissie par son testament a leuvre de cesteeglise certaines rentes et maisons quil avoit acquestees etachetees a son vivant pour faire certain service divin etdistribucions dargent chascun an par aumosne touchans lesquinze vins lostel dieu et autres eglises et hospitaux de ParísSoit prie por les trespasses”.

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CAPÍTULO 14

A HISTÓRIA DE NICOLAS FLAMEL E DE SUAESPOSA PERRENELLE

Através da ilustração do que já foi dito, ecomo uma preparação ao que ainda resta dizer, uma versão –com um breve comentário – da famosa história de NicolasFlamel e de sua esposa Perrenelle será reproduzida abaixo. Estahistória constitui a primeira parte do livro de Flamel, On thehieroglyphic figures which he had depicted in the Cemetery ofthe Holy Innocents in Paris90.

Registros e documentos a respeito da vidade Flamel foram conservados. Ele nasceu em Pontoise em 1330e trabalhou em Paris como escritor e notário público. Seuescritório estava primeiramente situado ao lado da casamortuária do cemitério dos santos inocentes, e mais tarde pertoda Igreja de Saint Jacques-la-Boucherie, onde ele mesmo foienterrado em 1417. Sua sepultura é preservada no Museu Cluny.

O relato de Flamel está preocupadoprincipalmente com o primus agens do trabalho alquímico, sobreo qual Sinésio disse: “A respeito do primus agens, os filósofossempre falaram apenas em parábolas em símbolos, para que suaciência não seja acessível aos tolos; pois se isso acontecesse tudopoderia se perder. Ele deve estar disponível apenas para almaspacientes e espíritos refinados que afastaram-se da corrupção domundo e purificaram-se a si mesmo da imundície viscosa daavareza...”.

A história do próprio Nicolas Flamel assimcomeça: “Durante o tempo em que, depois da morte de meuspais, eu ganhava a vida através da arte da escrita – fazendoinventários, preparando balanços e calculando as despesas dostutores e de seus pupilos – eu adquiri por dois florins um livrobastante antigo, grande e finamente dourado. Ele não era feitonem de papel nem de pergaminho, como eram os outros livros,mas ao que me parecia estava feito de casca amansada de árvoresjovens. A sua encadernação era feita de cobre bem laminado e

90 Bibl. des phil. chim.

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era gravado com estranhas letras e figuras – e eu pensei que elaseram letras gregas, ou letras de alguma língua antiga similar. Detodo modo, eu não podia lê-lo, mas eu sabia que não se tratavade letras latinas ou gálicas, porque delas eu compreendo algumacoisa. Dentro, as páginas de córtex foram gravadas muitohabilmente com um instrumento de ferro e uma perfuração muitobonita, e letras em latim, muito claras, que foram coloridas commuita dedicação. O livro continha três conjuntos de sete páginas,e elas eram juntas (em seções) desse modo, e na sétima páginanão havia escritos. A primeira sétima página, no lugar de escritohavia uma figura de uma vara, ao redor da qual duas serpentesestavam enroscadas; na segunda sétima página havia uma cruzna qual estava fixada uma serpente. E na última sétima páginaestava representado o deserto no meio do qual havia diversasfontes muito belas fora das quais as serpentes se espalhavam emtodas as direções...”.

Os três conjuntos de sete páginas, do livro,relembrava as três principais fases do trabalho – escurecimento,clareamento e avermelhamento – e os sete planetas ou metais.

A vara ao redor da qual as duas serpentesestavam enroscadas é a vara de hermes, com as duas forças –enxofre e mercúrio – que governam o eixo espiritual.

A cobra crucificada é o símbolo da fixaçãodo mercúrio volátil – a primeira “incorporação” do espírito. Afixação do mercúrio corresponde à subjugação da força vitalcada vez mais inquieta, que se dissipa a si mesma em desejos eimaginações. Ao mesmo tempo ela representa a transmutação dopensamento dominado pelo tempo em uma consciência imóvel eatemporal. A cruz na qual a serpente está fixada significa ocorpo, não como carne e sensualidade, mas como imagem da leicósmica, do eixo cósmico imóvel.

As fontes brotando no meio de um desertoou imensidão, a partir da qual as serpentes emergem,representam um estado de reconquista da originalidadeespiritual. Todas as três gravuras são variações do símbolo daserpente, que sempre representam o mesmo poder da alma (oupoder cósmico): “Natureza” ou shakti.

“Na primeira página do livro está escritoem letras douradas em caixa alta: ABRAÃO O JUDEU,

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PRÍNCIPE, SACERDOTE, LEVITA, ASTRÓLOGO EFILÓSOFO. AO POVO JUDEU, DISPERSADO PELACÓLERA DE DEUS ATÉ A GÁLIA, SAUDAÇÕES. D. I. Oresto da página estava preenchido por maldições terríveis (nasquais a palavra MARANATHA frequentemente ocorria) contraqualquer um que lesse este livro, a menos que se tratasse de umsacerdote sacrificial ou um doutor nas leis sagradas.

“o homem que me vendeu este livro nãosabia seu valor – e assim também eu quando o adquiri. Eu penseique ele devesse ter sido tomado dos pobres judeus, ou talveztivesse sido achado em alguma de suas antigas habitações...”

Flamel possivelmente está se referindoaqui a uma das expulsões dos judeus, que ocorreram várias vezesnaquela época. Que o livro pudesse ser de origem judaica ésignificativo, já que os judeus foram a ligação natural entre osmundos cristão e muçulmano. É sabido que a renascença daalquimia da Eurpoa na baixa Idade Média despertou-se a partirda influência da cultura islâmica.

“Na segunda página o autor consola seupovo e o aconselha a afastar-se de todo o vício, especialmente daidolatria, e a esperar com paciência mansa até que o Messiaspossa vir e conquistar todos os reis na terra, e com seu povogovernar eternamente em sua majestade. Sem dúvida que isso foiescrito por um homem muito sábio.

“Na terceira página e nas seguintes, eleensinou, em linguagem simples, a transmutação dos metais paraauxiliar seu povo cativo a pagar as taxas ao imperador romano ea fazer outras coisas que eu não vou mencionar. Ao lado dissoele trouxe ilustrações de vasos e deu detalhes das cores e deoutras questões, com exceção, sempre, do primus agens do qualele não falou. Em vez disso ele o pintou com grande habilidadesobre toda a superfície da quarta e da quinta páginas; e emboraele estivesse claramente delineado e retratado, ninguém poderiacompreendê-lo se não estivesse familiarizado com suas tradiçõese não tivesse estudado com afinco os livros dos filósofos. Aquarta e quinta páginas estavam assim sem escrita, sendocompletamente preenchidas por belas e bem-executadasminiaturas.

Na quarta página estava retratado, antes de

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tudo, um jovem com asas sobre seus calcanhares, e com umavara em suas mãos – um caduceu entrelaçado por duas serpentes– com o qual ele tocou o elmo na sua cabeça. Pareceu a mim queele representava o deus pagão Mercúrio. Na direção dele correue voou um homem velho e poderoso, em cuja cabeça havia umaampulheta, e que carregava uma foice em suas mãos – como amorte – com o qual, repleto de raiva e fúria, ele tentava rancar ospés de Mercúrio...”

Que o deus Mercúrio ou ou metalMercúrio possam ser despojados de sua volatilidade por Saturno-Cronos, ou pelo tempo, como o próprio Flamel disse, podesuscitar duas interpretações diferentes e, em certo sentido,contraditórias, dependendo se o tempo é usado ativamente oumeramente suportado; ou se a fixação do metal mercúrio é vistacomo uma morte lenta de seu poder efetivo, ou como umadomesticação desse último. A ampulheta na cabeça de Saturno,contudo, parece sugerir que o tempo deve ser dominadoativamente por meio de um ritmo que o converterá em um eternoagora.

“No outro lado da quarta página estavadesenhada uma linda flor crescendo no topo de uma altamontanha, que balançava violentamente pelo vento norte. Elatinha um talo azul e flores brancas e vermelhas, e folhasbrilhantes como um ouro maciço. Ao redor dela se aninhavam osdragões e os grifos do Norte...”

As cores da flor representam as trêsprincipais fases do trabalho, e os seus dois frutos,especificamente a prata e o ouro. Aqui o azul toma o lugar dopreto, em consonância com a natureza de uma flor, mas com omesmo sentido de escuridão e noite. A flor cresce na montanhasolitária do Ser essencial, que é um com a montanha universal aoredor da qual os céus circulam, através da qual os eixos polarescorrem, e ao redor da qual deslizam os dragões dos poderescósmicos.

“Na quinta página, havia um arbusto derosas florido, no meio de um bonito jardim e inclinado numcarvalho oco. Ao pé do arbusto de rosas jorrou uma fonte deágua branca, que caiu de cascatas à distância, depois de passaratravés das mãos de incontáveis pessoas, que cavaram na terra

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para encontrar a fonte mas não a encontraram, já que elas eramcegas, com a exceção de apenas uma, que pesava a água.

A fonte de mercúrio jorrou da “terra” damateria prima, nas raízes da árvore florescente da alma, que éprotegida pelo tronco do carvalho oco do corpo. A água da vidaflui para todo lugar, ainda que ninguém a encontre senão o sábioque a pesa sobre ela. Poder-se-ia esperar que ele pudesseexperimentá-la, mas a pesagem da água tem aqui o mesmosignificado que a captura do mercúrio pela medida do tempo.

Os alquimistas também ensinam agora aunificar os elementos individuais ou as variadas propriedadesnaturais um com o outro, de acordo com um relacionamentodefinido de seus “pesos”. Jâbir ibn Hayyân chamou isso de arteda balança. E ainda que possa parecer absurdo pesar elementos,ou mesmo propriedades, como calor, frio, umidade e secura. Oque se quer dizer pela “pesagem” alquímica apenas pode sercompreendido se se primeiro transpõe a medida de pesoquantitativa e exterior para a medida de tempo qualitativa einterior (i. e. Ritmo). A pesagem alquímica, que parece se referirà massa física, não é nada mais que um domínio do ritmo, pormeio do qual os poderes da alma podem ser influenciados. Oritmo desempenha um importante papel em toda arte espiritual.Na árabe o ritmo de um verso é conhecido como o seu “peso”(wazn).

“Do outro lado da quinta página estava umrei com uma grande faca, que por meio de soldados ao seu redorcausou a morte de um grande número de jovens crianças, cujasmães choravam ao pé do homem impiedosamente armado,enquanto o sangue fluente era recolhido pelos outros soldados ecolocados no largo vaso no qual o sol e a lua do céu vinham sebanhar. Isso porque essa ilustração recordava a história dascrianças inocentes mortas por Herodes, e porque foi por esselivro que eu aprendi a parte mais significativa da arte, que eupintei os signos hieroglíficos dessas ciências sagradas noCemitério dos Santos Inocentes. Foi isso o que estava nasprimeiras cinco páginas...”

Como o próprio Flamel escreveu naspáginas seguintes, o sangue dos inocentes sacrificados significa“o espírito mineral contido em todos os metais, e especialmente

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no ouro, na prata e no mercúrio”. Isso não é senão o “mercúriofilosofal”, que é a primeira manifestação da materia prima. Osangue é a matéria fundamental da vida. Os santos inocentes sãocomo movimentos imaculados ou exalações do Espírito vital queantes de se desenvolverem em vontade consciente sãosacrificados pelo rei para preencher o vaso do coração com o seusangue. Então, sol e lua, espírito e alma, podem se banhar, serdissolvidos e então unificados nele e, tendo perdido sua velhaforma, emergem dele rejuvenescidos.

“Eu não posso relatar o que está escrito emum belo e claro latim em todas as outras páginas, pois Deus mepuniria por isso, pois eu poderia estar fazendo algo pior do quefez aquele de quem é dito que desejou que todo homem na terrativesse apenas uma cabeça para que ele pudesse cortá-la comapenas um golpe.

“Agora que eu tenho esse maravilhosolivro comigo, eu não faço nada mais durante o dia e durante anoite que estudá-lo. Eu assim entendi muito bem todos osprocessos que ele descreve, mas eu não sabia qual era o materialsobre o qual eu deveria trabalhar. E isso me deixou muito triste esolitário e me fez suspirar incessantemente. Minha esposaPerrenelle, a quem eu amava como a mim mesmo, e com quemeu me casei apenas recentemente, estava grandementepreocupada sobre isso e me perguntava continuamente se ela nãoseria capaz de me tirar destas preocupações que obviamentepesavam sobre mim. Eu não podia esconder nada dela, e disse-lhe tudo, mostrando a ela o lindo livro, com o qual ela seapaixonou tanto quanto eu havia feito. Seu grande prazer eraolhar sobre sua bela capa, gravuras, imagens e representações,das quais, contudo, ela entendia tão pouco como eu. Nãoobstante, foi para mim uma grande consolação ser capaz de falarcom ela sobre isso, e discutir o que poderia ser feito paraencontrar a explicação dos símbolos.

“Finalmente eu copiei todas as figuras daquarta e quinta páginas tão fielmente quanto possível, e eu asmostrei a vários doutores, que não as entendiam melhor que eu.Eu até mesmo expliquei a eles que essas figuras haviam sidotiradas de um livro que ensinava a produção da pedra filosofal;mas a maioria deles riu de mim e da pedra sagrada, com a

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exceção de um certo mestre Anselmo, um licenciado emmedicina, que estudou esta arte diligentemente. Ele estava muitoansioso para ver o meu livro, e fez tudo o que podia para daruma olhada nele. Eu lhe assegurei, contudo, que não o possuía,mas lhe descrevi tudo o que nele continha. Ele me disse que aprimeira figura representava o tempo, que devorava todas ascoisas, e então, seguindo o número de páginas do livro, requerer-se-ia seis anos para aperfeiçoar a pedra. Depois desse período,ele asseverou, dever-se-ia girar a ampulheta e não mais cozinhar.Quando eu disse a ele que essa figura pretendia representarapenas o primus agens (como estava escrito no livro mesmo), eleme respondeu que cada um dos seis anos de cocção era como umsecundus agens. O primus agens, ele disse, cuja figura estava alidiante de nós, era sem dúvida nenhum outro que não aquela águabranca e pesada – especificamente mercúrio – que não poderiaser açambarcada, e cujos pés não poderiam ser cortados, querdizer, cuja volatilidade não pode ser removida exceto por longacocção no sangue puro de uma criança jovem. Nesse sangue, omercúrio, unindo-se com ouro e prata, poderia primeiro sertransmutado em uma planta como aquela mostrada na figura.Após isso, através da putrefação, ele poderia ser transformadoem serpentes, que, tendo sido completamente secadas ecozinhadas no fogo, poderiam desintegrar em pó – e isso era apedra filosofal.

“Foi culpa desse conselheiro que por umlongo período de vinte e um anos eu tenha cometido milhares deerros, sem entretanto usar sangue, o que teria sido cruel e vil.Pois eu descobri, no meu livro, que o que os filósofos chamavamsangue não eram nada além do que o espírito mineral contidonos metais, principalmente no sol, na lua e no mercúrio, que eucontinuamente me empenhava em combinar. As interpretaçõesacima mencionadas, porém, eram mais ingênuas que exatas. Jáque em todas as minhas atividades eu nunca percebi os sinaisque de acordo com o livro deviam aparecer no tempo certo, eutive sempre que começar de novo do começo. Finalmente,quando eu perdi toda esperança de até mesmo compreenderaquelas imagens, eu fiz uma promessa a Deus e a São Tiago deGalícia, e decidi procurar a explicação com algum sacerdotejudeu ou com outra pessoas nas sinagogas da Espanha...”

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São Tiago, o Ancião, cujo santuário estáem Compostela, foi o patrono dos alquimistas e também de todasas artes e ciências cosmológicas. Certamente não é coincidênciaque o bastão do peregrino (bourdon) de São Tiago – um bastãoatravessado por duas fitas e coroado com um botão redondo,como eu pude ver nas mãos do santo na estátua romanesca emCompostela – carregava uma memorável similitude com o bastãode Hermes.

“Eu estabeleci, portanto, com aconcordância da minha esposa Perrenelle, trazer comigo umacópia dessas figuras, vestido com roupa de peregrino e com obastão do peregrino, como eu posso ser visto do lado de fora dacapela, no cemitério onde eu pintei as figuras hieroglíficas, eonde também, nos muros de ambos os lados, eu pintei um cortejono qual todas as cores da pedra são vistas em ordem, aparecendoe desaparecendo juntamente com uma inscrição em francês:Moult plaist à Dieu Procession, s´elle est faite en dévotion (“Umcortejo agrada a Deus grandemente, quando é feito comdevoção”). A inscrição repetia quase literalmente o começo dolivro do rei Hércules91, que lidou com as cores da pedra ecarregava o título Iris: operis processio multum naturae placet,etc. Eu escolhi essas palavras deliberadamente, sabendo que osábio compreenderia a alusão.

“Vestido de peregrino, então, eu tomei meucaminho, chegando finalmente em Montjoye, de onde eu partipara São Tiago de Compostela, onde eu cumpri minha promessa.Tendo feito isso, eu parti e encontrei no caminho em León, ummercador de Bolonha, que me apresentou a um médico deorigem judia, mas um fiel cristão – chamado mestre Canches –,que vivia lá e era conhecido pelos sua erudição. Quando eu lhemostrei as imagens copiadas do livro, ele foi dominado poradmiração e alegria e me perguntou se eu sabia do paradeiro dolivro do qual elas foram tiradas. Eu respondi em latim (em cujalinguagem ele me havia questionado) e disse a ele que eu tinhaesperança de que se alguém pudesse resolver esses enigmas paramim, eu esperava encontrar informações precisas a respeito dolivro. Com isso ele imediatamente começou, com grande zelo ealegria, a explicar o começo para mim. Em breve ele ficou muito

91 Herakleios I, imperador de Bizâncio (610-641).

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feliz em escutar onde o livro estava, e eu por ouvi-lo falar a seurespeito. Ele provavelmente já havia ouvido muito sobre o livro,mas, como me disse, pensava-se que ele estaria completamenteperdido. Nós decidimos, então, partir juntos. De León viajamospara Oviedo e de lá para Sanson, de onde tomamos um naviopara a França. Nossa viagem seguiu alegremente, e mesmo antesde alcançarmos o citado reino, ele me explicou fielmente amaioria das minhas imagens, mostrando, mesmo em pequenosdetalhes grandes segredos (o que eu achei mais interessante).Mas quando chegamos em Orléans, aquele sábio homem ficoumuito doente, tomado por crises de vômito, que não pararamdesde o momento em que começaram no mar. Ele estava muitotemeroso de que eu o deixasse, o que era compreensível. Emboraeu não tenha deixado sua companhia, ele conversava comigoincessantemente. Finalmente ele morreu no final de sete dias deenfermidade, o que me encheu-me de tristeza. Eu o enterrei omelhor que pude na Igreja da Santa Cruz, em Orléans, onde eleestá até hoje. Deus tenha sua alma, pois ele morreu um bomcristão. Se a morte não me impedir, eu darei àquela igreja umapequena renda, para que todos os dias algumas missas possamser ditas em benefício de sua alma.

“Quer quer que queira ver como eucheguei em casa e como Perrenelle se alegrou, que noscontemple a ambos, na cidade de Paris, na porta da capela deSaint-Jacques de la Boucherie, ao lado e próximo da minha casa.Nós estamos lá retratados em ação de graças, eu aos pés de SãoTiago de Compostela, e Perrenelle aos pés de São João, a quemela tanto invocou. Assim, pela graça de Deus, e pela intercessãoda Santíssima Virgem, de São Tiago e de São João, eu aprendi oque desejava, a saber, os primeiros princípios, embora não a suapreparação inicial, que é mais difícil que qualquer coisa nestemundo. Isso entretanto eu finalmente aprendi depois de cometerdiversos erros, por um período de aproximadamente cinco anos,durante os quais eu continuamente estudei e trabalhei – como sepode ver a mim no muro externo da capela (em cujos pilares eupintei o cortejo), aos pés de São Tiago e São João,incessantemente orando a Deus, com o meu rosário na mão,lendo atentamente em um livro, meditando nas palavras dosfilósofos e então realizando as várias operações que eu extraí de

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suas palavras. “Finalmente eu encontrei o que eu tanto buscava,e eu o reconheci imediatamente pelo seu forte odor; e quando euo tive eu completei o trabalho (magistère). Tendo aprendido apreparação dos primeiros poderes (agens), eu deveria apenasseguir meu livro palavra por palavra, e não poderia dar erradonem que eu quisesse. Na primeira vez que eu fiz a projeção, eu aapliquei ao mercúrio e transmutei aproximadamente uma libra emeia em prata pura, que era melhor do que aquela extraídas dasminas – um fato que eu testei e tenho testado diversas vezes. Issoaconteceu em 17 de janeiro de 1382, uma segunda-feira,próximo do meio dia, em minha casa, na presença apenas dePerrenelle. Mais tarde, seguindo o meu livro palavra por palavra,eu completei o trabalho com a pedra vermelha, sobre umaquantidade similar de mercúrio, de novo apenas na companhia dePerrenelle, na mesma casa, no dia 25 de abril do mesmo ano, àscinco horas da tarde, quando eu efetivamente transmutei omercúrio eu ouro, quase na mesma quantidade, que eraclaramente melhor que o ouro comum, já que mais leve e maismaleável. Isso eu posso dizer na verdade. Dessa forma eucompletei o trabalho três vezes com a ajuda de Perrenelle, queentendeu tanto quanto eu mesmo fiz, pois ela me ajudou nasequência das instruções; e quisesse ela completá-lo inteiramentesozinha, ela poderia certamente alcançar a meta. Eu já estavamais que satisfeito depois de tê-lo completado uma vez, mas euencontrei grande alegria em ver e em compreender omaravilhoso trabalho da natureza nos vasos...”

O homem e a mulher, que na forma naturalencarnam os dois pólos do trabalho alquímico (enxofre emercúrio), podem por seu amor recíproco – quando ele éespiritualmente elevado e interiorizado – desenvolver esse podercósmico, ou poder da alma, que opera a dissolução e acoagulação alquímica (solve et coagula).

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CAPÍTULO 15

OS ESTÁGIOS DO TRABALHO

Há vários modos de se subdividir osmúltiplos estágios do trabalho alquímico. Cada um deles carregauma simplificação esquemática do processo total. Apesar disso,cada um deles é correto no sentido de que cada um é umaexpressão da lógica interna do “trabalho”. A mais antigasubdivisão é aquela que designa os estágios individuais ou fasespor diferentes cores. Isso possivelmente remete a um processometalúrgico particular, tal como a purificação ou coloração dosmetais. De acordo com esse esquema o enegrecimento(melanosis, nigredo) da materia ou “pedra” é seguido por umbranqueamento (leukosis, albedo), e esse, por sua vez, é seguidopor um “avermelhamento” (iosis, rubedo).

O preto é a ausência de cor e de luz.Branco é pureza; ele é luz indivisa – a luz não se quebra emcores. Vermelho é a essência da cor, seu ponto culminante e oseu ponto de maior intensidade. Essa ordenação das coisas setorna ainda mais evidente se entre o branco e o vermelho éinserida toda uma série de cores intermediárias tais como o verdelimão, o amarelo ocre e o vermelho claro ou, novamente, se sefala de uma “cauda de pavão” de cores gradualmentedesdobradas. Neste caso a cor púrpura é sempre a que fecha asséries.

É de se notar que as três principais cores –preto, branco e vermelho (que também podem ser encontradas naheráldica hermeticamente influenciada) – designa na cosmologiahindu as três tendências fundamentais (gunas) da materiaprimordial (Prakriti). Aqui o preto é simbolicamente omovimento “descendente” (tamas), que foge da origemluminosa; branco é a aspiração “ascendente” em direção à luz(sattva); e o vermelho é a tendência em direção à expansão noplano da manifestação mesma (rajas). Com essas interpretaçõesem mente, pode-se ficar surpreso de descobrir que na alquimianão é o branco, mas o vermelho, que representa o resultado finaldo trabalho. De acordo com a doutrina hindu, o cosmos é

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construído de tal maneira que primeiramente tamas, a forçadescendente, joga para baixo a âncora até a escuridão, e entãorajas, expandindo-se na distância, desenvolve a multiplicidade; efinalmente sattva, como uma chama luminosa com direçãoascendente, conduz tudo de volta à origem. A simplescomparação das três cores alquímicas com a cosmologia hindu jáé uma clara indicação do ponto de vista da alquimia e dosprecisos limites desse simbolismo. Depois da “espiritualizaçãodo corpo” – que em certo sentido corresponde ao branqueamentoe substitui a inicial negritude ou corrupção –, vem, como umacabamento, a “corporificação do espírito”, com sua corvermelho-púrpuro. O mesmo ritmo pode também ser transpostoa outros modos de realização espiritual. O ponto significanteaqui é que a ênfase está na manifestação do Espírito e não natranscendência – ou na extinção – da existência limitada.

Por meio da putrefação, fermentação etrituração – todas elas acontecendo na escuridão – a materia édespojada de sua forma inicial. Por meio do clareamento, a umbranco prateado, ele é purificado, e pelo “envermelhamento” eleé colorido novamente – e aqui a cor significa forma. O poderpurificador é o mercúrio, o poder “colorante”, o enxofre.

A tríplice divisão, de acordo com as cores,não conflita com a dupla divisão entre trabalho “inferior” e“superior”. Isso reflete a já descrita dualidade de materia eforma, alma e espírito, lua e sol.

Tanto a divisão tríplice como a dúpliceocorre na sétupla divisão baseada nos reinos (régimes) dosplanetas e propriedades dos metais.

Há duas concepções principais da gradaçãosétupla. Em duas delas, os trabalhos “inferior” e “superior” sãocombinados – algo de fato praticável – então prata e ouro, lua esol, como pares, representam o ponto final de toda a série,enquanto que os outros planetas ou metais tomam os seus lugaresna série de acordo com a sua nobreza, vale dizer, sua maior oumenor relação com o ouro ou com o sol. Essa ordem correspondeà hierarquia das casas planetárias, como descritas no capítulo 5.esse modelo é a ascensão do sol a partir da sua posição maisinferior, na casa de Saturno, no solstício de primavera, ao seudomínio na casa de Leão, que por sua vez representa o solstício

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de verão. Na outra concepção, o trabalho “inferior”, tendo a luacomo ponto final, precede o trabalho “superior” ao ponto decoroação, que é o sol. Essa última concepção, mencionada porPhilaletes, Bernardus Trevisanus, Basilius Valentinus e poroutros alquimistas – e que em razão de sua formaparticularmente lúcida será agora examinada em maioresdetalhes – aparece da forma como segue.

s w v R t q

Mercúrio Saturno Júpiter Lua Vênus Marte Sol

Mercúrio Chumbo Estanho Prata Cobre Ferro Ouro

s O símbolo de mercúrio, que vem antes detodos os outros, não representa um estágio no trabalho, mas antes achave do todo; então o trabalho em si mesmo tem apenas seis fases.Dessas as primeiras três são expressadas por símbolos puramentelunares, e as últimas três por símbolos puramente solares. Apenas osímbolo de mercúrio é andrógino, formado tanto do sol como da lua.

Já foi dito que para os alquimistas, o mercúrioé o primus agens, o real significado do trabalho, a água dissolvente e oalimento para o embrião espiritual. Ele é, por assim dizer, amanifestação mais direta da materia prima, vista como matéria físicasutil ou sopro vital, que une o organismo corpo-alma individual com omar cósmico da vida. Nele a semente do ouro espiritual estáescondida, assim como o ouro no mercúrio comum.

Transposto para o modo “operativo” domisticismo, o que aparece neste ponto é a influência espiritual, agraça, ou outra forma de operação do Espírito Santo, que em certosentido penetra de fora o mundo aparentemente fechado daconsciência egóica, e a afasta de sua “coagulação” metálica. Naalquimia, o mercúrio pode ser considerado como uma “bençãocósmica”, como Fra Marcantonio disse, “constantemente cai do céucomo uma névoa fina, para preencher os poros da terra”92; aqui, os“poros” são o que salva os corpos sólidos da fossilização e dasufocação; é através deles que a terra “respira”, assim como o homemvive por manter-se aberto às influências celestiais presentes na

92 Ver capítulo 10, “Enxofre, mercúrio e sal”.

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natureza.

A interpretação do signo de mercúrio como achave de todo o trabalho é confirmada pelo papel do deus Mecúrio, ouHermes, nos mistérios órficos. Os mensageiros dos deusesacompanham a alma após sua morte – corporal ou mística – através detodos os reinos das sombras até seu lugar final de descanso.

W O primeiro estágio do “trabalho inferior”,que se dá sob o signo de Saturno, corresponde ao “enegrecimento”,“putrefação” e “mortificação”. Ele é representado por uma caveira ou,algumas vezes, por uma sepultura. Basilius Valentinus disse a respeitodessa fase do trabalho: “Toda carne nascida na terra será destruída erestituída de volta à terra, pois ela foi terra. Assim o sal terrenoproduzirá um novo nascimento através do sopro da vida celestial.Onde quer que a terra esteja ausente no começo, não pode haverrenascimento em nosso trabalho, já que a terra é o bálsamo danatureza e o sal daqueles que procuram o conhecimento de todas ascoisas”93.

No começo de toda a realização espiritual estáa morte, na forma de “morrer para o mundo”. A consciência deve seretirar dos sentidos e se voltar para dentro. Como a “luz interior”ainda não ressuscitou, esse afastamento do mundo exterior éexperimentado como uma nox profunda. A este estado o misticismocristão aplica a parábola do grão de trigo, que deve permanecersozinho na terra e morrer, se é para dar frutos. Em diversos ritosiniciáticos, essa morte da alma é expressada por um enterro simbólico,e certas ordens cristãs observam um costume singular na investidurados monges.

Nos mistérios pré-cristãos, a morte do místicoera frequentemente trazida no relacionamento com a morte sacrificialde um deus. Como o deus, que foi morto e desmembrado, o místicodevolvia seus membros e faculdades à natureza. Os poderes dosmundos inferiores dividiam entre si os elementos da alma empírica,que não pertenciam à essência imortal e, em determinados casos, essedesmembramento era executado na efígie. O místico deveexperimentar, por si mesmo, a morte sacrificial de Deus, paracompreender em toda a extensão que Deus, que era aparentementedesmembrado no mundo (a fim de conferir sua vida em suamultiplicidade), na verdade não pereceu nele, mas permaneceuimortal, eterno e indivisível. Assim o homem pode apenas conhecer

93 Da grande pedra dos antigos sábios, Estrasburgo, 1645.

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sua essência imutável quando ele renunciou a tudo o que nele éperecível. Isso inclui não apenas a carne, mas também a “alma imersana experiência sensorial”.

No começo do trabalho, o material maisprecioso que o alquimista produz é a cinza, que permanece após acalcinação (calcinatio) do metal ordinário. Através dessa cinza, quefoi despojada de toda “unidade” passiva, ele será capaz de capturar o“espírito” volátil. O primeiro estágio do trabalho corresponde aosignificado mitológico de Saturno, já que Saturno-Chronos, quedevorou seus próprios filhos, é a divindade que, através do tempo e damorte, causa “o retorno do que surge” sua origem amorfa.

V O segundo estágio do “trabalho menor”, édominado por Júpiter, cujo símbolo exibe o crescente lunar junto aoeixo horizontal da cruz, enquanto que no caso de Saturno o mesmocrescente está colocado na ponta de baixo do eixo: w. Sob a influênciade Júpiter, portanto, a alma levantou-se a si mesma da terra a qual elaretornou e da noite do caos inicial, a fim de desenvolver seu poder. Nalinguagem da doutrina hindu, a respeito das tendências fundamentaisda materia (os gunas), deve ser dito que o poder da alma (Mercúrio)foi libertado do tamas e unificado à rajas. Rajas, contudo, tem osignificado de expansão e desenvolvimento, que no presente casosignifica que o poder sutil foi dissolvido de sua coagulação naconsciência corporal, e tendo sido terra, por assim dizer, agora setransformou em água e ar. Isso corresponde à sublimação.

Morenius disse: “Quem quer que saiba comopurificar e alvejar a alma e permitir-lhe subir acima, haveráconservado bem o ser corpo e o libertado de toda a escuridão,negrume e odor maléfico... ele será então capaz de trazer de volta aalma ao corpo, e na hora de sua unificação grandes maravilhasocorrerão...”.

R Com o terceiro estágio, dominado pela Luz,a cor branca é completada. O crescente lunar levantou-se a si mesmoacima da cruz dos elementos ou tendências cósmicas e dissolveu suasoposições. Todas as potencialidades da alma, contidas no caos inicial,foram agora completamente desenvolvidas e foram unidas uma com aoutra em um estado de pureza indivisa. Este é o limite mais externo da“solução”, e é seguido por uma nova “coagulação”. Do ponto de vistacristão, esse estado da alma corresponde simbolicamente à SantíssimaVirgem, em sua prontidão para receber a Palavra Divina, e nessesentido é significativo que a Virgem seja frequentemente retratada

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entronizada sobre o Crescente.

No livro The Forgotten Word94, BernardusTrevisanus escreveu sobre essa realização do “trabalho menor”: “Eulhe digo, tendo Deus como minha testemunha, que esse Mercúrio,quando ele foi sublimado, foi revestido em tão puro branco que eleparecia neve no topo de uma montanha muito alta. Ele tinha um brilhofino e cristalino, do qual, quando o vaso foi aberto, emanou umperfume tão doce que nada parecido poderia ser encontrado na terra.Eu, contudo, que falou a você, sei bem que esse maravilhoso brilhoapareceu ante meus olhos, que eu toquei a natureza fina e cristalinacom as minhas próprias mãos e com o meu próprio olfato eu senti amaravilhosa doçura. Eu chorei com alegria e espanto frente a tãogrande maravilha. Bendito seja o Eterno, Altíssimo e Glorioso Deus,pois ele escondeu tantos presentes maravilhosos nos segredos danatureza, e permitiu a alguns homens que o vissem. Eu sei que quandovocê sabe as causas dessa disposição, você pode perguntar: que tipode natureza pode ser essa que, vindo de algo corruptível, apesar disso,contém em si mesma algo de completamente celestial? Ninguém podenarrar todas as maravilhas. Talvez, contudo, virá um tempo no qual eupoderei falar a você algumas coisas especiais sobre essa natureza, queo senhor ainda não me permitiu comunicar por escrito. Seja como for,quando você tiver sublimado esse mercúrio, pegue ele fresco e jovem,juntamente com o seu sangue, e então ele não se tornará velho, e o dêa seus pais, o Sol e a Lua, então a partir dessas três coisas – Sol, Lua eMercúrio – nosso amálgama pode ser produzido...”.

Deve ficar claro, a partir dos símbolosplanetários, que os três estágios do “trabalho menor” correspondem aomovimento ascendente, pois primeiramente a Lua estava debaixo dacruz, então junto ao seu eixo horizontal, e finalmente ela reinavasozinha: em contraposição, os três estágios seguintes do “grandetrabalho” descreve o movimento descendente:t U q, e aqui o solaparece primeiramente sobre a cruz, e então cruz abaixo quandofinalmente ele fica sozinho, trazendo tudo de volta ao centro.

Os primeiros três estágios correspondem à“espiritualização do corpo”; os últimos três à “corporificação doespírito” ou à “fixação do volátil”. Enquanto o “trabalho menor” temcomo sua meta a reconquista da pureza e receptividade original daalma, a meta do “trabalho menor” é a iluminação da alma pelarevelação do Espírito dentro dela. Essa sequência de seis estágios

94 La Parole délaissée em Le Voile d´Isis, Paris, 1931, p. 461.

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pode ser transposta a todos os tipos de realização espiritual, masapesar disso continua sendo não mais que um esquema, pois nenhumdos dois movimentos (o ascendente da alma e o descendente doEspírito), podem ser inteiramente separados um do outro. Odesenvolvimento de uma flor é o trabalho do Sol, mesmo que o Solapenas comece a ter seu verdadeiro e completo efeito quando a florestá madura o suficiente para se abrir aos raios do Sol.

T O quarto estágio – o primeiro do “grandetrabalho” – é dominado por Vênus. Em seu signo, o Sol de ouro, e oEspírito, o enxofre incombustível, aparece sobre o mastro da cruz. OSol engole a Lua, e o seu poder formador imprime mais uma vez acruz dos elementos. “No começo”, diz a Turba Philosophorum95, amulher em cima do homem, e no fim o homem está em cima damulher”. Primeiramente o poder “volátil” do Mercúrio femininoprevalece sobre os corpos sólidos, cuja forma é manifestada de modopassivo pelo enxofre. Mais tarde, entretanto, o poder fixador doenxofre prevalece sobre o Mercúrio volátil e engendra umacristalização nova, e agora ativa, da forma alma-corpo.

Essa “nova criação”, contudo, ainda não éperfeita, já que o Sol espiritual, como aparece aqui, continua ligado àcruz dos elementos, e esta é a razão pela qual os alquimistas dizem arespeito do cobre, o metal de Vênus, que nele o poder corante doEnxofre (a essência do ouro) realmente torna-se visível, mas elepermanece instável e grosseiro em razão da oposição contida nosquatro elementos.

U O quinto estágio – o segundo do “grandetrabalho” – é dominado por Marte. No signo de Marte (as razões paraescrever desta forma já foram explicadas) o Sol ocupa uma posiçãosimilar à da Lua no signo de Saturno. Os significados dos doissímbolos – Saturno e Marte – são, todavia, opostos um ao outro,embora ambos efetivamente representem um tipo de morte e extinção;mas sob o “balançar” de Marte, não há dúvida sobre a condiçãocaótica; pelo contrário, há aqui uma descida ativa do Espírito ao nívelmais baixo da consciência humana, de modo que o corpo, em simesmo, está completamente penetrado pelo “enxofre incombustível”.Assim como o ferro, o metal de Marte, o poder fixativo do enxofre,embora inteiramente presente, não pode ainda manifestarcompletamente o seu brilho, já que nesse estágio do trabalho, oEspírito aparece submergido no corpo e como que extinto nele. Essa é

95 Bibl. des phil. chim.

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a coagulação “externa”, e o limiar da realização final – atransformação do corpo em Espírito feito forma.

O mais alto significado contido no símbolo deMarte – aquele que se prolonga para fora da alquimia mesma – é a“encarnação da Palavra Divina”. Em um certo sentido, isso implicauma certa humilhação do Divino, já que como “Luz” ele aparece nastrevas do mundo. A realização alquímica, todavia, pode apenas ser umreflexo distante dessa encarnação.

Artephius escreveu: “... As duas naturezasmodificam-se reciprocamente, o corpo “incorporando” o Espírito, e oEspírito transmutando o corpo em um Espírito colorido (i. e.qualitativo) e branco (i. e. puro)... fervê-lo (i. e. o corpo) em nossaágua branca, ou seja, no Mercúrio, até que ela seja dissolvida naescuridão. Ao fervê-la por um longo tempo, ela irá perder suaescuridão e finalmente o corpo dissolvido surgirá juntamente com aalma branca, um misturado com o outro. Eles irão se mesclar de talforma que nunca mais novamente serão separados um do outro. Entãode fato o Espírito irá se unir com o corpo em perfeita harmonia, eentão juntos eles se tornarão algo imutável. Essa é a dissolução docorpo e a fixação do Espírito, ambos os processos constituindo um e omesmo trabalho”96.

Q A realização do “grande trabalho” éexpressada pelo símbolo do Sol. Ele é distinto do disco solar comoparte constituinte dos outros símbolos planetários por ter seu pontocentral representado. Assim o que estava apenas incipiente epotencialmente presente nos primeiros estágios é aqui manifesto. Naforma completa, que em si mesma permanece finita, o conteúdoinfinito é visível – está presente visível e invisivelmente.

O mesmo símbolo também relembra aamêndoa na fruta, e o embrião no útero. Isso está de acordo com osimbolismo genético da alquimia.

Essa fase do trabalho é também a realização dacor vermelha, da qual Nicolas Flamel, em sua elucidação das “figurashieroglíficas”, escreveu: “No campo das violetas escuras, um homemvioleta-vermelho segura o pé de um leão vermelho-escarlate, que temasas e aparentemente está carregando o homem. O campo de violetasescuras significa que a pedra, através de uma cuidadosa fervura,recebeu lindas vestes laranjadas e vermelhas, e que a sua completadigestão (indicada pela cor laranja) a despojou de suas antigas vestes

96 Bibl. des. phil. chim.

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cor laranja. A cor vermelho-escarlate do leão voador, que se assemelhaao puro e caro escarlate das sementes de romã, indica que essa cor estáagora genuína e harmoniosamente completada. É como um leão quedevora toda a natureza puramente metálica e a transforma em suaprópria substância, especificamente em ouro verdadeiro e puro, maisfino que aqueles das melhores minas.

“Em razão disso, a cor em questão tem o poderde afastar o homem desse vale de lágrimas, vale dizer, do mal, damiséria e da doença, ao levantá-lo com suas próprias asas da água sujado Egito (os pensamentos ordinários dos mortais), e então ele irádesprezar a vida mundana com suas riquezas, e pensar dia e noite emDeus e em seus santos, desejando o Empíreo, e sedento das docesfontes da eterna esperança.

“Deus seja louvado eternamente por nos dar agraça de ver essa maravilhosa e completamente perfeita cor púrpura,essa maravilhosa cor dos crisântemos dos campos e rochas, essa corde Tiro97, brilhante e ardente, incapaz de qualquer adulteração oumudança, sobre a qual nem mesmo o Céu ou o Zodíaco tem poder ouforça, e cujo radiante e ofuscante esplendor parece, em certo sentido,comunicar ao homem alguma coisa supraceleste, espantando-o,amedrontando-o, ou aterrorizando-o quando ele o olha”98.

Representação do Mercúrio bissexual (“Rebis” = res bis), da“Aurelia Occulta Philosophorum” de Basilius Valentinus, e no

97 O púrpura é produzido em Tiro.98 Bibl. des. phil. chim.

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“Theatrum Chemicum”, Argentorati, 1613, vol. IV. – O andróginohermético se coloca sobre o dragão da Natureza, que está sobre aesfera alada da materia prima. O compasso e o esquadro nas mãosdo andrógino correspondem ao Céu e à Terra, aos poderesmasculino e feminino. No lado masculino está Vênus, Marte e o Sol,e do lado feminino estão Saturno, Júpiter e a Lua. No topo está oMercúrio perfeito.

Em um texto de Basilius Valentinus há umarepresentação do andrógino masculino-feminino, que simboliza arealização do trabalho alquímico, com os símbolos dos sete planetas,em tal ordem que os três signos solares correspondem ao ladomasculino do andrógino, e os três signos lunares, ao lado feminino,enquanto o símbolo andrógino de Mercúrio representa a “pedraangular” entre as duas séries. Isso dá origem ao seguinte esquema, noqual os estágios dos trabalhos “menor” e “maior” serão de novoreconhecidos.

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Em um certo sentido (e independentementedo significado astrológico dos mesmos símbolos), os símbolos àdireita podem ser chamados ativos, e aqueles à esquerda,passivos, já que o “trabalho menor” efetua a prontidão oupreparação da alma, e o “trabalho maior” a revelação espiritual.Contudo, para ser capaz de reconhecer que os símbolosindividuais correspondem um ao outro em pares, é necessáriorecordar que a ordem de cada série (como descrita até agora) estána direção oposta daquela da outra, pois uma delas estásubordinada à subida da Lua, e a outra, à descida do Sol (essesdois movimentos ocorrem no curso do trabalho). Quando, pelocontrário, ambos os movimentos são vistos em paralelo, ossímbolos serão ordenados como segue:

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A partir disso pode-se ver claramente quepara todo aspecto ativo há um correspondente aspecto passivo.Saturno representa o “rebaixamento”, Marte uma “descendênciaativa”. O primeiro símbolo expressa a extinção da alma egóica, osegundo a vitória do Espírito. No próximo nível, Júpitercorresponde ao desenvolvimento da receptividade da alma,enquanto Vênus corresponde ao despertar do Sol interior. A Luae o Sol, em si mesmos, encarnam os dois polos em seu estadopuro, e o Mercúrio comporta ambas as essências em si mesmo99.

99 Para ver como esses seis estágios constantemente ocorrem como estágiosfundamentais em qualquer espécie de realização espiritual, pode-se consultarStations of Wisdow, de Fritjof Schuon, em especial o capítulo final, que traz omesmo título. (John Murray, Londres, 1961).

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CAPÍTULO 16

A TÁBUA DE ESMERALDA

O significado e estrutura do trabalhoalquímico estão resumidos na “Tábua de Esmeralda” (TabulaSmaragdina). Ela se apresenta a si mesma como uma revelaçãode Hermes Trismegistos, e como tal foi aceita pelos alquimistasmedievais. A mais antiga menção a esse respeito pode serencontrada em um texto do século VIII, por Jâbir ibn Hayyân, euma tradução latina já era conhecida de Santo Alberto Magno.Seu estilo, contudo, indica que é claramente de origem pré-islâmica. E como está em completo acordo com o espírito datradição hermética – como os alquimistas concordam àunanimidade – não há razão convincente para duvidar de suaconexão com as origens do hermetismo. Isso deixa aberta aquestão sobre se o nome Hermes representava um nome ou umafunção profético-sacerdotal decorrente de Hermes-Thoth.

Uma tradução da “Tábua de Esmeralda”,de sua versão latina, é dada abaixo. Para o esclarecimento decertos pontos, foi feita menção também à versão arábica100.

“1. A verdade, certamente e sem dúvida, oque está abaixo é como o que está acima, e o que está acima écomo o que está abaixo, para realizar os milagres de algo.

2. Assim como todas as coisas procedemdo Uno, através da meditação desse Uno, então também elas sãonascidas dessa coisas única por adaptação.

3. Seu pai é o Sol e sua mãe é a Lua. Ovento o levou em seu ventre e sua protetora é a terra.

4. É o pai de todas as maravilhas do mundointeiro.

5. Sua força é perfeita se é convertida emterra.

6. Separar a terra do fogo e o sutil dogrosseiro, suavemente e com grande prudência.

7. Ele emerge da terra ao céu e descenovamente do céu à terra, e assim adquire o poder das realidades

100Ver J. F. Ruska, Tabula Smaragdina, Heidelberg, 1926.

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acima e das realidades abaixo. Desse modo você adquirirá aglória do mundo inteiro, e toda a escuridão se apartará de você.

8. Essa é a força das forças, pois elaconquista tudo o que é sutil e penetra em todo o sólido.

9. Assim o pequeno mundo é criado deacordo com o protótipo do grande mundo.

10. A partir disso, e desse modo,maravilhosas aplicações são feitas.

11. Por essa razão eu me chamo HermesTrismegistos, pois eu possuo as três partes da sabedoria domundo inteiro.

12. Terminado está o que eu disse arespeito da obra do Sol”.

*

“1. A verdade, certamente e sem dúvida, oque está abaixo é como o que está acima, e o que está acima écomo o que está abaixo, para realizar os milagres de algo.”

Na versão latina, o começo é como sesegue: Verum, sine mendacio, certum et verissimum, mas ainterpretação de Jâbir da expressão “Na verdade, certamente esem dúvida” (haqqân, yaqînân, lâ shakka fih) é clara, pois aspalavras “em verdade” se referem à fonte objetiva da revelação,enquanto as palavras “certamente e sem dúvida” referem-se aseu reflexo subjetivo no homem. A próxima sentença (a parteprincipal da primeira cláusula) tem uma formulação ligeiramentediferente na versão árabe, e aparentemente dá um diferentesignificado: “O mais alto vem do mais baixo e o mais baixo, domais alto”. Isso se refere à dependência recíproca do ativo e dopassivo, no sentido de que a forma essencial não pode sermanifestada sem a materia passiva, assim como, por outro lado,o passivo potencialmente pode apenas alcançar desenvolvimentosob a influência do polo ativo. Ademais, no “grande trabalho”, aeficácia do poder espiritual depende da preparação do“receptáculo” humano e vice-versa. Tudo isso, porém, é apenasmais um exemplo da “correspondência recíproca” de “acima” e“abaixo”, como o texto latino expressa. - “Para realizar os

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milagres de algo”, quer dizer, do trabalho interior. “Acima” e“abaixo” estão assim relacionados a essa coisa, e secomplementam em suas relações.

“2. Assim como todas as coisas procedemdo Uno, através da meditação desse Uno, então também elas sãonascidas dessa coisas única por adaptação.”

Isso significa que o trabalho hermético vemde uma única substância, seguindo o padrão (e como o inverso, aimagem “substancial”) da emanação do mundo a partir do ÚnicoSer Divino, por meio do Espírito Uno.

Em vez de meditatione unius (“pelameditação do Uno”) alguns manuscritos registram mediationeunius (“pela mediação do Uno”). Isso não altera essencialmenteo sentido, já que o que é significado aqui é que a luz indivisa einvisível do Uno incondicionado é refratada na multiplicidadepelo prisma do Espírito. Platino ensinou que o Espírito (nous)constantemente contempla a Unidade Suprema, sem nunca sercapaz de compreendê-lo ou penetrá-lo complemente, e que poressa contínua contemplação ele manifesta o todo “multilateral”,assim como uma lente transmite a luz que ela recebe como umfeixe de raios. A expressão árabe tadbîr, que em algumas versõesaparece neste ponto, tem o duplo significado de “consideração” e“exposição” ou “dedução”. Em vez de adaptatione (“poradaptação”) Basilius Valentinus diz conjuntione (“porcombinação”).

“3. Seu pai é o Sol e sua mãe é a Lua. Ovento o levou em seu ventre e sua protetora é a terra.”

O Sol como pai da “pedra” é o espírito(nous), enquanto a Lua é a alma (psyque). “O vento o levou emseu ventre”: O vento, que carrega a semente espiritual em seucorpo, é o sopro vital, e mais genericamente a “matéria sutil” domundo intermediário que se estende entre o céu e a terra – ouseja, entre o mundo supraformal (ou puramente espiritual) e omundo corporal. O sopro vital é também o mercúrio, que contéma semente do ouro em estado líquido - “A sua protetora é aterra”, ou seja, o corpo como realidade interna.

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“4. É o pai de todas as maravilhas domundo inteiro.” “Maravilhas” é a tradução aproximada dethelesma, do qual “talismã” é derivado. Um talismã (do árabetilism) é, estritamente falando, um símbolo no qual alguma coisado poder do seu protótipo entrou. O símbolo foi idealizado emuma situação cósmica particular (constelação) e com umaconcentração espiritual correspondente. Uma ação teúrgica dessasorte é baseada na correspondência qualitativa entre a formavisível e o modelo invisível, e também na possibilidade de tornaressa correspondência efetiva por meio de uma espécie de“condensação” no plano sutil de um estado espiritual. Issoexplica a similaridade entre o talismã como o portador de umainfluência invisível e o elixir alquímico como o fermento datransformação metálica.

“5. Sua força é perfeita se é convertida emterra.” Vale dizer, quando o espírito está “incorporado”, o volátilse torna fixo.

“6. Separar a terra do fogo e o sutil dogrosseiro, suavemente e com grande prudência.” A separação daterra, do fogo e do grosseiro, significa a “extração” da alma apartir do corpo.

“7. Ele emerge da terra ao céu e descenovamente do céu à terra, e assim adquire o poder das realidadesacima e das realidades abaixo.” – A “dissolução” da consciênciade toda “coagulação” formal é seguida por uma “cristalização”do Espírito, e então ativo e passivo são perfeitamente unidos.Assim a luz do Espírito se torna constante. – “Desse modo vocêadquirirá a glória do mundo inteiro”, especificamente pela suaunião com o Espírito, que é a fonte de toda a luz. – “E toda aescuridão se apartará de você.”: Isso significa que a ignorância, oengano, a incerteza, a dúvida e a tolice serão removidas daconsciência.

“8. Essa é a força das forças, pois elaconquista tudo o que é sutil e penetra em todo o sólido.” – O

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sutil ou o volátil (do árabe latîf) apenas pode ser conquistadopela sua união com o sólido ou corporal, assim como só se podereter um estado de espírito associando-o a uma imagem concreta.A fixação alquímica é, apesar de tudo, mais interior, e érelacionada àquilo que foi dito acima sobre o papel daconsciência corporal como suporte de estados espirituais.Através de sua união com o Espírito, a consciência corporalmesma se torna um poder puro e penetrante que pode até mesmoter um efeito exterior.

Sobre isso Jabîr escreveu: “Quando ocorpo, em seu estado de solidez e dureza, tiver sido tão alterado aponto de se tornar puro e luminoso, ele se torna como se fosseuma coisa espiritual, que penetra os corpos, embora elemantenha a sua própria natureza, que o faz resistente ao fogo.Nesse momento, ele se mistura com o Espírito, pois ele se tornoupuro e livre, e seu efeito sobre o Espirito é torná-lo constante. Afixação do Espírito neste corpo segue o primeiro processo, eambos são transformados, cada um assumindo a natureza dooutro. O corpo se torna um Espírito, e assume dele sua pureza,brilho, extensibilidade, colocação e todas as outras propriedadesdo Espírito. O Espírito, por sua vez, torna-se um corpo e adquiredeste último a resistência ao fogo, a imobilidade e a dureza. Deambos os elementos nasce uma substância iluminada, que nãopossui nem a solidez dos corpos nem a pureza dos espíritos, masprecisamente assume uma posição intermediária entre os doisextremos...”101

“9. Assim o pequeno mundo é criado deacordo com o protótipo do grande mundo.” – Na versão latina,essa cláusula está assim escrita: “Assim o mundo é criado”. Otexto árabe, seguido aqui, é obviamente mais completo. O“pequeno mundo”, perfeita imagem do “grande mundo”, é ohomem, quando ele realizou sua natureza original, que foi “feitaà imagem de Deus”.

“10. A partir disso, e desse modo,maravilhosas aplicações são feitas.” – No texto arábico estáassim: “Esse caminho é atravessado pelos sábios”.

101Ver Paul Krauss, Jabîr ibn Hayyân, Cairo, 1942-43.

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“11. Por essa razão eu me chamo HermesTrismegistos, pois eu possuo as três partes da sabedoria domundo inteiro.” – Trismegistos quer dizer “três vezes grande” ou“três vezes poderoso”. As “três partes da sabedoria”correspondem às “três grandes divisões do universo”,especificamente os domínios espiritual, psíquico e corporal,cujos símbolos são o céu, o ar e a terra.

“12. Terminado está o que eu disse arespeito da obra do Sol” – De operatione solis: “do trabalho dosol”; mas isso também pode significar: “a respeito do trabalho doouro” ou “a respeito da produção do ouro”.

Todo o conteúdo da Tábua da Esmeralda écomo que uma explicação do Selo de Salomão, cujos doistriângulos, respectivamente, representam a essência e asubstância, forma e matéria, espírito e alma, enxofre e mercúrio,o volátil e o estável, o poder espiritual e existência corporal:

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CAPÍTULO 17

CONCLUSÃO

Eu espero que a exposição feita possaservir para resgatar o horizonte espiritual próprio da alquimia –“a arte real” – das suas simplificações enganadoras,inevitavelmente presentes em uma abordagem puramentehistórica. Assim como os objetos no espaço parecem menoresquanto mais distantes eles estão, assim o que quer que estejadistante no tempo aparece para nós reduzido e simplificado naforma – e quanto maior é o hiato entre uma era e a outra, tantomais isso acontece. Entre nossa era e a era à qual a alquimiapertence, o hiato é incomensuravelmente largo. Assim, não ésurpresa que o pesquisador moderno, sem qualquerconhecimento das artes espirituais, que em certas culturas sãopraticadas até hoje, veja a alquimia como se olhasse a partir dooutro lado do telescópio. Ele não tem, em regra, não apenas osuporte doutrinal que poderia permitir-lhe compreender alinguagem simbólica dos alquimistas, mas – o que é maisrelevante – ele não tem a possibilidade de nenhuma comparaçãoprática, que poderia tornar claro para ele o que, nesse domínio, épossível e provável.

A natureza – ou seja, a natureza corporal epsíquica do homem e das coisas – pode ser abordada pordiversos ângulos e, sendo assim, cada uma das “dimensões”corresponde a um dado ponto de vista, tanto lógica comopraticamente inexaurível. Assim, por exemplo, a químicaempírica moderna pode ser estendida indefinidamente sem quesuas descobertas nunca tenham partido daquela dimensãoontológica particular que é determinada por suas premissas. Poroutro lado, uma ciência tradicional, como a alquimia, podeconsiderar e lidar com as mesmas informações naturais (com nãomenos lógica) de um ponto de vista completamente diferente –mas do mesmo modo inexaurível. Um exemplo disso é amedicina tradicional dos chineses, indianos e tibetanos, métodosos quais são bastante estranhos às concepções modernas denatureza, mas que não são, por essa razão, menos eficazes.

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A ciência moderna tem um olharimplacável para os erros “infantis” que existem “à margem” dacosmologia tradicional – mas que não tem consequências sérias.O que não se verá, porém (mas o que o olhar de uma arteespiritual tal qual a alquimia vê como algo de um significadoirresistível) são suas próprias infrações – bastante imprevisíveisem suas consequências – contra o equilíbrio do homem e danatureza, para não falar da reivindicação completamenteinjustificável à totalidade e do inalcançável e quase absolutorepúdio do suprassensível e do incorpóreo, que caracterizam aciência moderna.

O relacionamento do homem com o meioambiente natural varia não apenas teoreticamente, mas tambémpraticamente, e não apenas subjetivamente, mas também doponto de vista do meio ambiente mesmo.

O mundo físico não é independente dopsíquico, muito embora a perspectiva particular do ego permitaque a esfera psíquica do ser individual apareça como algointeiramente separado e isolado em si mesmo. Em épocas eculturas onde a consciência egóica é menos “coagulada” e arelação com meio ambiente natural não é dominada porpreconceitos de uma perspectiva puramente racionalista, podeacontecer mais facilmente que os poderes da alma exerçam umainfluência direta e sem intervenções mecânicas no mundoexterno. Isso é especialmente verdade a respeito de tradições deforma “arcaica” para as quais fenômenos como iluminação,chuva, vento e crescimento são essencialmente símbolos. Aquipode acontecer que ações particulares sagradas provoquem umeco cósmico externo. Isso pode ser observado ainda hoje entrecertos povos xamânicos, tais como os índios norte-americanos.

Nós devemos situar a alquimia em taiscenários, que são seu “lar” original e adequado, para fazer justiçaa certos ensinamentos sobre o efeito do elixir, dos quais nemtodos devem ser tomados meramente no sentido não-literal maisalto. A transmutação dos metais comuns em ouro não écertamente a verdadeira meta da alquimia, e nem poderá seralcançada quando é procurada apenas para o seu próprio bem.Apesar disso há evidências em favor das realizações visíveis domagistério, que não podem simplesmente ser postas de lado com

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um tapa. O simbolismo dos metais é tão organicamenterelacionado com o trabalho interior da alquimia, que em poucoscasos em que ele foi realizado internamente, também ocorreu noplano externo – não como resultado de qualquer operaçãoquímica, mas como uma operação externa concomitante eespontânea de um estado espiritual extraordinário. A ocorrênciada transformação espiritual é também um milagre, e certamenteum milagre não é menor que a súbita produção de ouro a partirde um metal comum.

O arqueiro japonês, iniciado nos mistériosdo zen, pode atingir o alvo de olhos fechados, em razão de suaconcentração interna e união íntima com a essência atemporal nomomento do disparo102. Do mesmo modo, a transformação físicados metais foi um símbolo que manifestou exteriormente asantidade interna tanto do ouro como do homem – do homem,quer dizer, que completou o trabalho interno.

102Ver Eugen Herrigel (Bungaku Hakushi), Zen in the Art of Archery, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1953.

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LISTA CRONOLÓGICA DOS AUTORESHERMÉTICOS E MÍSTICOS CITADOS

Hermes Trismegistos: data indeterminada, pré-cristãoPlotino: 203-69Synesius: (ou Synesios): século IVHerakleios I (Heraclius), Imperador Bizentino: 640-1Khalid: final do século VIIMorienus: final do século VIIJâbir Ibn Hayyân: século VIIIar-Razi, Abu-Bekr: 826-925Senior Zadith (Turba Philosophorum): provavelmente século IXArtephius: data desconhecida, medievalSu Tung-P´o: cerca de 1110Muhyi ´d-Dîn Ibn “Arabî: 1165-240St. Alberto Magno (Albertus Magnus): 1193-280Dante Alighieri: 1265-321'Abd al-Karîm al-Jîlî: nascido em 1366Po Yu-shuan: século XIIIAbul-Qâsim al-Irâqî: século XIIIGeber: provavelmente século XIIIRuysbroek, Jan van: 1294-381Nicolas Flamel: 1330-417Bernardus Trevisanus: 1406-90Basilius Valentinus: final do século XVDenis Zachaire: começo do século XVIWilliam Shakespeare: 1564-616Jakob Boheme: 1575-624Johann Valentin Andreae: 1586-654Fra Marcantonio: data desconhecidaJohann Georg Gichtel: 1638-710Philatetes, Irenaeus: final do século XVII

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BIBLIOGRAFIA DOS TRABALHOS CLÁSSICOS

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2. Trabalhos gerais

Maurice Aniane, Notes sur l´alchimie, em Yoga, science de l´homme intégral. Cahiers du Sud. Paris, 1956.Mircea Éliade, Forgerons et alchimistes. Paris, 1956.Julius Evola, La tradizione ermetica, Bari, 1931 e 1948.E. J. Holmyard, Alchemy. Pelican Books. Londres, 1956.Edmund von Lippmann, Entstehung und Ausbreitung derAlchemie. I. 1919, II, 1931.

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