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Universidade Federal de Gois Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia Programa de Ps-Graduao em Sociologia rea de Concentrao: Sociedade e Regio Linha de Pesquisa: Sociologia do Trabalho
REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA:
VENDA DIRETA E INTERAO SOCIAL Dissertao de Mestrado
Autora: Juliana Abro da Silva Castilho Orientador: Prof. Dr. Jordo Horta Nunes
Goinia, 2005
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Juliana Abro da Silva Castilho
REVENDEDORAS AVON EM CAMPANNHA: VENDA DIRETA E INTERAO SOCIAL
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre, sob a orientao do Prof. Dr. Jordo Horta Nunes.
Universidade Federal de Gois Goinia, 2005
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Juliana Abro da Silva Castilho
REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA: VENDAS DIRETA E INTERAO SOCIAL
Banca Examinadora
Prof Dr. Christiane Girard
Prof Dr. Maria do Amparo Aguiar
Prof Dr. Jordo Horta Nunes
Goinia, julho de 2005.
4
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho no somente resultado do esforo prprio, outros auxiliaram e
estiveram presentes em seu processo de desenvolvimento.
Deus, pai querido, que permitiu e me deu equilbrio suficiente realizao de toda minha
formao profissional.
Minha me, Maria Lcia, minha v Helena e minha Tia Maria Helena, mulheres que me
ensinaram a ser doce e forte, determinada e capaz, boa e dura, pelo grande amor a mim
dispensado, mesmo que no possam estar sempre presentes.
Agradeo quele sem o qual esse trabalho no seria realizado, pois sempre me
incentivou ao estudo e disciplina. Essa dissertao um pouco dele tambm, Weimar
Silva Castilho, meu amigo, meu marido, minha vida.
A meu amigo e orientador, professor Jordo Horta Nunes, pelos anos de parceria e
confiana, em que sempre aconselhou e ajudou a conduzir minha carreira acadmica com
ateno, carinho e amizade.
Maria do Amparo, querida professora e exemplo de mulher, por demonstrar real
interesse e auxiliar na viabilizao da pesquisa emprica, e que, com a professora
Christiane Girard, aceitaram realizar a leitura e avaliao do texto final desta dissertao,
muito obrigado a ambas.
Ao mestrado em Sociologia pelo apoio dado a todos os alunos. A todos os professores do
DCS pela excelncia em ensino e profissionalismo, bem como a seus funcionrios, em
especial aos amigos Graa e Domingos.
A todos os interlocutores da pesquisa, pela recepo em seus lares e por permitirem
compartilhar com eles um pouco de suas vidas. Em especial a Suzy, Vanda e Dani, por
terem prestado fundamental auxlio para realizao deste trabalho.
A todos da minha famlia e famlia de meu marido, desculpem pelos momentos de
omisso, em especial Eliane, Thallyta, Samara, Maria Helena e Diego.
A todos os colegas de mestrado e ao companheirismo especial de Ana Jlia, Elaine, Mari-
Nise e Rogrio, amigos desde sempre. A todos os amigos e aos queridos amigos-irmos
de corao Renata, Odair e Suammy. A Simone por toda contribuio prestada neste
ltimo ano. Ao colega Antnio Pedroso, por disponibilizar seu tempo e empenho
auxiliando na pesquisa bibliogrfica. A todos os colegas de trabalho fraterno do Centro
Esprita Amor e Luz, que estiveram junto a mim torcendo por minhas realizaes. A todos
que no foram aqui citados nominalmente, mas sabem ter um lugar especial em meu
corao.
5
SUMRIO
1 - RESUMO 6
2 - INTRODUO 7
3 - A ECONOMIA EM REDE E AS OVDS 11
4 - A ANLISE SOCIOLGICA DAS VENDAS DIRETAS 30
5 - AS REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA
43
5.1 - A PESQUISA EMPRICA 43
5.2 - A EMPRESA E SUA ORGANIZAO 47
5.3 - A GERENTE DE SETOR 52
5.4 - AS REUNIES 57
5.5 - AS EXECUTIVAS DE VENDAS 64
5.6 - A CAMPANHA E AS REVISTAS 73
5.7 - AS REVENDEDORAS AVON 78
6 - CONSIDERAES FINAIS 117
6
1 - RESUMO
Ding Dong, Avon Chama! Com esse slogan a empresa Avon expandiu seus
negcios por toda a Amrica Latina. As vendas diretas representam uma opo ao
comrcio varejista, o ambiente onde ocorrem quase sempre um ambiente familiar
ao comprador, habitualmente sua prpria casa. As revendedoras Avon representam
um tipo especfico de vendedores diretos; so em sua maioria, mulheres que usam a
revenda para auxiliar no oramento domstico. A empresa busca incentivar e treinar
as revendedoras atravs de reunies que ocorrem no fechamento de cada ciclo de
vendas, denominado campanha. Estas reunies as premiaes e brindes
oferecidos s revendedoras representam um estmulo s vendas. Seus clientes so
preferencialmente seus amigos e parentes, pessoas de seu convvio ntimo. Isso
proporciona o encontro de dois mbitos da vida: o pblico e o privado, as relaes
comerciais, geralmente restritas ao mbito pblico da vida social, e as relaes de
parentesco e amizades, concernentes ao crculo privado da vida social. As
interaes entre revendedoras, clientes e outros atores envolvidos na revenda de
produtos Avon, constituem o principal objeto de estudo desta pesquisa.
7
2 - INTRODUO
Desde a antiguidade os homens realizam o comrcio atravs das vendas
diretas. A venda de porta em porta uma das formas em que ocorrem as vendas
diretas que, no Brasil, se popularizou pela figura do mascate e continua existindo
hoje, tanto nas cidades interioranas quanto em bairros suburbanos das grandes
metrpoles. At os anos 80 do sculo XX a figura do vendedor de enciclopdias
praticamente identificava esse tipo de vendas, ao mesmo tempo que, podemos
dizer, marcava uma poca em que algumas mudanas corriam no setor. As cidades
se verticalizaram, a segurana e a entrada macia de mulheres no mercado de
trabalho exigiram que as vendas diretas se transformassem. Hoje, em bairros
perifricos e em cidades interioranas ainda existem vendedores que batem de porta
em porta oferecendo toda sorte de produtos: comidas prontas, tapetes, produtos de
limpeza, jias, produtos de segurana, portes eletrnicos, leite, doces, sorvetes
etc.. Concomitantemente, grandes empresas de vendas diretas surgiram e
organizaram-se para atender a um pblico que no mais dispe de tempo para
receber o vendedor por certo tempo em casa, como ocorria com os antigos
vendedores de seguros, livros ou enciclopdias. Ao mesmo tempo essas empresas
oferecem aos vendedores a possibilidade de conciliarem a venda de produtos a uma
outra ocupao remunerada.
As Organizaes de Vendas Diretas representam grandes indstrias que
escoam sua produo atravs destes vendedores. Vendedores diretos, porm,
formam um grupo muito amplo e diverso de ocupaes, conduzindo-nos a delimitar
um pouco mais a pesquisa. Optamos por privilegiar o segmento dos vendedores
diretos que esto vinculados, ainda que informalmente, a uma grande empresa. Trs
grupos de revendedores foram cogitados: Natura, Herbalife e Avon.
Esta dissertao tem como finalidade analisar as vendas diretas, abordando
como objeto especfico as interaes das revendedoras Avon e seus clientes, bem
como os contextos que contribuem para a sua atuao no mercado das vendas
diretas. A escolha pelas revendedoras Avon se deu pelos seguintes motivos: a
grande representatividade e popularidade do grupo de revendedores no Brasil; a
ausncia de pesquisas sociolgicas sobre o objeto; facilidade de acesso ao grupo a
ser pesquisado. Entretanto, por diversas vezes, a empresa foi procurada para
viabilizar acesso a dados pertinentes pesquisa, contudo nenhuma informao foi
8
disponibilizada pela companhia alm daquelas que so de domnio pblico e que
podem ser encontradas na rede Internet, nos meios de comunicao de massa ou
nos folhetos distribudos pela empresa. As interaes na modalidade de venda
direta, os vnculos existentes com os clientes, as peculiaridades da ocupao, os
rituais nas aes de venda direta so alguns objetos e desenvolvimentos tericos
que procuramos explorar neste trabalho.
A pesquisa sociolgica vem, nas ltimas dcadas, abordando os mais
variados temas e cobrindo uma infinidade de assuntos que compem a vida social.
Alm disso, a sociologia compreende e amplia, desde os clssicos, o estudo de
temas fronteirios com outras reas do conhecimento, como no caso do Direito ou
da Sade. As vrias sociologias que resultam destas fronteiras e da pesquisa de
novos objetos contribuem para o fortalecimento e para a ampliao dos estudos
sociolgicos. O presente trabalho no pretende se classificar como um estudo de
uma rea especfica da sociologia, embora tenha suas razes na Sociologia do
Trabalho e que seja fortemente influenciado por ela.
Problemas que abrangem as vendas diretas se mostraram interessantes, tais
como a relao entre pblico e privado, os mecanismos usados por vendedores para
convencer clientes, a opo pelo trabalho sem vnculo, a presena macia de
mulheres neste setor, alm de outras questes que surgiram ao aprofundar o
contato o objeto.
A pesquisa bibliogrfica, primeira etapa do projeto, conduziu a poucos
estudos sobre a Avon, a maioria nos Estados Unidos, embora pouco relevantes
nossa temtica ou de acesso muito difcil ou oneroso. Em contrapartida, bons
trabalhos foram feitos no Brasil sobre revendedores da empresa Amway e, na
medida do possvel, todo esse material foi coletado e analisado.
Logo no incio da pesquisa percebeu-se que o estudo poderia se tornar muito
mais amplo do que supnhamos de incio. Em primeiro lugar havia a necessidade de
conceituar o tema das vendas diretas, para situar a pesquisa e delinear o objeto.
Abordar as relaes entre clientes e revendedores era somente um tpico dentro de
um universo muito mais complexo onde as revendedoras Avon representam
somente parte de uma realidade muito mais engenhosa e complexa, a ponta de um
iceberg. Este iceberg toda a estrutura montada pela empresa que d sustentao
ao trabalho da revendedora. Falar da revendedora sem abordar toda esta estrutura,
mesmo que superficialmente, comprometeria toda a pesquisa.
9
A pesquisa teve sua dimenso qualitativa reforada pela dificuldade de
obteno de informaes quantitativas. Como a empresa recusou-se a divulgar
informaes sobre seus revendedores obedeceu a tcnica de amostragem terica. A
entrevista com uma gerente proporcionou o acesso a muitas revendedoras, outras
gerentes e executivas de vendas, dando novas opes para o desenvolvimento da
pesquisa de forma mais ampla. Foi realizado um survey, os dados quantitativos
confirmaram e respaldaram algumas anlises.
Um longo e rduo trabalho de pesquisa bibliogrfica foi feito e refeito por
diversas vezes a fim de no permitir que informaes relevantes fossem deixadas de
lado. A pesquisa na Internet, em bases de peridicos cientficos e arquivos de jornais
e revistas, dentro e fora do Brasil, assim como no portal da CAPES foi muito alm do
que prevamos e em muito auxiliou o desenvolvimento da pesquisa. Muitas questes
sugiram ao tomar contato com o tema; as principais se referiam relao
revendedora/cliente. Um ponto recorrente no incio da investigao remetia aos
artifcios usados pela revendedora para convencer o cliente a realizar compras e
como a revendedora instrumenta sua argumentao para que tal fato ocorra. Outros
aspectos que se evidenciaram num primeiro contato com o objeto dizem respeito
organizao e diviso do trabalho na empresa, principalmente no nvel da relao
entre sua base, as revendedoras, e nveis administrativos mais elevados. Algum
conhecimento prvio sobre o objeto nos fez supor que os principais clientes das
revendedoras fossem pessoas ligadas ao seu crculo familiar. Outro interesse
relevante da pesquisa era captar a maneira como estas pessoas lidavam com a
transformao de pessoas ntimas em clientes.
A primeira parte deste documento trata do tema mais amplo: as vendas
diretas, sua importncia e peculiaridades, diferenciando as vendas diretas e o varejo
tradicional. O captulo engloba desde informaes coletadas em instituies
representativas de empresas de venda direta, atravs de vrios meios, at
resultados de pesquisas sobre vendas diretas que colaboram para mostrar ao leitor
um panorama do setor. A pesquisa de BIGGART, documentada no livro Charismatic
capitalism (1989), sobre vendas diretas, foi fundamental para perceber como a
sociologia aborda o tema, alguns de seus pressupostos tericos so tambm
destacados na segunda parte deste trabalho.
O segundo captulo aborda as demais teorias sociolgicas utilizadas em
estudos da rea de vendas, seus principais debates e questes. No s as vendas
10
diretas so priorizadas nesta discusso, como indicam os estudos de PRUS (1989)
sobre o comrcio varejista, que prioriza, como este trabalho, as interaes entre
vendedores e clientes, valorizando o discurso do entrevistado. Outras pesquisas
como as de PEDROSO NETO (2000) e de SOUZA (1996) contriburam
substancialmente para o direcionamento dos estudos realizados. Os estudos de
Weber sobre carisma colaboram para a percepo da relao existente entre
vendedores diretos e as Organizaes de Venda Direta. A sociologia dramatrgica
de GOFFMAN orienta algumas das mais importantes reflexes acerca do tema e
influi na elaborao de um esquema conceitual bsico que direciona o trabalho e a
pesquisa emprica em meio a pluralidade de perspectivas sociolgicas utilizadas
para tratar esta temtica.
A pesquisa emprica envolvendo interlocutores e trabalho de campo ocupa o
terceiro captulo, abrangendo desde o planejamento, a descrio e a justificao das
tcnicas metodolgicas seus resultados e as anlises decorrentes do material
colhido. O captulo apresenta os resultados das entrevistas semi-estruturadas,
realizadas com revendedoras, executivas de vendas e gerentes de setor; as
descries das observaes participantes; dos dados colhidos em um survey
realizado com 106 revendedoras em uma tentativa de perceber este estilo de
vendas diretas. Esses resultados compem, de maneira conjunta, a anlise dos
resultados para a percepo das revendedoras Avon e do contexto em que esto
inseridas e atuam na sociedade.
11
3 - A ECONOMIA EM REDE E AS OVDS
Ding Dong, Avon Chama! Com esse slogan a empresa Avon expandiu seus
negcios por toda a Amrica Latina. A Avon uma das mais bem sucedidas
Organizaes de Venda Direta (OVDs) ou Direct Selling Organizations do mundo.
A venda direta um gnero de comrcio bastante popular nos dias de hoje,
mas que tem suas bases no comrcio realizado por mercadores das civilizaes
mais antigas. Egito, Sria, Babilnia, ndia e Grcia realizavam comrcio atravs de
mercadores que viajavam em caravanas; esse tipo de trfego beneficiou vrias
civilizaes, incentivando a manuteno de intercmbios culturais. Na Idade Mdia,
os vendedores diretos que trabalhavam com os mais diversos tipos de produtos, iam
de feudo em feudo a procura de clientes para estabelecer trocas. Ciganos europeus
que, depois de emigrar para a Amrica, praticaram o comrcio de venda direta na
nova terra, trouxeram a tradio deste tipo de venda da Inglaterra, Esccia, Irlanda,
Alemanha e Hungria para a Amrica Colonial. Mais tarde, esse comrcio foi
realizado, nos Estados Unidos, por mercadores que viajavam de cidade em cidade
vendendo pequenas mercadorias. Logo os comerciantes desenvolveram rotas
acessveis para facilitar a viagem por terra, facilitando a abertura de novas estradas
e intercmbios comerciais. O mascate, que ia de uma cidade a outra batendo de
porta em porta procura de clientes para seus produtos, geralmente de pequeno
porte, foi o exemplo mais popular deste tipo de trabalhador no Brasil. Embora a
figura do mascate no mais esteja presente no cenrio comercial brasileiro, a venda
direta no desapareceu, ela se reconfigurou atravs dos tempos; hoje h uma
infinidade de pessoas que batem de porta em porta vendendo produtos dos mais
variados tipos, principalmente em cidades no interior do pas.
Segundo BIGGART (1989), analisando o surgimento das OVDs nos Estados
Unidos, as vendas diretas atingem os padres que conhecemos hoje impulsionadas
pelo comrcio de varejo, principalmente o que ocorria dentro dos armazns, que
hoje foram substitudos pelos grandes supermercados e pelas lojas de
departamento. O produto de uma empresa concorre lado a lado, preo a preo, com
outro produto semelhante, mas produzido por outra empresa. Algumas empresas
percebiam esse tipo de comrcio como uma ameaa a seus lucros; a venda direta
aparece como alternativa a essa concorrncia direta. Desde o final do sculo XIX,
passou a ser utilizada para estimular a competio com o varejo onde este tinha
12
maior dificuldade de se expandir: fora das cidades grandes e principalmente na zona
rural. Tecidos, produtos para limpeza de casa, produtos para cuidado pessoal e at
automveis so exemplos de mercadorias que eram comercializadas atravs de
venda direta.
Vrias das companhias de venda direta de hoje, inclusive o gigantesco
conglomerado Avon Products, tm suas origens no perodo tardio de
crescimento urbano e expanso econmica do sculo dezenove. (...)
Justamente como os mascates ianques, os novos vendedores diretos
distribuam bens e, talvez to importante quanto realizar vendas eles
distribuam as idias urbanas e a cultura em uma poca de acelerada
mudana social (BIGGART, 1989, p. 22).
Nessa poca a maior parte os vendedores recrutados pelas OVDs era
constituda por trabalhadores acostumados com o servio braal do campo,
residentes no interior dos Estados Unidos, que no tinham conhecimento sofisticado
como o dos habitantes da cidade, mas eram mais submissos ao controle
administrativo e sua vontade de crescer economicamente era maior. Em 1920 as
indstrias que utilizavam a venda direta para escoar sua produo organizaram-se
em companhias especializadas no ramo. As estimativas realizadas sobre o nmero
de trabalhadores envolvidos com vendas diretas na poca acusavam cerca de
duzentos mil distribuidores comercializando produtos das OVDs de ento. Foi neste
momento que as mulheres passaram a se interessar pelas vendas diretas, pois
encontravam um meio de realizar a venda de bens de consumo, principalmente
eletrodomsticos nessa poca, sem sair de seus lares. Um grande impulso a este
surgimento foi o desenvolvimento tecnolgico provocado pela primeira grande guerra
mundial, que fez com que o potencial de produo industrial aumentasse. A crise
instalada na indstria mundial em 1929 tambm atingiu as OVDs, que foram
reduzidas metade, cerca de trs mil, mas o grande nmero de trabalhadores
desempregados na poca representou a possibilidade de recrutamento de mais
vendedores. Curiosamente, um grande nmero de companhias de venda direta foi
criado nesta poca e outras companhias j existentes optaram por este tipo de
comrcio, pois sua maneira de distribuir produtos representava menores gastos
empresa. Durante os anos que se seguiram, aps inmeras batalhas judiciais e
13
discusses sobre as regras referentes contratao de trabalhadores destas
empresas, as normas legais relativas aos vendedores diretos foram definidas mais
claramente. As empresas descobriram maneiras para desvincular esses
trabalhadores de seus quadros de funcionrios legais, pelos quais pagavam
impostos e encargos. Na dcada de 1980, os vendedores diretos j eram
considerados legalmente como trabalhadores autnomos, que assinavam um
contrato que determinava o tipo de relao que teriam com a empresa e a posse do
controle de suas vendas, como acontece at os dias de hoje (BIGGART, 1989).
fundamental esclarecer aspectos do comrcio varejista para posteriormente
enfocar os tpicos relativos s vendas diretas; a organizao deste mercado de
negcios analisada por Robert Prus em seu livro Pursuing costumers (1989).
Seguindo princpios da escola sociolgica conhecida como Interacionismo Simblico,
o autor analisa a configurao do comrcio varejista, atravs de entrevistas
realizadas com diversos agentes deste ramo. A organizao de um negcio se d
prioritariamente de duas formas: primeiro, ou atravs de uma firma que pode ser ou
individual (organizao que tem em vista fins lucrativos e que pertence a um nico
indivduo, em seu prprio nome, ou com nome de fantasia), ou atravs do
estabelecimento de uma sociedade (associao de duas ou mais pessoas que
atuam como proprietrias de uma empresa). A segunda maneira a corporao, tipo
de entidade que, representada por pessoa jurdica, necessita de uma carta patente
concedida pelo governo para que a empresa possa atuar. necessrio capital de
giro para implementar o negcio e a presena de alguns investidores, que dividem o
controle acionrio da firma, os lucros e as responsabilidades proporcionalmente. As
taxas e impostos pagos neste ltimo tipo de organizao so diferentes do que se
efetiva em outros tipos de negcio; a principal vantagem que h a delimitao
clara das obrigaes e responsabilidades de seus investidores.
O investidor (ou investidores) vo posteriormente optar por um formato para
instalar sua empresa. Uma das escolhas a ser feita entre ter somente um ou vrios
pontos de venda. Optar por um ponto de venda proporciona certa independncia,
por outro lado limita a atuao da firma no mercado. A opo por instalar uma cadeia
de lojas requer maior investimento, mas por estarem localizadas em vrios pontos
h a possibilidade de atingir um pblico maior e assim ter suas vendas
incrementadas.
14
Outra opo a ser feita entre utilizar ou no mltiplas frentes de vendas.
Significa que um mesmo negcio pode lanar produtos destinados a atender uma
mesma rea, mas com nomes diferentes. Assim o comprador pode ter a impresso
de optar por este ou aquele produto, que suprem uma mesma necessidade. Essa
multiplicidade pode significar diferentes qualidades, estilos e preos para dois
produtos de funo igual ou semelhante.1
Um negcio pode tambm ter um posicionamento no mercado que PRUS
(1989) denomina guarda-chuva (umbrella), uma forma de organizar vrias
empresas em um mesmo espao no mercado, em que as marcas partilham uma
mesma estrutura fsica e assim incrementam suas vendas por oferecerem maiores
opes de compra aos clientes em um mesmo espao; no Brasil so mais
comumente chamadas de lojas de departamento.
Escolher por estabelecer negcios em grandes malls, mais conhecidos como
shopping centers, representam uma outra opo a ser feita. Nestes locais as
organizaes que se instalam so completamente independentes umas das outras.
Cada negcio possui uma localizao especfica, as lojas so as unidades ocupadas
por cada representante de uma marca. Os lojistas dividem os custos operacionais do
espao que pode tambm acolher reas de entretenimento e lojas de departamento,
visando atrair uma maior quantidade de consumidores para este espao.
As franquias so diferentes das formas de estabelecer negcios j citadas,
pois neste caso o investidor compra o direito de revender uma determinada gama de
produtos originados do negcio de outro investidor e passa a representar uma
empresa na regio em que se instalou. Firma-se um contrato com aquele que lhe
cedeu a franquia trato, no qual se prope seguir as recomendaes sobre a
administrao do negcio e o estabelecimento de preos e promoes, submetendo-
se a uma padronizao j estabelecida anteriormente. H tambm o compromisso
de se vender somente os produtos ou servios da empresa no ponto de venda
organizado para o negcio (PRUS, 1989).
A venda direta, que se apresenta como alternativa de compras diferente do
comrcio varejista, consiste em realizar a comercializao de produtos fora do
1 As indstrias de cosmticos so pioneiras nessa prtica, lanam duas, ou mais, linhas de produtos que tm a mesma funo (por exemplo, hidratao da pele), mas que se diferenciam entre si por pequenos detalhes como a fragrncia, a embalagem e/ou o preo dos produtos, fazendo com que o consumidor tenha a impresso de ter grandes opes de escolha em uma s marca. Esta estratgia tambm utilizada por OVDs dentro da gama de produtos que oferecem.
15
ambiente comercial, como lojas, supermercados ou armazns, que so exemplos de
locais reconhecidos como comerciais por abrigarem vrios produtos que so
vendidos queles que procuram satisfazer uma necessidade de consumo. O
ambiente onde ocorrem as vendas diretas quase sempre um ambiente familiar ao
comprador, habitualmente sua prpria casa. Neste caso, no o consumidor que
primeiro busca um bem, mas um intermedirio (representante de vendas, distribuidor
ou revendedor) que oferece o produto na casa do cliente ou no lugar onde esteja,
seja no trabalho, na igreja ou na escola. A venda direta engloba uma srie de
trabalhadores, que se dispe a bater de porta em porta ou ir procura de algum
interessado em adquirir seus produtos, como no exemplo tpico de vendedores de
enciclopdias, bastante comuns na dcada de 1980 ou os vendedores de pamonha,
que em bairros perifricos de muitas cidades anunciam seus produtos em carros
com som amplificado: Olha a pamonha! Pamonha quentinha um Real!. H muitos
tipos que vendem os mais variados produtos, inclusive nas reparties pblicas,
abordando o consumidor fora dos ambientes de comrcio tradicionais. As
revendedoras Avon, assim como grande parte das consultoras de beleza, fazem
parte deste tipo de comrcio. Munidas de seus produtos e das tabelas de preos
elas buscam clientes. A venda direta vem recebendo um enfoque sociolgico por
alguns autores, como PEDROSO NETO2:
Pode-se definir as vendas diretas segundo um arranjo especfico de
estratgias de vendas. De modo geral, o vendedor vai at o comprador,
geralmente em sua casa, e, atravs de uma relao face a face, expe os
produtos. Os vendedores podem ser indivduos empregados por empresas,
sob comisso, salrio fixo ou ambos. Podem ser indivduos que vendem, no
varejo, bens que compram por atacado. Neste caso, eles ganham a diferena
entre o preo do produto comprado no atacado e o preo do produto vendido
no varejo. Podem ser indivduos contratados independentes juridicamente
em relao empresa, no empregados, no assalariados que recebem
uma comisso sobre a venda realizada (2000).
PETERSON e WOTRUBA (1996) analisaram aspectos deste tipo de
comrcio, assunto que at ento vinha sendo ignorado pela literatura na rea de
2 Em interessante trabalho sobre a empresa de venda direta Amway, Pedroso Neto analisa, dentre outros aspectos a coeso existente entre os revendedores dos produtos desta marca.
16
marketing. Apesar dos dicionrios de marketing no conterem qualquer referncia ao
tema os autores declararam ser muito simples definir venda direta como um
comrcio face a face que ocorre em locais diferentes dos usualmente utilizados para
efetivar vendas. Porm a definio se torna mais especfica se a considerarmos
atravs de trs perspectivas. Primeiro, as vendas diretas percebidas atravs de
caractersticas inerentes sua operacionalidade podem configurar-se como uma
forma de comunicao interpessoal entre dois indivduos em uma transao que
pode se apresentar como sendo de benefcio mtuo. Alm disso, podemos
apreender a venda direta pela ttica de atuao e perceber que esse no um
fenmeno homogneo, ao contrrio do que se pode pensar antes de uma anlise
mais criteriosa. As vendas diretas podem ser consideradas, no que se refere s
tticas, segundo:
as caractersticas ligadas ao vendedor e sua relao com o produto e com o
empregador;
o intervalo de tempo dirio destinado s vendas;
o local onde estas transaes ocorrem;
o ato ser ocasionado decorrente da comercializao em si ou da existncia de uma
relao anterior entre o vendedor e o cliente;
o revendedor pode ser percebido tambm como cliente (os agentes precisam
consumir para depois venderem);
a forma utilizada para distribuir e pagar os produtos;
os nveis de classificao entre revendedores: multinvel (multilevel) representa
vrios nveis de classificao entre revendedores e mononvel (monolevel) a forma
de organizao em que os revendedores se reportam diretamente a um indivduo ou
empresa.
Os autores diferenciam tticas de estratgias de atuao. A venda direta pode
ser vista, como uma maneira de se organizar as vendas ou como uma funo das
vendas, dependendo das estratgias utilizadas pelo vendedor. Outra opo
estratgica deve ser feita entre perceber as vendas diretas como uma organizao
para a distribuio de produtos, como um meio de acesso ao mercado ou como uma
opo para a efetivao de negcios (PETERSON e WOTRUBA, 1996).
No se deve confundir a venda direta com o marketing direto. Segundo
JONES e KUSTING (1995) o marketing direto uma maneira de se vender produtos
17
atravs de um canal direto entre produtor e consumidor, um dos meios mais comuns
de se estabelecer essa comunicao o telemarketing.
Hoje os trabalhadores buscam cada vez mais alternativas para manter uma
renda mensal adequada a seus gastos. Uma destas alternativas e que est
conquistando trabalhadores, donas de casa e at mesmo adolescentes em alguns
casos, a venda direta, apesar de que esta no garanta uma renda mensal fixa e
tambm no assegure quele que se dispe a entrar neste esquema, os benefcios
advindos de um vnculo empregatcio seguro, como carteira de trabalho assinada ou
frias remuneradas.
O que pode ser comercializado atravs de venda direta? Hoje o mercado das
vendas diretas bastante diversificado e os vendedores nesse setor no podem ser
vistos somente por sua adeso a uma OVD. Eles podem realizar vendas de maneira
bastante diversificada, sem a necessidade de representarem uma determinada
empresa. Trabalhadores autnomos, tais vendedores incluem pessoas que
comercializam desde doces em estaes de nibus ou vendedores de utilidades
domsticas que batem de porta em porta, sem qualquer vnculo com alguma
empresa ou organizao, dificultando um mapeamento de suas atividades, atuando
at mesmo de forma ilegal, engrossando as estatsticas do mercado informal no
Brasil. Tambm compreendem que revendem produtos fabricados e distribudos por
grandes organizaes, aqueles o que, pode ser evidenciados atravs das
estatsticas fornecidas por rgos que representam estas corporaes. Praticamente
tudo pode ser vendido atravs de venda direta, mas os dados disponveis indicam
que as OVDs tm seus maiores faturamentos em produtos para cuidados pessoais
(86%) e complementos nutricionais (11%).
TABELA 1 - CARACTERSTICAS DA ATUAO DAS EMPRESAS DE VENDA DIRETA
RAMO DE ATUAO (%) Cuidados Pessoais (Cosmticos, jias, etc.) 86 Complementos Nutricionais 11 Cuidados com o lar 2,6 Lazer e Educao 0,3 Servios e outros 0,1 FONTE: ABEVD - ASSOCIAO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE VENDA DIRETA, 2004.
18
Os trabalhadores e a organizao de trabalho no sistema de venda direta s
recentemente se tornaram objeto de estudo na Sociologia, despertando interesse
nos pesquisadores que analisam o mercado de trabalho no somente como um
reflexo da organizao produtiva no cho de fbrica; as possibilidades de anlise
se multiplicaram na atual configurao do mercado mundial. Segundo Manuel
Castells, h uma nova tendncia global de organizao do trabalho, que se torna
cada vez mais interdependente internacionalmente. A configurao da sociedade
est permeada pela influncia do sistema capitalista e informacional; mesmo nos
pases onde a cultura e a histria em muito diferem do mundo ocidental, esta
questo se apresenta com muita fora. A revoluo tecnolgica atual, cujo resultado
mais aparente o surgimento da Internet, propicia a formao de redes, criadas
para dinamizar a comunicao entre as pessoas. Vrias trasformaes vem
ocorrendo nos ltimos tempos, fazendo com que os indivduos modifiquem suas
rotinas de vida e reestruturem sua forma de lidar com o contexto social. Noes
como as de tempo e espao mudaram. O processo globalizacional em parte
responsvel por essas mudanas. Essa nova forma organizacional uniu-se ao
sistema de idias que compe a base terica da globalizao, tendo como princpios
fundamentais a liberdade de comrcio entre as naes e o uso cada vez maior de
capitais transnacionais nas operaes de negcios. Os valores dos indivduos que
se adequaram a esse estilo de atuao e a ideologia do livre mercado converteram-
se em senso comum. As linhas que delimitam as fronteiras entre os Estados
tornaram-se cada vez mais tnues, no s relativo ao mercado e efetivao de
comercializaes entre naes, mas tambm tendo em vista as trocas culturais e a
considervel perda de autonomia dos Estados. Os pressupostos em que nos
baseamos para interagir esto em constante renovao. A televiso e a Internet
refletem essa tendncia de forma bastante clara; os valores mudaram e se
adequaram nova ideologia globalizacional (CASTELLS, 1999 [2000]).
A criao de redes de comunicao til para a expanso de empresas
capitalistas que estabelecem redes internacionais. Ligando vrios mercados
domsticos, as redes adaptam e modificam sua configurao, inovando conforme o
pas; a inteno no mais fazer com que o capital estrangeiro assuma o controle.
CASTELLS ressalta que as informaes circulam pelas redes: redes entre
empresas, redes pessoais, e redes de computadores. As novas tecnologias de
informao so decisivas para que esse modelo flexvel e adaptvel realmente
19
funcione (2000, p. 186). Esse modelo dificulta a minimizao, controle e correo de
possveis erros, por ser um modelo idealizado para macro situaes e enfocar um
contexto de mudanas constantes. Os problemas que podem ocasionar desta forma
de organizao podem ser amenizados por duas caractersticas das redes: a
adaptabilidade a novos contextos e a situaes desfavorveis e a flexibilidade para
realizao de modificaes. Essas so peculiaridades da empresa horizontal: rede
dinmica e estrategicamente planejada de unidades autoprogramadas e
autocomandadas com base na descentralizao, participao e coordenao (idem,
p.187). A produo em massa, o modelo rgido e associado grande empresa e aos
oligoplios est sendo gradativamente substitudo por um novo modelo, o da
empresa em rede, que tem a informao como principal meio para manuteno e
expanso em uma economia global, permeada pelo novo modelo tecnolgico.
Roberto Grn (GRN, 2003) atenta para o fato de que existem atualmente
diferentes formas de insero na vida econmica que foram resultado das alteraes
recentes na configurao do mercado de trabalho. A forma de sociabilidade que o
autor se prope a analisar a chamada sociedade em rede, popularizado por
Manuel Castells, que se refere a mudanas nas formas de sociabilidade com o
advento das novas disposies tecnolgicas depois da dcada de 1990. Segundo a
anlise de CASTELLS (1999 [2000]), estamos diante de uma reorganizao das
formas hierrquicas de organizao. H uma grande dificuldade dos profissionais em
lidar com a flexibilizao exigida pelas redes. A network organization provoca grande
desconfiana nos que pretendem aderir ao comrcio em rede, que preferem as
conhecidas lgicas mercantis. O advento da Sociedade em Rede visto como obra
coletiva que gera o subconjunto de agentes locais inovadores e de propagadores de
novos evangelhos (GRN, 2003, p. 15). Um bom exemplo so as literaturas ligadas
auto-ajuda que parecem se adequar filosofia de trabalho de empresas do tipo
OVD. Existem dois tipos de sujeitos que podem estar ligados rede: um so os bons
empreendedores, aqueles que garantem a fluidez e a incluso no mbito da rede, o
outro tipo de sujeito so os maus empreendedores, que se aproveitam da rede e
exploram a boa f das pessoas a quem se associam. O fato a que devemos nos
atentar de que o sucesso dentro deste filo do mercado muitas vezes atribudo
ao prprio indivduo e sua dedicao, uma vez que a empresa possibilitaria todos
os recursos necessrios ao bom desempenho nas vendas, como treinamentos e
suporte tcnico (GRN, 2003).
20
Neste mbito esto inseridas as OVDs, organizaes que tm seus produtos
comercializados atravs da venda direta. Diferentemente do mascate ou do
vendedor ambulante, as revendedoras Avon tm como sustentculo uma marca
bastante conhecida e respeitada no Brasil. Os produtos que comercializam no so
por elas produzidos, h a infraestrutura de uma empresa formal, que possui
inmeras indstrias espalhadas pelo globo, que produzem os cosmticos e
utilidades que so revendidos, e dando suporte a estas revendedoras, consideradas
autnomas.
As OVDs datam da dcada de 1920 nos EUA e desde a dcada de 1980 vem
sofrendo alteraes e ampliando seus mercados, adequando sua ao aos novos
padres de ao capitalista descritos acima; porm dois aspectos diferenciam estas
empresas dos demais tipos. Em primeiro lugar os distribuidores no so
empregados formais, so considerados autnomos, no h nenhum tipo de vnculo
empregatcio formal com a empresa. Em segundo, estas organizaes no tm
pontos de venda, seu sistema de comrcio montado para facilitar a interao face
a face.
O padro de atuao das OVDs muito difere das organizaes burocrticas
do capitalismo avanado. A burocracia tem como caractersticas o estabelecimento
de regras, a instituio de comandos hierarquizados, a regulao dos indivduos, o
estabelecimento de relaes impessoais e a separao entre as esferas pblica e
privada dos agentes que as compem. A lgica organizacional das OVDs
radicalmente diferente, principalmente em dois aspectos; as relaes sociais e as
estratgias de gerenciamento. A posse do produto e o gerenciamento do trabalho
em uma OVD esto concentrados no distribuidor, que legalmente no est
subordinado empresa e no pode ser cobrado por sua produo ou pelo uso de
seu tempo. Alm disso, as organizaes estimulam a indicao de parentes e
amigos para a insero em suas redes. Enquanto as instituies burocrticas
parecem excluir as relaes sociais no ligadas ao trabalho para controlar os
trabalhadores, a indstria de venda direta busca pelo lucro da maneira oposta,
fazendo redes sociais para servir s finalidades do negcio (BIGGART, 1989, p. 8).
Uma caracterstica bastante interessante que para se trabalhar como
revendedor no preciso nenhum conhecimento especfico ou experincia,
facilitando a adeso de muitos a esse estilo de comrcio. Seus quadros de
revendedores so estimulados a cooperar, ao invs de competir, como geralmente
21
ocorre nas grandes organizaes empresariais e suas relaes com amigos e
familiares so estimuladas, uma vez que auxiliam na expanso da rede. Essa ltima
caracterstica estende-se at os clientes, com os quais a corporao estimula seus
membros a manterem relaes similares s mantidas com parentes ou amigos,
visando facilitar a instaurao de vnculos mais fortes que os geralmente
estabelecidos atravs do comrcio comum. Nas vendas diretas os trabalhadores
mantm o controle sobre suas horas de trabalho e podem integrar essa esfera com
as demais esferas de suas vidas. Oferece-se aos indivduos condies que a maioria
dos empregos tradicionais no comporta3.
As OVDs tm prosperado porque representam uma alternativa de trabalho
que muitas pessoas, especialmente mulheres, acham atrativa. No incio do sculo
XX as mulheres, especialmente as casadas e com filhos, sofriam presso da
sociedade para permanecerem no lar, se dedicando aos afazeres domsticos. Hoje
a situao bem diferente, grande parte das mulheres educada para o mercado
de trabalho. Segundo dados estatsticos da PNAD de 2002 as mulheres brasileiras
tm mais anos de estudo que os homens, o que poderia nos fazer pensar que a
tendncia para os prximos anos seja a de as mulheres ocuparem cargos com
salrios mais altos. Porm, deve-se lembrar que a discriminao do trabalho
feminino ainda existe e bastante clara no mercado formal (CASTILHO e ALMEIDA,
2004). Em contrapartida o trabalho domstico tambm sofre preconceito, fator que,
junto crescente necessidade de insero da mulher no mercado de trabalho, faz
com que a dona-de-casa seja um ator social cada vez mais raro. Por outro lado, a
mulher permanece com o dilema de ter que escolher entre atuar em casa ou no
mercado de trabalho. Se optar por um trabalho formal a mulher se distancia da casa
e dos filhos ou designa a funo de dona-de-casa a uma trabalhadora especializada
em limpeza, ou ainda acumula funes (a chamada dupla jornada de trabalho). As
vendas diretas se tornam atrativas para as mulheres porque resolvem o problema
que os empregos burocrticos no conseguiriam solucionar. A oportunidade de
gerenciar e escolher seus horrios de trabalho, aparentemente d mulher a opo
de conciliar o trabalho e as tarefas ligadas ao lar. Por isso as vendas diretas atraem
tantas mulheres no mundo todo.
3 PETERSON e WOTRUBA (1996) e BRODIE, PURDY, STANWORTH e WOTRUBA (2004) observaram em pesquisas empricas as caractersticas dos vendedores diretos.
22
Outra questo importante se refere distino entre pblico e privado. Em um
emprego formal essa distino clara; as empresas tm normas rgidas para
efetivar a separao destas duas esferas visando a mxima produo de seus
funcionrios. As OVDs, ao contrrio, incentivam a aproximao da esfera privada de
seus revendedores dentro do mbito dos negcios. A famlia coopera para as
finalidades de lucro da organizao. Os laos de amor e autoridade so usados para
as finalidades comerciais (BIGGART, 1989). Quando essas organizaes oferecem
a oportunidade de o trabalhador gerir seus prprios horrios, sem dar qual quer
satisfaes empresa, na verdade do a entender que o revendedor ter como
organizar sua vida profissional de acordo com sua vida pessoal. Mas, na prtica, o
que as empresas visam captar o revendedor com esta imagem e com o passar do
tempo induzi-lo a integrar seus familiares e amigos em sua rede de vendas. O ideal
para a empresa que todos em mbito domstico estejam integrados nas tarefas
relativas execuo dos negcios. Assim, pblico e privado so aproximados com o
propsito de maximizar os lucros.
As OVDs divulgam outras vantagens para o revendedor, como por exemplo, a
inexistncia de riscos no negcio, j que o investimento inicial muito pequeno ou
desnecessrio e a dedicao s vendas fica a critrio do revendedor. Essa opo
torna-se invlida quando o trabalhador se insere na rede e percebe que s obter
lucros satisfatrios dedicando um tempo mximo s vendas. Isso faz com que
muitos trabalhem mais de oito horas dirias, o que o indivduo, onde esteja, assuma
o papel de vendedor direto e veja em todas as pessoas possveis clientes. No h
necessidade de se manter um capital de giro, pois os produtos revendidos so, na
maior parte das vezes, pagos com o dinheiro recebido na venda; as empresas
estimulam para que o indivduo adquira produtos mesmo no tendo recebido
qualquer pedido de seus clientes para compr-los.
Segundo LAN (2002), as redes de negcios, ou network business,
construdas pelos distribuidores so sustentadas por vnculos frgeis entre as
pessoas. Ento, as transaes comerciais so transformadas em vnculos pessoais
e as alianas de negcios em laos de famlia, com a finalidade de se estabelecerem
mecanismos de confiana entre o consumidor e o vendedor. As redes sociais
facilitam o comrcio e, assim que sua atuao torna-se mais sutil, elas se
transfiguram em um valioso meio de controle. LAN afirma que os distribuidores
personalizam as vendas, confundindo os limites existentes entre pblico e privado,
23
transformando atividades de negcios em atividades sociais. Portanto, dois aspectos
se tornam importantes: o distribuidor passa a agir como se estivesse sempre sendo
observado por seus clientes e estes se transformam em observadores oniscientes
do revendedor; o ato da venda transforma-se em ato de demonstrao de uma
crena. O primeiro aspecto reflete como o distribuidor passa a direcionar sua vida e
suas atividades dirias para atingir seu pblico alvo. Em todos os locais que vai seus
atos so direcionados para captar clientes; aonde quer que esteja ele est sendo
observado por muitas pessoas, clientes em potencial. Os distribuidores pretendem
se tornar o testemunho vivo dos benefcios proporcionados pelos produtos que
vendem. Ento, para o distribuidor, ter a pele bem cuidada, sem manchas e/ou o
corpo saudvel so boas qualificaes para ele revender cosmticos ou produtos de
cuidados com a sade, por exemplo. O segundo aspecto descrito tambm por
BIGGART (1989), que analisa a transformao da identidade que ocorre com os
revendedores, semelhante transformao que ocorre com o religioso quando se
converte a uma nova crena. Na tentativa de conciliar a ansiedade emocional do
papel de revendedor e sua identidade o indivduo entra em conflito no processo da
rede, e leva a si mesmo a acreditar nos valores morais difundidos pelas OVDs (LAN,
2002). Fazer dinheiro torna-se a meta de vida dos distribuidores. Seu estilo de vida
e trabalho visto como superior aos dos demais indivduos; isso inclui seus valores,
seus relacionamentos e suas crenas religiosas.
GRN (2003), por sua vez, salienta que as empresas em rede pretendem se
distanciar ao mximo da organizao e dos mecanismos comerciais utilizados por
empresas familiares, tnicas e tradicionais, que em sua maioria tem sua organizao
do trabalho baseada em costumes; as decises de seus negcios so tomadas por
um grupo de indivduos reduzido, no estimulando a abertura dos negcios a
terceiros; mantendo padres de administrao e marketing que passam de pai para
filho durante as geraes. Ao contrrio, as OVDs, oferecem aos indivduos um
pacote organizacional, visto como um suporte de alta organizao e eficcia, com
instrumentos e pesquisas de mercado, de base pretensamente cientfica, que visa
balizar sua atuao e conferir uma liberdade de movimentos e aes, mediante a
propagao de slogans do tipo: seja seu prprio chefe, que faz com que o tipo de
organizao em rede se diferencie ainda mais das formas tradicionais de comrcio.
24
H trs principais motivos que levam uma pessoa a comprar produtos de um
vendedor direto: a qualidade do produto, o preo e o conhecimento prvio dos
produtos vendidos. Em pesquisa realizada com 490 consumidores australianos
englobando temas relativos s vendas diretas, KUSTING e JONES (1995)
perceberam que esta modalidade de venda no vista, pelo consumidor, como mais
vantajosa do que a compra no varejo tradicional. Em sua pesquisa, os autores
notaram um movimento contraditrio: houve um crescimento das vendas diretas,
mas o consumidor australiano demonstrou uma percepo negativa deste estilo de
comrcio, principalmente dos revendedores de organizaes de network marketing.
Tal repulsa poderia advir de quatro principais motivos: o medo de se envolver com
esquemas de remuneraes chamados de pirmides (forma ilegal de atuao no
mercado), o baixo valor das comisses, a atmosfera desconfortvel no momento da
venda e a atitude agressiva que alguns revendedores adotam.
A Amway um exemplo bastante conhecido de OVD, investigada por
PEDROSO NETO (2000) e por SOUZA (1996), que realizaram estudos sobre a
organizao desta companhia e sobre as especificidades de uma forma de venda
direta chamada de Marketing de Rede4. Tal empresa foi a primeira e mais conhecida
empresa deste ramo. No Brasil, sua forma de atuao se compara com a da
Herbalife, bastante conhecida atualmente. As empresas deste tipo organizam um
esquema de lucratividade mais sofisticado que as demais OVDs: quando um
distribuidor capta outro distribuidor ele passa a receber uma porcentagem por todo o
produto revendido pela pessoa que captou. Ou seja, forma-se um esquema de
comissionamento que incentiva o distribuidor a buscar pessoas para inserir nessa
rede. H uma srie de artifcios, segundo autores supracitados, utilizados pela
empresa para estimular as vendas; uma delas a utilizao de livros de auto-ajuda,
usados para restaurar em seus revendedores a confiana em seu potencial e
incentiva-los a se tornarem pessoas de sucesso 5. A empresa tambm realiza
cursos e reunies peridicas que tm por finalidade estimular vendas e apresentar
benefcios de novos produtos6. Segundo SOUZA (1996), os distribuidores dos
produtos Amway vem-se inclusos em um crculo social muito semelhante ao
4 Tambm chamado de Network Marketing ou Multilevel Marketing (MLM). 5 A literatura de auto-ajuda utilizada por esta e outras empresas do mesmo modelo estimulam os leitores a se tornarem empreendedores e os leva a pensar que podem conquistar uma vida melhor do que a que tem mudando sua forma de atuar no mundo. 6 Estratgia tambm utilizada pela Avon que ser mais frente rigorosamente descrita e que tem as mesmas finalidades, s que com uma metodologia diferente, que visa atingir seu pblico especfico.
25
familiar, onde os relacionamentos entre si e com o cliente so direcionados para se
tornarem semelhantes queles dos encontrados nas famlias. No obstante isso os
padres hierrquicos entre os distribuidores so baseados em um sistema
meritocrtico, onde aqueles que trazem um maior nmero de novos distribuidores a
rede e que tm uma maior quantidade de vendas ocupam os lugares mais altos da
escala que determina privilgios e remuneraes. Esse tipo de sistema de
classificao bastante comum na cultura norte-americana. A empresa foi fundada
em 1959, nos Estados Unidos, com origem num grupo de revendedores da Nutrilite
que se uniram para formar a Amway (American Way Association). O prprio nome j
indica que todo iderio do American Way of Life contribuiu para a formao
filosfica do discurso da empresa: valores como livre iniciativa, integridade
profissional, possibilidades de negcios baseadas em critrios meritocrticos,
respeito individualidade e vida familiar" (SOUZA, 1996, p. 27).
Esta uma das caractersticas notadas por BITTENCOURT:
(...) a Amway constri seu discurso a partir dos valores e smbolos do
American Way of Life, expressos por uma ideologia meritocrtica, no culto ao
sucesso e a um esprito empreendedor de forte inspirao nos princpios
liberais, sintetizados em seu Compassionate Capitalism` e ainda, atravs da
apropriao de outros campos discursivos, sobre os quais promove um estilo
de vida contraditriamente individualista e totalitrio (1998, p. 10).
Os distribuidores destes produtos apresentam o seguinte perfil: so quase
sempre profissionais liberais, com curso superior e que se trajam de maneira
austera. Suas rotinas e encontros ligados empresa so quase sempre ritulizados e
esses rituais so sempre reforados nos encontros entre vendedores (PEDROSO
NETO, 2000).
Os indivduos optam pela venda direta por uma variedade de motivos; alguns
esperam algum tipo de recompensa social, como por exemplo, a oportunidade de
estabelecer novos laos de amizade, que seriam proporcionados pela relao entre
vendedor e cliente. Outros buscam as vendas diretas porque as OVDs disseminam a
idia de que esse tipo de trabalho d ao revendedor liberdade para escolher o que
fazer e quais os melhores horrios para trabalhar. Outra vantagem seria a autonomia
do trabalhador para decidir suas prioridades, pois, no estando contratualmente
26
vinculado a uma empresa especfica, no necessita se dedicar exclusivamente
venda de produtos daquela empresa, podendo conciliar uma outra ocupao ou
emprego fixo.
Segundo GRACIOSO e NAJJAR, para os especialistas em vendas o
marketing de rede um sistema que permite levar produtos da indstria para o
consumidor sem passar pelo varejo tradicional. Para os que nele trabalham, porm,
o MLM acima de tudo, uma oportunidade de ganhar dinheiro, suplementar a renda
familiar e realizar sonhos pessoais (1997, p. 16). Esta afirmao resume a viso dos
especialistas em administrao e marketing sobre a Venda Direta como instrumento
de comercializao e divulgao de produtos.
Existem vrias OVDs atuando em nosso pas: a Avon, desde 1959; a Natura e
a Stanley Home comearam em 1969; em 1970 a Chrystian Gray, a Jafra e a
Tupperware; em 1981, a Pierre Alexander. Na dcada de 1990, alm da Amway,
comearam a operar no Brasil Bom Apetite, Natures Sunshine, Hermes, Yves
Rocher, Post Haus, Herbalife, Mary Kay, DeMillus e Nu Skin. Estas informaes so
disponibilizadas pela ABEVD, Associao Brasileira das Empresas de Venda Direta,
que representa os interesses das Organizaes de Venda Direta no Brasil. Segundo
consta em seu site na Internet todas as empresas filiadas a essa instituio e a
WFDSA7 seguem um cdigo de conduta especfico categoria, que defende tanto
as empresas quanto consumidores e revendedores de seus produtos, logo, as
empresas e seus revendedores diretos esto sujeitos a seguir suas regras de
conduta (PETERSON e WOTRUBA, 1996).
importante caracterizar o consumidor que geralmente opta por comprar
produtos atravs de venda direta. Nos Estados Unidos esses consumidores so na
maioria mulheres, jovens e de nvel educacional alto. As caractersticas de sua
personalidade incluem: facilidade de comunicao e sensibilidade; so pessoas
bastante sociveis, extrovertidas e religiosas. O perfil dos vendedores diretos
naquele pas demonstra que a grande maioria de mulheres (90%), brancas, que
tem entre 25 e 44 anos de idade, casadas, cursam ou cursaram um curso superior e
tem ao menos mais um emprego fixo. Estes indivduos, segundo a pesquisa, seriam
7 WFDSA World Federation of Direct Selling Associations. Organizao no governamental, fundada em 1978, cumpre o papel de representar mundialmente as OVDs.
27
mais extrovertidos, entusisticos, agressivos e ousados que os demais indivduos da
populao8 (PETERSON e WOTRUBA, 1996).
Estas caractersticas tambm foram notadas no estudo realizado sobre os
vendedores diretos no Reino Unido, segundo este estudo a maior parte dos
distribuidores vinculados as OVDs so de mulheres, que trabalham meio perodo do
dia, que compem a maioria dos 500 mil trabalhadores diretos naquele pas. As
anlises apontaram para um curioso movimento do mercado de trabalho: o nmero
de trabalhadores autnomos vinha aumentando significativamente, enquanto a
quantidade de trabalhadores vinculados formalmente a uma empresa vinha
diminuindo. A categorizao da fora de trabalho estava se modificando. As
vantagens, para as OVDs, ao optar pela utilizao de trabalhadores autnomos so
muitas. Os custos com taxas e encargos trabalhistas no existem e os pagamentos
destes trabalhadores so efetuados tendo por base sua produo (vendas),
poupando gastos para empresas e incrementando as vendas, uma vez que so as
comisses oriundas pela venda de produtos que, somadas, resultam na
remunerao do trabalhador (BRODIE, et al, 2004). A maior parte dos vendedores
diretos vinculados a OVDs do mundo no recebe qualquer tipo de remunerao fixa
e no possuem vnculos empregatcios formais com as empresas que representam.
Segundo dados da WFDSA o Brasil est entre os dez maiores mercados de
venda direta no mundo. Os dados da tabela abaixo demonstram o volume de
transaes em vendas diretas, em dlares, nos dez maiores mercados no ramo em
2003, segundo declarao da WFDSA.. O Brasil est em stimo lugar com 1.953
bilhes de dlares em vendas diretas. Em anos anteriores o Brasil alcanou US$ 2.7
bi em 1999, US$ 2.9 bi em 2000 e US$ 2.5 bi em 2002. Segundo a ABEVD, em
2001 uma quantia de cerca de US$ 78 bi foi movimentada em todos os 60 pases
onde ocorre esse tipo de comrcio, que possuam na poca cerca de 43 milhes de
vendedores diretos operando. Neste mesmo ano somente no Brasil foi movimentado
um montante de US$ 2.5 bi envolvendo 1.2 milhes de vendedores diretos.
8 Dados obtidos no ano de 1992.
28
TABELA 2 - RENDIMENTO TOTAL EM VENDAS DIRETAS 2003
COLOCAO PAS BILHES DE DLARES
1 Estados Unidos 28.700
2 Mxico 3.106
3 Frana 2.884 4 Alemanha 2.557 5 Reino Unido 2.024 6 Itlia 1.995
7 Brasil 1.953 8 Taiwan 1.255 9 Austrlia 1.200 10 Argentina 1.152 TOTAL 46.826 FONTE: WFDSA, 2004.
Entre 2000 e 2001 a venda de produtos por venda direta cresceu 4,8%; de
2001 a 2002 aumentou 2,2%, chegando a um total de 815 milhes de produtos
produzidos por OVDs e comercializados por vendedores diretos mundialmente. Se
em 1991 US$ 49 bilhes foram movimentados graas a esses revendedores, em
2002 o valor total de US$ 79 bilhes. No Brasil foi registrado um crescimento de
18,6% no terceiro trimestre de 2003, em comparao com o mesmo perodo do ano
anterior, totalizando um faturamento de R$ 2.146 bilhes contra R$ 1.809 bilhes de
2002. Outra caracterstica interessante se refere ao local das vendas: a maior parte
realizada em casa, 70% do total; 20% das transaes so efetivadas no trabalho
do comprador (Dados: WFDSA e ABEVD).
TABELA 3 - LOCAIS ONDE OCORREM AS VENDAS DIRETAS LOCAL (%)
Casa 70,0 Trabalho 20,0 Eventos Pblicos 8,0 Telefone 2,0 Outros 0,5 FONTE: ABEVD - ASSOCIAO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE VENDA DIRETA, 2004.
A maior parte das vendas realizada em ambiente domstico (70%) e de
trabalho (20%) dos compradores, o que refora a afirmao anterior de que as
29
vendas diretas esto quase sempre ligadas esfera privada da vida. O mercado de
venda direta mostra-se ainda mais representativo quando verificamos que, em
pesquisa realizada pela ABEVD, somente 8% dos brasileiros afirmaram nunca
haverem comprado um produto atravs de venda direta. Outra caracterstica
importante se refere estrutura organizacional das empresas que atuam no
mercado de venda direta no pas; a maior parte dos vendedores diretos brasileiros
revende produtos oriundos de empresas Monolevel, como a Avon, representando
96% das vendas do setor. Somente 5% optaram por empresas que adotam o
Network Marketing ou Multilevel (ABEVD).
30
4 - A ANLISE SOCIOLGICA DAS VENDAS DIRETAS
A venda direta um tema ainda pouco explorado, no mbito das cincias
sociais em geral; a maior parte dos trabalhos que abordam as vendas diretas tem
forte compromisso com a divulgao e a sustentao desse tipo de atividade
comercial. Tais trabalhos mostram as vantagens em ingressar no ramo e pretendem
ensinar ao leitor como ganhar dinheiro e ser bem sucedido vendendo produtos; os
livros se auto-intitulam guias para a venda direta. Nessa linha, pouca ou nenhuma
reflexo terica sobre o tema realizada. Raros so os trabalhos em que, nas reas
de marketing e administrao, se procura realizar uma reflexo sobre o tema ou uma
anlise de dados quantitativos sobre a configurao do mercado. Na rea da
Sociologia destaca-se o livro Charismatic capitalism: direct selling organizations in
Amrica, de Nicole Biggart (BIGGART, 1990), considerado por vrios autores9 como
o mais importante trabalho sociolgico sobre as vendas diretas. No Brasil,
destacam-se alguns trabalhos sobre as vendas diretas, dissertaes de mestrado
nas reas de sociologia ou cincia poltica, realizados por SOUZA (1996),
BITTENCOURT (1998) e PEDROSO NETO (2000). Estes trabalhos abordam o
marketing multinvel e, mais especificamente, seus diferentes aspectos, tendo como
objeto de anlise os revendedores da empresa Amway e recorrendo a diversas
vertentes sociolgicas. Trabalhos especficos na rea de sociologia sobre a Avon
ainda no foram realizados no Brasil e referncias internacionais sobre esta
empresa e seus revendedores ainda no figuram em trabalhos cientficos. Neste
captulo pretendo realizar uma releitura do tema das vendas diretas como abordado
por outros autores, contemplando referncias e orientaes tericas essenciais para
a anlise do tema.
BIGGART escolheu como objeto de sua pesquisa as organizaes de venda
direta por serem organizaes que possuem tticas de administrao de recursos
humanos diferentes das empresas que trabalham com o padro administrativo mais
aceito dentro dos estudos da rea de administrao. Recorrendo da metodologia
weberiana para a percepo organizacional das OVDs, BIGGART afirma que, para
Weber, uma explicao completa da vida social tem que incluir trs dimenses
9 Dentre estes esto PETERSON e WOTRUBA (1996), PEDROSO NETO (2000), BITTENCOURT (1998), SOUZA (1996).
31
conceituais: interesses materiais, ideais e valorativos, e a maneira como estes esto
combinados nas estruturas sociais (1990, p. 10). Sua pesquisa pretendeu abordar
aspectos da vida social que normalmente no so levados em considerao para o
estudo das organizaes empresariais, tais como: famlia, crena, valores, gnero,
ideologia, e outros, para estabelecer uma nova forma de perceber o que chama de
Sociologia da Economia.
A autora realizou entrevistas com questionrio semiestruturado, surveys e
anlises etnogrficas de reunies de membros de cinco empresas: Mary Kay
Cosmetics, Shaklee Corporation, Amway Corporation, A. L. Williams Company e
Tupperware Corporation. O uso da metodologia Weberiana se expressa mais
claramente na proposio da autora em formular um tipo ideal, um modelo, que sirva
anlise comparativa das organizaes de venda direta (BIGGART, 1990).
Faz-se necessrio expor os aspectos mais relevantes referentes a dois tipos
ideais weberianos, burocracia e carisma, sobre os quais se baseia a autora para
compor um terceiro tipo, o da organizao de venda direta, ou do capitalismo
carismtico. Segundo Weber um dos resultados do processo de racionalizao no
qual a sociedade moderna se encontrava em sua poca o crescimento e
estabelecimento da burocracia nas mais variadas esferas da vida social, como a do
campo da administrao de empresas, pblicas ou privadas. A empresa burocrtica
descrita por Weber funciona conforme normas administrativas fixas e oficiais, ditadas
pela autoridade mxima da organizao, que possui o poder de punir aqueles
funcionrios que desobedecerem as normas, que se transformam gradativamente
em rotinas cotidianas de execuo do trabalho. H nessas organizaes o
estabelecimento de hierarquias entre os diversos cargos que os funcionrios
ocupam, em um sistema muito bem definido de mando e subordinao. O escritrio
agrega todas as atividades oficiais dos trabalhadores. Esse local sempre diferente
de local onde o funcionrio realiza suas atividades de foro ntimo, determinando uma
clara distino entre as esferas pblica e privada da vida social. Para atuao na
empresa necessrio conhecimento especializado e complexo, sendo que o
desempenho do cargo segue um determinado programa que pretende alcanar
metas pr-definidas. O sistema de cargos e hierarquias estabelecido faz com que o
profissional se dedique a construir uma carreira dentro destas empresas (WEBER,
1971).
32
Weber contrape o modelo de burocracia ao de carisma, porm em seus
escritos tarefa rdua perceber o conceito de carisma em instituies empresariais.
O carisma se contrape a esta ordem racionalizadora, aparece sempre personificado
na figura do lder, aquele que possui o dom, o guia nato, que lidera seu sqito
como grande heri. Esse homem considerado o salvador do povo que, possudo
por um estado de graa, age carismaticamente conquistando a simpatia de muitos.
Seu carisma se ope rotina do mundo burocratizado. WEBER via no carisma o
efeito de bloquear a ao dos funcionrios do partido ou do burocrata, pois se o
processo de racionalizao burocrtica irreversvel, a orientao no racional que
vem do lder carismtico possibilita uma revoluo no sistema fazendo com que o
processo tome um outro rumo. O trecho abaixo deixa esse tipo ideal mais claro.
O carisma s conhece a determinao interna e a conteno interna. Seu
portador torna a tarefa que lhe adequada e exige obedincia e um sqito
em virtude de sua misso. Seu xito determinado pela capacidade de
consegui-los. Sua pretenso carismtica entra em colapso quando sua
misso no reconhecida por aqueles que, na sua opinio, deveriam segui-
lo. Se o aceitam, ele senhor deles enquanto souber como manter essa
aceitao, provando-se. Mas no obtm seu direito por vontade dos
seguidores, como numa eleio, mas acontece o inverso: o dever
daqueles a quem dirige sua misso reconhec-lo como seu lder
carismaticamente qualificado (WEBER, 1971, p. 285).
Weber v o carisma como caracterstica de um lder, portador de um dom,
uma pessoa. Xams, messias, heris so alguns dos nomes mais comuns atribudos
a estes lderes que possuem um poder sobrenatural, que uma vez revelado o eleva
categoria de chefe de um grupo.
BIGGART acredita que a definio de carisma dada por Weber muito
restritiva. A autora usa a contraposio entre carisma e burocracia para perceber as
instituies empresariais e determinar o conceito de capitalismo carismtico,
especificando as caractersticas das empresas carismticas, tal qual Weber o faz
com as organizaes burocrticas. Para tanto necessrio despersonificar o
carisma. Algumas organizaes tm da sociedade um respeito adquirido ao longo
dos anos que ocorre por causa de seu extraordinrio poder de moldar o mundo e
33
tirar ordem do caos (BIGGART, 1990, p. 133). A relao entre uma organizao e a
atuao carismtica possvel se as empresas forem colocadas no papel do lder.
Elas [as OVDs] tm ideologias organizacionais que so missionrias em seu
carter. Algumas, e no todas, expressam a viso de um lder fundador. Os
revendedores vem-se como superiores aos demais trabalhadores. Ser um
empreendedor, para eles, significa pertencer a uma escala superior da vida
social. Eles citam o sucesso econmico e ideolgico da organizao como a
conquista mais valorosa das cruzadas do lder (BIGGART, 1990, p. 134).
Outras caractersticas so incorporadas ao tipo ideal de organizao de
venda direta. Os membros dessas empresas so vistos como seguidores. A parte
administrativa da organizao apresenta uma mnima diferenciao entre as funes
entre os cargos existentes. Autoridade e hierarquia so aspectos pouco relevantes
ou inexistentes. Os critrios para recrutamento de novos integrantes so feitos
conforme o comprometimento da pessoa em empenhar-se para manter alto padro
de vendas, os laos afetivos e vnculos familiares tambm facilitam a entrada de
uma pessoa em uma OVD. As recompensas oferecidas no so somente
financeiras, h a promessa de incrementar outras reas da vida social como, por
exemplo, ter mais tempo com a famlia e fazer novas amizades. Assim as empresas
apresentam mais que um emprego bem remunerado, chegando a orientar um estilo
de vida.
As OVDs tm estratgias claras de controle, como uma primeira que se refere
criao de um novo self, ao desenvolvimento individual de uma nova identidade
social ligada misso da empresa. A segunda a celebrao da entrada no grupo,
que se relaciona com os processos pelos quais so administradas as relaes
dentro da organizao, aceitao de scios da comunidade como parte do corpo
que toma decises significativas. Outra estratgia oferecer incentivos, brindes ou
prmios, para os que atingem as metas traadas (BIGGART, 1990).
Tais aspectos so considerados mais relevantes para a formao de um tipo
ideal de organizao de venda direta, ou capitalismo carismtico. importante
ressaltar que a pesquisa de BIGGART foi pioneira na anlise das OVDs, e suas
contribuies so reconhecidamente importantes para o assunto das vendas diretas
desde sua publicao.
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SOUZA (1996) realizou sua pesquisa de mestrado tendo como foco principal
da anlise uma OVD, na tentativa de perceber os motivos que levam os indivduos a
optar pelo trabalho de venda direta e, mais especificamente, por integrar a rede de
distribuio da empresa Amway. SOUZA (1996) apia-se em na fenomenologia de
SCHTZ (1967), segundo o qual as pessoas, para conviverem em sociedade,
compartilham um sistema de referncias, que torna possvel a interpretao da ao
social. Em sua pesquisa sobre os revendedores de produtos da Amway, o autor
tenta perceber como o estoque de conhecimento de um indivduo interfere na
interpretao de suas experincias e influencia em suas aes futuras.
Ora, no universo de todas as interpretaes possveis da realidade a
topologia do conjunto de interpretaes comuns de um grupo social
determinada, em boa parte, pelas situaes biogrficas comuns dos membros
individuais que o compem. As diferenas de interpretao intra-grupo seriam
dadas pelas diferentes posies no grupo (situaes biogrficas diferentes)
em termos de prestgio, poder ou qualquer outra caracterstica, que o
mesmo que reconhecer que na estruturao dos grupos h heterogeneidade
nos membros e que dessa heterogeneidade surgem diferenas relativas nos
esquemas de referncia e, portanto, nas interpretaes (SOUZA, 1996, p.
88).
SCHTZ (1967) procura estabelecer uma crtica ao conceito weberiano de
ao significativa. O ponto central da perspectiva weberiana que a realidade
humana no possui um sentido inerente, dado de modo natural, independentemente
dos valores e motivos que guiam as aes humanas. So os indivduos que
estabelecem recortes na realidade e se posicionariam diante deles conferindo-lhes
sentido. As aes sociais so dotadas de um significado ou sentido, que as torna
passveis de serem observadas e interpretadas. A sociedade constituda de
indivduos agindo com um sentido especfico e produzindo uma srie de
conseqncias. Cada fenmeno cultural s poderia ser compreendido na sua
significao e ter sua origem explicada a partir da referncia a agentes sociais que
ao organizarem significativamente suas aes contribuiriam, de forma mais ou
menos intencional, para determinar essa significao e essa origem.
SCHTZ pretende estabelecer uma crtica sociologia weberiana neste
ponto; segundo o autor um erro pressupor que os indivduos conferem sentido
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ao que est sendo praticada, pois conferir significado uma ao reflexiva, s
possvel de ser mediante a experincia de aes passadas. O comportamento so
as experincias olhadas atravs de certa luz, que se refere ao que originalmente
as produziu (SCHTZ, 1967, p. 57). S se pode atribuir um sentido s aes
passadas, somente estas podem ser interpretadas e se tornarem significativas para
os sujeitos (SCHTZ, 1967).
Todo indivduo trs consigo um estoque de conhecimento, que tem como
principal utilidade tipificar outros indivduos, no intuito de prever a resposta destes s
suas aes, visando estabelecer comunicao coerente com outros. Este estoque
de conhecimento fruto das aes ocorridas em ocasies anteriores. Assim, no
momento em que age o indivduo est diante de vrias opes de ao e
selecionam na realidade os fatos que lhe parecem ser de mais relevncia,
priorizando-os para construir os elementos que so almejados (GIDDENS, 1996
[1976]). Essa seleo se baseia no estoque de conhecimento que j foi absorvido
anteriormente; assim, o indivduo seleciona o que ser ou no importante para
percepo da realidade. Grande parte do conhecimento que os indivduos tm do
mundo que os rodeia vem das experincias coletivas. na convivncia com outros
que se aprende a definir o ambiente e o sistema de relevncia pr-concebido e
aceito pelo grupo. Ao orientar-se pelo projeto fornecido por um grupo a pessoa d ao
grupo a responsabilidade de guiar suas aes.
A adoo de um projeto influencia a interpretao de sinais. medida que o
sujeito se convence de sinais positivos que indicam o sucesso do projeto,
mais difcil se torna fazer com que evidncias contrrias ao sucesso do
projeto sejam interpretadas como sinais de fracasso. Assim, preciso de
evidncias fortes e sucessivas para sinalizar um fracasso do projeto.
Decidindo sob manipulao ideolgica, informaes falsas ou limitadas os
indivduos podem adotar comportamentos que, aos olhos de um observador
externo, tm pouca ou nenhuma relao com as metas a serem alcanadas.
Logo, no a avaliao de opinies e comportamentos isolados, mas o
encadeamento dessas opinies e comportamentos que permite a
compreenso da subjetividade dos indivduos (SOUZA, 1996, p. 97).
A Fenomenologia das Relaes Sociais de SCHTZ utilizada para a
percepo do objeto e justificao das tcnicas de pesquisa adotadas para seleo
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e coleta de dados empricos que compe a pesquisa de SOUZA. Os fenmenos
sociais so vistos como a reunio das manifestaes dos homens em sociedade. As
percepes de SCHTZ tm suas razes na fenomenologia de HUSSERL, que
prope a percepo de um objeto atravs da observao e descrio rigorosa do
fenmeno (GIDDENS, 1996 [1976]).
Os membros que compem a rede de revendedores da Amway compartilham
determinados aspectos de sua vida social, o que faz com que os significados de
vrios fatores de suas vidas profissionais sejam comuns. SOUZA prioriza a
apreenso do discurso destes indivduos para compor sua pesquisa. Segundo ele,
se o interesse avaliar caractersticas intersubjetivas dos membros da rede,
natural que o ponto de partida dessa avaliao seja a busca de fatores comuns
envolvidos na construo das subjetividades individuais (1996, p. 100). Utilizando
os pressupostos da fenomenologia para entender a conduta social, SOUZA analisa
em sua pesquisa os aspectos da constituio intersubjetiva dos membros da Rede
da Amway, suas trajetrias biogrficas e representaes construdas.
BITTENCOURT, em sua dissertao de mestrado na rea de cincia poltica,
realizou interessante estudo sobre a empresa Amway. Segundo a autora, a
empresa faz uso de um conjunto de idias e prticas de natureza claramente
ideolgicas que vo alm da reproduo dos valores do American Way of Life, com
especial destaque para as formas utilizadas de recrutamento e manuteno dos
membros na cooperao (1998, p. 8).
O estudo em questo utiliza instrumentos metodolgicos de observao e
anlise do uso de um discurso pela empresa que, por vezes, aparece como reflexo
de valores empresariais e, por vezes, usado como estratgia para alcance dos
objetivos de venda.
A autora destaca o conceito de ideologia em sua anlise do objeto.
Recorrendo a Zizek, Bittencourt considera que a palavra ideologia no atualmente
bem definida, podendo ser objeto de uma srie de definies: Desde uma atitude
contemplativa que desconhece sua dependncia em relao realidade social, at
um conjunto de crenas voltado para a ao; desde o meio essencial em que os
indivduos vivenciam suas relaes com uma estrutura social at as idias falsas
que legitimam um poder poltico dominante (ZIZEK, 1996, p. 9).
Ideologia um conceito muito usado por autores de orientao sociolgica
marxista. Contudo, BITTENCOURT (1998), em sua concepo de ideologia, prioriza
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a anlise do discurso muito usada em uma sociologia de vertente interpretativista.
Interpreta-se o termo ideologia como percebido por Gran Therborn, por meio de
seu discurso:
O funcionamento da ideologia na vida humana implica, basicamente, a
constituio e padronizao do modo como os seres humanos levam sua vida
como iniciadores conscientes e pensantes de atos, num mundo estruturado e
provido de sentido. A ideologia funciona como um discurso, (...) interpelando
os seres humanos como sujeitos (THERBORN, 1980, p. 15).
As ideologias so vistas como fenmenos eminentemente sociais e de
natureza discursiva; esto ligadas aos indivduos de maneira direta, orientado suas
prticas.
Segundo BITTENCOURT possvel perceber que a Amway uma empresa
que possui uma ideologia prpria, que orienta os atores envolvidos no processo de
distribuio de seus produtos em suas aes. O arcabouo ideolgico que
fornece as bases, os fundamentos das organizaes, de um modo geral, como
tambm estabelece e legitima os diferentes arranjos organizacionais e pessoais,
entre indivduos que compartilham idias e interesses, orientando-os, portanto
ao (1998, p. 66).
A ideologia no permearia somente as situaes de vendas dos revendedores
de produtos Amway, mas toda sua vida, orientando suas aes cotidianas,
explicando e justificando os meios e fins. A ideologia promove nas pessoas um
sentimento de grupo, faz com que os indivduos se reconheam e se unam por um
objetivo. A Amway se encaixa no perfil de empresa ideologicamente orientada, que
divulga abertamente os princpios que prega e tem a pretenso de normatizar as
aes dos indivduos que a ela esto vinculados. Os agentes distribuidores de
produtos Amway absorveram o discurso proposto pela empresa atravs de
encontros, onde lhes ensinado o que falar e como agir para conquistar clientes e
novos revendedores; tambm tm acesso ao material impresso de divulgao
distribudo mensalmente a todos os distribuidores. Segundo a autora, os vendedores
de produtos Amway so exemplos de incorporao do discurso da empresa.
BITTENCOURT prope a percepo da empresa atravs de uma analogia
com os partidos totalitrios, que exigem de seus membros um engajamento total,
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enquadrando assim todas as suas atividades, o partido penetra na sua vida
profissional e familiar (1998, p. 111). Isso ocorre at que no existam limites que
separem a atuao partidria da atuao pessoal. A autora utiliza-se da cincia
poltica para comparar a atuao do distribuidor Amway com a atuao de um
militante partidrio. O partido totalitrio pede a seus membros adeso total, permeia
toda vida do indivduo que se prope a militar em sua causa, no havendo distino
entre a vida pblica e privada: s existe uma vida partidria (DUVERGER, 1970, p.
153). Segundo a autora o militante o adepto ativo, a base onde as aes do
partido se concretizam. A Amway, neste caso, percebida como uma organizao
totalitria, semelhante aos partidos totalitrios, e seus distribuidores so
considerados membros engajados desta organizao. Engajar-se significa adeso
total, orientao de vida por determinados princpios.
Antnio Pedroso Neto realizou sua pesquisa de mestrado tendo como objeto
de anlise a rede organizacional formada por distribuidores de produtos da empresa
Amway. Em sua dissertao o autor enfatiza a importncia dos rituais na convivncia
e participao dos distribuidores Amway no sistema de treinamento que visa
estabelecer normas de conduta para os agentes. Segundo o autor:
Todo o processo de instituio/consagrao ocorre principalmente nos rituais
Amway, mas tambm via fitas cassete que os agentes ouvem geralmente
com mensagens e narrativas reproduzidas de outras reunies ou com
depoimentos de pessoas que ascenderam na organizao , via as revistas
de circulao interna na organizao e via uma srie de livros da literatura de
auto-ajuda e neurolingstica que a Pronet vende e seus agentes lem
(PEDROSO NETO, 2000).
Pedroso Neto, inspirado por Mary Douglas (DOUGLAS, 1998) estrutura um
arcabouo conceitual para a anlise dos rituais ligados venda direta, com o
objetivo de perceber e explicar a reproduo da coeso organizacional na rede de
distribuidores Amway (PEDROSO NETO, 2000). Douglas acredita que o
estabelecimento de normas e parmetros torna a vida social possvel, seguindo a
teoria estruturalista e os princpios durkheimianos. O processo de aquisio de
conhecimento fundamenta a ordem social e, no mbito do indivduo, sustentado
pela ao institucional que se funda, por sua vez, em uma conveno dos indivduos
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para estabelecer regras. O aparato cognitivo fundamenta as instituies na natureza
e na razo, ao descobrir que a estrutura formal das instituies corresponde a
estruturas formais em domnios no-humanos (DOUGLAS, 1986, p.63). A instituio
, para a autora, um grupo social legitimado, cuja autoridade legitimadora pode estar
concentrada em um indivduo ou na conveno do grupo. O conceito de instituio
remete novamente teoria durkheimiana, pois o indivduo no se realiza, segundo
Durkheim, fora da sociedade ou do grupo; s o faz entre outras pessoas, em um
meio onde existam ordem e um conjunto de instituies morais reguladoras do
comportamento coletivo, que transmitam segurana (tanto fsica como psicolgica) e
tranqilidade. Segundo DOUGLAS o homem um animal ritual (...) impossvel
termos relaes sociais sem rituais, sem atos simblicos (DOUGLAS, 1980, p.80).
O ritual capaz de modificar o padro social estabelecido por represent-lo.
Trazendo o conhecimento obtido atravs de DOUGLAS (1980) e da teoria
durkheimiana, Pedroso Neto analisa o sistema de treinamento da Amway:
O contedo das atividades do sistema de treinamento da organizao
Amway demonstra que ele est o tempo todo criando e instituindo ou no
mnimo estabilizando convenes sociais que so coerentes e
simultaneamente se entrefortalecem. Essas convenes se tornam os
princpios bsicos de percepo, de viso e de diviso do mundo, princpios
que orientam a seleo, a confiabilidade e a fixao de informaes. Esses
princpios esto presentes no discurso performativo dos agentes de alto a
baixo da pirmide. Assim, de um lado, so geradores de prticas e
representaes e discursos performativos que reforam as prticas,
representaes e discursos performativos homlogos de outros agentes, e
por outro lado, se enrijecem ao gerarem espontaneamente, no calor dos
conflitos ou das disputas prticas, representaes e discursos performativos
refratrios aos ataques e constrangimentos da sociedade ou das sociedades
externas; as gozaes, os nos dos que duvidaram e at mesmo os
insultaram (PEDROSO NETO, 2000).
A vertente sociolgica chamada Interacionismo Simblico traz outra maneira
de analisar as prticas ritualsticas. Um conjunto de prticas sociais organizado
pelos indivduos para manter inalterada a habilidade de convvio social ou o savoir
faire (NUNES, 2004). A abordagem de Goffman tambm manifesta grande
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influncia de aspectos da sociologia durkheimiana, na qual os ritos tm a dupla
funo de comunicar idias e sentimentos e, ao mesmo tempo, regular as relaes
entre os indivduos. Em Goffman esses ritos tm a mesma funo servindo para
estabelecer relaes cordiais entre os indivduos. O ator tem uma dupla funo:
produto da sociedade, portanto sujeito s regras e normas prescritas socialmente e
ator social, atua em um jogo ritual no qual pode, ao mesmo tempo, interagir e
modificar normas de conduta (NUNES, 2000). O interacionismo simblico contribuir
para que possamos realizar a percepo das situaes ritualsticas nas interaes
entre revendedoras Avon e seus clientes e na captao de novas revendedoras.
GOFFMAN em seu livro A representao do eu na vida cotidiana (1985
[1975]) procura perceber as aes sociais atravs de uma metfora da ao teatral.
Para o autor os indivduos, na maioria das situaes, assumem a posio de atores
sociais como os atores teatrais e se apresentam aos demais como se estivessem
realizando uma representao de algo que querem transmitir, tentando exercer
dominao sobre as impresses que possam ter dele. A dramaturgia descreve as
tcnicas do controle da impresso, a identidade, as inter-relaes dos diversos
grupos que desempenham papis num ambiente social (NUNES, 2000, p.280).
O ator apresenta-se sob a mscara de um personagem para personagens
projetados por outros atores. Na vida real o indivduo representa papis para outro
indivduo ou/e para a platia. Os indivduos orientam-se, nas interaes, por aquelas
informaes que j tem, ou que procuram ter sobre os outros.
A interao a influncia recproca dos indivduos sobre as aes uns dos
outros, quando em presena fsica imediata. A performance a atividade de um ator
que visa influenciar um dos demais participantes. A prtica torna-se o modelo de
ao que se desenvolve durante a representao. Nesse contexto o papel social a
divulgao de direito