Tom Jobim - Entrevista

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    Revista Qualis

    Tom Jobim

    a última entrevista

    Rio de Janeiro - Jardim Botânico

    30/11/94 - Quarta-feira

    Das 10h30 às 13h20 - manhã ensolarada

    Repórter - Walter de Silva

    Fotógrafo - Carlos Mancini  

    Desde a primeira semana de novembro eu estava aguardando uma oportunidade para a entrevista

    com Tom Jobim. Ligações frequentes para Gilda Mattoso, no Rio, empresária e amiga pessoal dele

    e da família, e para o Marquinhos Vinícius se sucederam. Como editor, seria prudente não me

    incumbir pessoalmente da entrevista, exatamente para não me sobrecarregar na parte executiva

    da editoração de todas as matérias da edição - um pouco a contragosto, talvez. Havia pedido então

    ao amigo e jornalista Marcia Gaspar que se incumbisse da honrosa missão. Nos dias de espera,

    conversávamos sobre o Tom e o seu último e excelente álbum. Uma primeira data foi marcada

    para a terça-feira do dia 22 de novembro, mas não houve nenhuma ratificação e assim a entrevista

    não aconteceu. O silêncio de vários dias que se seguiram levou o Marcio Gaspar a achar que a

    entrevista poderia não sair. Mas da minha parte me recusava um pouco a contar com essa

    possibilidade.

    No dia 29 de novembro, me encontrei com o Marcio na BMG-Ariola para uma entrevista com uma

    banda da Austrália, Frente! Depois de discutirmos algumas alternativas para o assunto em

    questão, o Marcio Gaspar foi embora e alguém me ligou na gravadora dizendo que a entrevista

    com Tom estava marcada para o dia seguinte às 10h30 em sua casa no Jardim Botânico. Era a

    última chance pois no outro dia, 01/12, Tom partiria para Nova York. Rapidamente, depois do

    almoço, telefonei ao Marcio que me disse que não poderia fazer a entrevista por compromissos

    profissionais no dia seguinte. Admito que, no fundo, isso me deixou bastante feliz pois eu mesmo

    decidi entrevistar Tom Jobim.

    O que fazer? O tempo era curto. Reuni todo o material de imprensa que havia coletado nos últimos

    tempos, livros, biografias e muitos discos. Passei na casa do Marcio que havia preparado algumas

    perguntas. Eu sabia que teria que fazer uma pauta definitiva. O mais sensato me pareceu

    mergulhar nos discos de Tom sem me preocupar em formular nenhuma pergunta para a pauta da

    conversa. Em casa, deliciei-me reeescutando tudo o que pude madrugada adentro. Dormi um

    pouco, acordei bem cedo e comecei a ler tudo o que tinha em mãos pensando na entrevista. No

    táxi, no avião e no bar do Galeão, pautei o máximo de perguntas possíveis, editando-as para um

    suposto direcionamento da entrevista.

    Mas, quase chegando à casa de Tom, tive um pressentimento muito forte de que eu deveria me

    prender o menos possível nas diversas perguntas que tinha preparado. Já em sua casa, em nossa

    primeira conversa, antes da enrevista, isso me pareceu a coisa certa a fazer. Tom não era um

    homem que esperava perguntas. E acredito que, no fundo, talvez ele nem gostasse delas. Ele não

    era uma pessoa que se entrevistasse, mas sim alguém com quem se poderia ficar ali conversando

    ao sabor de seus pensamentos de multidirecionalidade própria dos grandes pensadores, gênios e

    mestres. Senti que muitas perguntas jamais sairiam ali das minhas anotações, como de fato

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    aconteceu. Muitas teriam de ser improvisadas. Era preciso a todo custo deixar Tom completamente

    confortável em seu próprio timing, no aconchego de seu lar, e fazer apenas pequenas intervenções

    que somente tentariam conduzir de alguma forma a conversa para os caminhos que na verdade ele

    mesmo escolhesse. Como de fato, felizmente aconteceu.

    Sentado ali no sofá a seu lado, pude notar seus gestos largos e vagarosamente generosso, como

    se estivesse a todo momento abraçnado tudo o que estivesse a sua frente. As mãos eloquentes

    mantendo os braços sempre abertos reforçavam o calor da hospitalidade dos agradáveis momentos

    em que passei em sua companhia. Um anfitrião nobre. Um gentleman absoluto. Um homem em

    estdao de pura iluminação. É importante que se diga aqui que, além de um dos maiores

    compositores e maestros do Brasil, de todo o planeta e de todos os tempos, Tom Jobim foi um dos

    maiores pensadores de seu país e de sua época. Tom pertence ao sumo dos maiores e genuínos

    intelectuais do Brasil.

    Nesta longa entrevista, talvez uma das maiores de sua carreira (48 laudas ou 67.258 caracteres),

    ele faz um exercício profundo de reflexão sobre o Brasil em todos os seus aspectos. Não apenas a

    conservaçnao ecológica, mas o trabalho da imprensa, o papel dos políticos, a função da crítica, a

    preocupação com a dignidade e qualidade de vida do povo brasileiro, a paixão pela música, pela

    palvra, pela poesia, pelos livros e dicionários, os amigos queridos, a família adorada, o carinho

    pelos animais, e o amor supremo pela vida. Tom é de uma universalidade complexa que

    transborda simplicidade, concisão e transparência. Nos momentos de análise rigorosa e aguda, ele

    nos surpreende com seu humor sutil, certeiro e maroto. Durante a entrebista, sentado a meu lado

    no sofá, mudando-se de lugar, andando despreocupadamente pela sala, ou fumando com fervor

    seus charutos, ele faz da fala o instrumento de seu espírito - o delicado tom da voz, o tom grave e

    incisivo da voz, e as gostosas gargalhadas.

    Ao transcrever as duas fitas cassete gravadas durante a entrevista para o papel, optei pela

    fidedignidade absoluta do fato histórico e jornalístico. Preservo assim ipsis litteris todas as frases

    inconclusas de Tom, e todos os deliciosos maneirismos de sua fala. Ficamos todos assim

    abençoados por esse testamento verbal do "maestro soberano" da música e do pensamento. Tom

    Jobim para todos.

    No comecinho da tarde, ao nos despedirmos, Tom ainda gritou pra mim da copa onde almoçava

    com a família, enquanto eu descia as escadas: "Walter, não se esqueça de colocar na tua matéria

    que tudo isso é trabalho! Tudo isso é trabalho! Não se esqueça!" Claro, Tom, tá aqui o teu pedido.

    Tudo isso é trabalho.

    Walter de Silva

    Qualis - Fala um pouco da sua história.

    Tom Jobim - Quando eu era garoto, eu passava as férias em Leme. Tinha aquela mata, aquele

     jequitibá, aquele pau-de-abraço... E a terra roxa com café e tudo. Leme, ali perto de Águas de Rio

    Claro, Pirassununga. Então, em 1932 a polícia pegou meu avô, e eu era pequeno, né, eu tinha

    cinco anos... Pegou meu avô e levou pro fundo da baía de Guanabara, onde tinha um velho navio,

    onde eles botaram os paulistas todos no porão.

    Qualis - O seu pai era gaúcho?

    Tom Jobim - Meu pai era gaúcho de São Gabriel. E o meu avô era paulista. A minha mãe era

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    carioca. E eu nasci na Tijuca. Mas por acaso...Eu nasci na Tijuca por acaso porque faltou grana na

    família. Eles se mudaram, porque eles moravam em Copacabana, mas foram pra Tijuca pagar um

    aluguel mais barato, portanto eu nasci lá. Mas no ano que eu nasci eu já fui pra Ipanema. E

    Ipanema tinha aquelas dunas de areia, não tinha nada, tinha água limpa.

    Qualis - Deveria ser maravilhoso...

    Tom Jobim - Ipanema é um nome que vem de São Paulo. Isso pouca gente sabe porque o pessoal

    aqui... Ipanema quer dizer água ruim... Porque tem certos rios que são ipanema, como é que é?

    Eles têm, às vezes, água bonita, limpa e tudo, mas não têm alimento, não têm comida, então fica

    aquele rio sem peixe. Então ele se chama ipanema. Coisa que absolutamente não acontecia aqui.

    Aqui tinha peixe pra você jogar fora. Essa lagoa (Rodrigo de Freitas) se chamava Sacopenapam,

    que quer dizer uma parada de socós.

    Ipanema é o seguinte... O Barão de Ipanema, paulista da nobreza rural... Existe também uma

    microrregião rural em Minas Gerais chamada Ipanema, que deve ser por causa de um outro rio que

    não seja muito bom de peixe. Mas então o Barão de Ipanema saiu lá de São Paulo, veio pra cá e

    comprou uma fazenda aqui na beira da praia. E essa fazenda, por causa do Barão de Ipanema,

    ficou sendo chamada de Ipanema.

    É por isso que tem tanto paulista dono de apartamento em Ipanema. Aqueles apartamentos todos

    são de paulistas. E paulistas ricos, né. Bom, não é só paulistas mas boa parte são dos paulistas.

    Muitos apartamentos estão fechados, inclusive. O sujeito é rico e só vem quando decide tomar

    banho de mar. Então é essa mais ou menos a história de Ipanema.

    E o barãozinho de Ipanema, que está vivo até hoje, deve ser bisneto do Barão de Ipanema, bisneto

    ou tataraneto, é o nosso amigo que bebia lá no Veloso com a gente sempre. Que se tornou aquele

    bar "Garota de Ipanema". Ele é o barãozinho: (recordando) 'Ô barãozinho, vamos tomar chope,

    tomar whisky...' Ele é Barão de Ipanema e tem essa ascendência em São Paulo. Como sempre,

    tudo vem de São Paulo, os automóveis, o café...

    Qualis - Dizem que você teria proferido uma frase que poucos sabem se você falou ou não, que "a

    melhor saída do Brasil é o aeroporto do Galeão". ( Tom se diverte e dá uma gargalhada.) Depois

    disso você foi morar fora do país, voltou e chegou a declarar uma certa decepção com o descaso

    com que a imprensa brasileira te tratou...

    Tom - Hoje eu li no jornal O Globo que a Itália me escolheu pra ser homenageado em Roma... (

    lendo o jornal) ' Tom Jobim será homenageado no Festival de Jazz de Perugia, né, Itália, em julho

    de 95. A decisão foi tomada ontem em Roma...' Você leu, né? ( lendo) '... por Carlo Pagnota,

    realizador do evento, o maior do gênero hoje na Europa. Tom tem sido elogiado pela crítica

    italiana, que considerou "Fly me to the moon", faixa que ele canta com Sinatra, o melhor trecho do

    novo Duets, o novo disco...'

    Qualis - O que você diz a respeito disso?

    Tom - Ah, eu fico bastante satisfeito, né. Aliás a imprensa estrangeira tem uma atitude bastante

    positiva com relação a mim, né. Você vê os músicos de jazz vieram aqui e fizeram uma bruta

    homenagem ( referindo-se ao Free Jazz), depois nós fomos à São Paulo. Isso inclusive está

    relatado no Le Monde que fala da apresentação lá em São Paulo. ( mostra a matéria) Isso foi um

    cidadão que mandou da França pra mim, ele teve a gentileza de mandar da França pra mim.

    Qualis - Você falou dessa coisa da atitude da imprensa estrangeira que eles realmente fazem um

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    trabalho de cobertura. Como é que você vê o trabalho da imprensa hoje no Brasil e fora daqui?

    Tom - Essas coisas que você me perguntou, que você me falou, da... ( longa pausa). As notícias

    parece que hoje em dia... Já me falaram isso várias vezes que uma coisa inusitada vende mais

     jornal do que uma verdade, entende? Não adianta você falar a verdade porque sai uma outra

    coisa, né. Então, por exemplo, o cara que estava conversando comigo falou, ' se o cachorro morder

    o homem, não sai no jornal porque é uma notícia muito boba. Agora se um homem morder um

    cachorro, aí já fica muito melhor, né.' Então quer dizer, a imprensa tem usado muitas vezes coisas

    que jamais se passou. Muitas vezes essas frases que dizem que é do Tom Jobim, eu jamais disse

    isso, como a saída para o músico brasileiro é o Galeão". Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu

    acho que tem grandes músicos vivendo muito bem aqui no Brasil, cantores, cantoras, fazendo

    muito sucesso aqui no Brasil, né. Você não precisa ir para o Galeão para... Não precisa sair do

    Brasil.

    Agora muita coisa que se diz assim, 'o Tom disse', é invenção. O Tom disse, o Tom fala mal do

    Brasil, vírgula, no exterior, isso além de ser uma maldade incrível... Por que é que eu falaria mal

    do Brasil? Por que é que eles não dizem que eu falo mal da Tchecoslováquia, da Lituânia, né?

    Porque eu falo mal do Japão. Não, eles estão sempre interessados em botar o brasileiro contra o

    Brasil. Pelo contrário, eu deveria ser criticado pelo fato de ter descrito em minhas músicas um

    Brasil paradisíaco. Como diz o Sérgio Buarque de Hollanda, 'a visão do paraíso'. Quer dizer, é essa

    visão que eu tenho nas músicas. Eu recebi muita carta do exterior de gente que ia se suicidar e

    que disse 'olha, eu não vou me suicidar porque escutei essa música sua e acho que a vida vale a

    pena', entende, e coisas assim. Coisas muito positivas. Eu, por exemplo, não iria falar mal do Brasil

    porque eu não creio que isso venda disco. Se eu falasse mal do Brasil o estrangeiro ficaria

    embaraçado, ficaria perplexo. Você chega, você é brasileiro ( rindo), então vai pra Nova York...

    Isso de fato não se deu. E as coisas que saíram no jornal eles foram torcendo, torcendo pra

    fabricar a calúnia sempre, né.

    Qualis - A que você atribui esse tipo de distorção do trabalho da imprensa brasileira?

    Tom - Isso é sempre assim, olha... Eu não acho que isso seja nenhuma coisa especial comigo, eles

    fizeram isso com o Villa-Lobos, com Oscar Niemeyer, Portinari, com Mario de Andrade... Então se

    você fizer alguma coisa, as pessoas começam a ser perseguidas. O Brasil persegue os homens de

    bem. Basta você fazer o seguinte, basta você pegar a crítica estrangeira... O estrangeiro não tem

    motivo pra ficxar zangado comigo, ele acha a música ótima, se diverte, compra um disco e fica

    feliz, claro. Agora, aqui vem um negócio do... Eu vou te dar um exemplo. ( levanta-se e pega na

    mesa um pesado tomo com matérias da imprensa brasileira) Quarenta anos de Tom Jobim na

    imprensa. ( Ri e balança na mão o pesado compêndio) Você imagina pra carregar isso, né. Isso vai

    de 52 a 92. Você vê que o canteúdo do negócio é todo negativo, entende?! É a negação do troço!

    Então o Antonio Carlos Brasileiro de Almeida deles, eles vão dizer que o Antonio Carlos não é

    brasileiro, eles vão colocar o brasileiro contra o Brasil. E vão sempre fazer o negócio de cabeça pra

    baixo... Sempre. Então é o destino deles isso, né. Eu vou fazer uma coisa que eu julgo positiva,

    que a minha música n˜åo é pra levar à droga, nem à violência, nem à motocicleta, nem nada

    disso. A minha música é pra levar o cidadão à Deus.

    Se você fizer um anúncio do chope da Brahma a imprensa brasileira toda cai de pau. E depois a

    imprensa do Rio começa a falar mal, depois a de São Paulo começa a falar mal, depois o Rio

    Grande do Sul, depois o Brasil inteiro. São acordes, todos. ( lendo o tomo da imprensa) Tem um

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    sujeito aqui que escreve ( dando risada) que o 'Tom e o Vinícius fazendo o anúncio da Brahma são

    duas jararacas menstruadas'.

    Qualis - Que tremenda grosseria.

    Tom - É, e eu não sei porquê. Em primeiro lugar eu acho que jararaca não menstrua. Em segundo

    lugar eu não sei porque Vinícius e eu parecemos duas jararacas menstruadas.

    Qualis - Isso me parece muita leviandade.

    Tom - Mas isso tá cheio disso. Depois os plágios, os plágios de Tom Jobim. Tom Jobim plagiou não

    sei o quê. Quer dizer, isso é uma coleção de mentiras que faz do Brasil, esse país riquíssimo e

    tudo, faz inverter tudo sempre. Bota tudo sempre de cabeça pra baixo. Então você trabalhou

    direito, é honesto, contruiu uma família, acorda às quatro horas da manhã pra escrever música,

    então todo mundo se volta contra você como se aquilo... Então começa a te atribuir dinheiro, e não

    sei o quê. A imprensa brasileira nunca conseguiu dizer que um homem rico é rico. Então rica é a

    Maria Bethânia, o Chico Buarque... É uma brincadeira isso, eles são uns pândegos. Os homens

    ricos todo mundo sabe quem são, são homens importantíssimos, não preciso citar o nome deles. E

    eu acho ótimo que eles sejam ricos. Eu sou a favor da riqueza. Eu não acho que a gente deva

    cultivar a miséria. Como disse o Joãozinho Trinta, ' quem gosta de miséria é intelectual'.

    Qualis - Isso tem um fundo de verdade.

    Tom - É, tem um fundo grande. ( pegando novamente o tomo da imprensa nas mãos) Você vê

    esse troço aqui, veja o peso desse troço, não tem nada. Primeiro, sabe o que acontece? Música é

    um negócio que já é difícil de você falar sobre. Falar sobre música é difícil. Desde o Wagner é que

    eles estão falando se o robe de chambre do Wagner é púrpura ou é roxo, não sei o quê. Umas

    conversas que não tem nada a ver com a música. E depois o cara acaba falando mal do próprio

    compositor, diz que ele é aquilo, aponta defeitos físicos. Ora, a vida de um compositor não é isso

    absolutamente, né. Eles estão interessados em apontar defeitos e coisa e tal. E dizer que isso é

    crítica musical. Nem por um instante eles falam de música, nunca.

    Qualis - Sobre a forma de se trabalhar música, os temas...

    Tom - Inclusiva não conhecem música, né. Você pode fazer essa brincadeira, né. Tem um sujeito

    que escreveu "A Crítica dos Críticos" e botou todas as críticas que os críticos fizeram aos maiores

    gênios do mundo, Beethoven, Debussy, Brahms, Ravel. Então todo mundo escrevendo aquelas

    besteiras. O que é que eles iriam escrever? Eles não estavam entendendo nem aquilo que estava

    sendo tocado.

    Qualis - No começo da sua carreira tinham uns críticos que te acusavam de falta de originalidade,

    que você imitava os americanos, pelo fato do seu nome, Tom... E que a bossa nova era uma coisa

    americanizada, e que não era brasileira...

    Tom - ( rindo) Você imagina... Você imagina... Bossa nova, dois nomes tipicamente latinos,

    tipicamente brasileiros - bossa e nova. Eles conseguiram inventar o contrário, que isso seria uma

    coisa estrangeira. E que Tom, que hoje em dia é um nome até comum no Brasil, tem muita gente

    chamada Tom... Isso é o seguinte, a minha irmã não sabia dizer Antonio Carlos então ela me

    chamava de de 'tom tom'.

    Qualis - Quantos anos ela tinha na época?

    Tom - Ela era bem pequenininha, né, começando a falar, dois ou três anos de idade, 'tom tom'. E

    havia uma música francesa que minha mãe cantava pra ninar a gente, que dizia: ( cantarolando a

    canção) 'ma vie s' en va ton guerre, ton, ton, ton..." Uma música francesa velha que pouca gente

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    sabe. E ela escutava 'ton, ton, ton' , e aí começou a me chamar de ton, ton. Chamar de ton, ton,

    ton, ton, depois virou Tom. No colégio eles vão sempre abreviando o nome. Ninguém vai chamar o

    sujeito de Felisberto Pereira da Silva de Moraes e Lima, é muito comprido, né. Aí virou Tom, e eu

    queria ser Antonio Carlos, evidentemente. Comecei a fazer aqueles arranjos, escrevia pra

    orquestra, e nunca botavam meu nome no disco de 78 (rpm). Então eu fazia aqueles arranjos

    acompanhando Dalva de Oliveira, Orlando Silva, cheguei a tocar com Vicente Celestino. E depois,

    mais tarde, com gente tida como moderna como Dick Farney, Lucio Alves. E eu queria que botasse

    Antonio Carlos Jobim, mas era muito comprido, entende, e o pessoal começou a colocar Tom

    mesmo. Inclusive um som que não existe em inglês, Tom. Então eles quiseram, numa forçação de

    barra, um esforço enorme, pra dizer que o Tom é 'Tan', 'Tan', 'Tan'.

    Qualis - Que nem Tom Cruise...

    Tom - Tom Cruise, é. Conseguiram essa besteira. Isso, realmente, nos Estados Unidos o Tom se

    refere a Thomas, apelido de Thomas. Antonio é Tony. Então ficou essa extravagância aí criada pela

    invenção constante. E depois esse tipo de coisa como a Veja faz, né, eles acham isso muito criativo

    talvez. Você diz assim... 'Bom dia!, Tom Jobim.' 'Bom dia', mentiu Tom Jobim. Vem tudo escrito

    assim: 'Chico Anysio, o humorismo dá muito dinheiro no Brasil?' 'Nem tanto', disfarçou Chico

    Anysio. Então toda frase que o artista disser... Primeiro que o artista não disse essa frase. Essa

    entrevista é hipotética. Ela elide o entrevistado. Não tem entrevistado. Aquilo foi criado lá na

    redação... In Veja, é criado In Veja. Aquele In latino, aquele I maiúsculo. Então você diz todos os

    absurdos que você quer, e ainda eles põem assim: 'E a mulher é bonita', justifica-se Oscar

    Niemeyer. ...disparou, fez não sei o quê. Então toda a frase leva um adendo que destrói a própria

    frase. Ora, os artistas são o sal da terra. Tem tanta gente boa e inteligente aí, Caetano Veloso,

    Chico Buarque, Gilberto Gil... Tanta gente que você pode entrevistar, Djavan, Edu Lobo, né, o Tom

    Jobim. Qual é a graça de você inventar uma porção de frases detratórias? Que detratam as coisas,

    e sempre botam isso na boca do artista.

    Qualis - Você não achaue isso seria, talvez até inconscientemente, uma necessidade de

    autoafirmação, do sujeito que está trabalhando, de se posicionar?

    Tom - Pois é, ele prefere escrever isso da cabeça dele do que fazer uma entrevista como você vê a

    entrevista no exterior, no Paris Match que vai mais alto entrevistando Von Karajan, ou

    entrevistando André Previn. Quer dizer, é uma coisa boa pra revista. Aqui não, nós fazemos

    questão de, como se diz, planificar o cara, nivelar. Fica tudo aquela coisa sem dimensão. Eu dei

    uma entrevista pra Isto É, e ele (o articulista) fala que eu fiz uma angioplastia em Nova York, fiz

    um balãozinho em Nova York, né. Ele diz assim: 'Pois é, ele precisa comer menos.' Ele começou a

    me dar conselhos culinários, conselhos de dieta! Você imagina se alguém fica doente (rindo) e eu

    vou dizer 'Olha, você deve, sabe, evitar...' Depois o negócio da Plataforma, eles inventaram que eu

    não pagava a Plataforma: 'Tom Jobim defende a Plataforma porque é o boca-livre dele.' Eu

    absolutamente pago a Plataforma religiosamente. A churrascaria do meu amigo Alberico Campana

    que eu não quero dar prejuízo a ele, absolutamente, né. Eu sou amigo dele, né. E quando eu falei

    o negócio da Plataforma que é preciso fazer aqui no Leblon, tombar, não esse tombamento clássico

    que eles fazem. É pelo gabarito, como já disse Maria Eliza Costa, filha de Lucio Costa. Eu estou te

    dizendo aqui, essa zona aqui do Tivoli Park, o Clube de Regatas Flamengo, o Jóquei Clube... Porque

    há planos incríveis de fazer mall, aqueles supermercados imensos. Ou então erguer mesmo novas

    selvas-de-pedra. Então o que devia ser tombado é o gabarito. A churrascaria, você não tendo uma

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    você vai em outra, né. Toda essa zona ali deveria realmente segurar o gabarito, da Cobal, daquela

    praça ao lado da Cobal, do Clube de Regata Flamengo, que aliás essas coisas já estão mais ou

    menos tombadas. E pra informação de certas áreas aí desinformadas, o Alberico não quer que

    tombe a Plataforma. E nem o proprietário do terreno da Plataforma não quer que tire o Alberico de

    lá, pelo contrário, ele quer entrar como sócio do Alberico. E, naturalmente, eu não tenho nada com

    isso. Eu acho ótimo. Eu só não acho ótimo pegar aqui , por exemplo, o heliporto, o Tivoli park,

    tudo, e soltar o gabarito. Porque aí você vai passar a não poder ver a Lagoa mais daqui (apontando

    para a janela da sala), vai fazer um paredão novamente. O que se fez com uma cidade linda como

    o Rio, uma cidade feita por Deus, essa topografia que nós temos, de floresta, mar e montanha, aí

    nós vamos encher isso de espigões. Inclusive espigões em lugares mais altos, quer dizer que

    cobrem ainda mais o perfil tão bonito, né, do Rio de Janeiro.

    Qualis - Essa coisa de você, por exemplo, já nas tuas músicas, desde antigamente, exaltar as

    belezas naturais do Rio de Janeiro, isso seria uma certa atitude ecológica tua numa época em que

    nem se falava em ecologia?

    Tom - Olha, quando eu comecei as minhas atitudes ecológicas, eu não sabia nem que elas eram

    ecológicas. Primeiro que eu não conhecia nem a palavra ecologia, ecólogo, eu não conhecia. E

    depois eu vim a conhecer essa palavra em Nova York, aí fui lá olhar no dicionário. Ecologia, será a

    ciência que estuda o eco?

    Qualis - Isso foi em que época?

    Tom - Ah, isso foi em 1966, 67, 1970. Um americano virou-se pra mim e disse: 'Você é um

    ecólogo.' E eu fiquei a ver navios. Só que o eco, esse eco do som que você faz 'João!', e a pedra

    responde 'João!', esse eco é com c-h. E o eco da ecologia, do grego, que quer dizer meio ambiente,

    quer dizer a casa, não tem 'h'. Nós, infelizmente, aqui em português achatamos tudo e eco ficou e-

    c-o. Então nós aqui não sabemos do que estamos falando, quando você fala eco, você não sabe se

    está se referindo ao som que volta, ao eco suíço, ou se você está se referindo ao meio-ambiente. O

    eco 'alô!, alô!', esse eco tem 'h'; em inglês tem 'h'. E o eco de ecologia não tem 'h'. Então são duas

    palavras diferentes, significando coisas diferentes. Então essa coisa de ecologia, essa preocupação,

    tudo o que eu vi no Brasil o que é que é? Eles cortaram 95% da Mata Atlântica! Agora eu fiz

    parceria num livro chamado Mata Atlântica, que está sendo escrito e fotografado (por Ana Lontra

    Jobim, sua esposa). A Mata mais linda do mundo, com um clima tropical de montanha, quer dizer,

    faz até frio no alto da floresta, com mil espécies e tudo. Isso tudo foi arrasado! Quer dizer, sempre

    queimando o mato. Às vezes, nem cortar as madeiras-de-lei eles cortaram, botaram fogo

    simplesmente. E com isso desaparecem centenas de espécies vegetais e animais, destruido tudo,

    né. Uma coisa lamentável essa coisa sempre de destruir tudo e plantar café, de plantar cana, que é

    a história do Rio de Janeiro, a história de São Paulo, a história do Paraná, a história da Mata

    Atlântica. Que pega essa coisa que Deus nos deu, linda, e transforma num deserto. Quer dizer,

    você quando vem dos Estados Unidos você olha pra baixo, a zona da Mata em Minas Gerais não

    tem mais mato nenhum. Tá tudo detruído, você vê aquelas moçorocas, aquelas gretas, a terra toda

    despencando, a serra despencando, não tem árvores.

    Qualis - A erosão...

    Tom - A erosão, está tudo erodido, pra não dizer... (ameaçando elegantemente sussurrar um

    trocadilho) Então é assim, mais uma vez essa é uma tentativa de...

    Qualis - Já partiu de você uma idéia de fazer um tipo de movimento organizado pró-ecologia no

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    sentido de preservação dessas coisas todas?

    Tom - Claro. Olha, eu não tenho muito tempo pra me dedicar a isso. Agora, fiz tudo, aquele ECO-

    92, eu fui lá tocar tudo, né. Fizemos aí programas no Carnegie Hall, em Nova York, pra dar

    dinheiro para os índios, cobramos caro...

    Qualis- Foi com o Sting...

    Tom - O Sting, o Elton John, foi o Caetano Veloso, foi o Tom Jobim e a banda dele, foi o Gilberto

    Gil. E todo dinheiro foi dado pra Rain Forest Foudation. E o sujeito escreveu aqui no jornal,

    evidentemente, dizendo 'o Tom Jobim é engraçado, ele toca de graça para os americanos mas aqui

    ele cobra'. Quer dizer, você não pode nem fazer a caridade para o Brasil que o sujeito novamente

    perverte e inverte a notícia.

    Qualis- É uma visão provinciana essa, não?

    Tom - E maligna, né. É uma visão de cultura da negatividade, de fazer do Brasil que é um país

    riquíssimo, fazer daqui um país de miseráveis, entende. Quer dizer, sempre botando fogo no mato,

    sempre falando mal de quem trabalha, sempre falando mal de São Paulo. Tudo que dá certo é

    perseguido, é apontado como uma coisa indesejável. Isso daí, essa atitude tem que mudar. Eu

    espero agora que com o nosso amigo Fernando Henrique na presidência isso vá mudar, entende.

    Mudar! Mudar isso, isso não é possível, como é que é?! Aquela teoria do quanto pior melhor, deu

    nisso. Deu nisso que deu no Rio de Janeiro. Você não pode andar na rua, não pode andar de carro,

    não pode sair à noite. Você tem que ficar pagando imposto. De um lado é o governo que quer o

    dinheiro, o executivo que quer dinheiro, a companhia que quer o dinheiro. E as pessoas? Pra onde

    é que vão? O que é que elas vão fazer?

    Qualis - Muitos associam o movimento da bossa nova com o cenário político e social que o Brasil

    vivia naquela época, aquela coisa de mudança, turbulência, os anos JK, a indústria automobilística,

    Brasília etc. Alguns acreditam que o Brasil pode viver um período semelhante agora com a eleição

    do Fernando Henrique Cardoso, o Real, queda da inflação, e outras coisas mais. Você que viveu

    intensamente e produziu a cultura das duas épocas, daquela e de hoje, qual a relação que você vê

    entre esses dois momentos?

    Tom - Eu vejo que há uma coisa positiva no governo do Fernando Henrique que lembra a coisa

    positiva do JK, democracia, liberdade, não perseguir os artistas. E o povo, acima de tudo o povo de

    uma maneira geral. Você vê que os artistas, com o autoritarismo, foram perseguidos no Brasil.

    nEos fomso todos presos, (longa pausa) Antes de falarem mal da gente nos prenderam, né. (dando

    risada) Depois começaram a falar mal da gente. Aliás, essa época do autoritarismo com telefone

    gravado, isso tornou o Brasil realmente irrespirável. E é talvez o responsável pelo exílio de grandes

    artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, como Chico Buarque, Tom Jobim. Eu fui embora, não

    porque tivessem me mandado embora.

    Qualis - Foi um auto-exílio...

    Tom - Sim, porque o ambiente estava insuportável. Você não podia fazer as músicas... Isso,

    inclusive, não me tocava pessoalmente. Eu não estava escrevendo música de protesto, nada disso.

    Mas, em solidariedade aos que estavam, nós nos recusamos a entrar naquele Festival Internacional

    da Canção (o 6º e penúltimo, em 1971), e foi isso que causou a nossa prisão em massa... Fomos

    doze ou quinze presos. Quer dizer, ninguém podia escrever nada por causa da censura mas na

    hora que veio o internacional todo mundo tinha que ser bonitinho. Aliás, eu acho que foi muito bom

    o fato do exército não ter matado a gente porque em outros países as coisas foram muito mais

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

    9/21

    graves, no Chile, na Argentina. Com todas as coisas ruins que aconteceram eu ainda dou graças a

    Deus. Eu fui apenas detido, o que não é o caso do Caetano, do Gil, que foram realmente presos. Eu

    fui detido e tinha que voltar lá pra averiguações. Eu era intimado a comparecer. Agora você vê se o

    Tom Jobim é um homem subversivo, eu sou um homem da ordem e do progresso. Eu creio que as

    Forças Armadas não são sanguinárias assim no sentido de querer matar todo mundo. É claro que

    houve gente que foi morta nessa coisa, né. Agora, falei com o Chico, falei com outras pessoas

    que... (longa pausa) Em suma, essa sua pergunta eu acho que é a chance hoje em dia, por

    exemplo, porque o Fernando Henrique está com muita gente a favor dele, o povo a favor dele, nós

    a favor dele, os artistas estão querendo que ele... Votaram nele, né?

    Qualis - O clima, a atmosfera pode ser propício para um tipo de fortalecimento da música

    brasileira?

    Tom - Claro, o fortalecimento da música, da arte, de tudo. O Fernando Henrique me parece um

    democrata. Inclusive, já foi preso como subversivo. Eu conheci o Fernando Henrique em São Paulo,

    naquele tempo em que ele se candidatou a vereador, alguma coisa assim, deputado, não sei. Já

    me dava com ele. Já estava apoiando Fernado Henrique. Agora também, por exemplo, você vê, o

    nosso presidente Itamar tem a grandeza de fazer os troços direito. E agora ele está sendo acusado

    de namorar, de ir ao cinema com a namorada, ...que bota em risco a vida do povo, podem querer

    matá-lo e atingir algumas pessoas inocentes, né. (dando risada) O Itamar tem a grandeza de ser

    um homem comum, né. A grandeza de fazer os troços que tem que fazer.

    Qualis - Agora, interessante... Essa tua observação me remete àquela outra que você fez sobre o

    trabalho da imprensa mesmo. Pra mim parece que esse trabalho de cobertura é absolutamente

    supérfluo e não tem nada a ver com a realidade do país...

    Tom - Essa imprensa é a imprensa que não transmite os fatos. Por exemplo, agora eu lancei um

    disco novo chamado Antonio Brasileiro. A imprensa foi magnífica comigo, não tenho a menor

    queixa da imprensa, os críticos escreveram sobre o disco, e tudo mais tá ótimo. Quer dizer, não é

    toda a imprensa que faz isso não, é um certo tipo de imprensa. Eu não posso acusar a imprensa de

    uma maneira geral de deturpar os fatos. Agora, que aparece essas frasezinhas tal que ninguém

    disse e que depois são atribuídas a outras pessoas, isso aparece. Aparece esse tipo de fofoca, diz

    que eu me separei, que não sei o quê. Não dizem só de mim isso não, dizem de muitas pessoas.

    Tem um tipo de imprensa dedicada a isso. Agora, você pega a imprensa estrangeira, que me chega

    às mãos, a imprensa que normalmente eu não leio, então cidadãos que moram fora do Brasil me

    mandam essa imprensa. E você vê, eles têm uma atitude muito mais positiva em relação à arte,

    gostam da música, acham a música bonita, têm vontade de conhecer o Brasil. Esse Brasil que o

    Tom Jobim pintou como uma coisa melhor do mundo, e que certo tipo de imprensa quer trocar ao

    contrário, me bota no jornal morto. É um negócio... Eles devem achar isso bonito, né.

    Qualis - É como você disse, isso é o que vende.

    Tom - E ao mesmo tempo eles nunca falam mal dos poderosos, evidentemente. Quer dizer, quando

    eles desafiam a pessoa, eles vão desafiar uma pessoa, um sujeito fraco e doente, eles vão

    desafiar, eles vão chamar pra brigar. Eles não vão chamar o atleta pra brigar porque eles vão se

    dar mal, não vão chamar o lutador. Aí depois, quando for o concurso da música, eles vão chamar o

    atleta pra competir com ele na música. Mas na hora de bater, vão chamar um velhinho. Fica muito

    interessante, muito conveniente. É a inteligentsia, que nós costumamos chamar de burritsia

    brasileira. (risadas) Essa do João Ubaldo, eu tô te dando o copyright. Aquele que escreve pensando

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

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    que é a inteligentsia mas de fato é a burritsia.

    Qualis - Eu queria conversar um pouquinho, agora que a gente já passou...

    Tom - Tá ficando muito séria a entrevista. Talvez não seja o caso de fazer uma entrevista tão séria

    assim.

    Qualis - Vamos falar um pouco sobre música propriamente dita.

    Tom - (indo ao piano acender mais um charuto) Pois é, que é um assunto no qual ninguém fala.

    (Tom interrompe a entrevista para escolher umas camisas para as fotos, e volta falando sobre a

    natureza) Há sessenta anos que eu vejo o mico sagui pulando aí do galho...Essa floresta é muito

    cosmopolita, tem jaqueira índica, mangífera índica, mangueira, árvores da Índia, árvores e

    eucaliptos da Austrália. Ela não tem só plantas brasileiras.

    Qualis - Você está praticamente no coração dela aqui.

    Tom - (indicando a floresta ao lado do quintal) Bom, você entra aqui e essa floresta vai até o

    Grajaú. Tem bicho, tem paca, tem tatu, tem muito gavião, tem inhamu, tem uruta, capoeira, tem

    saracura, tem preguiça, tem esquilo, tem muito bicho, tem muito periquito, tem muito desses

    papagaínhos tipo maracanã... A minha paixão pelos pássaros é um pouco distante, entende,

    (rindo) eu não gosto de pássaro no colo. Os pássaros são bons soltos, voando, cantando, né, assim

    é que eles me divertem mais. Pássaro preso tire um pouco a... Um pouco triste...

    Qualis - Você disse que tem seus ídolos confessos como Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Guerra

    Peixe. Enquanto compositor, arranjador e orquestrador, será que hoje depois de tantas décadas

    você já se coloca no mesmo nível deles?

    Tom - Bom, eles foram ficando moços e eu fui ficando velho, você sabe, né. É como o retrato do

    meu pai em cima do piano. O meu pai era o meu velho, e hoje em dia eu estou muito mais velho

    que o meu pai. Meu pai morreu aos 46 anos, de modo que eu já posso ser pai do meu pai, né. É

    isso mesmo, a gente vai tendo nossos ídolos. Radamés Gnatalli, um homem generoso que ajudou

    todo mundo. Villa-Lobos, um gênio incrível. O Guerra Peixe era um orquestrador, compositor,

    nascido aqui em Petrópolis, morreu agora recentemente, muito amigo nosso. Ele trabalhou muitos

    anos em São Paulo também. Fazia orquestrações. Mas, sem dúvida, o Villa-Lobos é um vulto... Ele

    é um gigante... Ele ficou muito alto, ficou muito... Ficou um pouco sozinho na época dele. No meu

    caso não, eu estou cercado de grandes compositores, de muita gente com música popular. Quando

    eu comecei, a música popular era toda escreita e composta por pessoas que não sabiam nada de

    música. O compositor popular era praticamente analfabeto, alguns sabiam escrever as letras.

    Música ninguém sabia escrever.

    Qualis - Você teve uma formação erudita...

    Tom - Um bocado.

    Qualis - Você teve também aquela professora, a Lúcia...

    Tom - Lúcia Branco, que foi professora de Nelson Freire, professora do Jacques Klein, professora do

    Arthur Moreira Lima, minha professora, né. Você sabe, o Mário de Andrade disse, 'se você for um

    gênio faça música brasileira'. Porque em Hollywood já tem milhares e milhares de compositores,

    orquestradores, você não precisa ir pra lá.

    Qualis - E quanto às suas atividades no exterior?

    Tom - Eu não estou muito preocupado com isso. Não.

    Qualis - Atualmente como estão as coisas, pois amanhã (01/12) você está indo pra Nova York.

    Tom - É, eu tenho grandes convites, pra fazer grandes coisas em Nova York. Agora, a Kathleen

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

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    Battle, a grande cantora, a grande soprano negra, ela parece que quer gravar umas músicas

    minhas. Eu também tenho vontade de conhecer a Barbara Hendrix, que canta o Villa-Lobos. Essa

    Battle é soprano do Metropolitan Opera. Depois a Sony internacional quer que eu faça um disco

    com músicas minhas, tratadas assim com um pouco mais de orquestra, um pouco mais sinfônicas.

    O Jonh Hendrix tá querendo gravar comigo também, um grande saxofonista de jazz muito bom.

    John Hendrix, ele esteve aqui na homenagem que fizeram aqui, muito simpático, né. Em suma, o

    mundo tá cheio de coisas. Agora, por exemplo, sair do Brasil pra fazer a América e tal, como... Ah,

    isso já não dá.

    Qualis - Ainda falando sobre Villa-Lobos, ele sintetiza de uma certa forma a alma brasileira, assim

    como George Gershwin, Irving Berlin para os Estados Unidos. Você é um compositor que retratou a

    alma brasileira...

    Tom - Muito! Muito! Aliás o Villa-Lobos tem uma música chamada "Alma Brasileira". Porque o Brasil

    teve que ser inventado, entende. Não existia o Brasil. Tudo aqui é importado, tudo, o relógio, o

    gravador. E quando não importado, é copiado do original que vem de fora. E o resto mais é

    importado, o café é importado, a cana de açúcar é importada, o eucalipto é importado, os carros

    são importados, nós somos importados...Os índios são importados, vieram da Polinésia, né, com os

    zigomas salientes (ossos temporais), a plica mongólica (dobras ou rugas faciais), a zarabatana.

    Então, a Ilha Brasil, talvez, é uma grande ilha com as espécies muito diferentes do resto do

    mundo. Aqui você não tem animais do presépio de Jesus Cristo, não tem. Você não tem vaquinha,

    boizinho, galinha, ovelhinha, nada disso existe aqui. Tudo isso é importado. Aqui tem tamanduá-

    bandeira, tem gambá, tem preguiça, peixe-boi, entende, são animais realmente diferentes.

    Qualis - Essa tua admiração, por exemplo, por Villa-Lobos é uma identificação dessa busca

    incessante pela alma brasileira?

    Tom - Isso foi em outros tempos naturalmente, por que você tá aqui, o rádio toca música norte-

    americana. Você tem que ter alguma coisa que você ame, que você se identifique com a sua alma,

    com o fato de você ser brasileiro, com o fato de você nascer aqui nesse pindorama, terra das

    palmeiras debruçadas assim acima do Atlântico. Cheio de peixes, cheio de pássaros, de bichos, de

    índios, de tudo, né. Se eu tivesse nascido, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos,

    certamente teria tido uma educação musical, supondo-se que eu fosse músico, uma educação

    musical mais refinada, mais profunda, ou qualquer coisa. Mas eu não iria escrever música brasileira

    por que eu não seria brasileiro. Aí eu iria escrever valsas, mazurcas, escrever foxtrote, talvez eu

    estivesse escrevendo heavy metal.

    Qualis - Você que compôs mais de quatrocentas músicas...

    Tom - Dizem, dizem...Pelo menos umas cem se perderam. Que eu saiba, aí no arquivo talvez só

    tenham umas trezentas. Você vai perdendo no avião, vai perdendo...

    Qualis - Falando ainda sobre essa identidade brasileira...

    Tom - É possível que isso acabe, essa identidade. Com a mídia hoje em dia que bota todo mundo

    vendo, nós estamos vendo tudo ao mesmo tempo, né.

    Qualis - A simultaneidade...

    Tom - Pois é, a guerra na Bósnia, a guerra no Irã, o Iraque, os problemas dos Estados Unidos, o

    Oriente Médio, o problema do tráfico de drogas, o Brasil envolvido nisso com a passagem das

    drogas ao Brasil, né.

    Qualis - Essas coisas todas dificultam o trabalho, eu imagino, do artista em ficar em constante

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    contato com a sua própria raiz pra produção da sua obra, da sua música. Como é que você vê

    essas dificuldades em continuar mantendo contato com essa coisa brasileira, as raízes?

    Tom - Vai ficando cada vez mais difícil. Esse é um negócio que eu cheguei a conversar com o

    Vinícius, vai ficando cada vez mais difícil. Por que você destrói a Mata Atlântica toda, você destrói a

    floresta amazônica, quando chegar no poema do Villa-Lobos, você não vai entender porque não

    tem a Amazônia. Por exemplo, eu vejo no meu filho de 15 anos, como é que ele pode conhecer as

    qualidades de passarinhos? Ele não conhece. Ele não conhece os bichos, ele não conhece as

    árvores. Porque essas pessoas que aí estão nunca viram esse Brasil, esse Brasil eles não

    conhecem, eles conhecem o Brasil asfaltado, com o sinal vermelho, o guarda, a violência, a

    metralhadora, isso eles conhecem. Agora eles não conhecem a jacutinga, não sabem quando o

    murici floresce lá no alto da serra (árvores e arbustos que dão frutos), não sabem quando a

     jacutinga vai lá comer o coco da juçara. Eles não sabem o que é juçara, nem se a juçara dá coco,

    nem coisa nenhuma. Enquanto isso o pessoal, quando o outro fala de ecologia, começa a cortar

    mais depressa antes que apareça o fiscal, ou qualquer coisa que impeça a destruição. Porque toda

    arte é ligada ao seu tempo. A arte de Debussy é ligada ao tempo dele, a arte de Charlie Parker... A

    arte de Gershwin, aliás Gershwin falou isso 'o que eu escrevo é uma coisa ligada ao agora de Nova

    York'.

    Qualis - Por isso a música dele tem essa coisa viva de uma época.

    Tom - Exatamente, da Broadway, dos shows.

    Qualis - A tua música tem uma coisa muito viva de uma época do Brasil também.

    Tom - Ah, espero que sim. E como ficou chato ser moderno, né, 'agora serei eterno', diz o

    Drummond ao perceber a mudança das letras (dando risada).

    Qualis - Só pra gente encerrar a passagem do Villa-Lobos aqui na nossa conversa, como é que

    você vê o trabalho do Egberto Gismonti, ele é um outro cara que faz um trabalho orquestral,

    sinfônico, e ele tem uma inspiração muito profunda no trabalho do Villa-Lobos.

    Tom - Bom, isso eu não sei porque eu não conheço tanto o trabalho dele. Eu acho que ele fala na

    floresta também, nos índios.

    Qualis - Você é um compositor, um cantor, e o Gismonti é basicamente um instrumentista. Eu vejo

    dois músicos brasileiros que trabalham com uma mesma inspiração.

    Tom - Eu gosto muito do Gismonti e acho que a inspiração que possa vir do Villa-Lobos acho muito

    boa, muito válida, entende. É isso mesmo, nós temos que falar do Brasil. Porque pra fotografar o

    Pólo Norte tá cheio de gente lá. Então é isso mesmo. Eu conheço o Gismonti desde que ele chegou

    ao Rio de Janeiro, ele é um grande músico, um talento formidável.

    Qualis - Falando sobre música instrumental. O Brasil que tem essa tradição muito criativa e popular

    como Pixinguinha, Severino Araújo e a Orquestra Tabajara, e muitos outros. Existe uma coisa no

    Brasil de se valorizar a música cantada, mas até quando você acha que os nossos músicos servirão

    de fonte de inspiração para os artistas internacionais, enquanto aqui a preferência parece ser pelo

    que vem de fora?

    Tom - Houve um tempo no Brasil em que os maiores sucessos na rádio eram instrumentais como o

    Waldyr de Azevedo com o "Brasileirinho". Tocava o "Brasileirinho", que tocava no mundo inteiro.

    Qualis - O Jacob do Bandolim...

    Tom - O Jacob do Bandolim mais o Radamés... Mas, um ambiente um pouco mais erudito, né. O

    Waldyr de Azevedo era o delicado. Sendo que o "Delicado" dominou o mundo inteiro, tocou em

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    tudo quanto era lugar. Quer dizer, sempre houve essa coisa da música instrumental e da música

    vocal. A música vocal tem isso, tem a bela cantora, que é bonita, que tem a voz bonita, a Gal

    Costa, e as letras bonitas. Porque muita gente gosta de ouvir por causa da letra. Agora, por

    exemplo, se você pegar o disco Antonio Brasileiro, tem instrumentais lá. O "Meu Amigo Radamés"

    é todo instrumental. O "Radamés Y Pelé" são duas homenagens que eu faço ao maestro Radamés e

    ao nosso incrível Pelé.

    Qualis - Como é que surgiu a idéia de fazer essas instrumentais em homenagem ao Radamés

    Gnatalli?

    Tom - O Radamés é uma coisa formidável, a generosidade... O Radamés orquestrou a música

    brasileira toda. Fez muita música erudita muito boa.

    Qualis - Você o consideraria o maior ou um dos maiores arranjadores?

    Tom - Bom, eu não gosto muito dessa coisa de "o maior", eu acho que o raciocínio comparativo é

    falso. Frank Sinatra com Pavarotti, o Brasil com os Estados Unidos. Eu acho que as coisas são

    incomparáveis, entende. Eu vejo o Radamés como um homem que além de tudo... Porque é muito

    difícil você viver de música erudita, de música instrumental, se você não tem orquestra sinfônica.

    Como é que você vai fazer? Não dá pra fazer.

    Qualis - Uma tradição, uma estrutura no próprio país de desenvolvimento disso...

    Tom - Você vê a nossa orquestra aí, por exemplo, tá a perigo. Não tem verba. Parece que um certo

    pedaço do país se desenvolveu para um lado e por outro lado esqueceu. O problema das

    orquestras sinfônicas é que muitas orquestras sinfônicas fecharam no mundo por falta de verbas.

    Eu conheci gente que tocava na sinfônica e que saiu. Em suma, isso realmente é um problema. O

    governo tem que cuidar disso; o ministro da Cultura. O que é que eu posso dizer? Agora, a música

    instrumental aparece. Aparece nesse grande músico Egberto Gismonti. A música instrumental, por

    exemplo, lá fora leva uma grande vantagem. Ela não precisa da tradução da letra, das versões que

    geralmente são trabalho de terceira classe. Versão é negócio horroroso. A não ser quando é uma

    coisa bem feita. É tradutore e traditore, quer dizer tradutores traidores. Eles sempre traem o que

    eles traduzem, então eles contam uma outra história. E quando fica bom o som, perde o sentido. E

    quando o sentido fica bom, o som não fica bom. Então vira um xadrez... Então é muito melhor

    quando você pode ouvir a obra como ela foi feita. Como é a música americana, como a coisa que o

    Sinatra canta, a coisa que os Beatles cantam em inglês. Agora, imagina você traduzir tudo aquilo

    para o português. É uma tarefa ingrata.

    Qualis - Falando sobre música instrumental, você fez a trilha sonora do filme do Paulo César

    Saraceni, o Porto das Caixas...

    Tom - Instrumental, ganhei até um prêmio, uma estátua lá, de prata, não sei o quê, uma coruja de

    ouro, alguma coisa assim.

    Qualis - Como foi essa experiência de fazer trilhas sonoras?

    Tom - Eu sempre fiz muita trilha sonora de filmes brasileiros que nunca ninguém viu e nunca

    ninguém ouviu. Eu fiz O Porto das Caixas (1963), e fiz A Crônica da Casa Assassinada (1971), essa

    deu mais prêmios. É bonito e ficou bonita a trilha. Já passaram tantos anos que eu já posso dizer

    que é bonita a trilha. Eu gravei aquela trilha nos Estados Unidos com a Sinfônica de Nova York. O

    Paulo César Saraceni era o diretor do filme, quem escreveu A Crônica da Casa Assassinada foi o

    Lucio Cardoso. Depois disso fiz muita trilha sonora e recentemente fiz a trilha para aquele filme da

    Ana Maria Magalhães, como é que chama o filme? (perguntando a Gilda Matoso na sala)

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

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    Gilda - O filme chama Erotique, mas o episódio dela é baseado na Clarice Lispector, são três ou

    quatro diretoras.

    Tom - Eu sempre tenho feito música para o cinema. Eu fiz o Gabriela, Cravo e Canela, do romance

    de Jorge Amado, feito pelo Bruno Barreto, que tinha a Sônia Braga e o Marcello Mastroianni... A

    gente vai fazendo.

    Qualis - Você tem um método de escrever as composições para trilhas sonoras?

    Tom - Vendo o filme, né. Às vezes, por exemplo, o sujeito já tem o script pronto e você já pode

    trabalhar antes mesmo de ver o filme. Você trabalha antes, durante e depois, fazendo os acertos,

    as minutagens, aquilo tem que ser uma coisa precisa.

    Qualis - Mudando um pouco o rumo do nosso papo, faz um bom tempo que você vem denunciando

    e reclamando do absurdo do sistema de recolhimento dos direitos autorais no Brasil...

    Tom - Isso daí é um assunto que tem mil anos. Desde que eu me entendo, as pessoas estão...

    Quando você vê artistas, Dorival Caymmi com oitenta anos fazer show é porque ele está

    precisando de dinheiro. Quando eu faço show é que eu tô precisando de dinheiro. Ary Barroso

    fazendo show é porque ele não podia se manter com os direitos autorais, não podia ficar em casa

    tomando whisky. Não dá, não dá. Esse negócio de direito autoral, você precisa ter muita música, e

    também serem muito editadas. Os editores carregam 80% dos direitos, aí não dá.

    Qualis - Você já se envolveu num movimento mais direto e engajado?

    Tom - Eu não sou muito de andar. Já fiz passeata e essas coisas. Lá em casa todo mundo era

    socialista, mêu avô, meu padrasto, minha mãe. Lá em casa aquelas estantes de livros é tudo

    Engels, Marx e Lenin, né. Eu fui crescendo, eu fui ler aquele negócio, fui tentar entender aquilo.

    Essa geração minha, era toda uma geração de esquerda. Essa coisa do Brasil, 'ordem e progresso'

    misturado com o positivismo de Augusto Comte, e a crença que o comunismo e o socialismo seria

    a melhor solução para o Terceiro Mundo. Parece que a coisa não deu certo, não. O Villa-Lobos disse

    um pouco antes de morrer que 'a solução evidentemente para o Brasil, é o socialismo e o

    comunismo, mas infelizmente no momento eu não posso perder um mercado como os Estados

    Unidos da América do Norte' ele falou isso na televisão. Isso é muito engraçado porque ele não

    tinha mercado nenhum nos Estados Unidos (rindo). Isso é causado pela imprensa, aquele negócio

    do dinheiro, do dinheiro, porque quando o Villa-Lobos mais ou menos se mudou de Paris pra Nova

    York, aí os comunistas acharam ruim. Do berço da civiliza ção vai pra Nova York pra ser capitalista.

    E ele então, grande gozador, disse 'infelizmente no momento eu não posso perder um mercado

    como o dos Estados Unidos'. O mercado, coitado, do Villa-Lobos era apenas a "Bachiana n° 5", a

    cantilena da "Bachiana n° 5" (cantarolando a música). Com isso ele iria morrer de fome. Hoje

    gravaram lá no exterior mais alguma coisinha. Só não tem Villa-Lobos gravado aqui.

    Qualis - Falando sobre a bossa nova, um assunto inevitável, o que é que você guarda desse

    período? Os longos papos com Vinícius, algum porre específico, a sensação de ser cortejado por

    lindas mulheres, a loucura do João, ou alguma música especial que sintetize aqueles momentos?

    Tom - Ah, eu sei lá. É tanta coisa boa. Eu acho que é tudo isso aí que você disse. (rindo) Mas de

    porre a gente não se lembra quase de nada, né, tá tudo meio apagado. (estalando os dedos) A

    bossa nova, o jeito, o suingue, o balanço, a malandragem... Nova é a palavra mais usada na

    imprensa do mundo todo. Nova Gillette, a nouvelle vague, a new wave... E naturalmente aqui nós

    tentamos provar que a bossa nova não tinha bossa e que era velha. (rindo) É justamente o

    contrário da bossa nova. E também muita coisa sem ser bossa nova foi chamada de bossa nova. A

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

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    geladeira bossa nova, o presidente bossa nova, o presidente Juscelino Kubitscheck, a era bossa

    nova.

    Qualis - A bossa nova funcionava como uma espécie de trilha sonora para os acontecimentos da

    época.

    Tom - Exato. Essa palavra bossa já era usada pelo Noel Rosa, 'são bossas nossas' ele falava nisso.

    Qualis - Bossa na época era quase como uma gíria...

    Tom - A bossa é o seguinte, a bossa são as bossas cranianas. O crânio tem convexidades que

    correspondem a concavidades onde se encontra a massa cinzenta. Então o sujeito tinha a "pelota

    para o lado de cá", então dizia 'você tem bossa pra isso, tem bossa pra tênis, tem bossa pra

    cultura, tem bossa pra criminoso...' Aliás, essa palavra existe em inglês, a palavra boss, no sentido

    de protuberância. Não no sentido de chefe, de bass, do holandês. Boss no sentido de calombo, de

    bossu (francês), de Bossu de Notre Dame. É a bossa nova, bossu é o calombo.

    Qualis - Como uma proeminência?

    Tom - Exatamente. Uma coisa protunda é a bossa. Eu cheguei a pensar que a bossa vinha daquele

    boi que tem a bossa assim, que fica balançando. Mas a bossa é realmente as qualidades físicas,

    intelectuais, poéticas do cidadão que tem uma coisa como Noel Rosa tinha, uma bossa danada,

    suingue, uma ginga. Nos Estados Unidos eu vi em várias enciclopédias americanas, eles têm a

    palavra bossa nova lá... Aquelas conversas, um tipo de dança, um tipo de samba related to jazz,

    não sei o quê e tal. Porque a mentalidade americana é aquisitiva, quer dizer, lá toca a canção

     japonesa, como toca a canção mexicana, como toca a canção brasileira. Então quando o americano

    diz Cuban jazz, ele está se referindo a música cubana. Aí ele tá botando o jazz lá. Aí o crítico

    brasileiro pensa que o samba é jazz também porque o americano vai escrever Brazilian jazz. Aí o

    Tinhorão vai dizer 'aí, tá vendo, eu não te disse, é americano, é Brazilian jazz'.

    Qualis - Da mesma forma como baladas do Djavan, da Elis Regina ou do Ivan Lins, eles consideram

    como Brazilian blues.

    Tom - Brazilian blues, exatamente. Então isso vai causar uma barafunda (mistura desordenada de

    coisas) no crítico brasileiro, sobretudo nos que forem mais puristas, né. Aí o sujeito vai dizer que

    'piano não é um instrumento brasileiro, saxofone não é'. Eu vejo aí classificados, têm músicos, têm

    eruditos aí que tratam a música do Radamés a música de jazz, eles chamam de música de jazz.

    Porque eles usam o jazzband, usam o trombone, o trompete, o saxofone. Então é orquestra de

     jazz. Eles causam uma confusão que tudo vira jazz. Eu diria que o jazz vem do verbo francês jaser

    ( falar desmedidamente, com indiscreção). All that jazz, é tudo aquilo que jazz, ou seja, tudo

    aquilo que fornica.

    Qualis - Você é considerado por muitos como a própria personificação da bossa nova...

    Tom - Eu sei lá. Você sabe, eu não cuido desses assuntos. A bossa nova é a bossa dos campos de

    arroz. O músico bossa nova, ele chega cansado, suado na festa pra tocar. Ele se arruma todo e vai

    tocar, daqui a pouco ele tá sequinho e não está mais suado, tá bonito, tocando tudo certinho.

    Agora, já o outro músico que já não é da bossa nova, ele chega na festa todo arrumado, todo

    careta, e vai tocar, se despenteia todo e sua. É um processo completamente inverso. Um chega

    arrumado na festa e acaba desarrumado. O outro chega desarrumado e acaba arrumadíssimo - é a

    bossa nova. A bossa nova influenciou o mundo todo, todo mundo resolveu escrever bossa nova nos

    Estados Unidos. E os latinos lá resolveram escrever a bossa nova. Como se ela fosse uma dança,

    como se ela fosse uma conga, um mambo, uma rumba, entende.

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

    16/21

    Qualis - E a impressão que dá é que a cada ano que passa a bossa nova, pelo menos nos Estados

    Unidos e Europa, é uma coisa cada vez mais moderna.

    Tom - É, a bossa nova é...

    Gilda Matoso - Olha, tá aqui hoje no Jornal do Brasil, a quantidade de discos, falando exatamente

    sobre isso, que no Japão o último grito da moda é a bossa nova.

    Tom - Eu disse para um cara da imprensa, só pra sacanear, por que é que os japoneses gostam

    tanto da bossa nova? Ele me disse 'é porque eles tem bom gosto' (rindo). E o Caetano disse o

    seguinte, que eu achei muito engraçado, 'o Brasil precisa merecer a bossa nova, merecer pra poder

    ir à praia e casar com uma mulher bonita, fazer a casa, andar de barco. Tem que merecer a bossa

    nova, ele não pode só ficar gostando de coisas tristes, daqueles boleros chamados suicídios, não

    pode.'

    Qualis - Você acha que a bossa nova seria um tipo de antítese da dor de cotovelo da música da

    década de quarenta?

    Tom - Eu não digo antítese porque senão ficamos sempre nesse maniqueísmo. Eu acho que a

    bossa nova é bem mais positiva.

    Qualis - A bossa nova fala da dor de cotovelo e desses problemas como em "Lígia", por exemplo.

    Tom - É bossa nova "Lígia"?! Mas a "Lígia" não é bossa nova! As músicas que eu gravo o pessoal

    chama de bossa nova, não é característica. Tem inclusive bossa nova nesse disco (Antônio

    Brasileiro), tem o "Surfboard" com ritmo bossa nova, com uma introdução bossa nova, mas, por

    exemplo, "Meu amigo Radamés" não tem nada de bossa nova. É uma músoca que tem bossa e que

    é nova. Se não me engano são oito inéditas no disco de quinze faixas. Mas alguns encontraram

    menos músicas inéditas. Porque nós só conhecemos as músicas editadas, as músicas inéditas nós

    não conhecemos. Eu conheço Beethoven, Ravel, Bach, Charlie Parker, George Gershwin, mas são

    músicas editadas, né. E às vezes eles estão esperando que seja tudo inédito. Perguntaram ao

    Baden Powell: 'Escuta, o seu novo CD tem músicas inéditas.' Ele disse: 'São dezesseis inéditas de

    sucesso.' Bem, aqui também você faz a música um ano atrás, dois anos atrás, três, dez anos atrás,

    e (dizem) 'Música velha!' 'Ih, essa música tava na novela do ano passado ("Querida"), é uma coisa

    antiguíssima.' É

    uma música de uma ano, quer dizer, é um neném. Eu toco música aí nesse piano de trezentos

    anos.

    Qualis - Como é que você designaria a paternidade da bossa nova?

    Tom - (rindo)Eu acho que a bossa nova estourou lá fora com o negócio do João Gilberto. Quem

    mais? João Gilberto.

    Qualis - E a Nara, o Ronaldo Bôscoli e a turma da zona sul?

    Tom - Vieram depois. Eles eram inclusive mais jovens.

    Qualis - Então o João Gilberto foi o porta-bandeira da bossa nova?

    Tom - O João Gilberto, o Tom Jobim e aquele pessoal que estava lá no Carnegie Hall. E teve

    aquelas gravações, estourou o "Desafinado", estourou "Garota de Ipanema", estourou "Meditação",

    e tudo isso foi pra parada de sucesso. E depois foi gravada toda aquela bossa nova do Ronaldo

    Bôscoli com o ( Roberto) Menescal, o Carlinhos Lyra, todo mundo e muita gente boa ali. Aquele

    que andava com o Sérgio Mendes, o Durval Ferreira... Gravou-se muita bossa nova. Eu acho que

    foi isso que deu consistência ao movimento. Inclusive esse negócio de chamar a bossa nova de

     jazz, isso tudo era um pouco revoltante pra mim. Eu acho que foi bom porque senão teria

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

    17/21

    desaparecido. O americano aí escreveu tudo, botou na Library (biblioteca) do Congresso, aquele

    negócio. Eu digo, segura os arquivos implacáveis. Então tá lá, bossa nova. E você tem a música

    escrita, tem alguma coisa. Por que aqui fica esse negócio, era e agora não é. Se você pegar aqui

    esse livro que eu te mostrei, aí tem escrito o fiasco da bossa nova nos Estados Unidos. Fiasco, uma

    vergonha no Carnegie Hall, falta de organização. Mas não adiantou eles escreverem nada disso

    porque a bossa nova já tava gravada. O pessoal do cool jazz, o pessoal da West Coast (Costa

    Oeste americana) já tinha gravado a bossa nova. Tá tudo escrito aí, uma coisa pavorosa. Quer

    dizer, o inimigo do brasileiro parece que é o brasileiro mesmo, né. Não tem outro. O inimigo do

    brasileiro não foi o imperialismo americano... (rindo) Não é nada disso não.

    Qualis - Você ratifica aquela famosa frase de que "o Brasil não conhece o Brasil"?

    Tom - É. Isso é um samba do Aldir Blanc com o Maurício Tapajós. (cantarolando o samba) Sabe

    como é que eu vejo o Brasil? Esse Brasil que eu não vejo aqui na televisão, embora eu tenha vinte

    canais aqui? Eu vejo o Brasil nos Estados Unidos... Aparecem os índios, aparece eles caçando, eles

    comendo macaco, aparece tudo. O Brasil aí na fronteira com a Venezuela, na fronteira com a

    Colômbia, as pessoas andando no mato com flecha envenenada, com zarabatana. Aqui eu não vejo

    isso. Aqui não tem índio.

    Qualis - A CNN mostra uns pedaços do Brasil que é impressionante.

    Tom - É, pois é, exatamente. Mostra as queimadas, o fabrico do carvão, a situação da Amazônia.

    Coisas que a gente não vê porque eu tô aqui vendo outras coisas, passa a novela da Globo... Aí

    você vê muita coisa que tá acontecendo mesmo, aqueles pobres índios, você imagina, andando no

    mato e carregando filho nas costas, sem agricultura de espécie nenhuma. Quem é que conhece

    esse tipo de coisa? Ele vive da caça, do palmito, da fruta e da pesca, andando pelo mato. Lugares

    maiores.

    Qualis - Como é hoje o teu relacionamento com o João Gilberto? Ficou algum ressentimento?

    Tom - Não. Eu não sei porque sai na imprensa sempre... Olha, aí nesse livro grosso onde se cria

    ressentimento... Eu não conheço nenhum ressentimento do João. Acho que pelo contrário, o meu

    trabalho com o João foi um trabalho muito positivo e que rendeu frutos maravilhosos pra música

    brasileira. (um pouco indignado) Não vejo nada disso. Mas você só encontra aí (apontando para o

    tomo de imprensa) o ressentimento, a mágoa, eu não sei do que é que eles estão falando. Mas isso

    tá cheio disso aí 'vamos ver se é possível juntar os dois', o negócio do concerto da Brahma. Eu não

    sei o que é isso não. Realmente a história passou pra imprensa, não sei o que eles querem dizer

    com isso. Eu acho que o meu trabalho com o João Gilberto é uma coisa que deu frutos, entende,

    foi uma coisa fecunda e muito gravada, muitos discos. Mesmo o que nós gravamos aqui, os discos

    foram todos editados nos Estados Unidos. Coisa que raramente acontece, você fazer um disco aqui

    e ele ser editado lá nos Estados Unidos. O que acontece é outra coisa, lá eles gravam os discos

    deles e consomem os discos deles. Os discos brasileiros são discos brasileiros que chegam lá,

    conforme foram gravados aqui. Do Caetano, do Chico Buarque... Mas são discos made in Brasil.

    Não é como no caso do João Gilberto, o disco made in Brasil foi feito nos Estados Unidos. Aquilo

    não é uma música gravada nos Estados Unidos, é uma música que foi gravada aqui e foi reeditada

    na América (do Norte). Então eu só vejo motivo para o João gostar desse nosso trabalho, só vejo

    motivo para o Tom gostar desse trabalho, né. Não vejo motivo nenhum para ressentimentos, nem

    mágoas.

    Qualis - Isso é um ruído de comunicação?

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

    18/21

    Tom - A comunicação faz muito ruído e não se comunica. As máquinas estão cada vez mais

    velozes, e a informação não tem porque o sujeito... Aparece essa porção de invenções. É o

     jornalismo criativo. O jornalismo formador de opinião. Eles vão formar a opinião e dizer que o

    artista é rico, que não sei o quê. Mas isso é a vontade do cara que escreve de ficar rico. O artista,

    ele tem vontade de outras coisas que não tá saindo na reportagem. Eu não posso falar sobre João

    Gilberto pois há anos que eu não tô com o João Gilberto. O João Gilberto outro dia esteve aqui em

    casa. O João Gilberto é um homem de hábitos monásticos, é um homem recluso, um homem do

    claustro. O João Gilberto não sai, não vai no restaurante. A vida de João Gilberto é diferente.

    Qualis - Ele é uma pessoa introspectiva.

    Tom - Bastante.

    Qualis - Você é uma pessoa extrovertida, né?

    Tom - Talvez, por força das circunstâncias. Porque eu quando era garoto, eu gostava de subir

    numa árvore e ficar quieto lá em cima. Gostava de subir no telhado... Tinha um pouco um caráter

    meditativo. E hoje em dia naturalmente tudo isso foi bagunçado pela constante... E hoje em dia

    inclusive tá difícil de trabalhar porque é entrevista o tempo todo, né. É o preço da glória. Preço da

    Glória, do Flamengo, do Botafogo, Copacabana, de Ipanema, Leblon. O sujeito me perguntou lá no

    avião 'qual é o preço da glória'. Eu disse 'deve estar semelhente ao preço do Flamengo'.

    Qualis - Você falou dessa coisa de falta de tempo, do trabalho todo...

    Tom - É você vai ficando muito aperreado disso tudo.

    Qualis - Você está num momento da tua vida bastante produtivo ainda, e você já produziu muita

    coisa e escreveu a história da música popular brasileira...

    Tom - Exato, eu acho que já posso parar, né?

    Qualis - O que você espera da tua vida e qual o teu plano para o futuro?

    Tom - Descansar, comprar uma bengala, uns óculos novos (rindo) pra poder ver as moças de uma

    distância oficial.

    Qualis - O que move um veterano como você a gravar, lançar novos discos, viajar pelo mundo e

    atender jornalistas como eu que fazem sempre as mesmas perguntas?

    Tom - Não, as tuas perguntas estão um pouco diferentes. Mas certamente o que move é que têm

    essas músicas bonitas, né, que foram feitas e foram movidas pelo amor. Ninguém pensou em

    dinheiro e nada disso. A gente era pobre mesmo e fez essas músicas, porque eu gostava de uma

    garota, ou porque achava que o mar tava bonito, o céu. Então nós tínhamos outras razões pra

    viver. E depois, naturalmente que essa coisa foi tomada pelo povo brasileiro. Essas músicas

    também são músicas que nós acreditávamos locais. Quer dizer, quando eu fiz essas músicas eu

    achei que não ia sair de Ipanema, achei que isso ia chegar em Copacabana.

    Qualis - Vocês não tinham pretensão de 'vamos atingir São Paulo e as outras capitais'?

    Tom - Não, nada disso. 'Vamos atingir São Paulo', essa conversa já me dá uma preguiça. 'Vamos

    fazer os Estados Unidos', 'made in America', 'to make America', isso me dá um cansaço invencível.

    Eu nunca teria ido aos Estados Unidos se o Itamaraty não tivesse me obrigado a ir aos Estados

    Unidos. E eu nunca teria tentado ir a América, uma coisa dificílima. Sair daqui depois de grande,

    sem falar inglês, tentar a vida, tentar o quê? Ser o quê? Sapateiro, pianista... As profissões são

    poucas, ditador, carteiro, soldado. O sábio declarou ao jornal que ainda falta muito para o mundo

    adquirir um nível razoável de cultura. Até lá felizmente estarei morto. Aí vai ter muito mais fumaça

    e tudo, né. De que adianta você pagar milhões de impostos e morar numa cidade que você não

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

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    pode respirar? Que imposto é esse que você tá pagando? São as grandes cidades, né?

    Qualis - No movimento espontâneo da bossa nova vocês não tinham nenhuma pretensão...

    Tom - Uma música como "Desafinado" é uma música que nenhum cantor quer cantar. Porque ele

    vai ser chamado de desafinado.

    Qualis - Isso era um atestado da desafinação?

    Tom - E o sujeito escreveu na imprensa, 'João Gilberto é desafinado mas tem uma voz muito

    bonitinha'. (risadas) Agora, acontece que o João Gilberto não é desafinado.

    Qualis - Assim como estranhavam o violão dele também...

    Tom - Que nada! O violão do João é uma coisa clássica. Porque a grande coisa do revolucionário do

    moderno é que ele vira clássico. Como Debussy virou um clássico. O Stravinsky foi dar uma

    conferência em Harvard, ele já estava meio velho, e ele chegou lá, tinham aqueles alunos jovens.

    (Um deles disse) 'Maestro, o senhor fez uma revolução completa na música'. Ele pega um objeto

    na mesa (Tom pega um objeto na mesa) e disse: Ólha, meu filho, uma revolução completa é isso.

    (girando o objeto em 360 graus) Porque se você fizer meia revolução, aí fica tudo de cabeça pra

    baixo, é o pau-de-arara. A revolução completa são 360 graus, volta tudo para o mesmo lugar! O

    cara vai pensar que vai revolucionar botando de ponta-cabeça. Aí fica tudo ao contrário.

    Qualis - O Dorival Caymmi falou que a maior ambição dele seria compor um tipo de música que

    ficasse na memória do povo, e que passado o tempo todos esqueceriam o nome do compositor

    mas não a música. Como o folclore. Você acha que é preciso estudar muita música e conhecer a

    alma do povo pra alcançar uma simplicidade absoluta? Como fica a intuição e a técnica?

    Tom - É claro que tem pessoas intuitivas que nunca estudaram nada e que fazem canções lindas.

    Existem pessoas que não estudam e nascem sabendo fazer música, sabendo desenhar, sabendo

    qualquer coisa. Sem dúvida. Agora, é evidente que se você entrar no mundo da música, no mundo

    do cinema, você vai ter que ter lápis e papel pra poder escrever uma coisa pra você se situar. Eu

    acho também que certos músicos intuitivos, eles nunca quiseram estudar música com medo de

    perder a bossa. Iriam ficar assim muito quadrados, muito rígidos. Ficaram sempre de olho no

    balanço, na ginga.

    Qualis - Como é que você solucionou isso o tempo inteiro?

    Tom - Ah, eu sou um mestiço de popular com erudito. Sou um eruditinho, né. Eu sempre falei mal

    de mim, mas com moderação. O pessoal aproveitou pra exagerar um pouco. (risadas)

    Qualis - Você definiria uma linha entre o erudito e popular?

    Tom - Não, eu não defino linhas de fronteira entre a música popular e a música erudita. Inclusive

    Chopin, Villa-Lobos, está cheio de temas populares dentro da música erudita. Essa divisão é falsa,

    não leva a nada também. Certas pessoas gostam de dar nome às coisas. E dar nome às coisas

    impede a compreensão. Eu chamo Maria de Maria e aí penso que conheço Maria. Mas Maria é uma

    outra coisa. É essa coisa de fazer enciclopédia, botar todos os nomezinhos lá. Quando aparecer um

    nome novo, fazer mais um volume pra completar a teoria. Catalogar, né. O que acontece na

    realidade, Walter, é o seguinte, é que a bossa nova ficou tão famosa que agora tudo que eu faço

    eles chamam de bossa nova. Mas não é bossa nova. Ou então é bossa nova, mas não é aquele

    sambinha bossa nova do João Gilberto. Não é isso. É uma coisa que tem bossa e é nova. Só que

    não é a bossa nova. A bossa nova, vamos dizer, é uma coisa que ficou rotulada mesmo.

    (cantarolando) 'Dia de sol / festa de luz / e um barquinho a navegar'. Então ficou o barquinho, o

    barquinho é a bossa nova. O "Desafinado" é bossa nova. "Garota de Ipanema" é bossa nova.

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    Agora, você pega esse disco Antonio Brasileiro, o "Samba de Maria Luiza" não é bossa nova, o

    "Meu Amigo Radamés" não é bossa nova, "Radamés Y Pelé" não é bossa nova. Mas eles chamam

    de bossa nova. Americano vai chegar lá e dizer 'the bossa nova, não sei o quê'. O papa da bossa

    nova... Vai chamar o João Gilberto de papa da bossa nova. Mesmo que João Gilberto grave

    Gershwin, como já gravou, né. (cantarolando) 'It's wonderful...' Eles vão dizer que é bossa nova. É

    por causa da força e repetição das palavras. Aí, ficam repetindo, repetindo, repetindo... E falaram

    que a minha banda era nepotista, que havia o nepotismo e a inadimplência. Até hoje estão falando

    isso. Nepotismo é um sujeito que é funcionário do governo, e bota pra trabalhar os sobrinhos, os

    netos, os parentes... Não é nada disso. Na minha banda eu contrato quem eu quiser. Contrato o

    cachorro que estiver passando na rua, eu contrato ele pra gravar comigo. Não tem nada de

    nepotismo. Mas aí fica repetindo, nepotismo, nepotismo, nepotismo... Aí o sujeito vai falar 'olha, a

    banda do Tom Jobim, é nepotista'. E quanto as famílias que estão lá não é só a família Jobim, é a

    família Caymmi, a família Morelenbaum. Estão esquecendo das outras porque tudo leva a uma

    idéia, só que cria aquele nazismo, aquele troço inflexível.

    Qualis - O fato de você trabalhar com a tua e as outra famílias significa uma facilidade de trabalho?

    Tom - É, claro. Eles estão mais perto. O pessoal da minha família tá aqui em casa, então eu não

    preciso ir lá no Meyer. O Tião Neto, por exemplom, o contrabaixista, é de Niterói. O Paulinho Braga

    é mineiro de uma cidade chamada Guarani, ali perto de Juiz de Fora. Então, eles vêm de mil cantos

    do país. O Danilo Caymmi é filho de uma mineira de Piqueri, o Dorival Caymmi que é baiano. Você

    tem um espectro amplo.

    Qualis - É a amizade entre as pessoas...

    Tom - Claro, claro. O Danilo, por exemplo... Esse pessoal todo da banda. Essa banda é uma banda

    didática. Eu aprendo muito com eles, e eles aprendem comigo. Eu vi o Danilo nascer, né. Todo

    esse pessoal, eles eram criancinhas. Esse pessoal da banda são grandes músicos evidentemente. E

    as garotas também. As garotas têm sofrido mil críticas.

    Qualis - Você já tinha usado um naipe de vocais femininos em Passarim...

    Tom - Eu não gosto, por exemplo, de ficar sozinho, cantando sozinho. Não gosto de ficar em pé

    num palco com vinte mil pessoas me olhando. Acho essa situação muito desagradável. O vocal nas

    vozes é justamente o que cria a harmonia, que cria tudo. O coral é uma coisa sinfônica. Mas eu

    acho que o pessoal fala negócio de mulher, não sei o quê, é por outros motivos. (rindo) Eles estão

    com a cabeç em outras coisas.

    Qualis - Motivos menos musicais.

    Tom - É, motivos menos musicais. Essa leitura é estranha, né. E você vê, a Paulinha Morelenbaum

    canta muito bem, já gravou o disco dela. A Maucha canta muito bem. Esse disco você vai ver no

    exterior como eles vão elogiar as garotas.

    Qualis - E tem essa coisa do Quarteto em Cy que é fantástico...

    Tom - Eu gravei recentemente com elas. É porque esse negócio de dizer que o Tom Jobim não

    grava há sete anos, tô todo dia gravando com o Edu, com o Chico Buarque, com o Quarteto em Cy,

    Frank Sinatra. Mas só que isso não é muito mencionado porque eles querem saber do disco, como

    é o disco... Músicas inéditas, ou você não faz mais nada. 'Acabou, acabou, agora felizmente

    acabou'. Eu encontrei um sujeito na rua que falou assim: 'O Vinícius, ele não faz mais nada', e ele

    tava contente.

    Qualis - É como dizem do Dorival Caymmi, que ele é um cara que não sai da rede, que não compõe

  • 8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista

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    mais nada...

    Tom - Não sai da Rede Globo. (risadas) O Dorival... Você acha que um sujeito aos oitenta anos tem

    que compor? Perguntou ao Villa-Lobos uma moça que era mal paga, estudava na Puc jornalismo,

    perguntou ao Villa-Lobos que tava morrendo: 'Maestro, o que o senhor está compondo agora?' Ele

    disse: 'Agora eu estou decompondo' (gargalhadas). Mas porque essa obrigação de compor sempre?

    Eu nunca entendi isso bem. E as músicas inéditas, eu vou mantê-las inéditas pra que ninguém

    possa saber. Ninguém possa achar nada. Senão eles acabam pondo as músicas obscenas, os hinos

    do clube de futebol, acabam botando tudo, fazendo disco, você sabe. Os poemas eróticos do

    Drummond, por exemplo, eu não sei se ele gostaria... Não sei, duvido. E depois só se vê bem com

    o coração. O que acontece é que fica esse negócio de 'Olha lá ele! Tá com uma barriga! A roupa...O

    chapéu tem uma aba curta!' Não adianta. O robe de chambre do Wagner se era púrpura ou se era

    roxo. Fica exatamente o que não é, o que não interessa.

    In: http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas_6.htm