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8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
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Revista Qualis
Tom Jobim
a última entrevista
Rio de Janeiro - Jardim Botânico
30/11/94 - Quarta-feira
Das 10h30 às 13h20 - manhã ensolarada
Repórter - Walter de Silva
Fotógrafo - Carlos Mancini
Desde a primeira semana de novembro eu estava aguardando uma oportunidade para a entrevista
com Tom Jobim. Ligações frequentes para Gilda Mattoso, no Rio, empresária e amiga pessoal dele
e da família, e para o Marquinhos Vinícius se sucederam. Como editor, seria prudente não me
incumbir pessoalmente da entrevista, exatamente para não me sobrecarregar na parte executiva
da editoração de todas as matérias da edição - um pouco a contragosto, talvez. Havia pedido então
ao amigo e jornalista Marcia Gaspar que se incumbisse da honrosa missão. Nos dias de espera,
conversávamos sobre o Tom e o seu último e excelente álbum. Uma primeira data foi marcada
para a terça-feira do dia 22 de novembro, mas não houve nenhuma ratificação e assim a entrevista
não aconteceu. O silêncio de vários dias que se seguiram levou o Marcio Gaspar a achar que a
entrevista poderia não sair. Mas da minha parte me recusava um pouco a contar com essa
possibilidade.
No dia 29 de novembro, me encontrei com o Marcio na BMG-Ariola para uma entrevista com uma
banda da Austrália, Frente! Depois de discutirmos algumas alternativas para o assunto em
questão, o Marcio Gaspar foi embora e alguém me ligou na gravadora dizendo que a entrevista
com Tom estava marcada para o dia seguinte às 10h30 em sua casa no Jardim Botânico. Era a
última chance pois no outro dia, 01/12, Tom partiria para Nova York. Rapidamente, depois do
almoço, telefonei ao Marcio que me disse que não poderia fazer a entrevista por compromissos
profissionais no dia seguinte. Admito que, no fundo, isso me deixou bastante feliz pois eu mesmo
decidi entrevistar Tom Jobim.
O que fazer? O tempo era curto. Reuni todo o material de imprensa que havia coletado nos últimos
tempos, livros, biografias e muitos discos. Passei na casa do Marcio que havia preparado algumas
perguntas. Eu sabia que teria que fazer uma pauta definitiva. O mais sensato me pareceu
mergulhar nos discos de Tom sem me preocupar em formular nenhuma pergunta para a pauta da
conversa. Em casa, deliciei-me reeescutando tudo o que pude madrugada adentro. Dormi um
pouco, acordei bem cedo e comecei a ler tudo o que tinha em mãos pensando na entrevista. No
táxi, no avião e no bar do Galeão, pautei o máximo de perguntas possíveis, editando-as para um
suposto direcionamento da entrevista.
Mas, quase chegando à casa de Tom, tive um pressentimento muito forte de que eu deveria me
prender o menos possível nas diversas perguntas que tinha preparado. Já em sua casa, em nossa
primeira conversa, antes da enrevista, isso me pareceu a coisa certa a fazer. Tom não era um
homem que esperava perguntas. E acredito que, no fundo, talvez ele nem gostasse delas. Ele não
era uma pessoa que se entrevistasse, mas sim alguém com quem se poderia ficar ali conversando
ao sabor de seus pensamentos de multidirecionalidade própria dos grandes pensadores, gênios e
mestres. Senti que muitas perguntas jamais sairiam ali das minhas anotações, como de fato
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aconteceu. Muitas teriam de ser improvisadas. Era preciso a todo custo deixar Tom completamente
confortável em seu próprio timing, no aconchego de seu lar, e fazer apenas pequenas intervenções
que somente tentariam conduzir de alguma forma a conversa para os caminhos que na verdade ele
mesmo escolhesse. Como de fato, felizmente aconteceu.
Sentado ali no sofá a seu lado, pude notar seus gestos largos e vagarosamente generosso, como
se estivesse a todo momento abraçnado tudo o que estivesse a sua frente. As mãos eloquentes
mantendo os braços sempre abertos reforçavam o calor da hospitalidade dos agradáveis momentos
em que passei em sua companhia. Um anfitrião nobre. Um gentleman absoluto. Um homem em
estdao de pura iluminação. É importante que se diga aqui que, além de um dos maiores
compositores e maestros do Brasil, de todo o planeta e de todos os tempos, Tom Jobim foi um dos
maiores pensadores de seu país e de sua época. Tom pertence ao sumo dos maiores e genuínos
intelectuais do Brasil.
Nesta longa entrevista, talvez uma das maiores de sua carreira (48 laudas ou 67.258 caracteres),
ele faz um exercício profundo de reflexão sobre o Brasil em todos os seus aspectos. Não apenas a
conservaçnao ecológica, mas o trabalho da imprensa, o papel dos políticos, a função da crítica, a
preocupação com a dignidade e qualidade de vida do povo brasileiro, a paixão pela música, pela
palvra, pela poesia, pelos livros e dicionários, os amigos queridos, a família adorada, o carinho
pelos animais, e o amor supremo pela vida. Tom é de uma universalidade complexa que
transborda simplicidade, concisão e transparência. Nos momentos de análise rigorosa e aguda, ele
nos surpreende com seu humor sutil, certeiro e maroto. Durante a entrebista, sentado a meu lado
no sofá, mudando-se de lugar, andando despreocupadamente pela sala, ou fumando com fervor
seus charutos, ele faz da fala o instrumento de seu espírito - o delicado tom da voz, o tom grave e
incisivo da voz, e as gostosas gargalhadas.
Ao transcrever as duas fitas cassete gravadas durante a entrevista para o papel, optei pela
fidedignidade absoluta do fato histórico e jornalístico. Preservo assim ipsis litteris todas as frases
inconclusas de Tom, e todos os deliciosos maneirismos de sua fala. Ficamos todos assim
abençoados por esse testamento verbal do "maestro soberano" da música e do pensamento. Tom
Jobim para todos.
No comecinho da tarde, ao nos despedirmos, Tom ainda gritou pra mim da copa onde almoçava
com a família, enquanto eu descia as escadas: "Walter, não se esqueça de colocar na tua matéria
que tudo isso é trabalho! Tudo isso é trabalho! Não se esqueça!" Claro, Tom, tá aqui o teu pedido.
Tudo isso é trabalho.
Walter de Silva
Qualis - Fala um pouco da sua história.
Tom Jobim - Quando eu era garoto, eu passava as férias em Leme. Tinha aquela mata, aquele
jequitibá, aquele pau-de-abraço... E a terra roxa com café e tudo. Leme, ali perto de Águas de Rio
Claro, Pirassununga. Então, em 1932 a polícia pegou meu avô, e eu era pequeno, né, eu tinha
cinco anos... Pegou meu avô e levou pro fundo da baía de Guanabara, onde tinha um velho navio,
onde eles botaram os paulistas todos no porão.
Qualis - O seu pai era gaúcho?
Tom Jobim - Meu pai era gaúcho de São Gabriel. E o meu avô era paulista. A minha mãe era
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carioca. E eu nasci na Tijuca. Mas por acaso...Eu nasci na Tijuca por acaso porque faltou grana na
família. Eles se mudaram, porque eles moravam em Copacabana, mas foram pra Tijuca pagar um
aluguel mais barato, portanto eu nasci lá. Mas no ano que eu nasci eu já fui pra Ipanema. E
Ipanema tinha aquelas dunas de areia, não tinha nada, tinha água limpa.
Qualis - Deveria ser maravilhoso...
Tom Jobim - Ipanema é um nome que vem de São Paulo. Isso pouca gente sabe porque o pessoal
aqui... Ipanema quer dizer água ruim... Porque tem certos rios que são ipanema, como é que é?
Eles têm, às vezes, água bonita, limpa e tudo, mas não têm alimento, não têm comida, então fica
aquele rio sem peixe. Então ele se chama ipanema. Coisa que absolutamente não acontecia aqui.
Aqui tinha peixe pra você jogar fora. Essa lagoa (Rodrigo de Freitas) se chamava Sacopenapam,
que quer dizer uma parada de socós.
Ipanema é o seguinte... O Barão de Ipanema, paulista da nobreza rural... Existe também uma
microrregião rural em Minas Gerais chamada Ipanema, que deve ser por causa de um outro rio que
não seja muito bom de peixe. Mas então o Barão de Ipanema saiu lá de São Paulo, veio pra cá e
comprou uma fazenda aqui na beira da praia. E essa fazenda, por causa do Barão de Ipanema,
ficou sendo chamada de Ipanema.
É por isso que tem tanto paulista dono de apartamento em Ipanema. Aqueles apartamentos todos
são de paulistas. E paulistas ricos, né. Bom, não é só paulistas mas boa parte são dos paulistas.
Muitos apartamentos estão fechados, inclusive. O sujeito é rico e só vem quando decide tomar
banho de mar. Então é essa mais ou menos a história de Ipanema.
E o barãozinho de Ipanema, que está vivo até hoje, deve ser bisneto do Barão de Ipanema, bisneto
ou tataraneto, é o nosso amigo que bebia lá no Veloso com a gente sempre. Que se tornou aquele
bar "Garota de Ipanema". Ele é o barãozinho: (recordando) 'Ô barãozinho, vamos tomar chope,
tomar whisky...' Ele é Barão de Ipanema e tem essa ascendência em São Paulo. Como sempre,
tudo vem de São Paulo, os automóveis, o café...
Qualis - Dizem que você teria proferido uma frase que poucos sabem se você falou ou não, que "a
melhor saída do Brasil é o aeroporto do Galeão". ( Tom se diverte e dá uma gargalhada.) Depois
disso você foi morar fora do país, voltou e chegou a declarar uma certa decepção com o descaso
com que a imprensa brasileira te tratou...
Tom - Hoje eu li no jornal O Globo que a Itália me escolheu pra ser homenageado em Roma... (
lendo o jornal) ' Tom Jobim será homenageado no Festival de Jazz de Perugia, né, Itália, em julho
de 95. A decisão foi tomada ontem em Roma...' Você leu, né? ( lendo) '... por Carlo Pagnota,
realizador do evento, o maior do gênero hoje na Europa. Tom tem sido elogiado pela crítica
italiana, que considerou "Fly me to the moon", faixa que ele canta com Sinatra, o melhor trecho do
novo Duets, o novo disco...'
Qualis - O que você diz a respeito disso?
Tom - Ah, eu fico bastante satisfeito, né. Aliás a imprensa estrangeira tem uma atitude bastante
positiva com relação a mim, né. Você vê os músicos de jazz vieram aqui e fizeram uma bruta
homenagem ( referindo-se ao Free Jazz), depois nós fomos à São Paulo. Isso inclusive está
relatado no Le Monde que fala da apresentação lá em São Paulo. ( mostra a matéria) Isso foi um
cidadão que mandou da França pra mim, ele teve a gentileza de mandar da França pra mim.
Qualis - Você falou dessa coisa da atitude da imprensa estrangeira que eles realmente fazem um
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trabalho de cobertura. Como é que você vê o trabalho da imprensa hoje no Brasil e fora daqui?
Tom - Essas coisas que você me perguntou, que você me falou, da... ( longa pausa). As notícias
parece que hoje em dia... Já me falaram isso várias vezes que uma coisa inusitada vende mais
jornal do que uma verdade, entende? Não adianta você falar a verdade porque sai uma outra
coisa, né. Então, por exemplo, o cara que estava conversando comigo falou, ' se o cachorro morder
o homem, não sai no jornal porque é uma notícia muito boba. Agora se um homem morder um
cachorro, aí já fica muito melhor, né.' Então quer dizer, a imprensa tem usado muitas vezes coisas
que jamais se passou. Muitas vezes essas frases que dizem que é do Tom Jobim, eu jamais disse
isso, como a saída para o músico brasileiro é o Galeão". Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu
acho que tem grandes músicos vivendo muito bem aqui no Brasil, cantores, cantoras, fazendo
muito sucesso aqui no Brasil, né. Você não precisa ir para o Galeão para... Não precisa sair do
Brasil.
Agora muita coisa que se diz assim, 'o Tom disse', é invenção. O Tom disse, o Tom fala mal do
Brasil, vírgula, no exterior, isso além de ser uma maldade incrível... Por que é que eu falaria mal
do Brasil? Por que é que eles não dizem que eu falo mal da Tchecoslováquia, da Lituânia, né?
Porque eu falo mal do Japão. Não, eles estão sempre interessados em botar o brasileiro contra o
Brasil. Pelo contrário, eu deveria ser criticado pelo fato de ter descrito em minhas músicas um
Brasil paradisíaco. Como diz o Sérgio Buarque de Hollanda, 'a visão do paraíso'. Quer dizer, é essa
visão que eu tenho nas músicas. Eu recebi muita carta do exterior de gente que ia se suicidar e
que disse 'olha, eu não vou me suicidar porque escutei essa música sua e acho que a vida vale a
pena', entende, e coisas assim. Coisas muito positivas. Eu, por exemplo, não iria falar mal do Brasil
porque eu não creio que isso venda disco. Se eu falasse mal do Brasil o estrangeiro ficaria
embaraçado, ficaria perplexo. Você chega, você é brasileiro ( rindo), então vai pra Nova York...
Isso de fato não se deu. E as coisas que saíram no jornal eles foram torcendo, torcendo pra
fabricar a calúnia sempre, né.
Qualis - A que você atribui esse tipo de distorção do trabalho da imprensa brasileira?
Tom - Isso é sempre assim, olha... Eu não acho que isso seja nenhuma coisa especial comigo, eles
fizeram isso com o Villa-Lobos, com Oscar Niemeyer, Portinari, com Mario de Andrade... Então se
você fizer alguma coisa, as pessoas começam a ser perseguidas. O Brasil persegue os homens de
bem. Basta você fazer o seguinte, basta você pegar a crítica estrangeira... O estrangeiro não tem
motivo pra ficxar zangado comigo, ele acha a música ótima, se diverte, compra um disco e fica
feliz, claro. Agora, aqui vem um negócio do... Eu vou te dar um exemplo. ( levanta-se e pega na
mesa um pesado tomo com matérias da imprensa brasileira) Quarenta anos de Tom Jobim na
imprensa. ( Ri e balança na mão o pesado compêndio) Você imagina pra carregar isso, né. Isso vai
de 52 a 92. Você vê que o canteúdo do negócio é todo negativo, entende?! É a negação do troço!
Então o Antonio Carlos Brasileiro de Almeida deles, eles vão dizer que o Antonio Carlos não é
brasileiro, eles vão colocar o brasileiro contra o Brasil. E vão sempre fazer o negócio de cabeça pra
baixo... Sempre. Então é o destino deles isso, né. Eu vou fazer uma coisa que eu julgo positiva,
que a minha música n˜åo é pra levar à droga, nem à violência, nem à motocicleta, nem nada
disso. A minha música é pra levar o cidadão à Deus.
Se você fizer um anúncio do chope da Brahma a imprensa brasileira toda cai de pau. E depois a
imprensa do Rio começa a falar mal, depois a de São Paulo começa a falar mal, depois o Rio
Grande do Sul, depois o Brasil inteiro. São acordes, todos. ( lendo o tomo da imprensa) Tem um
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sujeito aqui que escreve ( dando risada) que o 'Tom e o Vinícius fazendo o anúncio da Brahma são
duas jararacas menstruadas'.
Qualis - Que tremenda grosseria.
Tom - É, e eu não sei porquê. Em primeiro lugar eu acho que jararaca não menstrua. Em segundo
lugar eu não sei porque Vinícius e eu parecemos duas jararacas menstruadas.
Qualis - Isso me parece muita leviandade.
Tom - Mas isso tá cheio disso. Depois os plágios, os plágios de Tom Jobim. Tom Jobim plagiou não
sei o quê. Quer dizer, isso é uma coleção de mentiras que faz do Brasil, esse país riquíssimo e
tudo, faz inverter tudo sempre. Bota tudo sempre de cabeça pra baixo. Então você trabalhou
direito, é honesto, contruiu uma família, acorda às quatro horas da manhã pra escrever música,
então todo mundo se volta contra você como se aquilo... Então começa a te atribuir dinheiro, e não
sei o quê. A imprensa brasileira nunca conseguiu dizer que um homem rico é rico. Então rica é a
Maria Bethânia, o Chico Buarque... É uma brincadeira isso, eles são uns pândegos. Os homens
ricos todo mundo sabe quem são, são homens importantíssimos, não preciso citar o nome deles. E
eu acho ótimo que eles sejam ricos. Eu sou a favor da riqueza. Eu não acho que a gente deva
cultivar a miséria. Como disse o Joãozinho Trinta, ' quem gosta de miséria é intelectual'.
Qualis - Isso tem um fundo de verdade.
Tom - É, tem um fundo grande. ( pegando novamente o tomo da imprensa nas mãos) Você vê
esse troço aqui, veja o peso desse troço, não tem nada. Primeiro, sabe o que acontece? Música é
um negócio que já é difícil de você falar sobre. Falar sobre música é difícil. Desde o Wagner é que
eles estão falando se o robe de chambre do Wagner é púrpura ou é roxo, não sei o quê. Umas
conversas que não tem nada a ver com a música. E depois o cara acaba falando mal do próprio
compositor, diz que ele é aquilo, aponta defeitos físicos. Ora, a vida de um compositor não é isso
absolutamente, né. Eles estão interessados em apontar defeitos e coisa e tal. E dizer que isso é
crítica musical. Nem por um instante eles falam de música, nunca.
Qualis - Sobre a forma de se trabalhar música, os temas...
Tom - Inclusiva não conhecem música, né. Você pode fazer essa brincadeira, né. Tem um sujeito
que escreveu "A Crítica dos Críticos" e botou todas as críticas que os críticos fizeram aos maiores
gênios do mundo, Beethoven, Debussy, Brahms, Ravel. Então todo mundo escrevendo aquelas
besteiras. O que é que eles iriam escrever? Eles não estavam entendendo nem aquilo que estava
sendo tocado.
Qualis - No começo da sua carreira tinham uns críticos que te acusavam de falta de originalidade,
que você imitava os americanos, pelo fato do seu nome, Tom... E que a bossa nova era uma coisa
americanizada, e que não era brasileira...
Tom - ( rindo) Você imagina... Você imagina... Bossa nova, dois nomes tipicamente latinos,
tipicamente brasileiros - bossa e nova. Eles conseguiram inventar o contrário, que isso seria uma
coisa estrangeira. E que Tom, que hoje em dia é um nome até comum no Brasil, tem muita gente
chamada Tom... Isso é o seguinte, a minha irmã não sabia dizer Antonio Carlos então ela me
chamava de de 'tom tom'.
Qualis - Quantos anos ela tinha na época?
Tom - Ela era bem pequenininha, né, começando a falar, dois ou três anos de idade, 'tom tom'. E
havia uma música francesa que minha mãe cantava pra ninar a gente, que dizia: ( cantarolando a
canção) 'ma vie s' en va ton guerre, ton, ton, ton..." Uma música francesa velha que pouca gente
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sabe. E ela escutava 'ton, ton, ton' , e aí começou a me chamar de ton, ton. Chamar de ton, ton,
ton, ton, depois virou Tom. No colégio eles vão sempre abreviando o nome. Ninguém vai chamar o
sujeito de Felisberto Pereira da Silva de Moraes e Lima, é muito comprido, né. Aí virou Tom, e eu
queria ser Antonio Carlos, evidentemente. Comecei a fazer aqueles arranjos, escrevia pra
orquestra, e nunca botavam meu nome no disco de 78 (rpm). Então eu fazia aqueles arranjos
acompanhando Dalva de Oliveira, Orlando Silva, cheguei a tocar com Vicente Celestino. E depois,
mais tarde, com gente tida como moderna como Dick Farney, Lucio Alves. E eu queria que botasse
Antonio Carlos Jobim, mas era muito comprido, entende, e o pessoal começou a colocar Tom
mesmo. Inclusive um som que não existe em inglês, Tom. Então eles quiseram, numa forçação de
barra, um esforço enorme, pra dizer que o Tom é 'Tan', 'Tan', 'Tan'.
Qualis - Que nem Tom Cruise...
Tom - Tom Cruise, é. Conseguiram essa besteira. Isso, realmente, nos Estados Unidos o Tom se
refere a Thomas, apelido de Thomas. Antonio é Tony. Então ficou essa extravagância aí criada pela
invenção constante. E depois esse tipo de coisa como a Veja faz, né, eles acham isso muito criativo
talvez. Você diz assim... 'Bom dia!, Tom Jobim.' 'Bom dia', mentiu Tom Jobim. Vem tudo escrito
assim: 'Chico Anysio, o humorismo dá muito dinheiro no Brasil?' 'Nem tanto', disfarçou Chico
Anysio. Então toda frase que o artista disser... Primeiro que o artista não disse essa frase. Essa
entrevista é hipotética. Ela elide o entrevistado. Não tem entrevistado. Aquilo foi criado lá na
redação... In Veja, é criado In Veja. Aquele In latino, aquele I maiúsculo. Então você diz todos os
absurdos que você quer, e ainda eles põem assim: 'E a mulher é bonita', justifica-se Oscar
Niemeyer. ...disparou, fez não sei o quê. Então toda a frase leva um adendo que destrói a própria
frase. Ora, os artistas são o sal da terra. Tem tanta gente boa e inteligente aí, Caetano Veloso,
Chico Buarque, Gilberto Gil... Tanta gente que você pode entrevistar, Djavan, Edu Lobo, né, o Tom
Jobim. Qual é a graça de você inventar uma porção de frases detratórias? Que detratam as coisas,
e sempre botam isso na boca do artista.
Qualis - Você não achaue isso seria, talvez até inconscientemente, uma necessidade de
autoafirmação, do sujeito que está trabalhando, de se posicionar?
Tom - Pois é, ele prefere escrever isso da cabeça dele do que fazer uma entrevista como você vê a
entrevista no exterior, no Paris Match que vai mais alto entrevistando Von Karajan, ou
entrevistando André Previn. Quer dizer, é uma coisa boa pra revista. Aqui não, nós fazemos
questão de, como se diz, planificar o cara, nivelar. Fica tudo aquela coisa sem dimensão. Eu dei
uma entrevista pra Isto É, e ele (o articulista) fala que eu fiz uma angioplastia em Nova York, fiz
um balãozinho em Nova York, né. Ele diz assim: 'Pois é, ele precisa comer menos.' Ele começou a
me dar conselhos culinários, conselhos de dieta! Você imagina se alguém fica doente (rindo) e eu
vou dizer 'Olha, você deve, sabe, evitar...' Depois o negócio da Plataforma, eles inventaram que eu
não pagava a Plataforma: 'Tom Jobim defende a Plataforma porque é o boca-livre dele.' Eu
absolutamente pago a Plataforma religiosamente. A churrascaria do meu amigo Alberico Campana
que eu não quero dar prejuízo a ele, absolutamente, né. Eu sou amigo dele, né. E quando eu falei
o negócio da Plataforma que é preciso fazer aqui no Leblon, tombar, não esse tombamento clássico
que eles fazem. É pelo gabarito, como já disse Maria Eliza Costa, filha de Lucio Costa. Eu estou te
dizendo aqui, essa zona aqui do Tivoli Park, o Clube de Regatas Flamengo, o Jóquei Clube... Porque
há planos incríveis de fazer mall, aqueles supermercados imensos. Ou então erguer mesmo novas
selvas-de-pedra. Então o que devia ser tombado é o gabarito. A churrascaria, você não tendo uma
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você vai em outra, né. Toda essa zona ali deveria realmente segurar o gabarito, da Cobal, daquela
praça ao lado da Cobal, do Clube de Regata Flamengo, que aliás essas coisas já estão mais ou
menos tombadas. E pra informação de certas áreas aí desinformadas, o Alberico não quer que
tombe a Plataforma. E nem o proprietário do terreno da Plataforma não quer que tire o Alberico de
lá, pelo contrário, ele quer entrar como sócio do Alberico. E, naturalmente, eu não tenho nada com
isso. Eu acho ótimo. Eu só não acho ótimo pegar aqui , por exemplo, o heliporto, o Tivoli park,
tudo, e soltar o gabarito. Porque aí você vai passar a não poder ver a Lagoa mais daqui (apontando
para a janela da sala), vai fazer um paredão novamente. O que se fez com uma cidade linda como
o Rio, uma cidade feita por Deus, essa topografia que nós temos, de floresta, mar e montanha, aí
nós vamos encher isso de espigões. Inclusive espigões em lugares mais altos, quer dizer que
cobrem ainda mais o perfil tão bonito, né, do Rio de Janeiro.
Qualis - Essa coisa de você, por exemplo, já nas tuas músicas, desde antigamente, exaltar as
belezas naturais do Rio de Janeiro, isso seria uma certa atitude ecológica tua numa época em que
nem se falava em ecologia?
Tom - Olha, quando eu comecei as minhas atitudes ecológicas, eu não sabia nem que elas eram
ecológicas. Primeiro que eu não conhecia nem a palavra ecologia, ecólogo, eu não conhecia. E
depois eu vim a conhecer essa palavra em Nova York, aí fui lá olhar no dicionário. Ecologia, será a
ciência que estuda o eco?
Qualis - Isso foi em que época?
Tom - Ah, isso foi em 1966, 67, 1970. Um americano virou-se pra mim e disse: 'Você é um
ecólogo.' E eu fiquei a ver navios. Só que o eco, esse eco do som que você faz 'João!', e a pedra
responde 'João!', esse eco é com c-h. E o eco da ecologia, do grego, que quer dizer meio ambiente,
quer dizer a casa, não tem 'h'. Nós, infelizmente, aqui em português achatamos tudo e eco ficou e-
c-o. Então nós aqui não sabemos do que estamos falando, quando você fala eco, você não sabe se
está se referindo ao som que volta, ao eco suíço, ou se você está se referindo ao meio-ambiente. O
eco 'alô!, alô!', esse eco tem 'h'; em inglês tem 'h'. E o eco de ecologia não tem 'h'. Então são duas
palavras diferentes, significando coisas diferentes. Então essa coisa de ecologia, essa preocupação,
tudo o que eu vi no Brasil o que é que é? Eles cortaram 95% da Mata Atlântica! Agora eu fiz
parceria num livro chamado Mata Atlântica, que está sendo escrito e fotografado (por Ana Lontra
Jobim, sua esposa). A Mata mais linda do mundo, com um clima tropical de montanha, quer dizer,
faz até frio no alto da floresta, com mil espécies e tudo. Isso tudo foi arrasado! Quer dizer, sempre
queimando o mato. Às vezes, nem cortar as madeiras-de-lei eles cortaram, botaram fogo
simplesmente. E com isso desaparecem centenas de espécies vegetais e animais, destruido tudo,
né. Uma coisa lamentável essa coisa sempre de destruir tudo e plantar café, de plantar cana, que é
a história do Rio de Janeiro, a história de São Paulo, a história do Paraná, a história da Mata
Atlântica. Que pega essa coisa que Deus nos deu, linda, e transforma num deserto. Quer dizer,
você quando vem dos Estados Unidos você olha pra baixo, a zona da Mata em Minas Gerais não
tem mais mato nenhum. Tá tudo detruído, você vê aquelas moçorocas, aquelas gretas, a terra toda
despencando, a serra despencando, não tem árvores.
Qualis - A erosão...
Tom - A erosão, está tudo erodido, pra não dizer... (ameaçando elegantemente sussurrar um
trocadilho) Então é assim, mais uma vez essa é uma tentativa de...
Qualis - Já partiu de você uma idéia de fazer um tipo de movimento organizado pró-ecologia no
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sentido de preservação dessas coisas todas?
Tom - Claro. Olha, eu não tenho muito tempo pra me dedicar a isso. Agora, fiz tudo, aquele ECO-
92, eu fui lá tocar tudo, né. Fizemos aí programas no Carnegie Hall, em Nova York, pra dar
dinheiro para os índios, cobramos caro...
Qualis- Foi com o Sting...
Tom - O Sting, o Elton John, foi o Caetano Veloso, foi o Tom Jobim e a banda dele, foi o Gilberto
Gil. E todo dinheiro foi dado pra Rain Forest Foudation. E o sujeito escreveu aqui no jornal,
evidentemente, dizendo 'o Tom Jobim é engraçado, ele toca de graça para os americanos mas aqui
ele cobra'. Quer dizer, você não pode nem fazer a caridade para o Brasil que o sujeito novamente
perverte e inverte a notícia.
Qualis- É uma visão provinciana essa, não?
Tom - E maligna, né. É uma visão de cultura da negatividade, de fazer do Brasil que é um país
riquíssimo, fazer daqui um país de miseráveis, entende. Quer dizer, sempre botando fogo no mato,
sempre falando mal de quem trabalha, sempre falando mal de São Paulo. Tudo que dá certo é
perseguido, é apontado como uma coisa indesejável. Isso daí, essa atitude tem que mudar. Eu
espero agora que com o nosso amigo Fernando Henrique na presidência isso vá mudar, entende.
Mudar! Mudar isso, isso não é possível, como é que é?! Aquela teoria do quanto pior melhor, deu
nisso. Deu nisso que deu no Rio de Janeiro. Você não pode andar na rua, não pode andar de carro,
não pode sair à noite. Você tem que ficar pagando imposto. De um lado é o governo que quer o
dinheiro, o executivo que quer dinheiro, a companhia que quer o dinheiro. E as pessoas? Pra onde
é que vão? O que é que elas vão fazer?
Qualis - Muitos associam o movimento da bossa nova com o cenário político e social que o Brasil
vivia naquela época, aquela coisa de mudança, turbulência, os anos JK, a indústria automobilística,
Brasília etc. Alguns acreditam que o Brasil pode viver um período semelhante agora com a eleição
do Fernando Henrique Cardoso, o Real, queda da inflação, e outras coisas mais. Você que viveu
intensamente e produziu a cultura das duas épocas, daquela e de hoje, qual a relação que você vê
entre esses dois momentos?
Tom - Eu vejo que há uma coisa positiva no governo do Fernando Henrique que lembra a coisa
positiva do JK, democracia, liberdade, não perseguir os artistas. E o povo, acima de tudo o povo de
uma maneira geral. Você vê que os artistas, com o autoritarismo, foram perseguidos no Brasil.
nEos fomso todos presos, (longa pausa) Antes de falarem mal da gente nos prenderam, né. (dando
risada) Depois começaram a falar mal da gente. Aliás, essa época do autoritarismo com telefone
gravado, isso tornou o Brasil realmente irrespirável. E é talvez o responsável pelo exílio de grandes
artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, como Chico Buarque, Tom Jobim. Eu fui embora, não
porque tivessem me mandado embora.
Qualis - Foi um auto-exílio...
Tom - Sim, porque o ambiente estava insuportável. Você não podia fazer as músicas... Isso,
inclusive, não me tocava pessoalmente. Eu não estava escrevendo música de protesto, nada disso.
Mas, em solidariedade aos que estavam, nós nos recusamos a entrar naquele Festival Internacional
da Canção (o 6º e penúltimo, em 1971), e foi isso que causou a nossa prisão em massa... Fomos
doze ou quinze presos. Quer dizer, ninguém podia escrever nada por causa da censura mas na
hora que veio o internacional todo mundo tinha que ser bonitinho. Aliás, eu acho que foi muito bom
o fato do exército não ter matado a gente porque em outros países as coisas foram muito mais
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graves, no Chile, na Argentina. Com todas as coisas ruins que aconteceram eu ainda dou graças a
Deus. Eu fui apenas detido, o que não é o caso do Caetano, do Gil, que foram realmente presos. Eu
fui detido e tinha que voltar lá pra averiguações. Eu era intimado a comparecer. Agora você vê se o
Tom Jobim é um homem subversivo, eu sou um homem da ordem e do progresso. Eu creio que as
Forças Armadas não são sanguinárias assim no sentido de querer matar todo mundo. É claro que
houve gente que foi morta nessa coisa, né. Agora, falei com o Chico, falei com outras pessoas
que... (longa pausa) Em suma, essa sua pergunta eu acho que é a chance hoje em dia, por
exemplo, porque o Fernando Henrique está com muita gente a favor dele, o povo a favor dele, nós
a favor dele, os artistas estão querendo que ele... Votaram nele, né?
Qualis - O clima, a atmosfera pode ser propício para um tipo de fortalecimento da música
brasileira?
Tom - Claro, o fortalecimento da música, da arte, de tudo. O Fernando Henrique me parece um
democrata. Inclusive, já foi preso como subversivo. Eu conheci o Fernando Henrique em São Paulo,
naquele tempo em que ele se candidatou a vereador, alguma coisa assim, deputado, não sei. Já
me dava com ele. Já estava apoiando Fernado Henrique. Agora também, por exemplo, você vê, o
nosso presidente Itamar tem a grandeza de fazer os troços direito. E agora ele está sendo acusado
de namorar, de ir ao cinema com a namorada, ...que bota em risco a vida do povo, podem querer
matá-lo e atingir algumas pessoas inocentes, né. (dando risada) O Itamar tem a grandeza de ser
um homem comum, né. A grandeza de fazer os troços que tem que fazer.
Qualis - Agora, interessante... Essa tua observação me remete àquela outra que você fez sobre o
trabalho da imprensa mesmo. Pra mim parece que esse trabalho de cobertura é absolutamente
supérfluo e não tem nada a ver com a realidade do país...
Tom - Essa imprensa é a imprensa que não transmite os fatos. Por exemplo, agora eu lancei um
disco novo chamado Antonio Brasileiro. A imprensa foi magnífica comigo, não tenho a menor
queixa da imprensa, os críticos escreveram sobre o disco, e tudo mais tá ótimo. Quer dizer, não é
toda a imprensa que faz isso não, é um certo tipo de imprensa. Eu não posso acusar a imprensa de
uma maneira geral de deturpar os fatos. Agora, que aparece essas frasezinhas tal que ninguém
disse e que depois são atribuídas a outras pessoas, isso aparece. Aparece esse tipo de fofoca, diz
que eu me separei, que não sei o quê. Não dizem só de mim isso não, dizem de muitas pessoas.
Tem um tipo de imprensa dedicada a isso. Agora, você pega a imprensa estrangeira, que me chega
às mãos, a imprensa que normalmente eu não leio, então cidadãos que moram fora do Brasil me
mandam essa imprensa. E você vê, eles têm uma atitude muito mais positiva em relação à arte,
gostam da música, acham a música bonita, têm vontade de conhecer o Brasil. Esse Brasil que o
Tom Jobim pintou como uma coisa melhor do mundo, e que certo tipo de imprensa quer trocar ao
contrário, me bota no jornal morto. É um negócio... Eles devem achar isso bonito, né.
Qualis - É como você disse, isso é o que vende.
Tom - E ao mesmo tempo eles nunca falam mal dos poderosos, evidentemente. Quer dizer, quando
eles desafiam a pessoa, eles vão desafiar uma pessoa, um sujeito fraco e doente, eles vão
desafiar, eles vão chamar pra brigar. Eles não vão chamar o atleta pra brigar porque eles vão se
dar mal, não vão chamar o lutador. Aí depois, quando for o concurso da música, eles vão chamar o
atleta pra competir com ele na música. Mas na hora de bater, vão chamar um velhinho. Fica muito
interessante, muito conveniente. É a inteligentsia, que nós costumamos chamar de burritsia
brasileira. (risadas) Essa do João Ubaldo, eu tô te dando o copyright. Aquele que escreve pensando
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
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que é a inteligentsia mas de fato é a burritsia.
Qualis - Eu queria conversar um pouquinho, agora que a gente já passou...
Tom - Tá ficando muito séria a entrevista. Talvez não seja o caso de fazer uma entrevista tão séria
assim.
Qualis - Vamos falar um pouco sobre música propriamente dita.
Tom - (indo ao piano acender mais um charuto) Pois é, que é um assunto no qual ninguém fala.
(Tom interrompe a entrevista para escolher umas camisas para as fotos, e volta falando sobre a
natureza) Há sessenta anos que eu vejo o mico sagui pulando aí do galho...Essa floresta é muito
cosmopolita, tem jaqueira índica, mangífera índica, mangueira, árvores da Índia, árvores e
eucaliptos da Austrália. Ela não tem só plantas brasileiras.
Qualis - Você está praticamente no coração dela aqui.
Tom - (indicando a floresta ao lado do quintal) Bom, você entra aqui e essa floresta vai até o
Grajaú. Tem bicho, tem paca, tem tatu, tem muito gavião, tem inhamu, tem uruta, capoeira, tem
saracura, tem preguiça, tem esquilo, tem muito bicho, tem muito periquito, tem muito desses
papagaínhos tipo maracanã... A minha paixão pelos pássaros é um pouco distante, entende,
(rindo) eu não gosto de pássaro no colo. Os pássaros são bons soltos, voando, cantando, né, assim
é que eles me divertem mais. Pássaro preso tire um pouco a... Um pouco triste...
Qualis - Você disse que tem seus ídolos confessos como Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Guerra
Peixe. Enquanto compositor, arranjador e orquestrador, será que hoje depois de tantas décadas
você já se coloca no mesmo nível deles?
Tom - Bom, eles foram ficando moços e eu fui ficando velho, você sabe, né. É como o retrato do
meu pai em cima do piano. O meu pai era o meu velho, e hoje em dia eu estou muito mais velho
que o meu pai. Meu pai morreu aos 46 anos, de modo que eu já posso ser pai do meu pai, né. É
isso mesmo, a gente vai tendo nossos ídolos. Radamés Gnatalli, um homem generoso que ajudou
todo mundo. Villa-Lobos, um gênio incrível. O Guerra Peixe era um orquestrador, compositor,
nascido aqui em Petrópolis, morreu agora recentemente, muito amigo nosso. Ele trabalhou muitos
anos em São Paulo também. Fazia orquestrações. Mas, sem dúvida, o Villa-Lobos é um vulto... Ele
é um gigante... Ele ficou muito alto, ficou muito... Ficou um pouco sozinho na época dele. No meu
caso não, eu estou cercado de grandes compositores, de muita gente com música popular. Quando
eu comecei, a música popular era toda escreita e composta por pessoas que não sabiam nada de
música. O compositor popular era praticamente analfabeto, alguns sabiam escrever as letras.
Música ninguém sabia escrever.
Qualis - Você teve uma formação erudita...
Tom - Um bocado.
Qualis - Você teve também aquela professora, a Lúcia...
Tom - Lúcia Branco, que foi professora de Nelson Freire, professora do Jacques Klein, professora do
Arthur Moreira Lima, minha professora, né. Você sabe, o Mário de Andrade disse, 'se você for um
gênio faça música brasileira'. Porque em Hollywood já tem milhares e milhares de compositores,
orquestradores, você não precisa ir pra lá.
Qualis - E quanto às suas atividades no exterior?
Tom - Eu não estou muito preocupado com isso. Não.
Qualis - Atualmente como estão as coisas, pois amanhã (01/12) você está indo pra Nova York.
Tom - É, eu tenho grandes convites, pra fazer grandes coisas em Nova York. Agora, a Kathleen
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Battle, a grande cantora, a grande soprano negra, ela parece que quer gravar umas músicas
minhas. Eu também tenho vontade de conhecer a Barbara Hendrix, que canta o Villa-Lobos. Essa
Battle é soprano do Metropolitan Opera. Depois a Sony internacional quer que eu faça um disco
com músicas minhas, tratadas assim com um pouco mais de orquestra, um pouco mais sinfônicas.
O Jonh Hendrix tá querendo gravar comigo também, um grande saxofonista de jazz muito bom.
John Hendrix, ele esteve aqui na homenagem que fizeram aqui, muito simpático, né. Em suma, o
mundo tá cheio de coisas. Agora, por exemplo, sair do Brasil pra fazer a América e tal, como... Ah,
isso já não dá.
Qualis - Ainda falando sobre Villa-Lobos, ele sintetiza de uma certa forma a alma brasileira, assim
como George Gershwin, Irving Berlin para os Estados Unidos. Você é um compositor que retratou a
alma brasileira...
Tom - Muito! Muito! Aliás o Villa-Lobos tem uma música chamada "Alma Brasileira". Porque o Brasil
teve que ser inventado, entende. Não existia o Brasil. Tudo aqui é importado, tudo, o relógio, o
gravador. E quando não importado, é copiado do original que vem de fora. E o resto mais é
importado, o café é importado, a cana de açúcar é importada, o eucalipto é importado, os carros
são importados, nós somos importados...Os índios são importados, vieram da Polinésia, né, com os
zigomas salientes (ossos temporais), a plica mongólica (dobras ou rugas faciais), a zarabatana.
Então, a Ilha Brasil, talvez, é uma grande ilha com as espécies muito diferentes do resto do
mundo. Aqui você não tem animais do presépio de Jesus Cristo, não tem. Você não tem vaquinha,
boizinho, galinha, ovelhinha, nada disso existe aqui. Tudo isso é importado. Aqui tem tamanduá-
bandeira, tem gambá, tem preguiça, peixe-boi, entende, são animais realmente diferentes.
Qualis - Essa tua admiração, por exemplo, por Villa-Lobos é uma identificação dessa busca
incessante pela alma brasileira?
Tom - Isso foi em outros tempos naturalmente, por que você tá aqui, o rádio toca música norte-
americana. Você tem que ter alguma coisa que você ame, que você se identifique com a sua alma,
com o fato de você ser brasileiro, com o fato de você nascer aqui nesse pindorama, terra das
palmeiras debruçadas assim acima do Atlântico. Cheio de peixes, cheio de pássaros, de bichos, de
índios, de tudo, né. Se eu tivesse nascido, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos,
certamente teria tido uma educação musical, supondo-se que eu fosse músico, uma educação
musical mais refinada, mais profunda, ou qualquer coisa. Mas eu não iria escrever música brasileira
por que eu não seria brasileiro. Aí eu iria escrever valsas, mazurcas, escrever foxtrote, talvez eu
estivesse escrevendo heavy metal.
Qualis - Você que compôs mais de quatrocentas músicas...
Tom - Dizem, dizem...Pelo menos umas cem se perderam. Que eu saiba, aí no arquivo talvez só
tenham umas trezentas. Você vai perdendo no avião, vai perdendo...
Qualis - Falando ainda sobre essa identidade brasileira...
Tom - É possível que isso acabe, essa identidade. Com a mídia hoje em dia que bota todo mundo
vendo, nós estamos vendo tudo ao mesmo tempo, né.
Qualis - A simultaneidade...
Tom - Pois é, a guerra na Bósnia, a guerra no Irã, o Iraque, os problemas dos Estados Unidos, o
Oriente Médio, o problema do tráfico de drogas, o Brasil envolvido nisso com a passagem das
drogas ao Brasil, né.
Qualis - Essas coisas todas dificultam o trabalho, eu imagino, do artista em ficar em constante
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contato com a sua própria raiz pra produção da sua obra, da sua música. Como é que você vê
essas dificuldades em continuar mantendo contato com essa coisa brasileira, as raízes?
Tom - Vai ficando cada vez mais difícil. Esse é um negócio que eu cheguei a conversar com o
Vinícius, vai ficando cada vez mais difícil. Por que você destrói a Mata Atlântica toda, você destrói a
floresta amazônica, quando chegar no poema do Villa-Lobos, você não vai entender porque não
tem a Amazônia. Por exemplo, eu vejo no meu filho de 15 anos, como é que ele pode conhecer as
qualidades de passarinhos? Ele não conhece. Ele não conhece os bichos, ele não conhece as
árvores. Porque essas pessoas que aí estão nunca viram esse Brasil, esse Brasil eles não
conhecem, eles conhecem o Brasil asfaltado, com o sinal vermelho, o guarda, a violência, a
metralhadora, isso eles conhecem. Agora eles não conhecem a jacutinga, não sabem quando o
murici floresce lá no alto da serra (árvores e arbustos que dão frutos), não sabem quando a
jacutinga vai lá comer o coco da juçara. Eles não sabem o que é juçara, nem se a juçara dá coco,
nem coisa nenhuma. Enquanto isso o pessoal, quando o outro fala de ecologia, começa a cortar
mais depressa antes que apareça o fiscal, ou qualquer coisa que impeça a destruição. Porque toda
arte é ligada ao seu tempo. A arte de Debussy é ligada ao tempo dele, a arte de Charlie Parker... A
arte de Gershwin, aliás Gershwin falou isso 'o que eu escrevo é uma coisa ligada ao agora de Nova
York'.
Qualis - Por isso a música dele tem essa coisa viva de uma época.
Tom - Exatamente, da Broadway, dos shows.
Qualis - A tua música tem uma coisa muito viva de uma época do Brasil também.
Tom - Ah, espero que sim. E como ficou chato ser moderno, né, 'agora serei eterno', diz o
Drummond ao perceber a mudança das letras (dando risada).
Qualis - Só pra gente encerrar a passagem do Villa-Lobos aqui na nossa conversa, como é que
você vê o trabalho do Egberto Gismonti, ele é um outro cara que faz um trabalho orquestral,
sinfônico, e ele tem uma inspiração muito profunda no trabalho do Villa-Lobos.
Tom - Bom, isso eu não sei porque eu não conheço tanto o trabalho dele. Eu acho que ele fala na
floresta também, nos índios.
Qualis - Você é um compositor, um cantor, e o Gismonti é basicamente um instrumentista. Eu vejo
dois músicos brasileiros que trabalham com uma mesma inspiração.
Tom - Eu gosto muito do Gismonti e acho que a inspiração que possa vir do Villa-Lobos acho muito
boa, muito válida, entende. É isso mesmo, nós temos que falar do Brasil. Porque pra fotografar o
Pólo Norte tá cheio de gente lá. Então é isso mesmo. Eu conheço o Gismonti desde que ele chegou
ao Rio de Janeiro, ele é um grande músico, um talento formidável.
Qualis - Falando sobre música instrumental. O Brasil que tem essa tradição muito criativa e popular
como Pixinguinha, Severino Araújo e a Orquestra Tabajara, e muitos outros. Existe uma coisa no
Brasil de se valorizar a música cantada, mas até quando você acha que os nossos músicos servirão
de fonte de inspiração para os artistas internacionais, enquanto aqui a preferência parece ser pelo
que vem de fora?
Tom - Houve um tempo no Brasil em que os maiores sucessos na rádio eram instrumentais como o
Waldyr de Azevedo com o "Brasileirinho". Tocava o "Brasileirinho", que tocava no mundo inteiro.
Qualis - O Jacob do Bandolim...
Tom - O Jacob do Bandolim mais o Radamés... Mas, um ambiente um pouco mais erudito, né. O
Waldyr de Azevedo era o delicado. Sendo que o "Delicado" dominou o mundo inteiro, tocou em
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tudo quanto era lugar. Quer dizer, sempre houve essa coisa da música instrumental e da música
vocal. A música vocal tem isso, tem a bela cantora, que é bonita, que tem a voz bonita, a Gal
Costa, e as letras bonitas. Porque muita gente gosta de ouvir por causa da letra. Agora, por
exemplo, se você pegar o disco Antonio Brasileiro, tem instrumentais lá. O "Meu Amigo Radamés"
é todo instrumental. O "Radamés Y Pelé" são duas homenagens que eu faço ao maestro Radamés e
ao nosso incrível Pelé.
Qualis - Como é que surgiu a idéia de fazer essas instrumentais em homenagem ao Radamés
Gnatalli?
Tom - O Radamés é uma coisa formidável, a generosidade... O Radamés orquestrou a música
brasileira toda. Fez muita música erudita muito boa.
Qualis - Você o consideraria o maior ou um dos maiores arranjadores?
Tom - Bom, eu não gosto muito dessa coisa de "o maior", eu acho que o raciocínio comparativo é
falso. Frank Sinatra com Pavarotti, o Brasil com os Estados Unidos. Eu acho que as coisas são
incomparáveis, entende. Eu vejo o Radamés como um homem que além de tudo... Porque é muito
difícil você viver de música erudita, de música instrumental, se você não tem orquestra sinfônica.
Como é que você vai fazer? Não dá pra fazer.
Qualis - Uma tradição, uma estrutura no próprio país de desenvolvimento disso...
Tom - Você vê a nossa orquestra aí, por exemplo, tá a perigo. Não tem verba. Parece que um certo
pedaço do país se desenvolveu para um lado e por outro lado esqueceu. O problema das
orquestras sinfônicas é que muitas orquestras sinfônicas fecharam no mundo por falta de verbas.
Eu conheci gente que tocava na sinfônica e que saiu. Em suma, isso realmente é um problema. O
governo tem que cuidar disso; o ministro da Cultura. O que é que eu posso dizer? Agora, a música
instrumental aparece. Aparece nesse grande músico Egberto Gismonti. A música instrumental, por
exemplo, lá fora leva uma grande vantagem. Ela não precisa da tradução da letra, das versões que
geralmente são trabalho de terceira classe. Versão é negócio horroroso. A não ser quando é uma
coisa bem feita. É tradutore e traditore, quer dizer tradutores traidores. Eles sempre traem o que
eles traduzem, então eles contam uma outra história. E quando fica bom o som, perde o sentido. E
quando o sentido fica bom, o som não fica bom. Então vira um xadrez... Então é muito melhor
quando você pode ouvir a obra como ela foi feita. Como é a música americana, como a coisa que o
Sinatra canta, a coisa que os Beatles cantam em inglês. Agora, imagina você traduzir tudo aquilo
para o português. É uma tarefa ingrata.
Qualis - Falando sobre música instrumental, você fez a trilha sonora do filme do Paulo César
Saraceni, o Porto das Caixas...
Tom - Instrumental, ganhei até um prêmio, uma estátua lá, de prata, não sei o quê, uma coruja de
ouro, alguma coisa assim.
Qualis - Como foi essa experiência de fazer trilhas sonoras?
Tom - Eu sempre fiz muita trilha sonora de filmes brasileiros que nunca ninguém viu e nunca
ninguém ouviu. Eu fiz O Porto das Caixas (1963), e fiz A Crônica da Casa Assassinada (1971), essa
deu mais prêmios. É bonito e ficou bonita a trilha. Já passaram tantos anos que eu já posso dizer
que é bonita a trilha. Eu gravei aquela trilha nos Estados Unidos com a Sinfônica de Nova York. O
Paulo César Saraceni era o diretor do filme, quem escreveu A Crônica da Casa Assassinada foi o
Lucio Cardoso. Depois disso fiz muita trilha sonora e recentemente fiz a trilha para aquele filme da
Ana Maria Magalhães, como é que chama o filme? (perguntando a Gilda Matoso na sala)
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Gilda - O filme chama Erotique, mas o episódio dela é baseado na Clarice Lispector, são três ou
quatro diretoras.
Tom - Eu sempre tenho feito música para o cinema. Eu fiz o Gabriela, Cravo e Canela, do romance
de Jorge Amado, feito pelo Bruno Barreto, que tinha a Sônia Braga e o Marcello Mastroianni... A
gente vai fazendo.
Qualis - Você tem um método de escrever as composições para trilhas sonoras?
Tom - Vendo o filme, né. Às vezes, por exemplo, o sujeito já tem o script pronto e você já pode
trabalhar antes mesmo de ver o filme. Você trabalha antes, durante e depois, fazendo os acertos,
as minutagens, aquilo tem que ser uma coisa precisa.
Qualis - Mudando um pouco o rumo do nosso papo, faz um bom tempo que você vem denunciando
e reclamando do absurdo do sistema de recolhimento dos direitos autorais no Brasil...
Tom - Isso daí é um assunto que tem mil anos. Desde que eu me entendo, as pessoas estão...
Quando você vê artistas, Dorival Caymmi com oitenta anos fazer show é porque ele está
precisando de dinheiro. Quando eu faço show é que eu tô precisando de dinheiro. Ary Barroso
fazendo show é porque ele não podia se manter com os direitos autorais, não podia ficar em casa
tomando whisky. Não dá, não dá. Esse negócio de direito autoral, você precisa ter muita música, e
também serem muito editadas. Os editores carregam 80% dos direitos, aí não dá.
Qualis - Você já se envolveu num movimento mais direto e engajado?
Tom - Eu não sou muito de andar. Já fiz passeata e essas coisas. Lá em casa todo mundo era
socialista, mêu avô, meu padrasto, minha mãe. Lá em casa aquelas estantes de livros é tudo
Engels, Marx e Lenin, né. Eu fui crescendo, eu fui ler aquele negócio, fui tentar entender aquilo.
Essa geração minha, era toda uma geração de esquerda. Essa coisa do Brasil, 'ordem e progresso'
misturado com o positivismo de Augusto Comte, e a crença que o comunismo e o socialismo seria
a melhor solução para o Terceiro Mundo. Parece que a coisa não deu certo, não. O Villa-Lobos disse
um pouco antes de morrer que 'a solução evidentemente para o Brasil, é o socialismo e o
comunismo, mas infelizmente no momento eu não posso perder um mercado como os Estados
Unidos da América do Norte' ele falou isso na televisão. Isso é muito engraçado porque ele não
tinha mercado nenhum nos Estados Unidos (rindo). Isso é causado pela imprensa, aquele negócio
do dinheiro, do dinheiro, porque quando o Villa-Lobos mais ou menos se mudou de Paris pra Nova
York, aí os comunistas acharam ruim. Do berço da civiliza ção vai pra Nova York pra ser capitalista.
E ele então, grande gozador, disse 'infelizmente no momento eu não posso perder um mercado
como o dos Estados Unidos'. O mercado, coitado, do Villa-Lobos era apenas a "Bachiana n° 5", a
cantilena da "Bachiana n° 5" (cantarolando a música). Com isso ele iria morrer de fome. Hoje
gravaram lá no exterior mais alguma coisinha. Só não tem Villa-Lobos gravado aqui.
Qualis - Falando sobre a bossa nova, um assunto inevitável, o que é que você guarda desse
período? Os longos papos com Vinícius, algum porre específico, a sensação de ser cortejado por
lindas mulheres, a loucura do João, ou alguma música especial que sintetize aqueles momentos?
Tom - Ah, eu sei lá. É tanta coisa boa. Eu acho que é tudo isso aí que você disse. (rindo) Mas de
porre a gente não se lembra quase de nada, né, tá tudo meio apagado. (estalando os dedos) A
bossa nova, o jeito, o suingue, o balanço, a malandragem... Nova é a palavra mais usada na
imprensa do mundo todo. Nova Gillette, a nouvelle vague, a new wave... E naturalmente aqui nós
tentamos provar que a bossa nova não tinha bossa e que era velha. (rindo) É justamente o
contrário da bossa nova. E também muita coisa sem ser bossa nova foi chamada de bossa nova. A
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geladeira bossa nova, o presidente bossa nova, o presidente Juscelino Kubitscheck, a era bossa
nova.
Qualis - A bossa nova funcionava como uma espécie de trilha sonora para os acontecimentos da
época.
Tom - Exato. Essa palavra bossa já era usada pelo Noel Rosa, 'são bossas nossas' ele falava nisso.
Qualis - Bossa na época era quase como uma gíria...
Tom - A bossa é o seguinte, a bossa são as bossas cranianas. O crânio tem convexidades que
correspondem a concavidades onde se encontra a massa cinzenta. Então o sujeito tinha a "pelota
para o lado de cá", então dizia 'você tem bossa pra isso, tem bossa pra tênis, tem bossa pra
cultura, tem bossa pra criminoso...' Aliás, essa palavra existe em inglês, a palavra boss, no sentido
de protuberância. Não no sentido de chefe, de bass, do holandês. Boss no sentido de calombo, de
bossu (francês), de Bossu de Notre Dame. É a bossa nova, bossu é o calombo.
Qualis - Como uma proeminência?
Tom - Exatamente. Uma coisa protunda é a bossa. Eu cheguei a pensar que a bossa vinha daquele
boi que tem a bossa assim, que fica balançando. Mas a bossa é realmente as qualidades físicas,
intelectuais, poéticas do cidadão que tem uma coisa como Noel Rosa tinha, uma bossa danada,
suingue, uma ginga. Nos Estados Unidos eu vi em várias enciclopédias americanas, eles têm a
palavra bossa nova lá... Aquelas conversas, um tipo de dança, um tipo de samba related to jazz,
não sei o quê e tal. Porque a mentalidade americana é aquisitiva, quer dizer, lá toca a canção
japonesa, como toca a canção mexicana, como toca a canção brasileira. Então quando o americano
diz Cuban jazz, ele está se referindo a música cubana. Aí ele tá botando o jazz lá. Aí o crítico
brasileiro pensa que o samba é jazz também porque o americano vai escrever Brazilian jazz. Aí o
Tinhorão vai dizer 'aí, tá vendo, eu não te disse, é americano, é Brazilian jazz'.
Qualis - Da mesma forma como baladas do Djavan, da Elis Regina ou do Ivan Lins, eles consideram
como Brazilian blues.
Tom - Brazilian blues, exatamente. Então isso vai causar uma barafunda (mistura desordenada de
coisas) no crítico brasileiro, sobretudo nos que forem mais puristas, né. Aí o sujeito vai dizer que
'piano não é um instrumento brasileiro, saxofone não é'. Eu vejo aí classificados, têm músicos, têm
eruditos aí que tratam a música do Radamés a música de jazz, eles chamam de música de jazz.
Porque eles usam o jazzband, usam o trombone, o trompete, o saxofone. Então é orquestra de
jazz. Eles causam uma confusão que tudo vira jazz. Eu diria que o jazz vem do verbo francês jaser
( falar desmedidamente, com indiscreção). All that jazz, é tudo aquilo que jazz, ou seja, tudo
aquilo que fornica.
Qualis - Você é considerado por muitos como a própria personificação da bossa nova...
Tom - Eu sei lá. Você sabe, eu não cuido desses assuntos. A bossa nova é a bossa dos campos de
arroz. O músico bossa nova, ele chega cansado, suado na festa pra tocar. Ele se arruma todo e vai
tocar, daqui a pouco ele tá sequinho e não está mais suado, tá bonito, tocando tudo certinho.
Agora, já o outro músico que já não é da bossa nova, ele chega na festa todo arrumado, todo
careta, e vai tocar, se despenteia todo e sua. É um processo completamente inverso. Um chega
arrumado na festa e acaba desarrumado. O outro chega desarrumado e acaba arrumadíssimo - é a
bossa nova. A bossa nova influenciou o mundo todo, todo mundo resolveu escrever bossa nova nos
Estados Unidos. E os latinos lá resolveram escrever a bossa nova. Como se ela fosse uma dança,
como se ela fosse uma conga, um mambo, uma rumba, entende.
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
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Qualis - E a impressão que dá é que a cada ano que passa a bossa nova, pelo menos nos Estados
Unidos e Europa, é uma coisa cada vez mais moderna.
Tom - É, a bossa nova é...
Gilda Matoso - Olha, tá aqui hoje no Jornal do Brasil, a quantidade de discos, falando exatamente
sobre isso, que no Japão o último grito da moda é a bossa nova.
Tom - Eu disse para um cara da imprensa, só pra sacanear, por que é que os japoneses gostam
tanto da bossa nova? Ele me disse 'é porque eles tem bom gosto' (rindo). E o Caetano disse o
seguinte, que eu achei muito engraçado, 'o Brasil precisa merecer a bossa nova, merecer pra poder
ir à praia e casar com uma mulher bonita, fazer a casa, andar de barco. Tem que merecer a bossa
nova, ele não pode só ficar gostando de coisas tristes, daqueles boleros chamados suicídios, não
pode.'
Qualis - Você acha que a bossa nova seria um tipo de antítese da dor de cotovelo da música da
década de quarenta?
Tom - Eu não digo antítese porque senão ficamos sempre nesse maniqueísmo. Eu acho que a
bossa nova é bem mais positiva.
Qualis - A bossa nova fala da dor de cotovelo e desses problemas como em "Lígia", por exemplo.
Tom - É bossa nova "Lígia"?! Mas a "Lígia" não é bossa nova! As músicas que eu gravo o pessoal
chama de bossa nova, não é característica. Tem inclusive bossa nova nesse disco (Antônio
Brasileiro), tem o "Surfboard" com ritmo bossa nova, com uma introdução bossa nova, mas, por
exemplo, "Meu amigo Radamés" não tem nada de bossa nova. É uma músoca que tem bossa e que
é nova. Se não me engano são oito inéditas no disco de quinze faixas. Mas alguns encontraram
menos músicas inéditas. Porque nós só conhecemos as músicas editadas, as músicas inéditas nós
não conhecemos. Eu conheço Beethoven, Ravel, Bach, Charlie Parker, George Gershwin, mas são
músicas editadas, né. E às vezes eles estão esperando que seja tudo inédito. Perguntaram ao
Baden Powell: 'Escuta, o seu novo CD tem músicas inéditas.' Ele disse: 'São dezesseis inéditas de
sucesso.' Bem, aqui também você faz a música um ano atrás, dois anos atrás, três, dez anos atrás,
e (dizem) 'Música velha!' 'Ih, essa música tava na novela do ano passado ("Querida"), é uma coisa
antiguíssima.' É
uma música de uma ano, quer dizer, é um neném. Eu toco música aí nesse piano de trezentos
anos.
Qualis - Como é que você designaria a paternidade da bossa nova?
Tom - (rindo)Eu acho que a bossa nova estourou lá fora com o negócio do João Gilberto. Quem
mais? João Gilberto.
Qualis - E a Nara, o Ronaldo Bôscoli e a turma da zona sul?
Tom - Vieram depois. Eles eram inclusive mais jovens.
Qualis - Então o João Gilberto foi o porta-bandeira da bossa nova?
Tom - O João Gilberto, o Tom Jobim e aquele pessoal que estava lá no Carnegie Hall. E teve
aquelas gravações, estourou o "Desafinado", estourou "Garota de Ipanema", estourou "Meditação",
e tudo isso foi pra parada de sucesso. E depois foi gravada toda aquela bossa nova do Ronaldo
Bôscoli com o ( Roberto) Menescal, o Carlinhos Lyra, todo mundo e muita gente boa ali. Aquele
que andava com o Sérgio Mendes, o Durval Ferreira... Gravou-se muita bossa nova. Eu acho que
foi isso que deu consistência ao movimento. Inclusive esse negócio de chamar a bossa nova de
jazz, isso tudo era um pouco revoltante pra mim. Eu acho que foi bom porque senão teria
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
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desaparecido. O americano aí escreveu tudo, botou na Library (biblioteca) do Congresso, aquele
negócio. Eu digo, segura os arquivos implacáveis. Então tá lá, bossa nova. E você tem a música
escrita, tem alguma coisa. Por que aqui fica esse negócio, era e agora não é. Se você pegar aqui
esse livro que eu te mostrei, aí tem escrito o fiasco da bossa nova nos Estados Unidos. Fiasco, uma
vergonha no Carnegie Hall, falta de organização. Mas não adiantou eles escreverem nada disso
porque a bossa nova já tava gravada. O pessoal do cool jazz, o pessoal da West Coast (Costa
Oeste americana) já tinha gravado a bossa nova. Tá tudo escrito aí, uma coisa pavorosa. Quer
dizer, o inimigo do brasileiro parece que é o brasileiro mesmo, né. Não tem outro. O inimigo do
brasileiro não foi o imperialismo americano... (rindo) Não é nada disso não.
Qualis - Você ratifica aquela famosa frase de que "o Brasil não conhece o Brasil"?
Tom - É. Isso é um samba do Aldir Blanc com o Maurício Tapajós. (cantarolando o samba) Sabe
como é que eu vejo o Brasil? Esse Brasil que eu não vejo aqui na televisão, embora eu tenha vinte
canais aqui? Eu vejo o Brasil nos Estados Unidos... Aparecem os índios, aparece eles caçando, eles
comendo macaco, aparece tudo. O Brasil aí na fronteira com a Venezuela, na fronteira com a
Colômbia, as pessoas andando no mato com flecha envenenada, com zarabatana. Aqui eu não vejo
isso. Aqui não tem índio.
Qualis - A CNN mostra uns pedaços do Brasil que é impressionante.
Tom - É, pois é, exatamente. Mostra as queimadas, o fabrico do carvão, a situação da Amazônia.
Coisas que a gente não vê porque eu tô aqui vendo outras coisas, passa a novela da Globo... Aí
você vê muita coisa que tá acontecendo mesmo, aqueles pobres índios, você imagina, andando no
mato e carregando filho nas costas, sem agricultura de espécie nenhuma. Quem é que conhece
esse tipo de coisa? Ele vive da caça, do palmito, da fruta e da pesca, andando pelo mato. Lugares
maiores.
Qualis - Como é hoje o teu relacionamento com o João Gilberto? Ficou algum ressentimento?
Tom - Não. Eu não sei porque sai na imprensa sempre... Olha, aí nesse livro grosso onde se cria
ressentimento... Eu não conheço nenhum ressentimento do João. Acho que pelo contrário, o meu
trabalho com o João foi um trabalho muito positivo e que rendeu frutos maravilhosos pra música
brasileira. (um pouco indignado) Não vejo nada disso. Mas você só encontra aí (apontando para o
tomo de imprensa) o ressentimento, a mágoa, eu não sei do que é que eles estão falando. Mas isso
tá cheio disso aí 'vamos ver se é possível juntar os dois', o negócio do concerto da Brahma. Eu não
sei o que é isso não. Realmente a história passou pra imprensa, não sei o que eles querem dizer
com isso. Eu acho que o meu trabalho com o João Gilberto é uma coisa que deu frutos, entende,
foi uma coisa fecunda e muito gravada, muitos discos. Mesmo o que nós gravamos aqui, os discos
foram todos editados nos Estados Unidos. Coisa que raramente acontece, você fazer um disco aqui
e ele ser editado lá nos Estados Unidos. O que acontece é outra coisa, lá eles gravam os discos
deles e consomem os discos deles. Os discos brasileiros são discos brasileiros que chegam lá,
conforme foram gravados aqui. Do Caetano, do Chico Buarque... Mas são discos made in Brasil.
Não é como no caso do João Gilberto, o disco made in Brasil foi feito nos Estados Unidos. Aquilo
não é uma música gravada nos Estados Unidos, é uma música que foi gravada aqui e foi reeditada
na América (do Norte). Então eu só vejo motivo para o João gostar desse nosso trabalho, só vejo
motivo para o Tom gostar desse trabalho, né. Não vejo motivo nenhum para ressentimentos, nem
mágoas.
Qualis - Isso é um ruído de comunicação?
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
18/21
Tom - A comunicação faz muito ruído e não se comunica. As máquinas estão cada vez mais
velozes, e a informação não tem porque o sujeito... Aparece essa porção de invenções. É o
jornalismo criativo. O jornalismo formador de opinião. Eles vão formar a opinião e dizer que o
artista é rico, que não sei o quê. Mas isso é a vontade do cara que escreve de ficar rico. O artista,
ele tem vontade de outras coisas que não tá saindo na reportagem. Eu não posso falar sobre João
Gilberto pois há anos que eu não tô com o João Gilberto. O João Gilberto outro dia esteve aqui em
casa. O João Gilberto é um homem de hábitos monásticos, é um homem recluso, um homem do
claustro. O João Gilberto não sai, não vai no restaurante. A vida de João Gilberto é diferente.
Qualis - Ele é uma pessoa introspectiva.
Tom - Bastante.
Qualis - Você é uma pessoa extrovertida, né?
Tom - Talvez, por força das circunstâncias. Porque eu quando era garoto, eu gostava de subir
numa árvore e ficar quieto lá em cima. Gostava de subir no telhado... Tinha um pouco um caráter
meditativo. E hoje em dia naturalmente tudo isso foi bagunçado pela constante... E hoje em dia
inclusive tá difícil de trabalhar porque é entrevista o tempo todo, né. É o preço da glória. Preço da
Glória, do Flamengo, do Botafogo, Copacabana, de Ipanema, Leblon. O sujeito me perguntou lá no
avião 'qual é o preço da glória'. Eu disse 'deve estar semelhente ao preço do Flamengo'.
Qualis - Você falou dessa coisa de falta de tempo, do trabalho todo...
Tom - É você vai ficando muito aperreado disso tudo.
Qualis - Você está num momento da tua vida bastante produtivo ainda, e você já produziu muita
coisa e escreveu a história da música popular brasileira...
Tom - Exato, eu acho que já posso parar, né?
Qualis - O que você espera da tua vida e qual o teu plano para o futuro?
Tom - Descansar, comprar uma bengala, uns óculos novos (rindo) pra poder ver as moças de uma
distância oficial.
Qualis - O que move um veterano como você a gravar, lançar novos discos, viajar pelo mundo e
atender jornalistas como eu que fazem sempre as mesmas perguntas?
Tom - Não, as tuas perguntas estão um pouco diferentes. Mas certamente o que move é que têm
essas músicas bonitas, né, que foram feitas e foram movidas pelo amor. Ninguém pensou em
dinheiro e nada disso. A gente era pobre mesmo e fez essas músicas, porque eu gostava de uma
garota, ou porque achava que o mar tava bonito, o céu. Então nós tínhamos outras razões pra
viver. E depois, naturalmente que essa coisa foi tomada pelo povo brasileiro. Essas músicas
também são músicas que nós acreditávamos locais. Quer dizer, quando eu fiz essas músicas eu
achei que não ia sair de Ipanema, achei que isso ia chegar em Copacabana.
Qualis - Vocês não tinham pretensão de 'vamos atingir São Paulo e as outras capitais'?
Tom - Não, nada disso. 'Vamos atingir São Paulo', essa conversa já me dá uma preguiça. 'Vamos
fazer os Estados Unidos', 'made in America', 'to make America', isso me dá um cansaço invencível.
Eu nunca teria ido aos Estados Unidos se o Itamaraty não tivesse me obrigado a ir aos Estados
Unidos. E eu nunca teria tentado ir a América, uma coisa dificílima. Sair daqui depois de grande,
sem falar inglês, tentar a vida, tentar o quê? Ser o quê? Sapateiro, pianista... As profissões são
poucas, ditador, carteiro, soldado. O sábio declarou ao jornal que ainda falta muito para o mundo
adquirir um nível razoável de cultura. Até lá felizmente estarei morto. Aí vai ter muito mais fumaça
e tudo, né. De que adianta você pagar milhões de impostos e morar numa cidade que você não
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
19/21
pode respirar? Que imposto é esse que você tá pagando? São as grandes cidades, né?
Qualis - No movimento espontâneo da bossa nova vocês não tinham nenhuma pretensão...
Tom - Uma música como "Desafinado" é uma música que nenhum cantor quer cantar. Porque ele
vai ser chamado de desafinado.
Qualis - Isso era um atestado da desafinação?
Tom - E o sujeito escreveu na imprensa, 'João Gilberto é desafinado mas tem uma voz muito
bonitinha'. (risadas) Agora, acontece que o João Gilberto não é desafinado.
Qualis - Assim como estranhavam o violão dele também...
Tom - Que nada! O violão do João é uma coisa clássica. Porque a grande coisa do revolucionário do
moderno é que ele vira clássico. Como Debussy virou um clássico. O Stravinsky foi dar uma
conferência em Harvard, ele já estava meio velho, e ele chegou lá, tinham aqueles alunos jovens.
(Um deles disse) 'Maestro, o senhor fez uma revolução completa na música'. Ele pega um objeto
na mesa (Tom pega um objeto na mesa) e disse: Ólha, meu filho, uma revolução completa é isso.
(girando o objeto em 360 graus) Porque se você fizer meia revolução, aí fica tudo de cabeça pra
baixo, é o pau-de-arara. A revolução completa são 360 graus, volta tudo para o mesmo lugar! O
cara vai pensar que vai revolucionar botando de ponta-cabeça. Aí fica tudo ao contrário.
Qualis - O Dorival Caymmi falou que a maior ambição dele seria compor um tipo de música que
ficasse na memória do povo, e que passado o tempo todos esqueceriam o nome do compositor
mas não a música. Como o folclore. Você acha que é preciso estudar muita música e conhecer a
alma do povo pra alcançar uma simplicidade absoluta? Como fica a intuição e a técnica?
Tom - É claro que tem pessoas intuitivas que nunca estudaram nada e que fazem canções lindas.
Existem pessoas que não estudam e nascem sabendo fazer música, sabendo desenhar, sabendo
qualquer coisa. Sem dúvida. Agora, é evidente que se você entrar no mundo da música, no mundo
do cinema, você vai ter que ter lápis e papel pra poder escrever uma coisa pra você se situar. Eu
acho também que certos músicos intuitivos, eles nunca quiseram estudar música com medo de
perder a bossa. Iriam ficar assim muito quadrados, muito rígidos. Ficaram sempre de olho no
balanço, na ginga.
Qualis - Como é que você solucionou isso o tempo inteiro?
Tom - Ah, eu sou um mestiço de popular com erudito. Sou um eruditinho, né. Eu sempre falei mal
de mim, mas com moderação. O pessoal aproveitou pra exagerar um pouco. (risadas)
Qualis - Você definiria uma linha entre o erudito e popular?
Tom - Não, eu não defino linhas de fronteira entre a música popular e a música erudita. Inclusive
Chopin, Villa-Lobos, está cheio de temas populares dentro da música erudita. Essa divisão é falsa,
não leva a nada também. Certas pessoas gostam de dar nome às coisas. E dar nome às coisas
impede a compreensão. Eu chamo Maria de Maria e aí penso que conheço Maria. Mas Maria é uma
outra coisa. É essa coisa de fazer enciclopédia, botar todos os nomezinhos lá. Quando aparecer um
nome novo, fazer mais um volume pra completar a teoria. Catalogar, né. O que acontece na
realidade, Walter, é o seguinte, é que a bossa nova ficou tão famosa que agora tudo que eu faço
eles chamam de bossa nova. Mas não é bossa nova. Ou então é bossa nova, mas não é aquele
sambinha bossa nova do João Gilberto. Não é isso. É uma coisa que tem bossa e é nova. Só que
não é a bossa nova. A bossa nova, vamos dizer, é uma coisa que ficou rotulada mesmo.
(cantarolando) 'Dia de sol / festa de luz / e um barquinho a navegar'. Então ficou o barquinho, o
barquinho é a bossa nova. O "Desafinado" é bossa nova. "Garota de Ipanema" é bossa nova.
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
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Agora, você pega esse disco Antonio Brasileiro, o "Samba de Maria Luiza" não é bossa nova, o
"Meu Amigo Radamés" não é bossa nova, "Radamés Y Pelé" não é bossa nova. Mas eles chamam
de bossa nova. Americano vai chegar lá e dizer 'the bossa nova, não sei o quê'. O papa da bossa
nova... Vai chamar o João Gilberto de papa da bossa nova. Mesmo que João Gilberto grave
Gershwin, como já gravou, né. (cantarolando) 'It's wonderful...' Eles vão dizer que é bossa nova. É
por causa da força e repetição das palavras. Aí, ficam repetindo, repetindo, repetindo... E falaram
que a minha banda era nepotista, que havia o nepotismo e a inadimplência. Até hoje estão falando
isso. Nepotismo é um sujeito que é funcionário do governo, e bota pra trabalhar os sobrinhos, os
netos, os parentes... Não é nada disso. Na minha banda eu contrato quem eu quiser. Contrato o
cachorro que estiver passando na rua, eu contrato ele pra gravar comigo. Não tem nada de
nepotismo. Mas aí fica repetindo, nepotismo, nepotismo, nepotismo... Aí o sujeito vai falar 'olha, a
banda do Tom Jobim, é nepotista'. E quanto as famílias que estão lá não é só a família Jobim, é a
família Caymmi, a família Morelenbaum. Estão esquecendo das outras porque tudo leva a uma
idéia, só que cria aquele nazismo, aquele troço inflexível.
Qualis - O fato de você trabalhar com a tua e as outra famílias significa uma facilidade de trabalho?
Tom - É, claro. Eles estão mais perto. O pessoal da minha família tá aqui em casa, então eu não
preciso ir lá no Meyer. O Tião Neto, por exemplom, o contrabaixista, é de Niterói. O Paulinho Braga
é mineiro de uma cidade chamada Guarani, ali perto de Juiz de Fora. Então, eles vêm de mil cantos
do país. O Danilo Caymmi é filho de uma mineira de Piqueri, o Dorival Caymmi que é baiano. Você
tem um espectro amplo.
Qualis - É a amizade entre as pessoas...
Tom - Claro, claro. O Danilo, por exemplo... Esse pessoal todo da banda. Essa banda é uma banda
didática. Eu aprendo muito com eles, e eles aprendem comigo. Eu vi o Danilo nascer, né. Todo
esse pessoal, eles eram criancinhas. Esse pessoal da banda são grandes músicos evidentemente. E
as garotas também. As garotas têm sofrido mil críticas.
Qualis - Você já tinha usado um naipe de vocais femininos em Passarim...
Tom - Eu não gosto, por exemplo, de ficar sozinho, cantando sozinho. Não gosto de ficar em pé
num palco com vinte mil pessoas me olhando. Acho essa situação muito desagradável. O vocal nas
vozes é justamente o que cria a harmonia, que cria tudo. O coral é uma coisa sinfônica. Mas eu
acho que o pessoal fala negócio de mulher, não sei o quê, é por outros motivos. (rindo) Eles estão
com a cabeç em outras coisas.
Qualis - Motivos menos musicais.
Tom - É, motivos menos musicais. Essa leitura é estranha, né. E você vê, a Paulinha Morelenbaum
canta muito bem, já gravou o disco dela. A Maucha canta muito bem. Esse disco você vai ver no
exterior como eles vão elogiar as garotas.
Qualis - E tem essa coisa do Quarteto em Cy que é fantástico...
Tom - Eu gravei recentemente com elas. É porque esse negócio de dizer que o Tom Jobim não
grava há sete anos, tô todo dia gravando com o Edu, com o Chico Buarque, com o Quarteto em Cy,
Frank Sinatra. Mas só que isso não é muito mencionado porque eles querem saber do disco, como
é o disco... Músicas inéditas, ou você não faz mais nada. 'Acabou, acabou, agora felizmente
acabou'. Eu encontrei um sujeito na rua que falou assim: 'O Vinícius, ele não faz mais nada', e ele
tava contente.
Qualis - É como dizem do Dorival Caymmi, que ele é um cara que não sai da rede, que não compõe
8/17/2019 Tom Jobim - Entrevista
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mais nada...
Tom - Não sai da Rede Globo. (risadas) O Dorival... Você acha que um sujeito aos oitenta anos tem
que compor? Perguntou ao Villa-Lobos uma moça que era mal paga, estudava na Puc jornalismo,
perguntou ao Villa-Lobos que tava morrendo: 'Maestro, o que o senhor está compondo agora?' Ele
disse: 'Agora eu estou decompondo' (gargalhadas). Mas porque essa obrigação de compor sempre?
Eu nunca entendi isso bem. E as músicas inéditas, eu vou mantê-las inéditas pra que ninguém
possa saber. Ninguém possa achar nada. Senão eles acabam pondo as músicas obscenas, os hinos
do clube de futebol, acabam botando tudo, fazendo disco, você sabe. Os poemas eróticos do
Drummond, por exemplo, eu não sei se ele gostaria... Não sei, duvido. E depois só se vê bem com
o coração. O que acontece é que fica esse negócio de 'Olha lá ele! Tá com uma barriga! A roupa...O
chapéu tem uma aba curta!' Não adianta. O robe de chambre do Wagner se era púrpura ou se era
roxo. Fica exatamente o que não é, o que não interessa.
In: http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas_6.htm