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Trabalho antropológico de cunho etnográfico, que mostra o processo de implementação de casas do programa de aceleração de crescimento (PAC) do governo federal, no morro do Preventório em Niterói.
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA
Casa nova, vida nova:
Consumo, despesas e oramento domstico entre moradores do PAC do
Morro do Preventrio
Shirley Alves Torquato
Niteri
2013
2
Shirley Alves Torquato
Casa nova, vida nova:
Consumo, despesas e oramento domstico entre moradores do PAC do
Morro do Preventrio
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense PPGA-UFF, como requisito parcial
para obteno do grau de Doutorado em
Antropologia.
Niteri
2013
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BANCA EXAMINADORA
Professora Dra Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes ( orientadora)
____________________________________________________________
Professora Dra Soraya Silveira Simes ( co-orientadora)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ-IPPUR)
_________________________________________________________________
Professor Dr. Marco Antnio da Silva Mello
Universidade Federal Fluminense- PPGA-UFF
__________________________________________________________________
Profa. Dr Margareth Coelho Luz
Fundao Getlio Vargas- FGV
___________________________________________________________________
Prof. Dr Neiva Vieira da Cunha
Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ
______________________________________________________________
Professora Dr Letcia Helena MedeirosVeloso
Universidade Federal Fluminense- Departamento de Sociologia-UFF
_____________________________________________________________
Professora Dr Letcia de Luna Freire ( Suplente)
Universidade Federal Fluminense- UFF
_______________________________________________________________
Professor Dr. Carlos Abrao Moura Valpassos( Suplente)
Universidade Cndido Mendes- UCAM-IUPERJ
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeo aos meus pais Maria e Luis pelo amor mim dispensados
ao longo de minha existncia e pelos valores que me ensinaram, e que foram
fundamentais para que eu me tornasse a pessoa que sou hoje. Agradeo em especial
minha me, companheira de jornada, pela positividade contagiante, por acreditar que
dias melhores so inevitveis e que por isso sempre viro, por entender minhas questes
existenciais e minhas estranhezas peculiares;
Mauro, companheiro de todos os momentos, at mesmo quando no est presente,
pela docilidade, carinho, amizade, pacincia e nunca reclamar da minha agenda de
escrita; alm disso, agradeo aos cardpios elaborados e aos novos sabores que me
apresentou;
minha orientadora Laura Graziela, que me acompanha desde o mestrado, por todo o
incentivo, ensinamentos e pela grande amizade estabelecida;
Ao professor Marco Antnio da Silva Mello, que foi meu professor na graduao, no
mestrado e no doutorado, pela oportunidade que me concedeu de fazer parte do
Laboratrio de Etnografia Metropolitanas LeMetro- IFCS-UFRJ, e a partir desta
participao ter integrado o Acordo Capes Cofecub, que conferiu-me incomparvel
experincia de frequentar a cole des Hautes Etudes em Sciences Sociales EHESS em
Paris como bolsista de doutorado sandwich.
Soraya Silveira Simes, por ter aceitado ser minha co-orientadora;
Aos professores Laurent Thvenot, meu orientador na EHESS, por sua delicadeza e
orientaes. Daniel Cefai pelas conversas e interesse em auxiliar-me na minha
pesquisa, por suas orientaes de estudo, e por toda ateno que me deu durante minha
estada em Paris .
5
professora Collette Pttonet in memorian , com quem tive a oportunidade mpar de
tomar um caf em sua casa e conversarmos sobre Paris, Rio de Janeiro, metrs, favelas
e felinos;
Ao professor Pedro Jos Garca Snchez, agradeo por ter me recebido em seu gabinete
na Nanterre Universit, pelas orientaes de estudo e pelo convite para assistir ao
espetculo de ballet Orpheu no Trocadero com seus simpticos alunos.
Agradeo Halima Mbirik por me apresentar sua cidade Nanterre e os receptivos
membros da Associao de Moradores de Nanterre; Joseph Ridolfi, Aline Adouane,
Aurore e Sebastien Girault.
Aos professores Luiz Antnio Machado da Silva e Mrcia Leite pelo curso sobre
favelas cariocas que ministraram em parceria com o professor Marco Antnio da Silva
Mello no IFCS-UFRJ;.
Aos meus QUERIDOS amigos Bia Neves, Lilian Rabelo Patrcia Chaves, Heraldo
Portella, Clerli Teixeira, Eleonora Magalhes, Izamara Bastos, Gilson Machado, Rose
Novaes, Weden Alves, Marcelo Santos, Marisa Dreys, Pedro Pio, Sabrina, Hilaine
Yaccoub, Michele Markowitz e Barbara Franz. Todos com suas particularidades e em
momentos diferenciados foram testemunhas das alegrias, conflitos, surpresas,
mudanas, enfim, de todas as ambiguidades que vivenciei durante a minha fase liminar
de doutoranda;
minha professora de francs Conceio;
Aos colegas de PPGA, Leonardo Pomponet, Solange Mezabarba, Eliana Vicente, Thas
Queiroz, Andr Gil, Patrcia Pavesi e Iara Bulhes;
todos os professores e funcionrios do PPGA-UFF;
s amizades multinacionais que fiz em solo francs, atravs da Conveno Capes-
Cofecub, da EHESS, da Maison du Brsil e do Colege DEspagne, dentre as quais
destaco: Marcela Mateuzzo, Maira Abreu, Deborah Moura, Meritxel Fernandes, Cline
Lis, Catalina colombiana e Catalina mexicana, Constantino Nicolizas, Glauber Szarino,
Isaac, Lorena Fleury, Santuza, Claudio Assis, Andrea Betnia, Barbara Carioca, Raquel
Sousa Lima, Ina Coutinho, James Humberto, Tatiana Bina, Frederico Barros, Fernanda
6
Tarabal, Rosangela Carrilo, Francesc Tous, Irina Golovina, Paloma Gutirrez, Luciene
Braz, Ainoa, Michiel, Philipe Lacaze, Isabel Ferreira, dentre muitos outros
CAPES que me concedeu um ano e meio de bolsa de estudos no Brasil e um ano na
Frana.
s professoras doutoras que aceitaram fazer parte da minha Banca de Doutorado:
Margareth da Luz Coelho, Letcia Helena Medeiros Veloso, Neiva Vieira da Cunha,
Letcia de Luna Freire, os professores Marco Antnio da Silva Mello e o professor
Carlos Abrao Valpassos e a professora Carla Fernanda Pereira Barros, que participou
de minha banca de qualificao.
Aos familiares e amigos de quem estive to distante durante o doutorado. Aos meus
amigos fraternos do CEU, local iluminado onde me energizo e reponho as baterias
mentais e espirituais;
Ao ento presidente da Associao dos Moradores do Morro do Preventrio - AMMP
Jos Wilson Santos e a assistente social Tnia Oliveira;
E, sobretudo, aos moradores do PAC do Preventrio, que abriram suas portas e
receberam-me com muito carinho e confiana a qualquer hora ou dia da semana. Em
especial Sr. Jos Faustino, Joo Batista e Adriano. Sem a solidariedade e a boa recepo
de todos eles, este trabalho no teria acontecido.
Ao ar que respiro,
OM Shanti
7
A casa nosso canto no mundo
Gaston Bachelard
8
Resumo
Esta tese representa o esforo de traduzir e interpretar algumas situaes observadas por
mim durante trabalho de campo realizado em dois conjuntos de prdios construdos pelo
Programa de Acelerao do Crescimento, o PAC, no Morro do Preventrio, localizado
em Niteri, municpio da regio metropolitana do Rio de Janeiro. Procurei observar
como uma poltica pblica habitacional, concebida pelo governo federal, foi recebida
por aqueles a quem se destinava e como este evento foi vivenciado em termos
pragmticos, lgicos e dramticos. Busquei atravs das narrativas dos moradores
removidos de reas de risco da favela para os apartamentos, identificar seus principais
conflitos, decepes, ambiguidades, ansiedades, incertezas, alegrias, novas expectativas
e projetos a respeito da nova vida. Minha anlise tenta dar conta de "como" a
moradia, mesmo no sendo inicialmente escolhida ou desejada, e sim imposta por um
programa de governo, foi pouco a pouco sendo transformada na "casa toda
arrumadinha", conforme uma expresso nativa igualmente presente e recorrente em
todos os depoimentos.
Palavras chave:
PAC- Morro do Preventrio- Casa- Mudana- Consumo domstico
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Abstract
This dissertation presents an effort to translate and interpret certain situations that I
observed while doing fieldwork in two low-income apartment buildings constructed by
the Accelerated Growth Program (PAC) on the Preventrio favela, located in Niteri, a
city in greater metropolitan Rio de Janeiro. I sought to observe how a habitation policy,
created by the federal government, was received by those for whom it was destined and
how moving to the new buildings was experienced in pragmatic, logical, and dramatic
terms. By way of resident narratives on being removed from environmental risk areas,
where their favela was located, to the apartment buildings, I sought to identify what
their main conflicts, deceptions, ambiguities, anxieties, uncertainties, joy, new
expectations, and projects were, regarding their new life. My analysis attempts to
understand how ones place of residence, even when it is not that originally desired or
chosen, but imposed by a governmental program, was slowly transformed into a nice
and neat home, the native expression used continuously in all the accounts I received
of this change.
Key words: PAC - Moving - house- Preventrio Favela- Domestic consumption
10
SUMRIO
INTRODUO 12
CAPITULO 1- O LUGAR- O PREVENTRIO 27
1.1- A percepo dos espaos 37
1.2-Niteri 46
1.3 - O Programa de Acelerao do Crescimento O PAC 49
1.4- O PAC no Preventrio 54
CAPTULO 2 O PAC NO MORRO DO PREVENTRIO 60
2.1- A baixada e a parte alta do Preventrio 61
2.2- O Preventrio III 63
2.3- O Preventrio I 65
2.4 - Os moradores do PAC Preventrio 66
2.4.1-Joo 66
2.4.2-Jos 69
2.4.3 Adriano 71
2.4.4-Simone 72
2.4.5- Denise 74
2.4.6- Aline 76
2.4.7- Crisntemo 77
2.4.8- Viviane 81
2.4.9- Cludia 82
2.4. 10- Gisela 83
2.5- Dificuldades na ambientao 83
11
CAPTULO 3- O NEXO PRAGMTICO DA MUDANA 87
3.1- A casa como problema sociolgico 89
3.2- A mudana no sentido pragmtico 94
3.3- "Uma casa toda arrumadinha" - A dimenso pragmtica da mudana e a
aquisio do gosto: 96
3.4-A sala e o sof: 113
3.4-O Quarto e o armrio 124
3.5- Banheiro: a torneira e o chuveiro 134
3.6-Cozinha: geladeira e armrios 137
CAPTULO 4- O nexo lgico da mudana 145
4.1- De "moradores de favela" a "condminos" 145
4.2- A nova lgica do consumo domstico 153
4.3- A necessidade de compreender a lgica dos outros 164
4.4-A perda de privacidade e o controle da vizinhana 166
4.5- A nova lgica na aquisio e nos usos dos bens 171
4.6- A (nova) funo das coisas 176
4.7-A administrao das contas: a lgica das novas despesas domsticas 183
4.8 -Hierarquia de gastos obedecida entre os moradores dos apartamentos do
PAC- Preventrio 189
4.8.1-Alimentao 189
4.8.2- O gs e o Botijo 192
4.8.3-A Conta de luz 194
4.8.4-As compras parceladas 198
4.8.5- gua 200
4.8.6-O Condomnio 201
CAPTULO 5- O Nexo dramtico da mudana 203
5.1- Conflitos, ambiguidades e os dramas de serem (ex) favelados 206
5.2-Dona Luzia 217
5.3-Dona Carmem 220
12
5.4-Felcia e Aline 222
5.5-Sr. Jos 225
5.6-O mexerico: um drama social na vizinhana 229
5.7-O drama da mudana vivido de uma forma diferente 233
5.8- A Fronteira das ambiguidades 243
5.9 - Compras e despesas: perdas e ganhos na casa nova 244
5.10- O Pagamento das contas 249
5.11-Sou mais morar em comunidade perto de Icara do que numa casa na beira da rua em So Gonalo 258
5.12-Uma pequena observao sobre as habitaes populares em Nanterre e em
Paris 259
CONCLUSO 270
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 276
ANEXOS
13
INTRODUO
O tempo de escrever, tal como o de pesquisar, no nico, imediato e contnuo,
mas, ao contrrio, constitui um processo complexo e pleno de descontinuidades. De
forma alguma tais circunstncias assinalam incapacidades, mas, sim, especificidades
com relao aos diferentes momentos de construo do conhecimento antropolgico.
No que se refere aos efeitos do campo e de suas implicaes, Peirano (1995),
destacou alguns eventos que podem ocorrer ao pesquisador a partir do trabalho de
campo, tais como os limites impostos prpria pesquisa, logo depois de seu incio, e,
finalmente, a mudana de propsitos e objetivos da pesquisa como um todo, diante das
evidncias do campo emprico, muitas vezes contrrias s nossas hipteses iniciais.
nesse sentido que se confirma a ideia de que a Antropologia uma cincia heurstica, j
que cada pesquisa reinaugura os passos fundamentais constitutivos da disciplina, e no
apenas os repete e reproduz.
Por seu turno, a etnografia tambm ocorre em diferentes etapas. A esse respeito,
Geertz (2000), um dos principais autores da Antropologia Interpretativa, referiu-se a
dois desdobramentos bsicos: o "estar l" (no campo) e o "estar aqui" (no gabinete). Em
um primeiro momento, as primeiras ruminaes entre o que se escuta, ouve-se e
observa-se ocorre l, no campo, medida que o pesquisador faz suas anotaes no
caderno de campo. Trata-se de um primeiro exerccio reflexivo diante das informaes
recm-obtidas, uma primeira tentativa de construo de nossos dados ainda numa
situao de convvio, e de relao direta com nossos interlocutores e o prprio ambiente
onde vivem, o que pode corroborar e at mesmo sinalizar mudanas importantes quanto
aos rumos a serem tomados dali por diante, em relao a escolhas, estratgias de
abordagem, aspectos morais relevantes que podem agir contra ou favoravelmente ao
trabalho de campo etc... Assim, o trabalho de campo constitui-se em uma experincia
nica, para alm de colocar em prtica procedimentos e ferramentas cientficas; trata-se
de um processo intersubjetivo que singulariza o pesquisador diante de seus pares.
O que foi escrito at este momento tem como intuito relatar que minha entrada
em campo no foi um acontecimento linear, fruto de uma escolha deliberada, mas
14
resultado de um processo longo, que foi precedido pelo contato com outros campos, e
respectivamente interao com outros interlocutores e cenrios, at que pudesse,
enfim, encontrar meu campo atual, este que ser doravante o ponto de partida e
referncia de todo o texto que se segue.
O processo etnogrfico definido ao longo do seu curso. Tal como Geertz
(1973:10) definiu sabiamente, o texto etnogrfico construdo enquanto uma descrio
densa das condies socialmente estabelecidas da comunicao humana atravs de
cdigos culturais. Para o autor, fazer etnografia como tentar ler um manuscrito
estrangeiro. A diferena que tal manuscrito no redigido de maneira convencional,
mas atravs de exemplos transitrios de comportamento cultural e socialmente
constitudos.
Apesar de realizar uma etnografia num conjunto habitacional na mesma cidade
em que moro, os estrangeirismos e os familiarismos a cada encontro tomaram-me de
surpresa em igual medida. A busca por uma suposta interpretao desta grafia de certa
forma imprime ao discurso antropolgico um carter ficcional.
Inicialmente meu objetivo era estudar o tema da dvida e do endividamento entre
grupos de indivduos de camadas mdias urbanas no Rio de Janeiro. Estava interessada
no tema da despesa e, mais especificamente, de como as pessoas usavam seus recursos
financeiros para organizarem seus oramentos e orientarem seus gastos, tendo em vista
especialmente o fato de pertencerem a uma sociedade na qual o consumismo constitui-
se numa ideologia central e um importante valor, algo passvel de atribuir e conformar
identidades, estilos de vida e at mesmo definir formas de subjetividade.
Com este tema em mente, cheguei a defender meu projeto de doutorado, mas j
naquele momento defrontei-me com alguns obstculos, e o mais importante dele foi no
dispor de um grupo de referncia, mas apenas de um nmero de indivduos com os
quais vinha conversando sobre o assunto. Tais indivduos no possuam quaisquer
vnculos ou relaes entre si, assim, sequer podiam ser identificados como membros de
um mesmo grupo, fosse por questes econmicas, profissionais, ocupacionais,
religiosas, morais, gostos etc. O que os unia era o fato de se reconhecerem e serem
identificados como membros das camadas mdias urbanas por diferentes razes:
ocupacionais, nveis de renda, moradia, escolaridade, e, finalmente, pelos elevados
nveis de endividamento. Eu pensava que este dado poderia servir como um
denominador comum para definir este conjunto de indivduos como um grupo, mas
15
meus interlocutores na banca alertaram para a necessidade de encontrar ou definir
outros marcadores sociais, e isso poderia levar algum tempo. Diante desse desafio, eles
sugeriram um recorte etnogrfico mais clssico, no qual eu tomasse como referncia
um grupo que se autodenominasse ou fosse percebido como tal. Outra possibilidade
seria tomar um lugar, uma regio, um bairro, uma comunidade, e ali passar a
acompanhar um grupo de moradores de forma a observar seus padres de gastos e
despesas, tendo como ponto de partida seus hbitos de consumo.
A oportunidade para sair de meu dilema inicial se deu quando aceitei a sugesto
de meus colegas e professores do PPGA-UFF, principalmente do professor Marco
Antonio da Silva Mello, para acompanhar uma colega francesa que estava em visita ao
Brasil, por conta de um acordo de colaborao internacional CAPES-COFECUB.
Halima MBirik, estudante de doutorado em Antropologia da Universidade de Nanterre,
e na ocasio, aluna do professor Jos Sanchez, pesquisava na cidade francesa de
Nanterre os engajamentos polticos entre habitantes dos logements sociaux.
Por esta razo, Halima estava interessada em conhecer favelas cariocas e suas
respectivas Associaes de moradores. Por coincidncia, na mesma poca da visita de
Halima, alguns pesquisadores da UFF e do LeMetro tinham iniciado contatos com a
Associao de Moradores do Morro do Preventrio (AMMP) em Niteri, dentre eles,
minha orientadora Laura Graziela Gomes, e Marco Antonio da Silva Mello, pois a
Prefeitura havia feito algumas demandas ao grupo de pesquisadores da UFF em relao
a implantao de um telecentro na localidade.
Na ocasio em que estive com Halima no Preventrio, fui acompanhada pela
colega de doutorado, Iara Bulhes. O encontro havia sido marcado atravs de contato
telefnico feito entre Hilaine Yaccoub e o presidente da Associao de Moradores
(AMMP), Jos Wilson Souza . Hilaine, ao contrrio de mim e Iara, conhecia este, pois
havia participado do encontro anterior em que estavam presentes pesquisadores da
Universidade Federal Fluminense, representantes do poder pblico e do Morro do
Preventrio, entre os quais estava Jos Wilson.
Nosso primeiro encontro aconteceu na parte externa de uma tabacaria localizada
na Estao Hidroviria do Catamar de Charitas, local sugerido por Jos Wilson, pois
alm de ser um local de fcil acesso, ficava em frente ao Morro do Preventrio.
Marcamos no mesmo local com Halima, que na ocasio, estava hospedada na casa de
uma professora num bairro prximo. Iara e eu tnhamos apenas informaes gerais
16
sobre suas descries fsicas, mas ao chegarmos ao ponto de encontro facilmente a
reconhecemos pelos seus cabelos compridos, volumosos e cacheados, uma de suas
caractersticas marcantes. A conversa inicial foi muito amistosa, apesar de naquela
ocasio meu conhecimento da lngua francesa ser ainda bem primrio.
Jos Wilson estava acompanhado por uma das assistentes sociais encarregada
pela empreiteira Delta de realizar a pesquisa sobre impacto social relacionada aos
moradores que se mudariam para os apartamentos do PAC- Preventrio. Naquele dia,
dispunha de pouco tempo para o grupo, pois havia alguns compromissos fora dali; no
entanto, explicou-nos rapidamente como se deu o incio de seu trabalho no Preventrio
e ressaltou o papel fundamental da Associao de Moradores na articulao com o
poder pblico, na troca de informaes e nas reivindicaes que estes fizeram referentes
s carncias locais, como por exemplo, a necessidade de uma melhor rede de esgoto e
conteno das encostas. Foi atravs da Associao de Moradores que houve o
cadastramento de famlias contempladas com apartamentos do PAC.
Duas etapas do PAC Habitao ocorreram no Preventrio: o PAC 1, que
consistiu na construo de trs blocos de apartamentos de quatro a seis pavimentos cada
um, totalizando 248 unidades habitacionais, e o PAC 2, que comearia apenas aps a
finalizao dos prdios e previa obras de pavimentao e saneamento em toda a favela.
Aps a rpida explanao de seu ofcio no PAC, a assistente social seguiu para
seu encontro de trabalho e deixou-nos a ss com Jos Wilson, que fez uma espcie de
visita guiada pelo Morro e contou histrias pontuais sobre a localidade, sobre a
fundao da Associao de Moradores em 1981 e a importncia da militncia poltica
dos moradores para a aquisio de diferenciados servios l existentes, como por
exemplo, a instituio de um polo do programa "mdico de famlia", modelo de
medicina preventiva, idealizado pelo governo cubano, do qual falaremos mais adiante.
O que poderia ter sido um simples passeio para acompanhar uma colega
estrangeira, no deixou de ser um primeiro vislumbre, para mim, de um possvel campo
para minha pesquisa, o que desde logo me exigiu um posicionamento como
pesquisadora. Dessa forma, apoiando-me no artigo de Collete Pttonet, deixei-me
conduzir pelas particularidades do campo, influenciada pela ideia da observao
flutuante (Pttonet; 2008; p.102). Para a autora, a observao flutuante consiste no
pesquisador permanecer vago e disponvel em toda a circunstncia, em no mobilizar a
ateno sobre um objeto preciso, e deixar-se flutuar, de modo que as informaes o
17
penetrem sem filtro, sem a priori, at o momento em que pontos de referncia, de
convergncias, apaream, e possa, ento, descobrir algumas regras subjacentes do
campo.
Jos Wilson levou-nos aos locais em que ele considerava como principais
referncias do Preventrio: a sede da Associao de moradores; a equipe do Mdico de
famlia; alguns comrcios locais (como quitandas, armazns e sales de beleza); e o
Centro Comunitrio, construdo pela equipe do PAC. Caminhamos na parte baixa e nas
principais entradas: Meu cantinho, Maloca e a rua 14 de abril. Jos Wilson apresentou-
nos, com orgulho, uma breve histria do Morro do Preventrio e as vitrias conseguidas
pela Associao de moradores, como por exemplo, a consolidao do POUSO - Posto
de Orientao Urbanstico e Social, conquista alcanada em 2010, durante sua gesto, e
proposta inicialmente idealizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro durante a execuo
do Favela Bairro.
Uma das visitas que fizemos na companhia de nosso anfitrio foi ao Posto
Mdico da Famlia, sediado, naquela ocasio, numa rea arborizada, em uma das
entradas em direo ao Morro. Chegando l, Wilson apresentou-nos equipe de
mdicos e tcnicos de Enfermagem. Ressaltou a preferncia por contratar tcnicos de
enfermagem que morem na comunidade, por estes conhecerem a vizinhana,
despertarem confiana nos moradores, e por esta razo, atuarem como facilitadores na
conscientizao da necessidade de consultas preventivas.
Durante o perodo de implantao do PAC e da execuo das obras, a equipe da
Associao de Moradores foi a principal responsvel pelo acolhimento das diferentes
equipes de implantao da obra, tanto a equipe tcnica, quanto a equipe social,
encaminhando-lhes as principais demandas da comunidade, at mesmo a entrega de
determinados tipos de materiais para a obra, como luminrias e pisos. Sobre ela
voltaremos a falar mais adiante.
Ao sairmos da Associao, fomos em direo ao Preventrio III, que na ocasio
estava com as obras em processo de finalizao. Segundo contou Jos Wilson, a maioria
dos moradores contemplados com os apartamentos vivia em casas muito precrias na
favela e, portanto, a ida para os apartamentos seria uma oportunidade para uma
melhora de vida. Esta mudana, no entanto, criava muitos questionamentos nos
moradores que continuavam na favela. Havia para uns, a sensao de injustia, na
medida em que defendiam a ideia de que muitos que precisavam no ganharam
18
apartamentos, ao passo que outros que no precisavam, ganharam. Essa dualidade
despertou ainda mais o meu interesse em conhecer esses moradores, pois havia tambm
no discurso de Jos Wilson a ideia de que todos que estavam nos apartamentos eram
famlias mais precarizadas e, portanto, carentes de aes do governo.
Este foi meu primeiro contato com o Preventrio, e desde ento ficou evidente
para mim que ele poderia vir a ser o campo emprico que estava buscando para realizar
minha pesquisa. Estava claro que a mudana dos moradores para os apartamentos
implicaria uma srie de mudanas, particularmente em suas rotinas domsticas, no
campo da sociabilidade, nas relaes de vizinhana, finalmente, no campo das
representaes sobre si prprios e os demais. Nesse sentido, eu poderia manter a ideia
de trabalhar com o grupo, tendo como ponto de partida as mudanas que se verificariam
em seus hbitos de consumo, tomando-o como uma referncia importante para
acompanhar as relaes que esse grupo de moradores desenvolveria com o novo espao
de moradia, no s em termos materiais propriamente ditos, atravs dos modos de uso
do espao domstico, como tambm pela forma como organizaria seu oramento,
pensaria e conceberia suas prioridades em termos de despesas, at mesmo a forma como
utilizaria certos bens como energia eltrica, gua, dentre outros.
Segundo Jos Wilson, a ida para os apartamentos seria uma oportunidade de
melhora e mudana de vida para muitas famlias, apesar de o prprio comentar a
insatisfao de vrias destas famlias em relao ao tamanho dos imveis, ausncia de
quintal e necessidade de pagamentos de taxas. Era perceptvel em seu discurso, ainda
que de maneira ambgua, que os novos moradores dos apartamentos passaram a ser
vistos ou como sortudos, ou numa escala abaixo daqueles que continuaram favela, o que
justificaria uma ajuda do governo.
Foi neste momento que pude vislumbrar um outro tema importante, pois sempre
que o assunto da mudana era mencionado, havia uma alternncia de pena e
comiserao, como se alguma desgraa grande houvesse desabado sobre aqueles
personagens escolhidos para irem morar no conjunto de apartamentos que estava sendo
construdo mais adiante. Eu me perguntava perplexa por que eles demonstravam tanta
compaixo e pena por seus vizinhos, se o apartamento para onde iriam ser transferidos,
segundo minha prpria lgica particular parecia ser bem melhor que os barracos
insalubres e, ainda por cima, localizados em reas de risco?
Aquela tarde de 2010 foi longa e promissora, pois ao finalizar a visita j podia
19
ter a certeza de que voltaria e, se tudo desse certo, aquele seria meu campo emprico.
Peguei os contatos de Jos Wilson, prometi-lhe que voltaria ao Preventrio e pedi para
que me apresentasse alguns moradores dos apartamentos. Disse a ele que gostaria de
analisar a partir daquele momento, a nova dinmica habitacional dos moradores dos
apartamentos, enfatizando, tambm, a minha temtica anterior, ou seja, consumo e
endividamento.
No caminho de volta para casa, refleti sobre tudo o que havia presenciado.
Chamou-me principalmente a ateno o Preventrio I, o primeiro conjunto de
apartamentos entregues pela construtora aos moradores. Ele est situado num espao
privilegiado em termos imobilirios, ou seja, em frente orla de So Francisco.
Enquanto o observava do lado de fora, durante a conversa com a assistente social, na
ocasio em que falava sobre seu trabalho no PAC, percebi que alguns moradores desse
primeiro conjunto caminhavam pelos corredores do prdio. Alguns deles deixavam suas
janelas e portas abertas, o que facilitava a curiosidade de quem estava do lado de fora
em observar, ainda que rapidamente, o cuidado que possuam com a arrumao do
interior de suas residncias, a ordenao esttica de suas casas. Pude perceber que
aparentemente possuam mveis novos (estantes, racs, sofs,...), e tendo em mente as
questes do meu tema sobre endividamento, o que vi naquele dia suscitou em mim
problemas que poderiam ser investigados posteriormente: a casa nova teria sido um
estmulo para comprarem novos bens domsticos? Em caso afirmativo, como
compraram esses bens? Ou seja, se endividaram por conta da mudana? Finalmente, que
sentido ou sentidos esta mudana possua para eles?
Havia o risco desta dualizao criar inicialmente uma exotizao do grupo
analisado, mas a situao concreta era que eu poderia aproveitar a situao de mudana
desses moradores, ao mesmo tempo objetos de pena e compaixo de seus antigos
vizinhos, para descrever um conjunto de prticas e valores associados moradia,
inclusive, mudanas sensveis que eles enfrentariam quanto a novos gastos e despesas,
mas tambm algo que poderia vir a ser a primeira contribuio para uma avaliao dos
impactos do PAC-Preventrio.
Nas semanas seguintes, mantive contato telefnico com Jos Wilson e reafirmei
meu interesse em conhecer melhor os moradores do PAC. Assim sendo, ele me
convidou para uma reunio de implantao de um Banco popular, um projeto
desenvolvido em parceria com uma equipe de pesquisadores da UFF, em convnio com
20
a concessionria de energia eltrica AMPLA, do qual falarei mais adiante. A reunio
ocorreu na Escola Municipal Pereira das Neves, palco de muitos eventos, e est
localizada dentro da comunidade do Preventrio. Alm do presidente da AMMP, foram
chamados os moradores do Morro do Preventrio e dos PACs.
Foi nesta reunio que conheci os primeiros interlocutores do PAC do
Preventrio. Tal proposta de banco popular com moeda prpria e de circulao local,
visaria estimular pequenos empreendedores locais, alm de fornecer emprstimos a
juros menores que os de mercado para eles. A anlise da concesso do crdito no
passaria pela consulta da listagem dos rgos de fiscalizao do crdito, como o Servio
de Proteo ao Crdito - SPC ou Serasa e, sim, atravs da conduta moral do requerente
na localidade.
Neste encontro conheci tambm diferentes lderes comunitrios, principalmente
aqueles que seriam os meus interlocutores mais importantes ao longo da pesquisa de
campo, como Jos e Joo, ambos moradores do Preventrio III. Fomos apresentados e
mostrei a eles meu interesse em pesquisar mais diretamente a nova dinmica de
moradia, sociabilidade e consumo nos prdios. Trocamos telefones e marcamos um
encontro para a semana seguinte. Neste dia tive certeza de que j estava fazendo campo.
Finalmente, minha Odisseia havia comeado.
O meu primeiro campo propriamente dito nos apartamentos do PAC aconteceu
numa tarde de segunda-feira. Antes de sair de casa, liguei para o Senhor Jos, sndico de
dois blocos do Preventrio III, que conheci na reunio do Banco Popular, e que
convenientemente sempre tinha o seu celular ligado. Perguntei-lhe se poderia me
ciceronear numa primeira visita a seus vizinhos e ao novo local de moradia. E ele de
forma simptica e receptiva disse que o melhor horrio da semana seria exatamente
naquele dia. Em pouco mais de duas horas, estava eu l no local combinado. No
entanto, ao chegar entrada do Colgio CIEP Leonel Brizola, que fica em frente ao
conjunto de prdios do Preventrio III, e ao lado de uma das principais entradas para o
Morro, liguei para avisar de minha chegada. O Senhor Jos atendeu e pediu para que eu
o esperasse por mais uns dez minutos, pois ele estava em sua antiga casa no morro,
dando o que comer sua cadela que havia acabado de dar cria a sete filhotinhos.
Ao chegar esbaforido, mas pontualmente dez minutos depois, lamentou a
impossibilidade de levar os animais de estimao para os apartamentos: L no tem
condies. pequeno demais. Vou ter que arrumar algum pra ficar com eles porque
21
abandonar eu no tenho coragem. O meu gato eu trouxe, mas ele fugiu no dia seguinte.
triste deixar os nossos bichinhos de lado. Enquanto eles no derrubam a minha casa
eu cuido deles, mas preciso arrumar logo algum que os queira.
Estava um pouco constrangido com o atraso, mas pediu desculpas e em seguida
fomos em direo ao Preventrio III, conjunto de prdios em que mora. Antes de
entrarmos ele disse as impresses que tinha sobre o local: Olha, isso aqui pode at estar
bonitinho agora, mas logo, logo, por causa desse pessoal, vai ficar uma favela igual l
em cima, voc vai ver. As pessoas no tem educao nenhuma. S voc vendo. E tem
outra coisa, o material de obra que usaram aqui foi o mais vagabundo possvel. Eu vou
te mostrar.
Mal atravessamos o porto, ele comeou a fazer observaes que refletiam sua
insatisfao com a vizinhana, com o material de obra utilizado pela Delta na
construo dos prdios e com a necessidade de reformular seus hbitos.
Neste dia, no havia planejado nenhum roteiro de perguntas, pois gostaria de
conhecer melhor o local, os moradores, a forma como lidavam com a nova moradia,
com a incorporao de novos hbitos e a opinio sobre a mudana. Portanto, as
primeiras interrogaes que fiz a alguns moradores tinham o objetivo de reconhecer
melhor o campo, logo, no havia um roteiro estruturado de perguntas objetivas e diretas.
Contei com o auxlio de Jos para que ele me apresentasse alguns de seus
vizinhos, e me falasse tambm um pouco sobre suas impresses em relao mudana,
afinal, ele foi o meu primeiro interlocutor.
Apesar de sentir-me mais estimulada a conhecer o Preventrio I - pois ele foi o
meu interesse inicial, por consider-lo o mais liminar de todos os prdios do PAC-
Preventrio, pelo fato de estar localizado na avenida principal, portanto, de maior
valorizao imobiliria - o incio da etnografia se deu a partir do ltimo bloco, o
Preventrio III, conforme mencionado anteriormente, porque meus interlocutores
iniciais eram moradores de l.
Precisei de algumas semanas para conhecer alguns moradores e saber das vrias
dinmicas locais para, enfim, elaborar um roteiro de perguntas, que poderiam ser
alteradas de acordo com cada histria de vida, de cada entrevistado. A princpio, pensei
em estabelecer um nmero limitado de moradores entrevistados, para depois escolher
os mais representativos e, desta forma, explorar mais atentamente observaes a partir
22
de um convvio mais sistemtico. No entanto, o exerccio dirio de conversar, conhecer
histrias de vida e posicionamentos diferenciados sobre a ideia de mudana, foi
parecendo surpreendentemente interessante e estimulante, ao mesmo tempo em que
minha temtica inicial, endividamento, foi se tornando extremamente confusa e
secundria, medida que o endividamento era vivenciado de formas mltiplas pelos
diferentes interlocutores, que possuam diferentes interpretaes sobre o estado de
endividamento.
No entanto, se eu fosse levar em considerao apenas as falas dos interlocutores,
eu teria encontrado um local onde quase ningum tinha dvidas, o que algo incomum
nos dias atuais, uma vez que quase ningum considerava-se endividado, pobre, embora
outros dados e falas fornecidos pelos prprios entrevistados, contradissessem tal
condio. Um dos exemplos mais comuns era a desvinculao da ideia de
endividamento com o nome presente no cadastro do Servio de Proteo ao Crdito -
SPC.
Nesse sentido, acabei aumentando substancialmente o nmero de entrevistados,
pois at ento o objetivo era encontrar indivduos que se considerassem endividados e
que tivessem aumentado sua dvida aps a mudana para os apartamentos. Quando
cheguei a um nmero prximo a 60, conclu que deveria mudar o foco da pesquisa, pois
eu no poderia continuar sustentando uma temtica que o campo no me apresentava.
Era preciso ser fiel ao campo e problematizar aquilo que os moradores tinham
como central em suas vidas, o que naquele momento era a mudana de vida. Todas as
demais peculiaridades estavam, de uma forma ou de outra, interligadas a essa mudana:
a aquisio de novos bens, de novos servios, a formalizao de determinadas despesas,
casos de endividamento, preocupao com novas formalidades que envolviam o nome
e, portanto, a honra, e responsabilidades. Portanto, essa relao entre mudana de
moradia, aquisio de bens domsticos e aumento de despesas, passou a ocupar o cerne
de minhas observaes.
As conversas e entrevistas com os moradores foram feitas quase que em sua
totalidade em suas residncias, e complementadas em dias posteriores, na praa e nos
corredores, em dias diferenciados e de forma aleatria. Nesse movimento, foi possvel
identificar e ao mesmo tempo confirmar, atravs dos dilogos, o quanto a aquisio de
bens domsticos foi importante para a simbolizao da mudana. Na quase totalidade
dos apartamentos que visitei, era possvel ver moblias e eletrodomsticos novos, alm
23
de um cuidado especial com a esttica da casa.
De um modo geral, pesquisas de cunho qualitativo exigem a realizao de
entrevistas, quase sempre longas e semiestruturadas. Nesses casos, a definio de
critrios, segundo os quais sero selecionados os sujeitos que vo compor o universo de
investigao, algo primordial. No entanto, o meu interesse eram os moradores do
PAC. Esse era o critrio. A princpio, conforme j comentei, procurava moradores
endividados, mas foram poucos os que se consideravam como tal.
De acordo com Duarte (2002), numa metodologia de base qualitativa, o nmero
de sujeitos que viro a compor o quadro das entrevistas dificilmente pode ser
determinado a priori, pois tudo depende da qualidade das informaes obtidas em cada
depoimento. Enquanto estiverem aparecendo dados originais ou pistas que possam
indicar novas perspectivas investigao em curso, as entrevistas precisam continuar
sendo feitas. As situaes nas quais se verificam os contatos entre pesquisador e sujeitos
da pesquisa configuram-se como parte integrante do material de anlise.
No havia um horrio marcado para a maioria das entrevistas. Na primeira
semana, Jos me indicava, de acordo com seu convvio e melhor sociabilidade, os
moradores com os quais eu iria conversar. A partir da segunda semana, ele disse que eu
j era de casa, e que o pessoal j me conhecia, que por isso eu no precisaria ser
guiada sempre por ele. E assim eu o fiz. De maneira quase aleatria, escolhia as
portas em que eu iria bater. Aquelas que tinham plantas na entrada ou algum enfeite,
geralmente eram minhas preferidas. S recebi uma recusa ao longo dos oito meses de
campo. Frequentei o Preventrio III durante trs meses, numa mdia de trs a quatro
dias por semana. Em alguns dias, eu apenas observava o movimento dos prdios e as
crianas brincando, ou conversava com os sndicos questes relativas burocracia.
Na terceira semana, alm das perguntas iniciais (nome, idade, profisso,...) eu j
havia um roteiro semiestruturado de questes, acrescido de: quantidade de moradores na
casa; motivo da mudana; satisfao em morar no PAC; se compraram algo de novo
para a nova casa; se se consideravam endividados, se possuam cartes de crdito e
conta em banco; se a mudana alterou os gastos; presena ou no do nome no cadastro
do SPC; valor da renda familiar, dentre outros itens. A cada dia, uma nova questo
mostrava-se importante para encadear novas perguntas. Normalmente, os moradores
mostravam-se espontneos e no demonstravam desconforto com minha presena.
24
A princpio olhavam-me com certa desconfiana. Talvez por no me
reconhecerem como uma local. Quando acenava, dava um sorriso ou comeava uma
conversa, perguntavam-me se eu era do PAC ou da Prefeitura, e antes que eu
respondesse qualquer coisa, faziam-me queixas sobre diferentes assuntos, como se eu
tivesse alguma autoridade para resolver algo. Quando eu explicava que era estudante da
Universidade, e que tinha o propsito de realizar uma pesquisa, muitas vezes ouvia de
forma decepcionada a frase: Ah, pensei que fosse.
De uma maneira geral, tive muita sorte com a recepo dos moradores, que
nunca demonstraram se incomodar com minha presena nos corredores, ou quando fazia
perguntas referentes a conforto, oramento, salrios e dvidas. Pelo contrrio,
perguntavam se eu queria ver boletos pagos de luz, condomnio e de carns de lojas de
departamento.
Ao longo de um ms de campo no PAC do Preventrio III, j foi possvel
identificar a divergncia de opinies sobre "a mudana" para os apartamentos. A "falta
de privacidade" era a principal queixa. A segurana nos dias da chuva e o conforto dos
apartamentos eram os principais pontos positivos.
A presente tese est dividida em cinco captulos. No primeiro captulo, o
objetivo foi apresentar o campo, a localidade onde desenvolvi as observaes, narrar um
pouco de sua histria, das especificidades do bairro e da cidade em que o PAC est
localizado, e os motivos que levaram a execuo do projeto naquela localidade. Trata-se
de uma regio que apresenta caractersticas particulares quanto paisagem e pelo tipo
de ocupao que apresenta.
No segundo captulo, fao uma apresentao geral da ocupao do lugar.
Historicamente, o Preventrio uma regio antiga da cidade, porm a ocupao que deu
origem ao morro do Preventrio mais recente, e sua populao majoritariamente
formada por migrantes, diferentemente do bairro de Jurujuba - uma colnia de pesca
artesanal - e o bairro de So Francisco, um bairro de classe mdia alta.
Embora eu tenha entrado em contato com muitas pessoas e suas respectivas
histrias de vida, muitas delas analisadas ao longo da tese, apresento no segundo
captulo, a histria de dez moradores que considerei exemplares para entender melhor
os aspectos da mudana da favela para os apartamentos. Os conflitos e ansiedades
destes moradores aps a mudana sero tomados como referncia ao longo da tese, bem
25
como as representaes e estigmas da condio de ex-favelados e atuais moradores de
apartamentos.
J os trs captulos seguintes foram organizados em torno do tema da "mudana"
propriamente dita. Entretanto, antes de desenvolver o esquema tal como pareceu
apropriado ao meu material de campo, preciso reafirmar que o meu foco na
"mudana" no foi uma escolha pessoal, mas ela se imps pelo fato de ser uma
categoria nativa onipresente em todas as conversas e entrevistas que mantive com meus
interlocutores. Atravs das distintas tonalidades emocionais pelas quais ela era
enunciada, evocada pelos moradores pude perceber ainda que ela, a mudana, dizia
respeito e era tomada pelos interlocutores como um "drama social", na acepo de
Victor Turner (1980; 2005), e foi a partir desta compreenso que estabeleci as relaes
com o esquema de Gregory Bateson (2008), tendo como referncia a estrutura analtica
utilizada por ele para analisar o ritual do Naven. De acordo com Bateson, o Naven
poderia ser melhor compreendido e analisado a partir de cadeias ou redes de relaes
causais que ele denominou de nexos pragmticos, lgicos e dramticos.
Nesses termos, no terceiro captulo intitulado O nexo pragmtico - a mudana:
entre o drama e a acomodao procurei ressaltar os aspectos pragmticos da mudana,
a mudana propriamente dita, ou seja, a sada da favela, tal como os interlocutores me
narraram e a ida para os apartamentos, tal como eu mesma estava testemunhando.
Atravs do vis pragmtico, observei e identifiquei o conjunto de aes objetivas de
engajamento que foram assumidas pelos moradores para "se acomodarem" (MILLER,
2013; THVENOT, 1994) nos apartamentos, com a finalidade de se instalarem
efetivamente naquele novo espao. Neste contexto, acompanhando as narrativas de
meus interlocutores, pude compreender melhor outra expresso igualmente nativa e
presente em suas conversas comigo, "ter uma casa toda arrumadinha". Para tanto, a
leitura de Goffman foi fundamental porque percebi que para meus interlocutores no era
suficiente apenas se mudar, sair de um endereo para outro, ou mesmo se acomodar no
sentido mais passivo do termo, era necessrio possuir objetos adequados quele espao,
isto , que se "encaixassem" (GOFFMAN, 2010) naquele novo espao que seria a "nova
casa".
No quarto captulo intitulado O nexo lgico da mudana, a nfase recaiu sobre
as categorias e os sistemas classificatrios - antigos e novos - mobilizados pelos
interlocutores para darem conta de seu novo cotidiano, com nfase, sobretudo, na
26
questo da organizao das despesas domsticas. Nesse contexto, preciso ressaltar
como a mudana de endereo, de certa forma imps a estes moradores a entrada numa
nova ordem financeira; a um novo estilo de vida baseado no consumo de certos bens e
no pagamento de taxas e despesas at ento desconhecidas por eles, como a taxa de
condomnio, motivo de frequentes crticas e desconfianas. Alm disso, atravs das
categorias e classificaes mobilizadas pude entrever ainda, como o novo espao -
dentro e fora dos apartamentos - constrangia-os do ponto de vista das novas regras e
etiquetas de convivncia, o que pressupunha um novo arranjo e mudana em relao aos
seus regimes de convivncia anteriores.
No quinto e ltimo captulo intitulado simplesmente O nexo dramtico
procurei analisar o sistema de atitudes e emoes expressas pelos interlocutores e
testemunhado por mim durante todo o perodo em que estive em contato com eles, fosse
visitando suas casas, conversando informalmente, ou mesmo entrevistando-os. A
expresso obrigatria dos sentimentos e emoes, como felicidade, alegria, satisfao,
mas tambm a raiva, a decepo, a insegurana, e em muitos casos de arrependimento
influenciavam as atitudes dos moradores em suas rotinas dirias, em suas relaes
recprocas e tambm em relao s escolhas que fizeram relacionadas aos seus
respectivos processos de instalao nos apartamentos. A expresso dos sentimentos,
demonstrou-me que minha intuio inicial estava correta, a de que, "a mudana" era
experimentada por eles como um "drama social" e que em muitos momentos eles
formavam uma "comunidade de aflies" (Turner, 2005), especialmente em relao a
certos questes que diziam respeito nova vida em comum. Era o que os unia - as
aflies - mas tambm o que os diferenciava, j que as solues que cada um ia
encontrando para lidar com elas eram diferentes. Outra questo relevante foi em relao
aos conflitos e o modo como se relacionavam com eles e procuravam resolv-los. Mais
uma vez, muitos desses conflitos eram novos para eles e isso gerava muita ansiedade e
ambiguidade. Este fato, levou-me a uma segunda percepo importante, a de que meus
interlocutores no haviam consumado ainda "a mudana" propriamente dita,
especialmente naqueles termos banalizados pela propaganda do governo no sentido de
terem efetivamente mudado de classe econmica ou social, ou terem sido objeto de uma
mobilidade social.
Independentemente de concordar ou no com algumas teses anunciadas, eu
estava diante de algo surpreendente, em termos antropolgicos: de fato, essas pessoas
27
deixaram de ser o que eram antes, mas, de forma alguma tornaram-se ainda o que se
pretende que elas sejam. A liminaridade constitui a posio em que eles se encontram
ou pelo menos se encontravam naquele momento, h quase trs anos atrs.
A consolidao da mudana e, consequentemente uma avaliao para se saber
realmente se essas pessoas "mudaram" sua posio social exige um acompanhamento
maior o que, infelizmente no foi previsto por aqueles que conceberam o PAC. A
mudana nesses termos no pode ser uma percepo imposta, ela precisa ser confirmada
ou no, por aqueles que foram objetos dessas aes e isso exige tempo, porque essa
mudana de percepo no imediata. Ningum, pelo simples fato de ganhar uma casa
nova vai achar que trocou de classe social.
Assim sendo, finalizo este trabalho mostrando que os conflitos e todas as
expectativas positivas e negativas que fizeram e fazem parte da rotina dos moradores do
PAC - Morro do Preventrio conduziu-os a uma vida norteada muito mais por
ambiguidades com relao sua condio social do que as poucas certezas que
possuam antes. At onde e quando pude segui-los e observ-los, o apartamento,
segundo as percepes de alguns moradores, no lhes havia assegurado ainda a posse
efetiva de uma "nova posio", no era esta a percepo e o sentimento dessas pessoas,
muito embora eles concordassem, praticamente a maioria, de que sob vrios aspectos
sua vida havia melhorado.
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1 O LUGAR: O PREVENTRIO
Apesar de moradora de Niteri, nunca havia pensado seriamente sobre o lugar
onde estava iniciando minha jornada. O prprio nome dado a ele, e ao morro, at ento
havia se mantido relativamente desconhecido para mim. Um primeiro sinal de que eu
precisaria aprofundar meus conhecimentos a respeito me foi dado ainda durante a visita
inaugural, quando me foi informado que as origens da maior parte da populao no
eram locais, mas extra-locais, originalmente migrantes. Como pude observar mais
adiante, essas origens extra-locais estavam presentes de inmeras maneiras na vida do
lugar, atravs de usos e costumes de seus moradores, pois, diferentemente do bairro
vizinho de Jurujuba, que j foi uma importante colnia de pescadores artesanais, os
moradores do Preventrio possuem um modo de vida prprio com relao s atividades
que desenvolvem, e mesmo s formas de ocupao do espao urbano, alm de outros
hbitos.
De acordo com historiadores de Niteri, as primeiras ocupaes nas imediaes
da regio que ficou conhecida como Preventrio, localizado no bairro litorneo de
Charitas, zona sul de Niteri, e que se tornaria, pouco mais de um sculo depois, a
maior favela da cidade em termos populacionais, segundo dados do IBGE1, esto
relacionadas criao de um hospital flutuante, o Lazareto de Jurujuba, em 1851. Em
1853, ele passou a ser administrado pelo sanitarista Francisco de Paula Cndido, que
deu seu nome ao Hospital. Em 1856, o governo imperial o reinaugurou como Hospital
Martimo de Santa Isabel, nome dado em homenagem princesa Isabel, na data de seu
aniversrio de dez anos.
Segundo Werrs2 (1984; 202), na Enseada de Jurujuba foi fundado, a 600 metros
do Hospital Martimo de Santa Isabel, a partir de 1876, o lazareto flutuante, um navio
especialmente adequado, com acomodaes e instalaes para o isolamento de
passageiros provindos de postos suspeitos (ditos, sujos), ficando nele internados no os
doentes, que eram logo removidos para o isolamento em terra, mas aqueles em
1 Segundo o censo do IBGE de 2010, existem 5744 moradores e 1760 domiclios, apesar do presidente da
Associao dos moradores afirmar que o nmero real corresponde no mnimo ao dobro, uma vez que os
dados oficiais no levam em considerao os imigrantes que l vivem e que ainda no transferiram o
ttulo de eleitor para Niteri. 2 WEHRS,Carlos. Niteri. Cidade Sorriso. Histria de um lugar. Dunlop, Rio de Janeiro, 1984.
29
observao, de quarentena. A sugesto para essa ao partiu da Junta Central de Higiene
Pblica. O hospital de isolamento tinha cemitrio prprio.
Para Souza (2006) 3, a cidade de Niteri naquela poca era chamada de Terras
do Alm, e a regio denominada hoje de Preventrio e Jurujuba era chamada de Ponta
dAlm, por estar localizada geograficamente na ponta da regio banhada pela Baa de
Guanabara. Com o objetivo de evitar o alastramento de doenas contagiosas, mais
precisamente na segunda metade do sc. XIX, ainda no perodo Imperial brasileiro, a
regio foi utilizada como um local de quarentena para portadores de doenas epidmicas
e contagiosas como a varola, febre amarela e a clera, alm de doenas como o tifo,
tuberculose e outras que naquele perodo alarmavam a populao, os governantes, e
causavam horror aos viajantes que passavam pela costa. Assim, os navios ancoravam
em Niteri antes de seguirem viagem para o Rio de Janeiro; por essa razo, a regio
ficou conhecida como "Preventrio".
O Hospital foi fechado em 1861, reabrindo apenas em 1867, durante a Guerra do
Paraguai, quando foi cedido para o Ministrio da Guerra, e nele foram abrigados os
militares doentes. Em 1898, o Hospital passou a ser chamado de Hospital Paula
Cndido, e em 1938, transformou-se no Educandrio Paula Cndido, que poca
contava com cerca de 900 meninas. Em 19 de abril de 1944, atravs do Decreto n 1.130,
foi criada, prximo ao Educandrio, a Escola de Enfermagem como escola isolada e
reconhecida atravs do Decreto n 22.526, de 27 de janeiro de 1947. A mesma ficou
subordinada, de acordo com o art. 2 desse mesmo Decreto, ao Governo do Estado do
Rio de Janeiro at 11 de maro de 1950, quando por Ato Governamental, foi criada a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que integrou dentre diversas escolas e
faculdades, a Escola de Enfermagem.
Wehrs (Idem; 204) sustenta ainda que a palavra Charitas escrita pelos padres
no alto da entrada da capela de So Francisco Xavier, prxima localidade do
Preventrio, em poca remota, era lida de forma errnea. A rea fazia parte da
Sesmaria jesutica, onde alm da igreja havia um cemitrio . Como os que passavam
por ali mal sabiam ler, interpretavam o cha com o som de X, em vez de ser
3Fonte: Souza, Rosale de Mattos. Histrico do prdio do Arquivo Central do Ncleo de Documentao da UFF. Niteri, 17/06/2006. Disponvel em:
>http://www.ndc.uff.br/repositorio/Hist%F3rico%20do%20pr%E9dio%20do%20Arquivo.pdf< Acesso em 10/02/2013.
30
pronunciado com o som de ka. Os locais passaram a chamar aquela tambm de
Xaritas ou Xarita.
O nome do bairro deriva do Latim charitas, que quer dizer "caridade". A histria
da localidade est muito associada ao perodo imperial. No sculo XVIII, um grande
proprietrio de terras local, Joo Malheiro Reimo Pereira, vendeu um terreno prximo
Igreja de So Francisco Xavier, atualmente bairro de Charitas, ao seu irmo, o bispo
Dom Frei Antnio de Desterro. Este ento, no ano de 1762, o doou com todos os seus
pertences ao Seminrio So Jos, um pedao de terra que em viria a ser construda
a Fazenda Jurujuba, onde foi construda uma grande casa, local que at os dias atuais
conhecido como "Casaro"4, cuja fachada tombada pelo Patrimnio Histrico
Nacional. Atualmente o prdio utilizado para diferentes atividades, tais como festas e
exposies.
O bairro de Charitas est localizado numa estreita faixa de terra entre uma
encosta da Mata Atlntica e uma das enseadas da Baa de Guanabara, fazendo parte da
extenso do bairro de So Francisco.
preciso dizer que resqucios dessa forma de ocupao ocorrida na regio em
sculos passados, desde o perodo imperial, e que diz respeito histria de Niteri e
tambm do Rio de Janeiro, ainda persistem no entorno da regio do Preventrio. Alm
do conjunto arquitetnico constitudo pelo antigo Educandrio Paula Cndido, um
prdio do sculo XIX, de estilo imponente, atualmente chamado de Casa da Princesa5,
h tambm um complexo de fortes de mais de quatro sculos no bairro vizinho,
Jurujuba, que seguem um modelo de arquitetura colonial militar luso-brasileira,
reconhecida pelo IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico Nacional) e pela UNESCO
(United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization - Organizao para a
Educao, a Cincia e a Cultura das Naes Unidas)6.
As primeiras casas da favela foram sendo construdas por funcionrios e por
familiares dos doentes internados, que, para evitarem o dispndio com o deslocamento e
hospedagem, construram pequenos casebres atrs do local. A comunidade conhecida
4 http://ddp-fan.com.br/patrimonio/CASEMCHA.htm. Acesso em 29/02/2013. 5 - Que no momento passa por reformas financiadas pelo governo do Estado para abrigar uma casa de
repouso para idosos. 6FORTES de Niteri ajudaram o Rio a ser patrimnio mundial. Complexo que inclui Santa Cruz da Barra, So Luiz, Pico, Rio Branco e Imbu aparece na lista da UNESCO. Matria de Ruben Berta,
publicada em: 2/07/12. Disponvel em: http://oglobo.globo.com/rio/fortes-de-niteroi-ajudaram-rio-ser-patrimonio-mundial-5371981 . Acesso em 19/01/2013.
31
hoje como Favela do Preventrio se desenvolveu na rea de propriedade do Estado,
atrs do Hospital Preventrio Paula Cndido. Ao longo de dcadas, a comunidade foi-se
expandindo at as reas mais altas do cume do Morro da Virao, tambm conhecido
como Morro do Preventrio.
importante dizer ainda que tais elementos histricos preenchem at os dias de
hoje o imaginrio dos moradores, a partir de falas saudosistas de algo que no viveram,
mas que acreditam veementemente ter sido verdadeiro, e uma poca melhor do que os
dias atuais. H uma crena de que desde o passado o lugar teria favorecido uma melhor
qualidade de vida a todos que ali viviam. Esta suposio pode ser confirmada atravs
das falas de moradores que orgulhosamente relatam que, no passado, a localidade era a
preferida do pessoal que tinha dinheiro e poder, como a prpria Princesa Isabel:
Desde aquela poca j era bom, alis, era melhor, pois nem tinha favela. De qualquer
maneira esto querendo acabar com a nossa calma, deixando esses bandidos virem para
c e deixando essa baguna (Jos).
A favela do Preventrio est situada entre o macio do Morro da Virao e a
Praia da Areia grossa, mais conhecida como Praia do Preventrio. Em direo norte, o
Preventrio limitado pela rua principal, que a Avenida Silvio Picano, onde existem
prdios, restaurantes, hotis e edificaes pblicas. No sentido oposto, h uma rea de
preservao do Morro da Virao que abriga o Parque da cidade, constituindo a
expanso nesta direo um dos principais problemas encontrados para avanar na
encosta. Este morro faz parte da Virao, que divide duas bacias hidrogrficas da
cidade, a das praias da baa, que corresponde regio de urbanizao mais antiga,
consolidada e densa do municpio, e a regio Ocenica, considerada como rea de
urbanizao e de expanso mais recente do municpio.7
7Dados extradas da Pesquisa Ps Ocupao realizada no PAC Morro do Preventrio.
32
Foto do Preventrio I e parte do Morro do Preventrio atrs.
Fonte: Shirley Torquato, 2011
Com relao orla martima propriamente dita, a praia do Preventrio
atualmente abriga a estao de catamar Charitas. Tal estao faz parte do projeto do
Caminho Niemeyer, que consiste num conjunto arquitetnico projetado pelo arquiteto
para ser construdo ao longo da orla da baa de Guanabara, sendo por fim concentrado
em um aterro em frente regio central da cidade. Embora tenha sido concebido sob o
impacto positivo do Museu de Arte contempornea, o MAC, segundo Luz (2009;
p.275), o projeto no logrou xito em suas pretenses de impulsionar o nascimento de
"uma nova Niteri", nem tampouco de "requalificar" o seu "degradado" centro histrico.
Na verdade, suas obras ainda no esto finalizadas, apesar de j ter transcorrido mais de
uma dcada da apresentao do projeto ao pblico.
Alguns moradores com os quais conversei no Preventrio no s desconheciam a
existncia do Caminho Niemeyer, como tambm desconheciam que moravam em frente
a uma obra arquitetnica desenhada por um profissional de fama internacional. Isso vem
confirmar o distanciamento de dois mundos to prximos espacialmente. Podemos
exemplificar tal afirmao atravs de Dona Gisela, de cuja janela do quarto possvel
ver a Estao Hidroviria do Catamar: Caminho Niemeyer? No sei o que no.
33
Moradora em seu quarto no Preventrio I, cuja vista a praia de Charitas e a Estao Hidroviria
do Catamar
Foto: Shirley Torquato (2011)
Segundo membros da Associao de Moradores do Preventrio, o incio das
obras do catamar foi marcado por muitas promessas para a comunidade que, no
entanto, nunca foram cumpridas:
Ao lado da estao havia o nosso campo de futebol e nossa rea de lazer onde
as crianas brincavam, os pais passeavam com seus filhos e casais
namoravam. O pessoal do Catamar disse que faria uma reforma no nosso
espao, pois entendia que ns no poderamos ficar prejudicados com a
presena do Catamar. Concluso: ficamos sem rea de lazer, no houve obra
nenhuma; o pessoal que pega a barca enche os acessos ao morro de carro,
estacionam em lugar proibido; eles tem aquele valor de passagem que cara pra caramba e no d meios pra que ningum aqui na comunidade possa
usufruir dos servios deles e tem outra coisa: no gerou emprego pra
ningum aqui da comunidade, ou seja, a gente s perdeu com esse Catamar.
(Junior, morador do Morro do Preventrio e membro da AMMP)
Especialmente a partir de dcada de 1990, Niteri tornou-se objeto de um
processo de gentrificao8. A palavra gentrificao originada do termo ingls gentry,
8 A gentrificao um fenmeno simultaneamente fsico, econmico, social e cultural. [...]
comumente envolve a invaso da classe mdia ou grupos de alto poder aquisitivo em reas previamente ocupadas pelas classes trabalhadoras. [...] Envolve a renovao ou reabilitao
fsica do que era frequentemente, uma habitao altamente deteriorada, e seu melhoramento
para ir de encontro com as requisies dos novos proprietrios. (HAMNETT, 2001 apud
FREITAS, 2006)
34
que significa pequena nobreza. Gentrificar significa precisamente substituir a
populao mais pobre pela de mais alta renda em reas da cidade afetadas pela
renovao urbana. Bairros e localidades que at ento eram marcados por uma
caracterstica mais pacata, passaram a ser alvo de intensa especulao imobiliria, e
consequentemente de uma revalorizao, mesmo com a proximidade da favela. No
entanto, isso no significou que houvesse interesse da parte do poder pblico em
remover a favela daquele local, ao contrrio, a regio foi escolhida para abrigar o
primeiro PAC habitao da cidade, como uma espcie de vitrine do projeto do governo.
Prximo ao Preventrio h tambm uma pequena comunidade ou favela, que,
segundo relatos, existe h pelo menos 80 anos, chamada Comunidade da Charitas ou
Comunidade da Hpica 9, que, de acordo com dados de 2010 do IBGE, possui 80
casas e 278 pessoas. No possui creches, escolas nem os investimentos que existem no
Preventrio, como Programas de Mdico da Famlia, por exemplo.10
As belezas naturais que cercam a localidade, a atmosfera buclica, a posio
estratgica em relao cidade, o provimento de linhas de nibus municipais e
intermunicipais11
, alm de transporte alternativo, como moto-txis, reforam o
sentimento de satisfao dos moradores, apesar da relativa precariedade material em que
muitos vivem, e das dificuldades estruturais ligadas a ausncia de gua encanada,
iluminao pblica, pavimentao, rede de esgoto, dentre outras.
Ao contrrio de boa parte das favelas da cidade, em que os moradores so
assolados pelo temor do trfico de drogas e da violncia provocada pelo mesmo, as
lembranas recentes dos moradores dos apartamentos do PAC-Preventrio com os quais
conversei estavam sempre relacionadas a uma certa tranquilidade quanto a isso, apesar
9http://comunidadeeditoria.blogspot.com.br/2008_04_20_archive.html Acesso 10/02/13 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/agsn2010.pdf Acesso 10/02/13 10 De acordo com O IBGE chamada de Comunidade Da Charitas. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/agsn2010.pdf Acesso em 21/01/2013 11
A pouqussimos metros das diferentes entradas da favela do Preventrio, existem pontos finais de linhas
de nibus municipais para o centro da cidade, que perpassam por bairros vizinhos da Zona Sul e Zona Norte de Niteri. H tambm nibus em direo Zona Sul, Norte e Centro do Rio. So elas:
Intermunicipais: Auto Lotao Ing: 730D e 731D Castelo - Charitas (via Fonseca); Auto Viao
1001: 761D - Charitas - Galeo (via Terminal Rodovirio Novo Rio); 751D - Charitas - Gvea (via
Lapa/Praia de Botafogo); 750D/751D - Charitas - Gvea (via Tnel Santa Brbara); 740D - Charitas -
Ipanema; Castelo Charitas (via Ing e Aeroporto Santos); Expresso Garcia LTDA:709D - Castelo - Charitas (via Icara) e Municipais: expresso Miramar: 17 - Centro - Jurujuba (via Estrada Froes); 33 Centro - Jurujuba; Autoviao Ing: 62 Fonseca - Charitas ;62A Fonseca - Charitas (via Caramujo)
35
de admitirem a presena do trfico no morro h muito tempo. Segundo as palavras de
um morador: O trfico sempre foi tranquilo, mas de uns tempos pra c os traficantes do
Rio se infiltraram aqui e acabaram com a nossa paz. Ou seja, acredita-se que o local
seja to agradvel, que tudo aquilo que no considerado positivo, vem de alhures12
.
Segundo um morador do morro, entre 2011 e 2012, perodo em que traficantes
do Morro da Mangueira, no Rio, tomaram conta do Morro, o valor dos imveis caiu
consideravelmente.
Tinha uma casa aqui que a dona vendeu por 55 mil porque estava
desesperada, e no aguentava mais ouvir tiro e ser ameaada por bandido,
mas ela valia no mnimo uns 80 mil. Depois da instalao de um trailer da
Polcia militar no morro, os valores dos imveis voltaram a subir. Eu ouvi dizer que a prefeitura vai dar carn de IPTU pra todo mundo aqui no morro
pagar. A eu no sei como vai ser.
Apesar da imagem positiva que possuem do lugar onde habitam, se
compararmos os moradores do Preventrio com seus vizinhos mais prximos, por
exemplo, os moradores de Jurujuba, observamos que os segundos possuem uma
identidade bastante diferenciada, uma vez que se trata de uma antiga colnia de
pescadores. O que importante destacar que numa mesma faixa litornea encontram-
se formas distintas de ocupaes, o que no implica necessariamente uma
hierarquizao de status. Assim, possvel dizer que o Preventrio uma comunidade
de estabelecidos, portanto, de pessoas que de forma alguma se percebem ou so
percebidas como outsiders em relao aos vizinhos de classe mdia, ou em relao aos
moradores de Jurujuba, pois se reconhecem como devidamente enraizados, percepo
igualmente partilhada por representantes da Prefeitura, que, por conta disso, procura
estabelecer e manter uma relao forte com essa comunidade.
De acordo com pesquisa realizada em setembro de 2012, pelo Sindicato da
Habitao (Secovi-Rio), o bairro de Charitas, era, na ocasio, o mais valorizado da
cidade em termo imobilirios, com o metro quadrado custando entre R$ 8 mil e R$ 11,3
mil. A valorizao dos imveis subiu o correspondente a 24,6% em um ano, de acordo
12 At 2011 quando fiz a primeira parte do trabalho de campo, a favela era considerada mais tranquila pelos moradores. No entanto, a partir da segunda metade deste mesmo ano, por conta da pacificao de
vrias favelas na cidade vizinha, Rio de Janeiro, houve uma intensificao do trfico de drogas nesta
favela, processo que foi marcado por tiroteios, mortes de moradores envolvidos com o trfico e desespero
dos demais. Em 2012, foi instalada uma Kombi da polcia militar na parte alta do morro para conter a
criminalidade.
36
com o levantamento. Segundo dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE), o local tambm atraiu mais servios e comrcio, o que
contribuiu diretamente para o crescimento e infraestrutura do bairro, e mais 1,7 mil
novos moradores na ltima dcada.13
.
No existem ofertas de cinemas, museus ou teatros no bairro. Uma das suas
referncias, alm da praia - que devido poluio da Baa de Guanabara no
frequentada pelos moradores da classe mdia local com a finalidade de banho, e sim
para caminhadas no calado, passeios de bicicleta e contemplao da buclica
paisagem a presena de restaurantes e quiosques na orla. Alm disso, h no bairro
vizinho, mais elitizado, So Francisco, localizado na extenso da orla, atrativos que
agitam a vida noturna da cidade, como restaurantes, sorveterias, bares e boates, e
costumam receber um pblico mais jovem e de maior renda14
.
Desde a segunda metade dos anos 2000, edifcios de luxo vm sendo construdos
em ruas perpendiculares orla de Charitas, promovendo o aumento populacional e a
reconfigurao do bairro de ambincia pacata.
Os quiosques da orla de Charitas possuem um apelo mais popular que pode ser
percebido principalmente por causa dos gneros musicais escolhidos para a ambincia.
Alguns com maior infraestrutura possuem teles, aparelhagem de som mais moderna e
maior variedade no cardpio. So frequentados por um pblico variado, sobretudo por
moradores de bairros da zona norte15
e municpios vizinhos, como So Gonalo e
Itabora. Essa comprovao se d principalmente ao vermos as placas dos carros
estacionados ao longo da extenso da orla onde esto os quiosques.
Na extenso da orla, aps o Clube Naval16
, clube frequentado por um pblico
seleto de elevado nvel socioeconmico, h o pequeno bairro de Jurujuba. Bairro mais
reservado, onde os poucos bares e restaurantes, como os j tradicionais Bicho Papo e
Berbigo, tm como especialidades frutos do mar, devido tradio pesqueira local. O
bairro tambm conhecido pela grande festa de So Pedro, que ocorre anualmente no
13http://guiadeniteroi.com/pesquisa-aponta-charitas-como-o-bairro-mais-caro-de-niteroi/. Acesso em 16/01/2013 http://www.ofluminense.com.br/editorias/habitacao/bairro-de-charitas-tem-o-metro-quadrado-mais-caro-da-cidade-de-niteroi Acesso em 16/01/2013 14 Em So Francisco existe um comrcio mais variado e uma maior rede de bancos e supermercados. 15 Principalmente moradores dos bairros da zona norte de Niteri, Caramujo, Santa Brbara e Fonseca,
que tm acesso a nibus diretos. 16http://www.cncharitas.com.br/index.html Acesso 10/02/13
37
dia 29 de junho. Ela inicia-se por volta das cinco horas da manh e dura at por volta
das vinte e trs horas da noite, acontecendo em frente Igreja de So Pedro, s margens
da Baa de Guanabara. A celebrao inclui procisso martima, e atrai um grande
pblico no s local, mas tambm de devotos do santo que moram fora do municpio.
So Pedro considerado protetor dos pescadores, e os pescadores locais possuem
grande devoo ao santo.17
Charitas e Jurujuba tm uma importncia histrica fundamental para a
construo da memria de Niteri. Segundo Durgante (2007), o nome Jurujuba
proveniente do nome de uma fazenda construda no sculo XVIII. De origem indgena,
o nome significa papagaios amarelos, pescoo amarelo ou barba amarela, pois era
assim que os ndios Tamoios chamavam os franceses, primeiros invasores das guas da
Baa de Guanabara, que eram louros e estavam sempre a falar.18
Jurujuba possui aspectos pacatos e ares de cidade do interior. H uma forte
tradio pesqueira na localidade, stios histricos e fortificaes centenrias, o que vem
a reforar a significativa importncia histrica do bairro19
. H um clube chamado Iate
Clube Jurujuba, cujos frequentadores, em sua maioria, no moram no bairro e
geralmente possuem barcos na regio. A regio integrava a Sesmaria dos Jesutas, onde
havia a Igreja de So Francisco Xavier . Devido a este histrico, os limites do bairro de
Jurujuba ainda se confundem com os de Charitas e com os do morro do Preventrio.
Os limites deste bairro comeam aps o Clube Naval de Charitas, onde pode
ser visto uma placa indicativa. No entanto, ainda que os marcos oficiais da prefeitura
definam objetivamente as fronteiras do bairro, na fala dos moradores pode-se perceber
algo um tanto diferente que reafirma as identificaes e as representaes simblicas
dos grupos sociais.
O desabafo de insatisfao de um morador de Jurujuba exemplar para que
possamos refletir sobre os domnios simblicos das fronteiras existentes entre os
17 http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/festejos-de-sao-pedro-em-jurujuba-levam-fieis-em-procissao. Acesso em 29/07/2013 Ver tambm: http://globotv.globo.com/rede-globo/rjtv-1a-edicao/v/parceiros-do-rj-mostram-preparativos-para-procissao-de-sao-pedro-em-jurujuba/2662658/. Acesso em 29/07/2013 18DURGANTE,Ritter. Paula Da Roa ao Mar: Estudo de uma comunidade de marisqueiros em Jurujuba,
Niteri (RJ) / Paula Durgante Ritter. Rio de Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Estudos Interdisciplinares
de Comunidades e Ecologia Social EICOS) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2007. 19
Fortaleza de Santa Cruz e Forte do Rio Branco e Forte do Pico, um dos stios histricos do bairro.
Atravs do Forte do Rio Branco d-se o acesso s praias do Forte Rio Branco e Imbu, onde se localiza o
Forte do Imbu, com acesso restrito, por se tratar de uma rea militar.
38
espaos, sobretudo as representaes em torno do bairro rico e do bairro mais
arraigado s tradies pesqueiras.
Topograficamente, Jurujuba comeava depois, ali na sada, no Preventrio
para c. Preventrio sempre fez parte de Jurujuba, ento o Hospital
Psiquitrico estava dentro de Jurujuba, como o Naval tambm. Agora, foram
pegado as coisas boas e tirando de Jurujuba. A o Hospital Psiquitrico ficou
de Jurujuba. A Estao da Barca ali Charitas, o Naval, Charitas. Mas o Hospital Psiquitrico, Charitas no quis! Ento ficou de Jurujuba. Quer dizer,
Charitas vem tomando conta para c do que presta. O que eles acham que no
presta eles deixaram para Jurujuba! isso, isso a o prprio povo que vai
fazendo!... Agora, se voc for perguntar, pelo mapeamento da prefeitura,
onde comea Jurujuba. No sei. Eu sei que antigamente comeava no
Preventrio, agora no sei, que j mudou tanta coisa. (Apud DURGANTE,
2007; p.28).
1.1- A percepo dos espaos
Segundo pesquisa realizada por Perlman (2012; p.31), de todos os estigmas
enfrentados pelos moradores pobres do Rio de Janeiro, morar em favela foi considerado
o pior, com a cor da pele em segundo lugar.
A moralidade expressa nas relaes que se criam em torno da localidade onde
habitam, um elemento importante na construo da identidade social dos sujeitos. A
autodefinio dos pobres, por exemplo, ou seja, a definio do lugar que ocupam no
mundo social, constri-se dentro de uma concepo da ordem social como ordem moral.
Em meus percursos pelo lugar, pude constatar aquilo que j foi destacado por
outros pesquisadores, como Mello, Santos e Vogel (1985; p. 13), a saber, a convivncia
de dois regimes espaciais distintos em nossas cidades: o construdo, fechado, em maior
ou menor grau, privatizado (ex.: casas, lojas, fbricas, oficinas, escolas, bares), e o
aberto e de uso coletivo (ruas, becos, largos, praas, jardins pblicos, praias). Para os
autores, so estes dois polos que servem para armar as representaes do urbano, e onde
se estabelecem relaes de apropriao diferencial.
O que se denomina vida comunitria um conjunto de desempenhos suportados
por palcos e cenrios que tendero a ser identificados de acordo com o enquadramento
em um dos dois modelos. As manifestaes socioculturais caractersticas de um grupo,
e que servem para distingui-lo em relao a quem de fora e entre seus prprios
membros, sempre estaro referidas a conceitos de abertura de espaos. Elas acontecero
39
em locais pblicos ou naqueles que, por fora de um uso especial, passaro a ser vistos
como se fossem pblicos. Jogos, reunies, festas, encontros, cerimnias e atividades
assemelhadas que se oponham s ideias de privacidade e intimidade, encontram na rua o
seu lugar ideal (Mello, Santos e Vogel 1985).
Nesse sentido, para alm da materialidade dos espaos e dos processos que neles
se desenvolvem, os autores citados argumentam a favor das dimenses simblicas que o
espao por si s apresenta. As noes de localizao, de territorialidade, e do que lhes
seja pertinente e adequado, so constitudas atravs dos recursos a estes cdigos. As
ruas servem como referenciais definidores dos limites de um determinado territrio, e
ao mesmo tempo so uma unidade de alto significado para quem sabe reconhec-las.
Magnani (1993), ao se propor analisar a urbanizao haussimaniana de Paris,
coloca que a rua sem dvida um suporte de sociabilidade, e que as novas vias,
desenhadas pelo famoso arquiteto no velho tecido da cidade medieval, permitiram
novos fluxos e novas experincias, alm de tornarem visveis e prximos diferentes
atores sociais das chamadas "classes perigosas" (CHEVALIER, 1978 apud MAGNANI,
1993), cuja presena nas ruas no seria atestada, em ocasies posteriores e em distintos
contextos, apenas pelo incmodo olhar20
. A esse respeito, o autor observou o carter de
sociabilidade, de encontros e de lazer que as ruas, ou melhor, a cidade pode oferecer.
Para tal, criou categorias ideais, no sentido weberiano, para melhor se localizar
analiticamente, tais como: manchas, pedaos, trajetos e prticos. Estas categorias
constituem uma tentativa de identificar espaos, personagens e comportamentos, tendo
em vista a inevitvel e caracterstica diversidade das prticas urbanas. Seu propsito
perceber regularidades, padres e significados l onde muitas vezes o senso comum no
v seno o resultado de escolhas feitas de forma individual e aleatria.
Ao se referir a um universo de um bairro popular em So Paulo, e sua
sociabilidade fora do contexto do trabalho, Magnani (Idem) observou que os
trabalhadores no seu tempo livre esto ligados a uma rede de sociabilidades, com
familiares, vizinhos e amigos, com os quais desfrutam festas de casamento, almoos de
batizado, dentre outros.
20
Jos Guilherme Magnani. Rua, smbolo e suporte da experincia urbana. Verso revista e atualizada do
artigo A rua e a evoluo da sociabilidade, originalmente publicado em Cadernos de Histria de So
Paulo 2, jan/dez 1993, Museu Paulista- USP. Disponvel em : http://n-a-u.org/novo/wp-content/uploads/2011/11/rua_magnani.pdf Acesso em 10/12/2012
40
O primeiro contexto onde se pode perceber a relao entre uma forma de
sociabilidade e determinada delimitao do espao urbano o bairro, e bairro popular,
de periferia. Justamente para descrever e explicar um tipo particular de relaes entre
ambos os nveis, foi elaborada a categoria pedao, no decorrer de uma pesquisa sobre
formas de cultura popular e modalidades de lazer que ocupam o tempo livre dos
trabalhadores, nos bairros da periferia da cidade de So Paulo. Ao invs de pens-las
simplesmente como um mecanismo de reproduo da fora de trabalho, o que se
pretendia era, atravs da abordagem antropolgica, detectar seu significado a partir do
discurso e da prtica concreta dos personagens diretamente envolvidos nessa rede de
lazer.
De acordo com Magnani, distines de lazeres entre diferentes faixas etrias e
gneros, reforando a ideia de que cada um tem seu pedao, categoria classificatria
que utilizou para entender as segregaes simblicas existentes num bairro de periferia
paulistana:
Uma primeira anlise mostrou que a categoria pedao era formada por dois
elementos bsicos: um de ordem espacial, fsico, sobre o qual se estendia uma determinada rede de relaes. O primeiro configurava um territrio
claramente demarcado: o telefone pblico, a padaria, este ou aquele bar, o
terminal da linha de nibus, talvez um templo ou terreiro e outros pontos
mais delineavam seu entorno. Entretanto, no bastava passar por esse lugar
ou mesmo frequent-lo com alguma regularidade para "ser do pedao"; era
preciso estar situado numa peculiar rede de relaes que combina laos de
parentesco, vizinhana, procedncia, vnculos definidos por participao em
atividades comunitrias e desportivas, etc. Assim, era o segundo elemento a rede de relaes que instaurava um cdigo capaz de separar, ordenar, classificar: era, em ltima anlise, por referncia a esse cdigo que se podia
dizer quem era e quem no era "do pedao", e em que grau: "colega", "chegado", "xar", etc.[...]Para uma populao sujeita s oscilaes do
mercado de trabalho, precariedade dos equipamentos urbanos e a um
cotidiano que no se caracteriza, precisamente, pela vigncia dos direitos de
cidadania, pertencer a um pedao significa dispor de uma referncia concreta,
visvel e estvel da a importncia do carter territorial na definio da categoria. Pertencer ao pedao significa tambm poder ser reconhecido em
qualquer circunstncia, o que implica o cumprimento de determinadas regras
de lealdade que at mesmo os "bandidos" da vila, de alguma forma, acatam. (
Ibidem, p.7)
Seguindo esta perspectiva, no caso de minha pesquisa verifiquei no haver
diferena entre os pedaos frequentados pelos moradores da Favela do Preventrio e
do PAC Preventrio, pois estes compartilham a mesma trajetria. A referncia que
possuem em relao ao local em que moram simplesmente o Preventrio.
41
Exemplos como, banho de praia, partidas de futebol, reunies para se jogar
conversa fora, beber junto e assistir ao futebol nos bares da localidade, so alguns dos
hbitos de lazer que podem ser apontados como mais comumente identificados pelos
moradores. Semanalmente ocorrem treinos do time de futebol do Preventrio. Numa das
subidas do morro est localizado o bar Maloca, onde, alm de se servirem os
salgadinhos mais indicados da regio, ocorrem eventos culturais, como o Cine de
Boteco, e fica a sede do Banco Popular do Preventrio. H tambm o Bar do lixo, na
verdade um trailler que vende bebidas e alguns tira-gostos, que funciona prximo a um
lato de entulho e de lixo colocado no local pela Prefeitura.
Umas das trs entradas para o Morro do
Preventrio. A construo verde o Bar Maloca.
Fonte: Shirley Torquato(2011)
O mesmo local da foto ao lado, na direo de
descida.
Fonte: Shirley Torquato(2011)
Se o Catamar Charitas inacessvel para os moradores devido ao preo, nos
finais de semana21
ensolarados o seu entorno utilizado como importante rea de lazer.
21 A Estao Hidroviria do Catamar no funciona nos finais de semana.
42
Futebol de areia em frente ao Preventrio e ao lado da Estao do Catamar
Foto: Shirley Torquato ( 2011)
Famlia moradora do Morro do Preventrio recebendo familiares ao som do violo do filho, no final de
tarde ao lado da Estao Hidroviria do Catamar.
Foto: Shirley Torquato (2011)
43
Moradores do Morro do Preventrio num churrasquinho em famlia na praia
Foto: Shirley Torquato (2011)
Barraca de churrasquinho prximo entrada da rua 14 de abril, no Preventrio.
Foto: Shirley Torquato (2011)
Como se pode observar pelas fotos, estas apropriaes dos espaos abertos,
notadamente da praia, envolvem muitas formas de sociabilidade entre os moradores,
dentre elas a comensalidade, isto , o estar junto, conversando, comendo e bebendo.
Assim, as referncias gastronmicas passam a ser importantes, como a barraquinha de
churrasco de Dona Zinha, de cujos deliciosos molhos caseiros ela se recusa a revelar o
segredo do preparo. A comerciante fala com orgulho que mora numa grande casa no
Morro do Cavalo, no bairro vizinho, prximo ao Tnel de So Francisco, mas os
filhos, o neto e a me moram no Preventrio. Sua barraca de churrasco e bebidas fica
entre a rua principal da Rua Silvio Picano, e a Rua 14 de abril, uma das principais
44
entradas da favela. Logo em frente a sua barraca est o ponto de moto txi, o que lhe
aumenta