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Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons. All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License . Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1413-8123&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 14 jan. 2014.

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sob uma Licença Creative Commons.

All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative

Commons Attribution License.

Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1413-8123&lng=en&nrm=iso.

Acesso em: 14 jan. 2014.

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1 Programa de Pós-Graduação em PolíticaSocial, Universidade deBrasília. Caixa Postal 8011.70673-970 Brasília [email protected] Departamento deSociologia, Universidade deBrasília.

Cytotec e Aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres

Cytotec and Abortion: the police, the vendors and women

Resumo Este artigo analisa o comércio ilegal domedicamento abortivo misoprostol no Brasil, combase no estudo de dez casos que alcançaram o Mi-nistério Público do Distrito Federal e Territóriosentre 2004 e 2010. Os dados foram assim organiza-dos: 1. história das mulheres; 2. perfil dos vendedo-res; 3. casos de morte materna. Os resultados mos-tram que: 1. mulheres jovens, em relacionamentoafetivo, fazem uso doméstico do misoprostol sozi-nhas ou com auxílio dos vendedores. Das sete mu-lheres indiciadas, três foram denunciadas ao che-gar ao hospital público para finalização do aborto;2. os vendedores são funcionários de farmácias ereferências locais para o comércio do misoprostol.Eles informam as mulheres sobre uso do medica-mento e prevenção de infecções, mas se recusam asocorrê-las em caso de emergência. Os traficantesatuam pela internet e possuem um estoque maisamplo de medicamentos; 3. houve duas mortesmaternas por métodos invasivos combinados aomisoprostol. As principais causas de óbito são ademora em buscar auxílio médico por medo dedenúncia policial e o uso combinado do misopros-tol com métodos de alto risco.Palavras-Chave Cytotec, Misoprostol, Aborto,Morte Materna

Abstract This paper analyzes the illegal trade inmisoprostol, the medication predominantly usedfor abortion in Brazil. The study analyzed tencases that came to the attention of the Public Pros-ecution Service for the Federal District between2004 and 2010. The cases were organized intothree categories: 1. women’s stories; 2. profile ofthe vendors; 3. maternal mortality cases. The re-search was reviewed by an ethics committee. Themain outcomes were: 1. young women in steadyrelationships use misoprostol in the home or withthe assistance of drug vendors. Of the seven wom-en indicted, three were reported on arrival at thepublic hospital to finalize abortion; 2. the drugvendors work at the community drugstore andare local agents for the sale of misoprostol. Theyinstruct women on how to use the drug and howto prevent infections, but refuse to provide themwith care in case of emergency. Traffickers oper-ate via the internet and have a larger inventoryof drugs; 3. there were two cases of maternal mor-tality due to the combination of high risk meth-ods, such as a vaginal probe and misoprostol. Themain causes for maternal mortality are the delayin seeking medical care, as the women fear crim-inal prosecution, and the combined use of miso-prostol with high risk methods.Key words Cytotec, Misoprostol, Abortion, Ma-ternal Mortality

Debora Diniz 1

Alberto Madeiro 2

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Introdução

O aborto inseguro é um evento frequente no Bra-sil, apesar da ilegalidade. Os estudos nacionaissobre o tema demonstram que o aborto é co-mum entre mulheres de todas as classes sociais,cuja prevalência aumenta com a idade da mu-lher, com o fato de ser da zona urbana, ter maisde um filho e não ser da raça branca1-3. A Pesqui-sa Nacional de Aborto (PNA), levantamento poramostragem realizado no Brasil urbano em 2010,combinou método de urna e questionário apli-cado por entrevistadoras4. A PNA mostrou que15% das mulheres entre 18 e 39 anos já realiza-ram aborto alguma vez na vida e 48% delas usa-ram medicamento para abortar, sendo que 55%necessitaram de internação hospitalar por com-plicações. Não há informações sobre qual seria omedicamento utilizado pelas mulheres, mas ou-tras pesquisas já apontaram que o princípio ati-vo é o misoprostol5,6.

As práticas e os percursos adotados pelasmulheres para abortar vêm mudando nas duasúltimas décadas no Brasil. Até os anos 1980, son-das, substâncias cáusticas ou objetos perfuranteseram métodos muito utilizados, o que resultavaem alta morbimortalidade relacionada ao abortoinseguro7. O misoprostol, droga introduzida nomercado farmacológico para tratamento de úlce-ra gástrica, foi logo percebido em razão de seupotencial abortivo8. A partir da década de 1990,vários estudos constataram que o misoprostolera o agente abortivo em mais da metade doscasos5,9,10. Um levantamento entre 1.603 mulhe-res internadas por complicações do aborto, reali-zado no Rio de Janeiro (RJ), encontrou índices de45% de uso isolado do misoprostol e 11,6% asso-ciado a outros métodos11. Dados semelhantesforam caracterizados em pesquisas conduzidasem Fortaleza, Goiânia e Florianópolis, apontan-do para o fato de que o misoprostol se tornou ométodo de eleição para abortar no país12-14.

A inserção do misoprostol no cenário doaborto inseguro no Brasil mudou a magnitudeda morbimortalidade entre as mulheres. O usofrequente desse medicamento levou a um maiornúmero de abortos completos e a menores índi-ces de infecção e hemorragias, embora ainda comgrande incidência de internações hospitalares poraborto incompleto5,9,14. Em Recife, um estudoretrospectivo avaliou 1.840 mulheres internadaspara realização de curetagem uterina por abor-to, observando taxa de infecção de 4,2% nas usu-árias de misoprostol e 49,4% naquelas que utili-zaram outros métodos15. Apesar do aborto in-

seguro ainda se manter com uma das principaiscausas de mortalidade de mulheres em idade re-produtiva, houve declínio da sua taxa por essacausa no país. No entanto, o impacto da morbi-mortalidade é maior entre as mulheres mais jo-vens e nas mais pobres16-19.

Embora o misoprostol tenha mudado o ce-nário do aborto, muitas dificuldades envolvemo seu uso. Desde 1998, a Agência Nacional deVigilância Sanitária (Anvisa) restringiu a ofertade medicamentos com esse princípio ativo a hos-pitais credenciados, não sendo possível adquiri-lo livremente em farmácias20. Apesar de a Anvisaautorizar a comercialização de somente um me-dicamento à base de misoprostol (Prostokos®),foi o nome comercial do Cytotec® que extrapo-lou o campo biomédico e se incorporou ao uni-verso dos saberes e práticas abortivas das mu-lheres. No entanto, o comércio ilegal do medica-mento favorece sua adulteração e o risco de ven-da de apresentações com subdoses ou até mes-mo sem o princípio ativo, o que comprometesua eficácia. Há perguntas ainda não esclarecidassobre quem vende e compra o misoprostol, seuvalor de mercado, qual a forma de apresentaçãoque chega às mãos das mulheres, como elas ousam, quanto tempo depois de utilizá-lo elasdecidem procurar ajuda médica, quais sintomasdeterminam a procura pelo hospital e quem asorienta sobre como usá-lo.

Este artigo examina o cenário da comerciali-zação ilegal do misoprostol no Brasil, tendo comoestudo de caso a análise de processos judiciais einquéritos policiais contra mulheres e vendedo-res denunciados ao Ministério Público do Distri-to Federal e Territórios entre 2004 e 2010. O obje-tivo é analisar as histórias das mulheres e o perfildos vendedores, além de descrever o contexto emque a compra e o uso do Cytotec® ocorreram.

Metodologia

O levantamento de dados foi realizado no Mi-nistério Público do Distrito Federal e Territórios(MPDFT), por meio de um convênio para pes-quisa firmado com a Anis – Instituto de Bioética,Direitos Humanos e Gênero. Foram recupera-dos seis inquéritos policiais e quatro processospenais contra mulheres acusadas de aborto comCytotec®, contra companheiros de mulheres queabortaram com Cytotec®, contra vendedores deCytotec® e contra traficantes de medicamentos.Os documentos analisados se referem ao perío-do de janeiro de 2004 a dezembro de 2010. Por

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ser tratar de pesquisa de caráter qualitativo, paraa coleta de dados foram utilizadas duas técnicassequenciais: a pesquisa documental e as entrevis-tas em profundidade. Todos os inquéritos e pro-cessos foram lidos na íntegra, o que resultou em495 páginas de documentos. Inicialmente, cadapesquisador leu separadamente os documentos,preenchendo uma de ficha de registro de dadospreliminar.

As fichas de registro continham tanto infor-mações indexadas dos envolvidos nos proces-sos, assim como trechos literais dos documen-tos e das entrevistas julgadas significativas. Aspeças avaliadas fazem referência a “citotec”, porisso este artigo optou pela menção à mesma ca-tegoria e não ao princípio ativo, o misoprostol.Não há como saber se esse conjunto (seis inqué-ritos policiais e quatro processos judiciais) cor-responde ao universo dos casos que alcançaramo MPDFT nesse período ou se é uma amostra deconveniência dos mesmos.

No grupo de casos desta pesquisa, há duashistórias de morte de mulheres. Um dos proces-sos tramita sob sigilo de justiça e a equipe depesquisadores assinou um termo de confidenci-alidade para ter acesso aos dados. Dada a parti-cularidade dos casos de morte materna, foramrealizadas duas entrevistas abertas com familia-res das mulheres mortas (a irmã e a filha de cadauma), cujo objetivo foi recuperar fatos relativosàs histórias ausentes nas peças analisadas. O con-tato para a entrevista foi feito pelo promotorresponsável pelo caso e somente após a concor-dância dos familiares a entrevista foi conduzida,em local definido pela família.

Para a análise, os pesquisadores cruzaram osdados individualmente coletados e iniciaram oprocesso de codificação à luz da teoria funda-mentada nos dados. Este processo de codifica-ção das categorias levou em consideração as va-riáveis e as hipóteses de pesquisa, além de facili-tar a comparação entre os dados documentais eas entrevistas. Dessa forma, os seis inquéritospoliciais e os quatro processos judiciais foramorganizados em três categorias analíticas: 1. his-tórias de vida das mulheres que abortaram comCytotec®: informações sobre a decisão pelo abor-to, as relações afetivo-conjugais, o regime de usodo medicamento e o acesso aos sistemas de saú-de pública; 2. perfil dos vendedores que comerci-alizam o Cytotec®: informações sobre o papel dosvendedores na transmissão de saberes e práticassobre aborto, além de dados de sua inserção so-cial na comunidade em que as mulheres vivem;3. histórias de morte materna, em particular a

relação entre o uso de métodos invasivos combi-nados ao Cytotec® como causa de óbitos.

O projeto de pesquisa foi revisado quantoaos aspectos éticos pelo Comitê de Ética em Pes-quisa do Instituto de Ciências Humanas da Uni-versidade de Brasília. A pesquisa somente teveinício após a aprovação ética.

A pesquisa “Quando o aborto se aproximado tráfico” é financiada pelo Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Mulheres, Vendedores, Polícia e Cytotec®

Os casos variam em extensão documental edetalhes das histórias. Há desde inquéritos poli-ciais de quatro páginas até processos penais deduzentas páginas, com fotografias, transcriçãode escutas telefônicas e resultados de testes labo-ratoriais sobre a composição de medicamentos,além de vários depoimentos. Os réus dos inqué-ritos policiais e dos processos judiciais são qua-tro: 1. as mulheres usuárias de Cytotec® (três in-quéritos policiais); 2. os namorados ou compa-nheiros acusados de terem forçado o aborto nasmulheres (três inquéritos policiais); 3. os vende-dores de Cytotec® (quatro processos judiciaispenais, seis homens envolvidos, com quatro pri-sões); 4. caso à procura de réus de investigaçãode morte materna (um inquérito policial).

Histórias das Mulheres

Elas são sete mulheres, descritas como sozi-nhas (dois casos), namoradas (quatro casos) eesposa (um caso). Como outros estudos já mos-traram, elas são mulheres jovens, em início davida reprodutiva (cinco não tinham filhos) ou jácom filhos (uma mulher tinha dois, e outra, qua-tro)4,5,14. As idades variam entre 23 e 35 anos, e háduas adolescentes cujas idades não foram espe-cificadas nos documentos. As duas mulheresmais velhas (34 e 35 anos) e com o maior núme-ro de filhos são aquelas que morreram por com-plicações do aborto. Das sete mulheres, cinco nas-ceram em cidades interioranas das regiões Norteou Nordeste do Brasil, muito embora todas te-nham declarado residência em cidades-satélitesdo Distrito Federal. São empregadas domésti-cas, donas de casa ou funcionárias de comércio.Quando há informações sobre escolaridade, onível educacional é o fundamental básico.

Há dois percursos típicos para o aborto,segundo as peças analisadas. No primeiro, amulher faz uso do Cytotec® com conhecimentode seu marido ou namorado. Ela finaliza o abor-

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to em um hospital público, quando é denuncia-da à polícia e tem início o inquérito policial. Esteé também o percurso típico já identificado poroutros estudos no Brasil21,22. O uso do Cytotec® évaginal e oral, sem indicações das doses exatasutilizadas ou do tempo gestacional. No segundopercurso, característico das adolescentes, as mu-lheres são apresentadas como vítimas dos na-morados, que as forçam a abortar. Os dois in-quéritos policiais com essa configuração são bas-tante semelhantes: o aborto é realizado com Cyto-tec®, introduzido na vagina sem que as adoles-centes percebam, e o crime é antecipado por umencontro amoroso em um motel. Não há men-ção à idade das adolescentes e os dois homenssão descritos como namorados em um relacio-namento extraconjugal.

Nos casos em que as adolescentes são apre-sentadas como vítimas da imposição masculinapara o aborto, o estilo narrativo dos inquéritospoliciais se modifica. O texto do escrivão assumeuma voz passional na seção “Denúncia”, onde ocrime, os algozes e as vítimas são apresentados.Semelhante a um folhetim amoroso, um dos in-quéritos policiais assim descrevia o enredo:

No Hotel Hollywood, o denunciado, com von-tade livre e consciente, podendo agir de modo di-verso, com fim de causar aborto, introduziu o me-dicamento abortivo na vagina de sua namorada[…], sem que esta, contudo, tivesse lhe dado seuconsentimento, provocando, assim, o aborto […].Restou apurado que o denunciado mantinha rela-cionamento amoroso com [ela]. Uma vez que aamada era contrária a vil e cruel ato, o acusado,sob o argumento de manterem relações sexuais, le-vou-a a um motel, contudo, de forma astuta, in-troduziu em sua vagina medicamento abortivo,causando o aborto (Inquérito Policial, 2007).

Essa ambiguidade entre o jogo de seduçãomasculina e a decisão pelo aborto é difícil de serprecisada pelos processos. Diante da autoridadepolicial, uma saída calculada pode ser a renego-ciação pública sobre quem decidiu pelo aborto: amulher, de algoz, passaria a vítima do subjugomasculino. O único caso em que houve sobrevi-da do feto, numa situação dramática para amulher e de forte autoridade moral para os pro-fissionais de saúde, também fez uso dessa estra-tégia de culpabilização do namorado: “O citotecfoi comprado por ele, quem (sic) insistiu que elafizesse o aborto” (Inquérito Policial, 2005). O fetosobreviveu 73 horas, pois se tratava de uma ges-tação de cinco meses. No atestado de óbito dofeto consta o sobrenome da mulher, muito em-bora seu companheiro também tenha sido indi-

ciado no inquérito policial. Não há como des-vendar os reais jogos amorosos e de negociaçãoentre o casal para a tomada de decisão pelo abor-to, muito embora os casos mostrem que os ho-mens são informados da gravidez, não se opõemao aborto, mas nem todos são indiciados pelocrime com as mulheres.

Os casos das três mulheres que iniciaram oaborto em casa com uso vaginal de Cytotec® eque o finalizaram em hospital público merecemdestaque. São três inquéritos policiais curtos, maso que chama a atenção é que, ao chegarem aomesmo hospital público – Hospital Regional deTaguatinga –, todas foram denunciadas à polí-cia. Uma das mulheres finaliza o aborto sozinhaem uma maca no setor de emergência do hospi-tal, após esperar pelo atendimento. Entre as tes-temunhas de acusação contra essa mulher, estãoos nomes de três médicos do hospital. A seção“Denúncia” do caso mais antigo reforça a hipó-tese de que o hospital seria um espaço de ameaçaàs mulheres, pois “foi no Hospital Regional deTaguatinga onde se pôde constatar a condutadelituosa”, sendo indicada uma assistente admi-nistrativa do hospital como testemunha de acu-sação contra a mulher (Inquérito Policial, 2004).Esses três casos cobrem o período de 2004 a 2007.

Perfil dos Vendedores

Os vendedores, todos homens, são os perso-nagens principais dos processos judiciais e dosinquéritos. Eles se apresentam sob duas identi-dades muito distintas, as mesmas do enquadra-mento dado ao Cytotec® pela imprensa brasilei-ra23: 1. o intermediário, balconista da farmácia,um sujeito que vive na comunidade e que é co-nhecido popularmente como o “vendedor de re-médio”. São cinco homens, indiciados em doisprocessos judiciais; e 2. o fornecedor, um perso-nagem mais raro na pesquisa (um único caso),descrito nos processos como traficante de medi-camentos ilegais. Ele tem por rede de atuação ainternet e possui uma ampla oferta de medica-mentos ilegais. Segundo seu fluxo de caixa, oCytotec® é um medicamento secundário e poucolucrativo. Sua especialidade são os medicamen-tos de gênero, isto é, substâncias que proporcio-nam mudanças corporais, com ênfase nas per-formances de gênero e de sexualidade, tais comoa disfunção erétil, a obesidade ou o aumento damassa muscular23.

O intermediário é preso em um flagrantemontado pelo proprietário da farmácia, que sus-peita da venda ilegal, em decorrência de denúncia

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anônima à Anvisa, ou como resultado das inves-tigações após casos de morte materna. Seu esto-que se resume a uns poucos comprimidos deCytotec®, sendo-lhe desconhecido o fornecedorou a origem do medicamento. O Cytotec® é co-mercializado em envelopes ou papéis avulsos, sema cartela com indicação do laboratório. Quandodescoberto, o intermediário sustenta que o me-dicamento é para uso pessoal por problemas deúlcera. Já o fornecedor é preso em grandes ope-rações da Polícia Federal em parceria com a An-visa, e são encontradas em sua posse armas,munições e dinheiro, além de indícios de produ-ção artesanal de medicamentos.

Os intermediários assumem um papel im-portante na trajetória reprodutiva das mulheres:eles as orientam quanto à rotina de usos, regi-mes e doses do Cytotec® e sugerem medidas tera-pêuticas preventivas para controle de infecção.Entre as recomendações dos intermediários, estáo jejum diurno (sem água nem alimentos), o usodo medicamento à noite para que o aborto ocor-ra na manhã seguinte e a deambulação para alí-vio da dor, além da indicação de como usar oaplicador vaginal. Nos casos de flagrante de ven-da ilegal do Cytotec®, foram encontrados bilhe-tes com regime de uso e prescrição combinadade Methergin®, conforme a Figura 1.

Uma outra faceta dos intermediários aparecenos processos. Eles são personagens de grandepressão psicológica sobre as mulheres, desesti-mulando-as a procurar os serviços de saúde emsituação de emergência. O caso de uma das mu-lheres que foi a óbito por uso de sonda vaginalcombinada ao Cytotec® mostra a resistência dointermediário em socorrê-la e a sua oposição embuscar auxílio médico. No depoimento do mari-do da mulher morta à polícia, o intermediárioteria alegado que o sangramento abundante eintermitente “era assim mesmo, sendo que al-guns organismos reagiam rápido e outros não,era mais demorado, e não voltaria na casa [dela]naquele momento pois estava ocupado”, além detê-la dissuadido de procurar o pronto-socorro,pois “os médicos não poderiam descobrir queela tomou tal remédio” (Processo Judicial, 2008).

Houve um único caso de investigação parti-cular, conduzida pela dona de uma farmácia, quesuspeitava da venda ilegal do Cytotec®. Diversasconversas telefônicas foram gravadas pelo dete-tive particular contratado por ela. As fitas foramdegravadas pelo Instituto de Criminalística daPolícia Civil do Distrito Federal e as transcriçõesacompanham o processo. Em uma das conver-sas telefônicas, a mulher que buscava o Cytotec®

era uma auxiliar do detetive particular, o que podeter alterado a desenvoltura de suas perguntas ouseu tom de voz. Ela, no entanto, reproduz a mes-ma inquietação de outras mulheres sobre comointroduzir o Cytotec® na vagina, um receio quefez o vendedor sentir-se autorizado a assediá-lasexualmente:

Vendedor – Você tem que ficar de preferênciao período da tarde todinho em jejum. Aí é quatrocomprimidos de três em três horas, você toma qua-tro, depois de três horas, quatro […]. Aplica ládentrão mesmo!

Mulher – É, mas como eu vou aplicar isso?Que eu lá sei como é?

Vendedor – Tem que ser com o dedo, empur-rando lá debaixo do útero o negócio, jovem!

Mulher – [Riso] Mas eu quero saber como?Vendedor – Quer que eu aplico para você?Mulher – Quem? Você?Vendedor – É […]. Aplico com meu... você

sabe, com o dedo ou com meu negócio. [...]

Figura 1. Bilhete com prescrição de Methergin®encontrado com um vendedor de Cytotec®

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Mulher – Ah! Do jeito que funcionar.Vendedor – Posso aplicar com o meu pau, não

posso? […] Aí eu te levo para um motelzinho ali.Te dou um trato legal, depois eu aplico ele (Proces-so Judicial, 2006).

A figura do fornecedor dos medicamentosfoi rara na pesquisa. Há duas hipóteses para essesilêncio policial em torno do traficante: 1. ele podeser um personagem mais raro no comércio ilegalde medicamentos ou 2. sua atuação escapa aocontrole da polícia, diferentemente do interme-diário, que faz parte da vida cotidiana das comu-nidades e é mais facilmente identificável. Não hámulheres indiciadas no processo contra o forne-cedor, muito embora os documentos eletrônicosrecuperados com sua prisão estejam repletos denomes e endereços de mulheres que receberam oCytotec® pelo correio. A venda é feita pela inter-net, com uma oferta global de 65 medicamentos,sendo o misoprostol o princípio ativo com re-gistro na Anvisa e uso reconhecido pela Organi-zação Mundial de Saúde para o fim com que asmulheres o utilizam no comércio ilegal24.

Há poucas informações sobre a procedênciado Cytotec® utilizado pelas mulheres, mas as fo-tografias que acompanham o processo judicialdo fornecedor indicam o laboratório Pharma. Oúnico registro eletrônico do Cytotec® é um qua-dro sobre regimes de uso e perguntas mais co-muns, intitulado “auto check in”, onde se lê oalerta: “Acima de 4 meses de gestação não reco-menda (sic) que é muito arriscado a garota mor-rer” (Processo Judicial, 2007). Na lista de docu-mentos apreendidos, há 35 fornecedores chine-ses dos medicamentos comercializados. A rotinade venda organiza-se por fluxos de entrada e sa-ída, respostas-padrão para as dúvidas e boletospara pagamento bancário, além de contas emcomunicadores instantâneos, tais como MSN ouSkype. Um dos panfletos eletrônicos recupera-dos pela polícia faz pilhéria com as dúvidas etemores dos compradores potenciais, com umaforte tônica nas motivações estéticas de gêneroque levariam os homens a comprar os anaboli-zantes. O uso do sarcasmo pode ser um indicati-vo de que não há problemas de demanda, a talponto que o vendedor se permite fazer humorcom as inquietações dos compradores. A plani-lha tem por título “antes de entrar em contato,leia com atenção” (Figura 2).

Alguns estudos mostraram que a compra doCytotec® é uma atribuição dos homens na divi-são das decisões sobre o aborto25,26. Essa é umainformação central para as investigações, poislevaria ao indiciamento também dos companhei-ros nos inquéritos contra as mulheres, porémpouco clara para a investigação policial: ou asmulheres se negam a informar como consegui-ram o medicamento para proteger seus compa-nheiros ou são efetivamente elas que compram.Em um dos inquéritos policiais, o namorado deuma das mulheres é também indiciado por tersido a pessoa a comprar o medicamento e, se-gundo ela, ter insistido para que realizasse o abor-to. O processo judicial de óbito materno contrao vendedor é a única peça em que há detalhessobre a compra do Cytotec® pela mulher, com oconhecimento da filha e do marido.

Morte Materna

As peças com casos de morte materna sãoum inquérito policial e um processo judicial,ambos de 2008. No inquérito policial, as infor-mações são escassas. Por sua vez, o processo ju-dicial é uma peça rica em detalhes por apresentardepoimentos, escutas telefônicas e narrativas fa-miliares. Nos dois casos, as entrevistas com mem-

Figura 2. Panfleto eletrônico divulgado por vendedor de medicamentosde gênero

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bros da família foram decisivas para esclarecerpontos obscuros das histórias, em particular noinquérito policial. Nesse caso, trata-se de umaabertura de investigações à procura de réus; noprocesso judicial, uma ação penal contra o ven-dedor do Cytotec®.

A morte de uma mulher de 35 anos, mãe dedois filhos, obesa mórbida e com histórico desofrimento mental foi não apenas objeto de uminquérito policial, mas manchete dos noticiáriostelevisivos do Distrito Federal: “Cytotec faz maisuma vítima” teria sido a chamada, segundo o rela-to de sua irmã. A mulher se encontrava sob usoregular de medicamentos antidepressivos e já ti-nha passado por duas tentativas de suicídio e algu-mas internações em clínicas de saúde mental. Osmédicos teriam informado à família que o “abor-to de oito meses” teria sido provocado por váriasdoses de Cytotec® ingerido durante meses: “Elaestava bastante gorda, não tinha como ela apli-car. Ela teve ajuda de alguém. Só que a gente nãosabe quem foi […]. E também estava tomandoCytotec há muitos meses, o médico me falou”(irmã da mulher morta). O inquérito policial nãoesclarece como os médicos teriam identificado ouso contínuo do Cytotec® ou mesmo como teri-am comprovado não se tratar de um óbito fetalpor outras razões clínicas, uma vez que ela já teriachegado ao hospital em estágio semi-inconscien-te. Segundo a irmã, que a acompanhou durante aúnica noite em que permaneceu internada no hos-pital, a mulher nada falou sobre o caso.

A gravidez era desconhecida da família. Porviver isolada e ser considerada “estranha”, houveo encobrimento da gestação até a entrada damulher no hospital em estado grave. Uma vezque ela não tinha independência locomotora porcausa da obesidade, além de sofrer de trombosee hipertensão, a irmã imagina que alguém a teriaauxiliado a introduzir o Cytotec® na vagina, mui-to embora desconheça quem possa ter sido. Ape-sar de casada legalmente, a mulher já vivia emseparação de corpos com o marido, que no de-poimento disse desconhecer a gravidez ou quempoderia ter sido o companheiro da ex-esposa.Essa mesma hipótese de que houve uso vaginaldo Cytotec® para induzir o parto antecipado ésustentada pelos médicos no inquérito policial,sem, no entanto, qualquer apresentação de evi-dência clínica. O laudo de morte atesta septice-mia por feto retido.

O caso é obscuro em vários aspectos. O pri-meiro deles é que a mulher morre em períodogestacional, após ter chegado ao hospital comquadro “de fortes dores abdominais, taquicardia

e delírios, porém nada comentando sobre suaconduta abortiva e os motivos que a levaram acometer tal ato” (Inquérito Policial, 2008). Esse é oprimeiro trecho do inquérito policial em que semenciona a prática do aborto como causadorado quadro mórbido. O feto é natimorto e, segun-do sua irmã, já estaria morto há alguns dias noútero. O segundo é a agilidade de comunicaçãoentre o hospital, a polícia e as mídias locais. Antesmesmo que a família fosse informada do óbitopela irmã que a acompanhava no hospital, a tele-visão local já havia chegado à família na cidade-satélite em que a mulher residia. Por fim, há umadiferença significativa no texto do escrivão na se-ção “Denúncia” em comparação aos outros casos– é o único relato em que se faz referência ao prin-cípio ativo do Cytotec®, o misoprostol, e se explo-ra o seu uso indevido para o aborto:

[...] Que o motivo para tal [internação] se de-via ao fato desta última ter feito uso indevido damedicação conhecida pelo nome de “Cytotec”, cujonome científico se trata de “MISOPROSTOL”, aqual, de forma não recomendável pela medicina,vem sendo utilizada, ultimamente, para fins depráticas abortivas, uma vez que, originalmente, afórmula de tal medicamento, foi elaborada para aprescrição em casos de tratamento de úlcera gás-trica (Inquérito Policial, 2008; grifos no original).

Há várias interferências do jargão médico nalinguagem policial: “misoprostol”, “não recomen-dável pela medicina”, “práticas abortivas”, “fórmu-la”, “prescrição”, “úlcera gástrica”. Não há infor-mações suficientes nem no inquérito policial, tam-pouco na entrevista com a irmã, que permitamidentificar como foi feita a inferência de que setratava de um parto provocado com uso de Cyto-tec®. Além disso, não há razões médicas para clas-sificar como “aborto” um parto provocado aosoito meses de gestação. O resultado dessa combi-nação de informações é a pouca clareza sobre ouso do Cytotec® e a causa do óbito materno.

A segunda mulher é personagem de um pro-cesso judicial denso, com depoimentos, laudos eescutas telefônicas, cujo réu é o intermediário navenda do Cytotec®. A história resume o itineráriotrágico de risco experimentado pelas mulheresem desespero por causa de uma gravidez nãoplanejada e indesejada10,21. Ela tinha 34 anos,quatro filhos, e trabalhava como empregadadoméstica. Nos depoimentos de sua filha maisvelha (13 anos) e de seu marido, há detalhes doúltimo dia de sua vida antes do início da agoniaque culminaria na morte em uma UTI. Decididaa não manter a gestação, em acordo com seumarido, comprou o Cytotec® com um adianta-

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mento salarial. O Cytotec® foi introduzido emsua vagina pelo vendedor do medicamento. Du-rante as investigações, foi entregue à polícia uma“mangueira de plástico, transparente, medindoaproximadamente 35 cm”, que ficou durante doisdias na vagina da mulher. Tanto a filha quanto omarido declaram ter visto a “mangueira” intro-duzida na vagina, mas a filha diz que “sua mãemostrou a mangueira presa à vagina, entretantonão explicou o motivo” (Processo Judicial, 2008).

O sangramento e as dores duraram quatrodias, mas a mulher se recusou a ir ao hospitalcom medo de denúncia à polícia. Ela chegou aohospital na véspera de morrer e sem a sonda va-ginal: no primeiro dia, teve o útero retirado, e nodia seguinte faleceu na UTI. Entre a compra doCytotec® e sua morte foram seis dias. Nesse perí-odo, ela teria procurado o socorro do interme-diário, que se recusou a atendê-la, além de inti-midá-la quanto à procura de auxílio médico. Aexplicação da filha sobre as razões da mãe foramresumidas na seguinte frase de seu depoimento:“[Minha mãe] estava grávida, mas teria que abor-tar pois estava trabalhando com carteira assina-da e temia perder o emprego” (Processo Judicial,2008). Explicação semelhante foi sustentada pelomarido. A certidão de óbito indicou “causa damorte: falência de múltiplos órgãos, choque sép-tico, aborto complicado” (Processo Judicial, 2008).Em letras miúdas no rodapé do laudo de examede corpo de delito da Polícia Civil do DistritoFederal se lê: “Ausência de colo uterino ao toque”.

Dois meses após a morte da mulher, teve iní-cio o inquérito policial contra o vendedor doCytotec®. Esse foi o único caso em que o vende-dor do medicamento era também o dono da far-mácia, apesar de não ser farmacêutico. Entre astestemunhas de acusação contra o intermediá-rio, estão dois médicos: o que atendeu a mulherno hospital público e a médica perita responsá-vel pelo exame de corpo de delito. Após a instau-ração do inquérito, têm início as investigações nafarmácia, com escuta telefônica e mandado debusca e apreensão na residência do intermediá-rio. Outras irregularidades foram identificadas,tais como a reutilização de 150 seringas para apli-cação do anticoncepcional Perlutan® e a venda demedicamentos controlados sem cumprimentodas normas da Anvisa (Frontal® e Neo-Amitrip-tilin®). Escondida entre livros-caixa da farmáciafoi ainda encontrada uma cartela de Cytotec®. Aoser preso, o intermediário dizia desconhecer ofornecedor do Cytotec®: “Adquiriu os mesmosde um rapaz que passou em sua farmácia lheoferecendo o medicamento, rapaz esse que não

sabe identificar o nome, há aproximadamentetrês anos” (Processo Judicial, 2008).

Não há dúvidas, pelo processo judicial, deque essa mulher morreu de complicações de umaborto realizado com métodos invasivos, comofoi o uso da sonda, combinado ao Cytotec®. Noentanto, a sonda não foi um instrumento explo-rado pela polícia nem pelos médicos, restringin-do-se a uma menção solitária pela filha e pelomarido. A voz do processo ignora a sonda e in-dica que a causa da morte foi “aborto provoca-do por terceira pessoa, mediante uso de medica-mento proibido” (Processo Judicial, 2008). Aimagem de uma mulher agonizando com umasonda na vagina foi esquecida para o julgamentode um crime que passou a ser o de venda ilegal deCytotec®, o “medicamento proibido”.

Conclusão

A pesquisa de uma prática ilegal, como o aborto,é um desafio para a saúde pública. Um dos mai-ores obstáculos é a ausência de garantia de sigilona coleta de dados primários, podendo a mulherser incriminada ao participar da pesquisa ouquem pesquisa ser acusado de cumplicidade27.Neste sentido, a pesquisa com documentos poli-ciais e judiciais, apesar das limitações de umaamostra de conveniência, permite uma aproxi-mação ao tema sem expor as mulheres à investi-gação policial por um crime. Além disso, há avantagem de se obter informações sobre o co-mércio ilegal do misoprostol e, ainda, analisar afigura de vendedores e fornecedores, persona-gens pouco alcançados pela pesquisa acadêmica.

O itinerário dos personagens envolvidos naprática do aborto inseguro no Brasil ainda é pou-co conhecido. O universo desse mercado clan-destino é dominado por homens, seja como ven-dedores ou fornecedores. O vendedor é geral-mente alguém da comunidade, que comercializao misoprostol na própria farmácia ou nas suasproximidades. Ao atuar como intermediário édele também a atribuição de ensinar a usar omedicamento, ou mesmo colocar os comprimi-dos na vagina, tendo em vista seus conhecimen-tos básicos de saúde. Já o fornecedor, persona-gem mais raro nos processos, não tem contatodireto com as mulheres e seu maior interesse co-mercial parece ser o grupo mais lucrativo dosanabolizantes e moderadores de apetite, os cha-mados medicamentos de gênero. Em ambas bio-grafias, pouco se conhece sobre os motivos queos levam a vender ilegalmente o Cytotec®.

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Para as mulheres que usam o misoprostol,não há garantia da qualidade do medicamento,desconhecendo-se a procedência, as doses oumesmo a devida presença do princípio ativo dadroga. Por vezes, outro ciclo de risco pode se as-sociar à narrativa convencional. Primeiro, o assé-dio sexual: ainda que não se saiba se o assédioobservado em um dos documentos foi um casoisolado ou um resultado inesperado da simula-ção imposta pela investigação, sabe-se que, for-çadas a circular em um terreno de clandestinida-de, as mulheres podem ser alvos de múltiplasopressões. Segundo, a apresentação do hospitalpúblico como um espaço de ameaça às mulherese a persistência da denúncia à polícia por médicos

Colaboradores

D Diniz e A Madeiro foram responsáveis pelaleitura, análise dos inquéritos policiais e proces-sos judiciais, e redação do artigo. D Diniz é coor-denadora da pesquisa “Quando o aborto se apro-xima do tráfico” e A Madeiro foi bolsista pesqui-sador visitante no projeto.

Agradecimentos

A Rosana Castro e Vanessa Carrião, que partici-param da fase de trabalho de campo. Ao Minis-tério Público do Distrito Federal e Territórios,em particular ao promotor de justiça DiaulasRibeiro, pelo convênio para a pesquisa.

são um tema que necessita ser mais bem compre-endido. A quebra do sigilo médico é uma graveviolação à ética profissional e uma das prováveisrazões para a recusa ou demora em buscar auxí-lio quando há complicações do aborto inseguro.

Apesar da regulamentação sanitária e do cer-co policial, o misoprostol se consolidou nos cen-tros urbanos brasileiros, alterando as práticasde aborto e mudando a tônica da morbimortali-dade. Mesmo com a redução das complicações,as mulheres transformam-se em reféns entre orisco de falsificação do produto e o receio de de-núncia se procurarem o auxílio médico, perpe-tuando histórias de medo e tortura silenciosasque parecem não ter fim.

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Artigo apresentado em 15/03/2011Aprovado em 23/05/2011Versão final apresentada em 17/07/2011

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