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7/25/2019 Tradio e Modernidade em O Senhor dos Anis
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Thiago Antunes
Tradio e Modernidade em O Senhor dos Anis
Marlia2009
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Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita FilhoFaculdade de Filosofia e Cincias
Campus de Marlia
Tradio e Modernidade em O Senhor dos Anis
Dissertao apresentada ao Programade Ps Graduao em Cincias Sociaisda Faculdade de Filosofia e Cincias deMarlia, como requisito parcial para aobteno do ttulo de Mestre pelo
discente Thiago Antunes.
Sob orientao da Prof. Dr. CliaAparecida Ferreira Tolentino.
Co-Orientao: Prof. Dr. Aluisio deAlmeida Schumacher.
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Ficha catalogrfica elaborada peloServio Tcnico de Biblioteca e Documentao UNESP Campus de Marlia
Antunes, Thiago.A636t Tradio e modernidade em O senhor dos anis /
Thiago Antunes. Marlia, 2009.143 f. ; 30 cm.
Dissertao (Mestrado em Cincia Sociais) Faculdade deFilosofia e Cincias, Universidade Estadual Paulista, 2009.
Bibliografia: f. 139-143Orientador: Prof Dr Clia aparecida Ferreira Tolentino
1. Literatura inglesa aspectos sociais. 2. Tradio.
3. Modernidade. I. Autor. II. Ttulo.CDD 303.4
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Tradio e Modernidade emO Senhor dos Anis
Comisso Examinadora
Prof. Dr. Clia Ap. Ferreira Tolentino
Prof. Dr. Arlenice Almeida
Prof. Dr. Carlos Eduardo O. Berriel
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indicar que O Senhor dos Anispoderia se tornar meu objeto de pesquisa antes de todos,
por nossas inmeras conversas e por sua grande amizade.
Agradeo tambm UNESP, que desde a graduao, me proporciona um
espao de aprendizagem e desenvolvimento pessoal excelentes. Este agradecimento se
dirige principalmente mas no se restringe a eles aos diversos professores que tive a
oportunidade de ser aluno. Aprendi muito com todos, alguns deles tambm me
auxiliaram de diversas outras maneiras. Aproveito esta oportunidade para agradecer as
Prof. Dr. Ftima Cabral e Prof. Dr. Arlenice Almeida, pela leitura atenta, crticas e
elogios meu trabalho durante a qualificao desta dissertao. Meus agradecimentos
Prof. Arlenice se estende tambm participao na Banca de Defesa, bem como, ao
Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornelas Berriel.
Agradecer a prof. Dr. Clia Tolentino por sua orientao, por suasindicaes, por suas crticas, por sua honestidade, mas tambm por suas broncas, seria
muito pouco. Por ter acreditado em meu trabalho desde seu incio, e por ter me
incentivado e apoiado desde ento, no posso agradecer suficientemente. As crticas
argutas, a argumentao direta e a leitura sempre atenta do prof. Dr. Aluisio Almeida
Schumacher, foram essenciais tanto para o desenvolvimento deste trabalho, quanto para
meu desenvolvimento pessoal.
Agradeo tambm FAPESP pelo financiamento desta pesquisa, sem o qual
certamente, o presente trabalho (ou ao menos seu pleno desenvolvimento) seriainviabilizado.
Por ltimo preciso agradecer todo o apoio, carinho e compreenso de minha
amada companheira Graciela Gonalves Scherdien. No decorrer deste trabalho, tenho
certeza, de no ter sido uma pessoa de fcil convivncia. Conversas quase que
monotemticas, desligamento de quase todos assuntos cotidianos, absurdas crises de
mau humor, exploses de frustrao, so apenas algumas das conseqncias cotidianas
que tomavam forma, pelas dificuldades que encontrei neste trabalho. Embora muitos
tenham presenciado este constante isolamento, sem dvida, quem mais foi afetada porele foi minha companheira. Sem seu apoio e sua constante interferncia, certamente, eu
no teria tido condies fsicas e psicolgicas para concluir este trabalho; por isto, e por
inmeras outras coisas, meu especial agradecimento.
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Resumo
O Senhor dos Anis, livro de J.R.R. Tolkien, tem como componente central de sua narrativa a
tenso existente entre tradio e modernidade no incio do sculo XX. A obra termina com odesaparecimento na Terra-Mdia de todos os seres de fantasia (por destruio ou por abandono)uma caracterstica que podemos atribuir ao aumento do poder da racionalidade instrumental e daorganizao social da modernidade vinculada a ela. Ao mesmo tempo, durante odesenvolvimento da narrativa surgem caractersticas tradicionais com uma fora devastadora: apreeminncia da sacralidade, por exemplo, impe uma hierarquia entre todos os seres existentesno mundo. Nosso intento, portanto, atravs de uma interpretao imanente da narrativa,recuperar a sua historicidade e seu diagnstico do tempo. Ao debruar-nos sobre a estruturanarrativa perceberemos que O Senhor dos Anis no possui uma forma pica pura,incorporando elementos de picas tradicionais (epopia e conto de fadas) e de picas modernas(romance) constituindo-se numa forma hbrida, expressa numa alegoria. Como base daformatao desta alegoria, a narrativa utilizar o pensamento figural dos padres da Idade Mdia,ressaltando sua tentativa de retomada da tradio; o pensamento figural ser incorporado comotcnica de escrita desta narrativa, contudo, primariamente sua incorporao ser comoinstrumento historiogrfico j que a narrativa se apresenta como uma historiografia. Oselementos tradicionais (religiosos, principalmente), portanto, sero associados ao Bem, j oselementos modernos sero associados representao do Mal. Entretanto, esta apreenso no esttica; podemos dizer que, a modernizao (tcnica) ser sempre associada ao Mal, masalgumas caractersticas relacionadas modernidade no tero esta interpretao. Apenas com odesenvolvimento moderno (individual e reflexivo) dos sujeitos o Mal (modernizao) poder serdetido. A tradio e os dois plos da modernidade, portanto, estaro numa constante tenso dedisputa e aliana. Esta tenso, alegorizada na obra, talvez seja a melhor expresso destediagnstico do tempo.
Palavras-chave: Tradio; modernidade; alegoria; literatura inglesa.
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Abstract
The Lord of the Rings, JRR Tolkien's book, has as its central component of the narrative tensionbetween tradition and modernity at the beginning of the twentieth century. The book ends withthe disappearance in Middle-Earth of all the beings of fantasy (for destruction or abandonment)a characteristic that can be attributed to the increase in the power of instrumental rationality andthe social organization of modernity linked to it. At the same time, during the development ofthe narrative are traditional characteristics with a devastating force: the preeminence ofsacredness, for example, imposes a hierarchy among all beings in the world. Our intent,therefore, is through an interpretation of the immanent narrative, recover their history and theirdiagnosis in time. To deal with the narrative structure realized that The Lord of the Ringsdoesnot have a "pure" epic, incorporating elements of traditional epic (epic and fairy tale) andmodern epic (novel) and it is a hybrid form, expressed an allegory. Based on format of thisallegory, the narrative uses the figural thinking of priests of Middle Ages, emphasizing hisattempt to resume the tradition, the figural thinking will be incorporated as a technique ofwriting this narrative, however, is primarily its incorporation as a historiographical - already thatthe narrative is presented as a historiography. The traditional elements (religious, mainly),therefore, be associated with the Well, now the modern elements are associated with the Evilrepresentation. However, this concern is not static, we can say that the modernization (technical)is always associated with evil, but some characteristics related to modernity will not be thisinterpretation. Only with the modern development (individual and reflective) of subject the evil(modernization) be held. The tradition and the two poles of modernity, therefore, be in aconstant stress of competition and alliance. This tension, simile the issues, is perhaps the bestexpression of this diagnosis in time.
Keywords: Tradition, modernity, allegory; English literature.
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Sumrio
Introduo ..................................................................................................................... 9
CAPTULO 1 Um Mito Fantasmagrico .................................................................. 22
I.
Uma queda: o desaparecimento da fantasia ............. ............ ....... ..... 22
II.
Um mito em lfico ......................................................................... 37
III.
pica: entre a empiria e a fantasia ................................................. 45
IV. Morte, histria e alegoria .............................................................. 51
CAPTULO 2 Reminiscncias de um narrador ......................................................... 56
I.
pica e reminiscncia ..................................................................... 56
II.
Duas facetas do narrador ................................................................ 58
III.
Figurao religiosa ....................................................................... 67
IV. Hierarquizao tradicional: a religio como elemento civilizador . 85
CAPTULO 3 Unilateralidade e ambivalncia: outro modernismo ................... ........ 97
I.
As manifestaes do Mal: dominao e tcnica ........... .............. ...... 97
II. Modernismo a contragosto: individuao e desenvolvimento ....... 109
III.
Estado versus individuao: a poltica da contradio ............. .... 120
Consideraes Finais................................................................................................. 135
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... 139
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Introduo
[...] a verdade era desesperadamente
importante, e no final precisei ser rude.(Gandalf TOLKIEN, 2000, p. 58)
Boa parte dos textos que pretendem analisar uma obra literria ou
qualquer outro objeto artstico-cultural iniciam suas discusses expondo um breve e
amplo contexto histrico no qual esta determinada obra se insere. Mas o que fazer
quando o principal objetivo de uma anlise expor, mesmo que de maneira tortuosa e
indireta, este contexto histrico poltico e cultural? Pois este o objetivo deste trabalho.
Intentamos discutir a relao existente entre O Senhor dos Anis, de John Ronald Reuel
Tolkien (1892-1973), e seu contexto. Ou melhor, intentamos indicar e discutir qual o
diagnstico do tempo fornecido por esta obra de Tolkien.
O Senhor dos Anis foi publicado, originalmente na Inglaterra, em trs
volumes durante os anos de 1954 e 1955. Esta narrativa no , de forma alguma, uma
trilogia, mas uma histria nica dividida em trs partes, por sua vez, cada parte divide-
se em dois livros cada. A organizao da obra na ordem, portanto, : A Sociedade do
Anel(Livros I e II), As Duas Torres (Livros III e IV) e O Retorno do Rei (Livros V e
VI).
Esta obra, como nos diz o prprio Tolkien, foi composta em intervalos
entre os anos de 1936 e 1949 (TOLKIEN, 2003, p. XIII). O perodo de sua escrita nos
leva a pensar de imediato numa relao com a Segunda Guerra Mundial e, como
salientam alguns de seus crticos1, este foi um dos caminhos de anlise seguido desde a
publicao da obra. Seguindo a perspectiva de White (2001), percebemos que a maior
parte das anlises que se nortearam simplesmente por esta aproximao no
conseguiram dar conta da complexidade da narrativa (nem da Segunda Guerra) e
realizaram transposies diretas dos acontecimentos da narrativa para os da Segunda
Guerra, como se as histrias se confundissem.
1Notoriamente Lpez (1997 e 2004), White (2001) e Stanton (2002).
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No seguiremos este caminho. A narrativa mantm, certamente, um dilogo
com a contemporaneidade de sua escrita, todavia, este dilogo mediado. O modo
como esta mediao configurada nesta obra especificamente um dos pontos que
teremos que elucidar no desenvolvimento deste trabalho, para assim alcanar nosso
objetivo.
O Senhor dos Anisno a primeira obra de fico publicada por Tolkien.
Antes disso ele j havia publicado alguns contos em revistas e/ou coletneas, alm
claro de outro livro: O Hobbit, do qual primariamente O Senhor dos Anis seria uma
continuao. O ltimo, entretanto, tornou-se sua principal obra publicada em vida. O
Silmarilionpode ser visto por alguns como a verdadeira obra-prima de Tolkien, mas
foi publicado somente aps sua morte, e para isto teve de ser compilado por seu filho,
Christopher Tolkien
2
.Embora mantenha certa continuidade temporal e algumas personagens em
comum com O Hobbit, O Senhor dos Anisdistancia-se, e muito, de seu predecessor.
Nas palavras de Stanton (2002), por exemplo: o paternalismo e o preciosismo que
prejudicam O Hobbitesto ausentes em O Senhor dos Anis (STANTON, 2002, p. 17).
Estas, certamente, no so as nicas diferenas entre as narrativas. Poderamos fornecer
uma lista destes elementos divergentes, mas apenas indicar as diferenas de tom, textura
e profundidade deve bastar para os objetivos deste trabalho. Estas diferenas ocorrem,
principalmente, porque por mais que ambas as narrativas sejam repletas de seresfantsticos e magia, apenas O Hobbit se mostra vestido para crianas; este seria o
motivo do paternalismo e do preciosismo destacados por Stanton.
Mesmo tendo sido escrito como que vestido para crianas, O Hobbit foi
um grande sucesso de vendas na ocasio de seu lanamento, mas no pode ser
comparado a O Senhor dos Anis neste quesito. Afinal, O Senhor dos Anis, nos pases
de lngua inglesa, s vendeu menos [exemplares] que a Bblia (KYRMSE, 2003, p.
137). A repercusso de O Senhor dos Anis, entretanto, no pode ser medida apenas por
este dado que tambm relembrado por White (2001) e por Lpez (2004), entre outros.Logo aps seu lanamento, a obra de Tolkien foi alvo de inmeras crticas
nos suplementos literrios dos jornais de lngua inglesa, crticas, vale ressaltar, muito
2O Silmarilion no foi a nica obra pstuma de Tolkien publicada por seu filho. Devemosadicionar a lista Os Contos Inacabados de Nmenor e da Terra-mdiae os doze volumes daHistria da Terra-mdia, entre outros.
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antagnicas entre si. Apenas para ilustrar esta questo podemos nos debruar sobre a
apreenso de W. H. Auden de um lado, citado por quase todos os trabalhos sobre O
Senhor dos Anisque temos acesso:
W. H. Auden, que escreveu em The New York Times: nenhumafico que j li nos ltimos cinco anos me proporcionou maioralegria. E um ms depois, acrescentou mais forte apoio quando,numa entrevista de rdio, declarou: Se algum no gostar, eununca mais vou confiar em seu julgamento literrio sobre qualqueroutra coisa. (WHITE, 2001, p. 208)
Em contrapartida, surgiram opinies que depreciaram a narrativa de
Tolkien, e so to categricas como a citada acima. Edmund Wilson em 1956, por
exemplo, nos diz de O Senhor dos Anis:
Ficamos perplexos ao pensar por que o autor ter suposto queescrevia para adultos. bem verdade que h alguns detalhes umtanto desagradveis para um livro infantil, mas, exceto quando pedante e tambm aborrece o leitor adulto, h pouca coisa noSenhor dos Anis acima da inteligncia de uma criana de seteanos. [...] A prosa e os versos esto no mesmo nvel de amadorismoprofessoral. [...] O heri no sofre srias tentaes; no seduzidopor nenhum encantamento prfido, aturdido por poucosproblemas. [...] Ao final deste longo romance, eu ainda no tinhauma concepo do mago Gandalph, que uma figura primordial,nunca fora capaz de visualiz-lo de qualquer modo. [...] Esses
personagens que no so personagens esto envolvidos eminterminveis aventuras, a pobreza de inveno demonstradaparece-me, quase pattica. (WILSON apud KYRMSE, 2003, pp.135-136)
De um lado uma exmia obra-prima, de outro um lixo juvenil como o
mesmo Wilson o definiu em outra ocasio. As controvrsias sobre Tolkien e sua
principal obra no param por a. Alguns diro que um romance, outros diro que se
trata de um mito, alguns, ainda, que um conto de fadas, entre muitas outras
possibilidades. Apesar da contrariedade entre estas apreenses, durante a dcada de
1960, poderemos observar um grande impacto exercido por esta obra principalmente
nos pases de lngua inglesa (mas no somente neles). Neste perodo, a utilizao de
botonscom os dizeres Frodos live! era comum em universidades dos E.U.A. como
destacam Stanton (2002) e White (2001). Ao tentar explicar o motivo do sucesso desta
obra, Lpez (2004) nos dir que no se resignou dcada de 1960, ainda que concorde
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que durante este perodo a difuso da obra foi bastante marcante. Nas palavras da
autora:
[...] a atmosfera impregnada de revolta contra o establishment
favorecia o cultivo de universos alternativos realidade cotidianavigente. Alm disso, a forte coerncia interna da obra e oaprofundamento mtico de suas narrativas tornaram-naparticularmente atraente para uma gerao que negava opragmatismo capitalista vigente. (LPEZ, 2004, p. 23)
Os novos movimentos sociais e culturais que surgiram na dcada de 1960,
que Lpez (2004) chama de contra-cultura, mantinham entre si um ncleo comum. As
divergncias polticas e econmicas que guiavam a Guerra Fria e a crtica comunista
ao capitalismo no eram centrais nestes movimentos, embora ainda criticassem o
capitalismo ocidental e seu modo de vida. H neste perodo, como lembra Hobsbawm(2002), uma tentativa de superao da diviso entre o pessoal e o poltico, entre o
pblico e o privado.
Certamente, estes elementos da vida social no se aglutinam como queriam
este movimento e seus desdobramentos, mas as tentativas neste sentido so profundas. E
neste momento a obra de Tolkien se destaca tanto como instrumento, como expresso
desta tentativa. O prprio Hobsbawn indica isto numa pequena passagem de seu texto,
que passa desapercebida para quem no conhece a obra de Tolkien: Pink Floyd, A
Dialtica da Libertao, Che Guevara, A Terra Mdia e o LSD eram companheiros.
No que as fronteiras [entre o pessoal e o poltico] estivessem totalmente apagadas [...]
(HOBSBAWM, 2002, p. 281 grifo nosso).
A expresso Terra Mdia que no trecho acima aparece ao lado de Che
Guevara como cone deste movimento, o local onde se passa a narrativa de O
Hobbit e de O Senhor dos Anis, mesmo que neste caso se refira principalmente ao
ltimo. O significado e as diversas implicaes do nome Terra Mdia sero discutidos
em diversos momentos deste trabalho. Entretanto, antes de prosseguirmos devemos
destacar que no foi apenas durante a revoluo dos costumes que a obra de Tolkien
se destacou. Devemos lembrar, antes de tudo, que mesmo que estejamos destacando as
implicaes nos pases de lngua inglesa, O Senhor dos Anisfoi traduzido para mais de
dezenove lnguas durante os primeiros anos de publicao.
A primeira traduo brasileira, entretanto, surgiu apenas vinte anos aps o
lanamento da obra na Inglaterra. Ele foi publicado pela editora Arte Nova, esta
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traduo foi classificada como horrvel por Kyrmse (2003) e por muitos outros
crticos e fs. Durante o incio dos anos 1990, contudo, a editora Martins Fontes
publicou a traduo de Lenita Esteves, revista por Kyrmse, um trabalho muito acima
qualitativamente da verso anterior.
Este atraso no que diz respeito a uma traduo de qualidade para o
portugus do Brasil no impediu o surgimento de leitores interessados, ou melhor,
devotados obra de Tolkien no pas. Ronald Kyrmse, por exemplo, foi um dos
primeiros entusiastas de Tolkien e um dos fundadores da Ordem do Sul, a primeira
associao de fs de Tolkien no Brasil e a nica em funcionamento no hemisfrio Sul
durante a dcada de 1980. Nos dias de hoje, contudo, muitas outras associaes
surgiram ao redor do mundo, no Brasil por exemplo, temos Valinor, O Conselho
Branco, entre inmeras outras associaes sem contar a prpria Ordem do Sul.Houve ainda, dois grandes impulsos para a difuso de O Senhor dos Anis
que devemos ressaltar: a produo cinematogrfica da narrativa e o jogo de RPG (Role
Playing Games). Este ltimo, criado durante a dcada de 1970, possui uma forte
influncia da narrativa de Tolkien em seu desenvolvimento3, mas o grande impulso veio
com os jogadores posteriores que descobriram O Senhor dos Anis atravs de seu
envolvimento com o RPG, como indica Carvalho (2007).
Embora o RPG tenha sido uma das vias de difuso de O Senhor dos Anise,
tambm, das outras obras de Tolkien, aps a dcada de 1960, presenciamos uma grandeexploso desta obra aps a filmagem de Peter Jackson lanados em 2001, 2002 e
2003 mantendo a diviso em trs volumes. Nem todos sabem que esta no foi a primeira
tentativa de adaptar a obra de Tolkien para o cinema. J em 1958, Morton G.
Zimmerman se interessou em filmar O Senhor dos Anis, mas Tolkien detestou a
sinopse e no permitiu que o projeto tivesse prosseguimento. Entretanto, em 1978,
Ralph Bakshi lana a primeira parte da histria no cinema. Ele dividiu a histria em
apenas duas partes, contudo, este filme foi um verdadeiro fracasso e a segunda parte do
filme nunca chegou a ser feita.
3Esta aproximao entre a narrativa de Tolkien e o RPG pode ser vista mais claramente noprimeiro sistema deste jogo: O Dungeus And Dragons(D&D). Embora, no seja o nicosistema que a narrativa exerce alguma influncia. Recentemente esta influncia se tornouincontestvel, quando foi lanado um sistema de jogo que se passa na prpria Terra-mdia.
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J com os filmes de Peter Jackson as coisas foram diferentes. Alcanou um
imenso sucesso de pblico e, no mnimo, contribuiu muito para a difuso da obra de
Tolkien. Tanto que alguns acreditam que o sucesso da narrativa de Tolkien se deve
apenas a esta grande produo de Hollywood. Mas este no o caso de O Senhor dos
Anis. Para demonstrarmos mais claramente podemos retornar Inglaterra. Em 1997,
portanto, antes do lanamento dos filmes de Peter Jackson, uma grande livraria da Gr-
Bretanha (Waterstones) fez uma pesquisa para saber qual o livro do sculo XX
preferidos de seus leitores e:
Para muitos, o resultado foi um choque. Em toda a Gr-Bretanha,votaram 25 mil pessoas e mais de um quinto delas colocou OSenhor dos Anis como a primeira escolha, derrotando 1984, deGeorge Orwell, o segundo lugar. Na verdade, O Senhor dos Anis
alcanou o primeiro lugar em 104 das 105 filiais da livraria. Asingular exceo foi no Pas de Gales, onde Ulisses, de Joyce,empurrou Tolkien para o segundo lugar. A reao do establishmentliterrio a isso foi imediata e mordaz. (WHITE, 2001, p. 244)
Como j salientamos, as opinies acerca de O Senhor dos Anis so muito
controversas, portanto, quando o resultado desta pesquisa foi divulgado boa parte dos
jornalistas e crticos literrios da Gr-Bretanha lamentaram a falta de senso artstico
dos leitores entrevistados e tentaram de todos os modos desacreditar a pesquisa da
Waterstones. Mas, como descreve o mesmo White (2001), as tentativas de substituir
esta pesquisa por outra com um melhor senso artstico mostraram-se, na melhor das
hipteses, infrutferas:
E assim, na tentativa de provar que estavam certos, os literati doDaily Telegraph decidiram organizar sua prpria votao, em quepediram aos seus leitores para eleger seu livro e autor preferido. OSenhor dos Anis e Tolkien foram eleitos o livro e o autorpreferidos dos leitores. Isto s acrescentou sal s feridas, e gritos dejogo sujo continuaram a ser ouvidos, mas agora mais amortecidos.Dois meses depois, a Sociedade Folio realizou uma votao entreseus 50 mil membros; no se deu permisso de voto a ningum defora. Dez mil membros responderam. O Senhor dos Anisamealhou 3 mil 720 votos, Orgulho e Preconceito, de Jane Austenfoi o segundo, com 3 mil 212[...] (WHITE, 2001, pp. 245-246)
Este pequeno recorte sobre a influncia de O Senhor dos Anise, em menor
grau, do restante das obras de Tolkien nos ajudam a compreender a motivao inicial
desta pesquisa. Poderamos ampliar muito o leque de influncia desta obra, o fenmeno
Harry Poter dos ltimos anos, no qual claramente (e confessamente) a autora
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influenciada por Tolkien; ou ainda poderamos citar bandas como Blind Guardianque
dedicaram msicas e, neste caso, lbuns inteiros Terra-mdia e a Tolkien. Todavia,
compor, mesmo que de maneira sucinta, toda a gama de obras e/ou autores de todas as
reas influenciadas por O Senhor dos Anisseria objeto para outra pesquisa.
Mas nossa inteno neste breve recorte destacarmos a necessidade de
anlise desta obra que tanto repercutiu na sociedade ocidental. Certamente, esta
repercusso foi mais abrangente e profunda nos pases de lngua inglesa, porm no se
restringiu a estas fronteiras. Por ser um texto que representa um mundo muito distante
do cotidiano do sculo XX, pouco se tentou fazer para exprimir a localizao histrica
da obra e seu diagnstico do tempo, exceto pelas tentativas de ligar a narrativa de O
Senhor dos Anisdiretamente Segunda Guerra Mundial ou biografia de Tolkien.
Nosso objetivo, portanto, ser discutir justamente esta relao da obra comseu contexto. Certamente, algumas informaes biogrficas sobre o autor podem nos
auxiliar em nossa anlise, mas queremos evitar abordagens restritivas neste sentido.
Tolkien nasceu em 1892 na frica do Sul onde seu pai era gerente de um banco.
Durante sua primeira infncia uma tarntula [...] o picou quando ele mal comeara a
andar. [...] o vulto da aranha deve t-lo impressionado o bastante para explicar a
incluso de aracndeos malvolos no Hobbit,no Senhor dos Anise no Silmarillion.
(KYRMSE, 2003, p. 4). Esta forma de anlise ser evitada em nossa discusso.
Por mais que seja interessante conhecer alguns elementos da biografia deTolkien, ao menos, para nos localizarmos e explicar algumas das anlises feitas at aqui
sobre sua obra, transpor acontecimentos de sua biografia para obra sem nenhuma
mediao certamente um erro. No queremos entrar no mrito de se a motivao de
Tolkien, para esta particularidade da obra, foi ou no esse elemento de sua biografia.
Este tipo de abordagem no nos aproximaria de nosso objetivo.
Embora tenha nascido na frica do Sul, Tolkien mudou-se muito novo para
Inglaterra com sua me e seu irmo. O pai, que deveria segui-los quando possvel,
faleceu pouco tempo depois. Quando ele estava com doze anos de idade sua metambm faleceu pouco depois de se converter ao catolicismo e sua guarda legal ficou ao
encargo de um certo padre Francis Morgan. interessante notar que Tolkien
permaneceu como um catlico convicto e devotado durante toda a vida, ressaltando em
todas as oportunidades que mantinha a escolha de sua me.
Apesar das muitas dificuldades, Tolkien conseguiu uma bolsa de estudos
para o curso universitrio e, em 1915, se formou em Oxford. Ele tambm participou da
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Primeira Guerra como tenente, antes de trabalhar como fillogo no Oxford English
Dictionary. Durante a dcada de 1920, iniciou sua carreira como professor universitrio
na universidade de Leeds e alguns anos depois, retornou a Oxford, ento como
professor onde permaneceu at sua aposentadoria.
Em Oxford, durante a dcada de 1930, Tolkien participava de um grupo
informal de literatos, os Inklings. No havia nenhum padro nas reunies deste grupo,
geralmente os membros liam seus textos em voz alta para o restante, que faziam crticas,
sugestes ou elogios, em meio s conversas informais e algumas bebidas. Segundo
White (2001), quase todo O Hobbit,alm de boa parte de O Senhor dos Anis, foram
lidos para este grupo conforme os captulos eram escritos. Um dos membros dos
Inklings era o amigo mais ntimo de Tolkien, C. S. Lewis 4, que tambm teria lido ali As
Crnicas de Nrnia.No pretendemos aqui perpassar todos os pormenores da vida de Tolkien.
Esses poucos dados sero suficientes para o desenvolvimento de nossa anlise. Mesmo
porque se pretendemos analisar esta obra em uma relao com seu tempo, devemos
buscar as perguntas na prpria obra. No nos auxiliaria em nosso objetivo enumerar
todos os detalhes da vida de Tolkien, ou todos os eventos histricos que ocorreram
durante a composio da narrativa. Devemos perceber a relao de O Senhor dos Anis
com o seu tempo de outra maneira. Nos dizeres de Gagnebin (2004), o que intentamos
perceber:
Histria e temporalidade [...] concentradas no objeto: relaointensiva do objeto com o tempo, do tempo no objeto, e noextensiva do objeto no tempo, colocado como por acidente numdesenrolar histrico heterogneo sua constituio. (GAGNEBIN,2004, p. 11)
Nesta perspectiva, os aspectos em que a narrativa dialoga com sua
contemporaneidade esto contidos nela mesma. Precisamos, ento, a partir da prpria
obra perceber sua historicidade, mas, como fazer isto? H diversas formas de anlise
literria nas cincias humanas, mas cada mtodo utilizado tem seus pressupostos, suas
perguntas e suas possveis respostas. Cada abordagem, portanto, tenta responder uma
4Escritor britnico e professor de literatura em Oxford e Cambridge. As suas Crnicas deNrnia tambm ganharam verses cinematogrficas nos ltimos anos na esteira de OSenhor dos Anis. Vale a pena ressaltar que um dos motivos de Tolkien negar que sua obrafosse uma alegoria, segundo White, que Tolkien detestou a alegoria desta obra de C. S.Lewis.
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questo central. A prpria escolha por tentar estabelecer uma relao intensiva com o
tempo j se mostra como escolha metodolgica.
O primeiro ponto que podemos destacar aqui que no elencaremos todos
os eventos histricos ocorridos durante a composio da obra, nem tentaremos explicar
a composio da obra a partir destes eventos. Nosso caminho ser o oposto: partindo da
obra elucidaremos uma determinada apreenso deste momento histrico, em outras
palavras, tentaremos indicar como eventos, pensamentos, desejos e medos deste perodo
so incorporados e explicados pela obra. Este tipo de abordagem tem a vantagem, se
empreendido corretamente, de perceber alguns aspectos histricos apreendidos pela
obra contra a prpria vontade do autor.
Podemos dizer que buscamos indicar qual a apreenso histrica nesta obra
de Tolkien e no segundo o prprio Tolkien. Esta diferena foi muito bem indicada porGagnebin (1994) ao discutir a anlise de Walter Benjamin sobre a apreenso de
modernidade (portanto, apreenso histrica) de Baudelaire: Benjamin descobre em
Baudelaire uma modernidade muito mais ambgua e rica que nem sempre coincide com
a modernidade segundo Baudelaire. (GAGNEBIN, 2004, p. 49). Perceber esta
diferena entre a apreenso da obra e a apreenso do autor sobre determinado tema, no
caso apreenso do momento histrico, possvel apenas quando se adota uma
metodologia que perceba a obra como uma totalidade em si mesma, como mnada, para
utilizarmos a terminologia de Benjamin, tomada de emprstimo de Leibniz. isto queintentamos neste trabalho.
Esta abordagem nos distanciar do restante da crtica sobre a obra de
Tolkien a que tivemos acesso, como discutiremos no primeiro captulo. Nele,
tentaremos retomar algumas das apreenses das crticas feitas at aqui, tanto sobre O
Senhor dos Anis como sobre a obra literria de Tolkien de um modo geral. E
discutiremos, entre outras coisas, as dificuldades de se classificar esta obra como sendo
pertencente a esta ou aquela forma. Um ponto em comum desta crtica que podemos
antecipar que, de modo geral, ela no separa a obra literria de Tolkien de suas obrastericas ou de suas opinies e intenes. Nossas discordncias, portanto, sero fruto,
antes de tudo, de nossa escolha metodolgica.
H dois extremos possveis na anlise de objetos artstico-culturais que
queremos evitar. O primeiro deles ver a obra literria em sua verso completamente
subjetiva, segundo a qual a obra surge apenas e to somente pelo trabalho do gnio
ignorando os aspectos histricos que ajudam a determinar a composio da obra. O
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segundo seria encarar a obra como um tipo de reflexo de seu tempo histrico. Este tipo
de apreenso pode gerar inmeros problemas, se um reflexo deve ser equivalente de
seu tempo histrico e sabemos que no o que ocorre, nem mesmo em textos ditos
realistas.
Poderamos dizer que um reflexo proporcionado por um espelho no-
plano, onde alguns elementos seriam ocultos, distorcidos, diminudos ou ampliados de
acordo com a deformidade do espelho, ou melhor, de acordo com a viso de mundo do
autor. Ainda assim, nos parece que a teoria do reflexo no d conta completamente da
complexidade do objeto artstico cultural. Muito se falou sobre isto na sociologia, na
filosofia e na teoria literria e discutir isto longamente nos afastaria de nosso objetivo. O
que intentamos aqui, concordando com Waizbort, compreender a obra de uma maneira
que d conta da objetividade e da subjetividade presentes nela mesma:
No se trata, com efeito, de atribuir todo o peso da obra subjetividade criadora de um gnio ou personalidade, nem poroutro lado de defini-la em um paralelogramo cujas foras seriammeio e momento. Compreender a obra significa ser capaz de captaressa tenso de foras que se configura entre uma subjetividade e aobjetividade do mundo na qual ela existe e que em alguma medidatambm a modela. (WAIZBORT, 2007, pp. 265-266)
O trecho acima embora utilizado originalmente num contexto muito diverso
do nosso, resume bem nossa inteno. Excluir a influncia do tempo e do meio nacomposio da obra vendo-a como trabalho de gnio um atentado contra a prpria
obra na medida em que esta , tambm, uma expresso da temporalidade em que foi
criada. Resumir a criao artstica a um paralelogramo de foras o que Gagnebin
(1994) chamou de relao extensiva com o tempo, como se a obra no fosse criada no
tempo e sim em paralelo para que depois pudesse ser comparada ao momento histrico
adequado. Portanto, compreender a obra em sua relao intensiva com o tempo significa
analisar o resultado da tenso entre o autor e seu tempo, e o lcusdo qual devemos
partir para alcanar isto a prpria obra, pois aqui que esta tenso ganha corpo eexpresso.
Para iniciarmos uma anlise partindo da prpria obra como intentamos
necessrio enfrentarmos a princpio a seguinte questo: quem conta a histria? No caso
de O Senhor dos Anisela nos contada da perspectiva dos hobbits. Esta constatao,
que est longe de encerrar a questo, nos permite iniciar o processo de compreenso da
narrativa com um bom ponto de apoio embora gere, desde j, um problema que no
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pode ser ignorado: o que um hobbit? Este o primeiro ponto que precisamos enfrentar
para podermos discutir a narrativa. Precisamos saber, ao menos, que tipo de ser este.
Eles so uma raa completamente nova? Ou ainda, so variaes de algum ser
mgico ou real anterior?
No prlogo da narrativa h uma longa descrio dos hobbits. Eles so
menores que os anes medindo em mdia um metro e vinte centmetros e possuem uma
leve tendncia a acumular gordura na barriga, mas ainda assim so geis. O que nos
leva a supor que so uma raa completamente diferente. Entretanto:
fato que, apesar de um estranhamento posterior, os hobbits sonossos parentes: muito mais prximos que os elfos, ou mesmo queos anes. Antigamente, falavam a lngua dos homens, sua prpriamaneira, e em grande parte gostavam e desgostavam das mesmas
coisas que os homens. Mas qual exatamente nosso parentesco nose pode mais descobrir. (TOLKIEN, 2000, p. 2)
Podemos considerar, portanto, os hobbits como sendo algum tipo de
variante dos humanos. O que significam as diferenas entre os homens e os hobbits
(sua baixa estatura, por exemplo) na estrutura da narrativa algo que no podemos
responder antes de ponderar sobre outros elementos desta obra. Podemos adiantar,
todavia, que de todos os povos livres que aparecem na narrativa, os hobbits so os
mais imediatistas. Todas as coisas pequenas ou grandiosas, terrveis ou belas, boas ou
ms, na prpria interpretao da narrativa que no influenciem diretamente suas vidas
so desconsideradas, desacreditadas e/ou ignoradas pelos hobbits em geral. A
advertncia do Feitor para seu filho Sam logo no incio da narrativa um bom
indcio deste imediatismo: -Elfos e Drages!,digo eu para ele.Repolho com batatas
melhor para voc e para mim. No v se misturar com os negcios que no so para o
seu bico, ou voc vai arranjar problemas muito grandes para voc [...] (TOLKIEN,
2003, p. 24 grifo do autor).
Notemos que os Elfos e Drages no trecho acima correspondem apenas s
histrias sobre estes seres que Sam ouvia, e no necessariamente a existncia deles.
Por no ser de uso imediato estas histrias geram problemas. Com isto em mente,
devemos saber o que conta O Senhor dos Anis.
O livro narra como Frodo Bolseiro (um hobbit) descobre que o anel mgico
que lhe foi deixado de herana por seu primo Bilbo Bolseiro (protagonista de O Hobbit)
, na verdade, um objeto de imenso poder que coloca em risco a vida e a liberdade de
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todos os habitantes da Terra-mdia. O Anel, portanto, precisa ser destrudo. Frodo,
ento, parte do Condado (Shire), o pequeno pas de seu povo, em busca d A
Montanha da Perdio,lugar em que o Anel foi forjado e o nico local da Terra-mdia
em que efetivamente ele pode ser destrudo.
Em sua jornada para a destruio do Anel, Frodo passa por diversos locais
da Terra-mdia, conhece inmeras pessoas de muitos povos diferentes, algumas das
quais o acompanham por algum tempo. Entre eles est Aragorn, um rei em exlio, que
reassumir seu trono ao fim da narrativa. O Anel destrudo (mesmo que Frodo tenha
se recusado a faz-lo no ltimo instante) e juntamente com o Anel, o seu Senhor,
Sauron, o inimigo de todos os povos livres da Terra-mdia.
Assim termina a Terceira Era da Terra-mdia, mas como entender a
estrutura narrativa de O Senhor dos Anis? O segundo captulo de nosso trabalho serdestinado, entre outras coisas, a discutir como se apresenta esta estrutura narrativa.
Aqui, tentaremos delimitar como so feitas as inmeras incurses ao passado na obra e
a viso de histria e temporalidade decorrente destas incurses, bem como, sua
apreenso religiosa; dois fatores intrinsecamente ligados nesta narrativa.
Embora, aparea posteriormente na exposio do trabalho, a discusso posta
aqui est presente tambm em todo o desenvolvimento do argumento desta introduo e
do primeiro captulo. A escolha por esta ordem de exposio visa facilitar o
entendimento do trabalho, pois algumas categorias e apreenses do primeiro captuloso centrais para vislumbrar a estrutura narrativa. Juntos estes dois captulos apontam
para a ltima parte deste trabalho, o terceiro captulo que, por sua vez, ser destinado
discusso da relao da obra com os aspectos contemporneos de Tolkien mais
diretamente.
Tentaremos, tambm no terceiro captulo, delimitar a natureza do Mal
nesta narrativa e indicar como a existncia da subjetividade moderna nesta obra d certa
ambivalncia modernidade presente em O Senhor dos Anis, entre outros elementos.
Neste ponto tambm poderemos elucidar, mesmo que indiretamente como oimediatismo dos hobbits ou melhor, como a superao deste imediatismo por alguns
hobbits pode fornecer uma interpretao rica e ambivalente da contemporaneidade da
obra.
Antes de iniciarmos nossa discusso propriamente dita nos cabe, contudo,
ressaltar a imensa dificuldade encontrada pela crtica em classificar O Senhor dos
Anis. Embora o modernismo (em todas as suas variaes) dominasse o cenrio cultural
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europeu, nenhuma crtica relaciona a obra de Tolkien ao modernismo ou a nenhum
outro movimento cultural contemporneo da obra. Implicitamente, nossa discusso
toca no motivo deste posicionamento peculiar da crtica.
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CAPTULO 1 Um Mito Fantasmagrico
I. Uma queda: o desaparecimento da fantasia
[...] no acredito que o mundo nossa volta
possa ser o mesmo de antigamente, oumesmo que a luz do sol possa brilhar com a
mesma intensidade. Receio que aos elfosrestar, na melhor das hipteses, uma
trgua durante a qual podero passar para
o mar sem serem molestados e deixar aTerra-mdia para sempre. (Haldir
TOLKIEN, 2000, p. 363)
A viagem de Frodo pela Terra-mdia leva ao fim da Terceira Era e,
diferentemente do que parece a primeira vista, apesar de o inimigo dos povos livres
ser derrotado, o final de O Senhor dos Anis no um tpico happy end. O tom da
narrativa de pesar, um lamento por um mundo que no existe mais, um mundo quefoi destrudo e/ou superado. O grande eixo desta perda identificado em maior ou
menor grau por todos os crticos de Tolkien a que temos acesso, entretanto, quem
melhor o caracteriza Lpez (1997), mesmo que no leve sua identificao s ltimas
conseqncias. Isto ocorre porque o eixo da perda que perpassa toda a narrativa um
eixo de cunho histrico que, no mnimo, no corresponde ao foco da discusso desta
autora. Ao no centralizar esta caracterstica como vis de sua discusso, Lpez (1997)
acaba reduzindo toda fora do argumento do pesar pelo trmino de um determinado
mundo:
A nova Idade, com a chegada do domnio do mundo pelos homensprefigura-se no real significado da narrativa em The Lord of TheRings. [...] O domnio do Homem, privilegiando a razo, bane deseus territrios as criaes da Fantasia e opta por perder-se delas.Este aspecto no deixa de ter aluses ao que aconteceu a partir dosculo XVIII, com o privilgio da razo em detrimento dos
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processos irracionais, para o prejuzo do equilbrio do homem.(LPEZ, 1997, p. 48)
A perda da fantasia destacada por Lpez neste trecho o que d o tom da
narrativa de O Senhor dos Anis, este o mundo que foi perdido, o mundo da fantasia.Claramente este aspecto da narrativa est ligado ao advento da modernidade e ao
processo de racionalizao vinculado a ela, a identificao do sculo XVIII com o incio
deste processo aludido pela narrativa j nos permite identificar este fator. Entretanto, os
aspectos histricos e sociais desta afirmao so minimizados pela crtica de um modo
geral. Mesmo neste trecho de Lpez podemos perceber isto; no deixa de ter
aluses... nos indica que as caractersticas histricas e sociais no sero priorizadas
nesta anlise.
Outro ponto que poderamos destacar neste trecho diz respeito utilizaoda expresso processos irracionais para delimitar o que Lpez (1997) chama de
Fantasia. Se lembrarmos que as noes de mito, religio e fantasia (que constituem
conceitos e apreenses diferentes entre si) no interior da narrativa esto entrelaadas e
se confundem, a aproximao de Lpez (1997) se torna, no mnimo, temerria.
Poderamos indicar problemas na apreenso direta de fantasia com irracionalidade, mas
estes problemas so ampliados pela particularidade da obra de Tolkien que Lpez
(1997) certamente no ignora como ficar claro no decorrer deste trabalho.
Mesmo acreditando que, neste trecho, Lpez queira apenas marcar acorrelao de O Senhor dos Anis com o aumento da influncia do processo de
racionalizao ligado modernidade, no poderamos deixar de destacar que esta
apreenso pode levar-nos a cometer alguns equvocos na apreenso da fantasia
presente em O Senhor dos Anis.
Ao final de sua anlise, Lpez, tenta novamente retomar alguns aspectos da
modernidade que perpassam a obra de Tolkien que, segundo ela, estaria apenas na
ruptura da linguagem no decorrer da narrativa e no aspecto fragmentrio do
homem moderno criticado por Tolkien e superado por este em sua obra. Nas
palavras da autora:
Inferimos, assim, que a obra de Tolkien, no obstante suasprofundas razes medievais como trao dominante, tambmencontra expresso na ruptura caracterstica de suacontemporaneidade. Como j afirmamos, a ruptura na obra deTolkien no se d pela forma na sua estrutura narrativa. Aindaassim, podemos refletir sobre como o conceito de ruptura no
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sculo XX poderia aproximar-se de sua proposta literria. Vemos aobra de Tolkien como a busca de uma nova percepo da realidade.Ainda que trilhasse caminhos estticos bastante diferentes de seuscontemporneos, tambm buscou na ruptura dos padreslingsticos uma outra percepo da realidade: uma percepo
mtica, cuja reflexo se instaurou simbolicamente na narrativa,como reflexo de arqutipos. Tolkien parece querer reencontrar,com o fazer esttico, a integridade do homem contemporneo,revitalizando significados esquecidos, rompendo com uma visotcno-cientfica auto-laudatria. (LPEZ, 1997, p. 216)
Em um primeiro momento, os dois trechos desta autora destacados aqui
parecem chocar-se entre si. Se a estrutura narrativa de O Senhor dos Aniscaminha para
a perda da fantasia devido ao aumento de uma racionalidade instrumental ou tcno-
cientfica como destacado nos dois trechos, a ruptura dos padres lingsticos como
instrumento de uma outra percepo da realidade no pode ser a nica manifestaoda modernidade nesta narrativa. Mesmo porque os processos irracionais abandonados
pelo homem moderno no se encontrariam apenas na linguagem. Por isso, entre outros
motivos, que esta apreenso direta de fantasia com processos irracionais
empreendida por Lpez contm alguns problemas de grande repercusso terica.
Ainda assim, a prpria percepo destacada pela autora do homem moderno
como fragmentrio uma caracterstica que desde os Romnticos de Jena
expressa um rompimento com uma organizao social e cultural anterior bem mais
abrangente do que Lpez v.
Entretanto, no trecho de Lpez (1997) tambm podemos perceber certo
cuidado em demonstrar a preponderncia das caractersticas pr-modernas, suas
profundas razes medievais como trao dominante em demonstrar, portanto, os
aspectos tradicionais da narrativa. Isto, principalmente se levarmos em conta os
conceitos e/ou expresses utilizados aqui, tais como mtica, simbolicamente e,
principalmente, integridade que nesta perspectiva, afastam ainda mais a obra do
perodo em que foi escrito.
Chamamos as profundas razes medievais de aspectos tradicionais e
identificamos a noo de ruptura que Lpez atribui obra de Tolkien como moderna.
Mas como entender tradio e modernidade aqui? A utilizao destes conceitos, alm de
outros fatores, nos proporciona um instrumental terico capaz de identificar o contexto
de O Senhor dos Anis num sentido amplo. A prpria anlise de Lpez nos sugere este
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caminho quando cita os componentes medievais5que, segundo ela, comporiam o trao
dominante da obra. Ao nos aprofundarmos um pouco na discusso destes conceitos
nossa aproximao da anlise de Lpez (1997), bem como as diferenas de nossas
apreenses, ficar mais clara.
Se ampliarmos a noo de ruptura, destacada por Lpez no trecho acima,
teremos um bom ponto de partida para a caracterizao da modernidade. Ao invs de
caracteriz-la como lingstica, contudo, intentamos perceb-la como histrica e
social num sentido amplo, que incluiria, tambm, a linguagem.
Muitos tericos da modernidade, ou da modernizao, identificaram numa
ruptura histrica e social um eixo fundamental para conduzirem suas discusses. O
prprio aumento da influncia da racionalidade com vistas a fins, tal como entende Max
Weber, demarca esta ruptura. Em seu ensaio Sobre algumas categorias da sociologiacompreensivao autor nos fornece algumas caractersticas de duas formas distintas de
agir dos indivduos:
[...] agir em comunidade para ns significa: 1) umcomportamento historicamente observado, ou 2) umcomportamento teoricamente construdo como sendoobjetivamente possvel ou provvel e que praticado porindivduos, com relao a comportamento de outros indivduos,podendo ser comportamentos reais ou pensados comopotencialmente possveis. (WEBER, 1995, p. 324)
Este comportamento historicamente observado pode ser caracterizado
como tradicional, no s pela preponderncia das relaes interpessoais diretas do
segundo item, mas pelo distanciamento do tempo na origem deste agir. H aqui um
ideal de que sempre foi assim por isto tal comportamento deveria ser preservado.
Pouco antes deste trecho, na mesma pgina, Weber diz que neste caso o agir no se
orienta por expectativas mas por valores. (WEBER, 1995, p. 324). A ruptura moderna
viria do outro modo de agir definido por ele:
Denominamos agir em sociedade um agir em comunidade namedida em que 1) orienta, de maneira significativa, porexpectativas que so alimentadas com base em regulamentaes, 2)na medida em que tal regulamentao foi feita de modo
5 Um ponto que merece destaque que Lpez (1997 e 2004) tambm mencionacaractersticas Celtas, Nrdicas, Alqumicas, entre outras, todas presentes em O Senhor dosAnis.
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puramente racional com relao a fins, tendo em mente o agiresperado dos associados como conseqncia, e quando 3) aorientao provida de sentido se faz, subjetivamente, de maneiraracional com relaes a fins. (WEBER, 1995, p. 325)
Podemos dizer que a distino feita por Weber aqui entre agir emcomunidade e agir em sociedade ou simplesmente entre comunidade (Gemeinschaft) e
sociedade (Gesellchaft) delimita, grosso modo, o agir tradicional e o moderno
respectivamente. A diferena estaria na preponderncia da mediao de
regulamentaes racionais presente nas sociedades. Em certo sentido, a presena
desta mediao ser retomada posteriormente na categoria sociedades complexas que
se refere modernidade ocidental, em contrapartida das sociedades simples para
caracterizar o que se chamou aqui de comunidade.
No estamos dizendo que estas categorias sejam estanques, possvel agir
movido por valores na modernidade, bem como, se guiar por expectativas racionais
fora dela. Por mais que estas duas formas de agir no sejam excludentes entre si,
entretanto, o processo de desenvolvimento da modernidade faz com que cada vez mais o
agir dos indivduos seja guiado por expectativas e no por valores. importante
destacar aqui que esta passagem vista como processo e no est (e talvez, nem ser)
completamente concludo
O privilgio da razo ao qual Lpez (1997) se referia acima est ligado
passagem da predominncia da comunidade para a predominncia da sociedade. H
uma ciso aqui que delimita a diferena entre a organizao social da modernidade e as
demais. Para Weber esta ciso se d com o aumento da influncia da racionalidade com
vistas a fins que vale destacar recebeu um grande impulso no perodo medieval com
as organizaes monsticas.
Este processo abrange as diversas esferas da vida e possui muitas formas de
manifestao. O desenvolvimento da burocracia, por exemplo, marca esta passagem:
Nos governos pblicos e legais [...] a burocracia [...] se desenvolve plenamente [...]
apenas no Estado moderno, e na economia privada, apenas nas mais avanadas
instituies do capitalismo. (WEBER, 1982, p. 229). O exemplo da burocracia
interessante, pois marca profundamente a impessoalidade que acompanha o agir em
sociedade e suas expectativas racionais, diferentemente do agir em comunidade.
Tambm podemos destacar por este trecho que h muitos graus de burocratizao, e
que ela s se encontra mais desenvolvida da modernidade. Portanto, h uma tenso
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dividindo o agir em comunidade e o agir em sociedade que coexistem muitas vezes no
mesmo indivduo, o que queremos destacar aqui somente a predominncia do agir em
sociedade na modernidade, por isto, entre outros fatores, que a burocracia pode se
desenvolver plenamente.
Neste pensamento, o que Weber denominou de desencantamento do mundo
caminha lado a lado com este processo de aumento da influncia da racionalidade com
vistas a fins. O que Lpez (1997) caracteriza como perda da fantasia na modernidade
visto por Weber como elemento constitutivo da prpria modernidade e ocorre, em
princpio, no seio da esfera religiosa:
Aquele grande processo histrico-religioso do desencantamento domundo que teve incio com as profecias do judasmo antigo e, emconjunto com o pensamento cientfico helnico, repudiava comosuperstio e sacrilgio todos os meios mgicos de busca dasalvao, encontrou aqui sua concluso. (WEBER, 2004, p. 96)
O clmax do processo de desencantamento do mundo, em Weber, ocorre
com a ascese crist do calvinismo, que tambm seria o comportamento que favoreceu o
surgimento do esprito do capitalismo e de certo modo, a modernidade nesta
definio. Basta para isto observarmos que: O adversrio com o qual teve de lutar o
esprito do capitalismo [...] foi [...] aquela espcie de sensibilidade e de
comportamento que se pode chamar de tradicionalismo. (WEBER, 2004, p. 51).
Se retomarmos a apreenso de Lpez (1997) na qual os processos
irracionais esto conectados fantasia, que em O Senhor dos Anisquer dizer tambm
ao mito e religio, e compararmos com a definio de desencantamento do mundo de
Weber veremos que no podemos separar as coisas de modo to estanque como fez a
autora. Afinal, se o processo de desencantamento e, conseqentemente, o aumento da
racionalizao se iniciaram na esfera religiosa ela no pode ser posta (mesmo que
indiretamente) como um dos processos irracionais.
A teoria weberiana, destacada at aqui, em certo sentido corrobora os
aspectos modernos de O Senhor dos Anisdestacados por Lpez (1997). Mas ser que
poderemos resumir as diferenas entre tradio e modernidade apenas a esta apreenso?
Ou ainda, os aspectos destacados por Lpez so as nicas caractersticas modernas
presentes nesta obra? Podemos antecipar que as respostas para as duas questes so
negativas. Porm, no nos basta isto para empreendermos nossa anlise.
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O primeiro ponto que precisamos destacar que, pelo menos algumas, das
personagens de O Senhor dos Anis so indivduos modernos. Diferentemente do que
afirma Lpez num dos trechos supracitados, nem todas as personagens so reflexos de
arqutipos tpicos de uma literatura pr-moderna. Certamente, se nos focarmos em
algumas das personagens, como Elrond, por exemplo, podemos at concordar com
Lpez (1997). A impresso de Frodo ao v-lo pela primeira vez, de certo modo, j nos
permite pens-lo como um arqutipo: O rosto de Elrond parecia eterno, nem velho nem
jovem, embora nele se inscrevesse a memria de muitas coisas, alegres e tristes.
(TOLKIEN, 2003, p. 235). Este rosto eterno se expande para a totalidade desta
personagem. Mais a frente Elrond diz a Frodo: [...] minha memria alcana at os Dias
Antigos. [...] J vi trs eras do Oeste do Mundo, e muitas derrotas, e muitas vitrias
infrutferas. (TOLKIEN, 2003, p. 252)Aqui nos dito que a memria de Elrond alcana milhares de anos, pois ele
viveu estes milhares de anos. Como boa parte das personagens imortal, isto, por si s
no o diferencia, mas Elrond no muda durante toda a narrativa. Melhor dizendo, no h
nenhum tipo de mudana ou desenvolvimento desta personagem durante o perodo que
a narrativa abarca, mesmo quando somos remetidos ao passado da Terra-mdia. Isto
, a representao de Elrond eterna e imutvel, uma personagem plenamente
esttica, um reflexo de arqutipos.
Contudo, se focarmos outras personagens isto no ocorre. Uma dasprimeiras frases de Frodo, quando descobre que est com o anel de poder, nos fornece
algumas indicaes disto: ... sinto-me pequeno e extirpado de minhas razes e bem
desesperado. (TOLKIEN, 2000, p. 64). O que significa se sentir extirpado de suas
razes?
A discusso de Berman (2007), ao analisar o Faustode Goethe, pode nos
auxiliar. Ele caracteriza o que Weber chamou de comunidade como mundo fechado, e
Fausto [...] est inserido numa sociedade fechada e estagnada, ainda incrustado em
formas sociais tpicas do feudalismo e da Idade Mdia: formas como a orientaoespecializadora que impede seu desenvolvimento, bem como o de suas idias.
(BERMAN, 2007,p. 57).
Em O Senhor dos Anis, o Condado dos hobbits, em certo sentido, pode
ser identificado com este mundo fechado e estagnado. Quando Frodo percebe que ter
de abandonar o mundo que conhece, sente pela primeira vez que no pertence mais a
ele e isto o apavora; se sente extirpado de suas razes. Mas, se avanarmos um pouco
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na narrativa, depois de Frodo ter deixado o Condado, veremos nele uma mudana
interessante:
Olhando no espelho, assustou-se ao ver uma imagem de si mesmo
muito mais magra do que a recordava: a imagem era notavelmenteparecida com aquela do jovem sobrinho de Bilbo, que costumavapassear com o tio no Condado, mas os olhos o observavampensativamente.- Sim, voc viu uma ou duas coisas desde que espiou atravs de umespelho pela ltima vez disse ele para seu reflexo. Mas, destavez, o encontro foi feliz! (TOLKIEN, 2003, p. 233)
Se num primeiro momento Frodo sente-se completamente desesperado e
extirpado de suas razes, quando se olha no espelho algum tempo depois percebe que
isto gerou mudanas positivas em si mesmo. H certa semelhana com o que acontece
personagem Gretchen no Fausto de Goethe, conforme Berman a analisa: [...] enquanto
se olha no espelho [...] uma revoluo acontece em seu ntimo. De sbito ela se torna
reflexiva; capta a possibilidade de se tornar diferente, de mudar a possibilidade de se
desenvolver. (BERMAN, 2007, p. 69).
Neste momento da narrativa, Frodo j deu sinais de seu desenvolvimento; e
at o final da narrativa continuar se desenvolvendo. Esta a segunda vez que Frodo se
olha no espelho durante a obra, na primeira, pouco tempo aps ter se sentido
desesperado se condena por acreditar que no ser capaz de concluir sua viagem.
Na segunda oportunidade, expressa no trecho acima, a situao diferente. Qual o
motivo dos olhos o observarem pensativamente?
Aqui, ao se olhar no espelho, ele percebe a possibilidade de se desenvolver,
de mudar. Em certo sentido, a mudana j havia comeado. Seu emagrecimento parece-
nos apenas um apoio externo e visvel da mudana que estava ocorrendo em seu ntimo.
Os olhos observam pensativamente o seu prprio reflexo e percebem a possibilidade de
se desenvolver e Frodo expressa isto ao dizer: Voc viu uma ou duas coisas, da
mesma maneira poderia ter dito para seu reflexo voc mudou e no alteraria o sentido
desta passagem.
Podemos dizer que este desenvolvimento individual e reflexivo tpico da
modernidade cultural, pois em [...] tempos como este o indivduo ousa individualizar-
se. (BERMAN, 2007, p. 32). Este processo de individuao latente na modernidade
como bem observaram Beck, Giddens e Lash (1997), afinal, o que marca a passagem da
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tradio para a modernidade e depois para a modernidade reflexiva, no pensamento
destes autores, o aumento crescente da individuao.
Certamente, na estrutura narrativa de O Senhor dos Anis estes
desenvolvimentos individuais do qual Frodo funcionou aqui apenas como exemplo
no so marcados por um pacto com o diabo, como em Fausto. H uma mirade de
elementos tradicionais para no dizer sagrados em O Senhor dos Anis, mas estes
elementos no conseguem abafar completamente o imaginrio moderno acerca do
indivduo. Voltaremos a isto em diversos momentos de nosso trabalho.
interessante destacarmos, se ainda no est claro, que de alguma forma a
tradio se mantm viva na modernidade. Contudo, a forma que assume esta
permanncia que o que realmente nos interessa se altera para adaptar-se nova
ordem social. Novamente a anlise de Berman (2007) que nos auxilia nesta discusso,mas dessa vez na sua leitura de Marx:
[...] Marx aponta para o fato de que a sociedade burguesa noeliminou as velhas estruturas de valor, mas absorveu-as, mudadas.As velhas formas de honra e dignidade no morrem; so, antes,incorporadas ao mercado, ganham etiquetas de preo, ganham novavida, enfim, como mercadorias. (BERMAN, 2007, p. 136)
Esta abordagem nos lembra que a verdadeira mudana efetuada pela
modernidade se d no mbito material. Por mais que de alguma forma permanea no
imaginrio a lembrana da vida tradicional, a modernidade a desfigura, transformando-a
em moeda de troca, em mercadoria. Os ideais outrora absolutos, verdade, honra e
dignidade perdem sua fora no imaginrio moderno.
O trecho do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, citado
exausto por Berman (2007), nos fornece elementos para discutir o motivo deste
rebaixamento dos valores tradicionais, alm de indicar outra caracterstica da
modernidade no explorada at aqui:
O constante revolucionar da produo, a ininterrupta perturbaode todas as relaes sociais, a interminvel incerteza e agitaodistinguem a poca burguesa de todas as pocas anteriores. Todasas relaes fixas, imobilizadas, com sua aura de idias e opiniesvenerveis , so descartadas; todas as novas relaes, recm-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo que slido desmancha no ar, tudo que sagrado profanado, e oshomens so finalmente forados a enfrentar com sentidos maissbrios suas reais condies de vida e sua relao com outroshomens. (MARX apudBERMAN, 2007, p. 118)
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Mas como antev o trecho de Marx acima, ganha dimenses gigantescas. A novidade e
a mudana no so apenas toleradas, elas so essenciais para a prpria dinmica da
modernidade ocidental. O problema desta dinmica moderna sempre em busca do novo
que, como diz Gagnebin:
[...] o moderno no se define mais em relao ao antigo, a umpassado exemplar ou renegado, mas pela sua abertura ao futuro,pela incessante procura da novidade. Ao se tornar sinnimo denovo, o conceito de moderno assume uma dimenso certamenteessencial para nossa compreenso de modernidade, mas, ao mesmotempo, uma dinmica interna que ameaa implodir sua relao como tempo. (GAGNEBIN, 2004, p. 48)
Esta dinmica que ameaa implodir sua relao com o tempo , de certo
modo, o que chamamos de aceleramento do tempo. Em O Senhor dos Anis isto
encontra respaldo de muitas maneiras, ou melhor, esta dinmica adentra a estrutura
narrativa da obra, no como um reflexo, mas incorporada e se torna constituinte da
prpria estrutura narrativa. H nesta obra duas grandes temporalidades: uma tradicional
e uma moderna.
A tradicional busca de todas as formas manter-se esttica e pode ser ligada
prioritariamente aos imortais no interior da obra, principalmente aos elfos. O desejo
de imutabilidade e/ou continuidade latente na temporalidade assim representada, o seu
olhar busca o passado. Podemos dizer que, esta a temporalidade expressa na maiorparte da obra, mesmo que se mostre sempre ameaada. Entretanto, ao final da narrativa,
o temor da perda da temporalidade tradicional se concretiza. Com o desaparecimento da
fantasia, os imortais so banidos e a temporalidade passa a ser moderna, seu olhar se
volta para o futuro e ela fundada na ruptura, na mudana, na perecividade. No
desfecho da obra, apenas os Homens Mortais6 permanecem na Terra-mdia e por isto
o tempo de permanncia dos seres e das coisas aqui diminui: aqui tambm nada mais
eterno.
A passagem do domnio da tradio modernidade na sociedade ocidental um processo longo e complexo, aqui destacamos, apenas, algumas de suas principais
caractersticas. Mas no podemos continuar sem deixar claro que este processo
ambguo na viso de (pelo menos) boa parte dos autores que destacamos. Por um lado
6Um ponto interessante que ressalta o parentesco dos hobbits com os Homens que osprimeiros tambm so includos no grupo dos Homens Mortais durante a narrativa.
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todos os desdobramentos do desencantamento do mundo expulsam da organizao
social moderna os elementos mgicos, supersticiosos, hierrquicos, fechados e
pretensamente eternos da tradio; possibilitando assim o desenvolvimento individual
dos homens, ao romper o crculo da tradio uma infinidade de possibilidades se abre
para os homens. Por outro lado, na modernidade perde-se a noo de totalidade devido
ao aspecto fragmentrio do homem moderno, h uma ciso intransponvel entre o eu e
o mundo.
Walter Benjamin em seu ensaio O Narrador: consideraes sobre a obra de
Nikolai Leskovchega a dizer que, na modernidade, a arte de narrar est morrendo,
como se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia inalienvel: a
faculdade de intercambiar experincias. (BENJAMIN, 1996f, p. 198). No
conseguimos intercambiar experincias porque o processo de individuao damodernidade isola os indivduos como mnadas. Se na tradio havia uma vivncia
material capaz de possibilitar uma significao comum, na modernidade isto se perdeu.
Segundo Michel Lwy (1990), a crtica modernidade na apreenso de
Benjamin (mas tambm na de Marx, de Weber e do jovem Lukcs, entre outros) tem um
forte componente romntico. Nesta linha, romntico corresponde a uma viso de mundo
que perpassa no s a cultura, mas as cincias sociais e a poltica, e identifica em algum
passado pr-capitalista, uma possibilidade de apreenso da totalidade, diferente do
carter fragmentrio tpico da modernidade. Disto resulta um componente tico decrtica modernidade, no importando se estes autores vem uma possibilidade de
superao da moderna fragmentariedade. Nas palavras de Lwy:
Na viso romntica do mundo, esse passado pr-capitalista seencontra ornado de uma srie de virtudes (reais, parcialmente reaisou imaginrias) como, por exemplo, a predominncia de valoresqualitativos (valores de uso ou valores ticos, estticos ereligiosos), a comunidade orgnica entre os indivduos, ou ainda, opapel essencial das ligaes afetivas e dos sentimentos emcontraposio civilizao moderna, fundada na quantidade, o
preo, o dinheiro, a mercadoria, o clculo racional e frio do lucro, aatomizao egostica dos indivduos. (LWY, 1990, p. 13)
Um ponto interessante na interpretao do componente romntico de crtica
modernidade destacado por Lwy neste trecho que as virtudes das organizaes
sociais pr-capitalistas referncia tica da crtica no so, necessariamente, reais e
concretas, podem ser apenas imaginrias. A controvrsia acerca deste passado pr-
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capitalista to grande quanto a controvrsia acerca da modernidade, mesmo entre os
autores identificados por Lwy como tendo um componente romntico de crtica, j que
o passado pr-capitalista utilizado como referencial se modifica de um autor para
outro.
Um bom exemplo deste antagonismo no tocante a classificao e, podemos
dizer diferentes valorizaes, do passado pr-capitalista, pode ser encontrada na
prpria utilizao dos conceitos de Comunidade (Gemeinschaft) e Sociedade
(Gesellchaft) por diversos autores. O modo como cada autor compreende cada um
destes conceitos expressa este antagonismo e podemos antecipar esta ambivalncia.
Berman (2007), por exemplo, caracteriza Comunidade da seguinte forma:
O sculo XX tem sido prolfico na inveno de fantasias
idealizadas da vida em cidadezinhas tradicionais. A mais popular einfluente dessas fantasias est no livro de Ferdinand ToenniesGemeinschaft und Gesellchaft[Comunidade e Sociedade, 1887]. Atragdia de Gretchen, segundo Goethe, nos fornece o que deve sero retrato mais devastador, em literatura, de uma Gemeinschaft. Talretrato devia gravar para sempre em nossas mentes a crueldade ebrutalidade de tantas formas de vida que a modernizao varreu daface da Terra. (BERMAN, 2007, p. 76)
Nesta abordagem, no devemos lamentar em nada a perda da Comunidade,
que na viso de Berman, foi varrida da face da Terra pela modernizao. Podemos
notar a divergncia com Weber, para quem a comunidade ainda se mantm namodernidade, pois ainda podemos agir em comunidade, mesmo que no
predominantemente. A viso de Berman oposta no s a apreenso de Weber, mas de
todos aqueles que Lwy considera romnticos. Contudo, sua abordagem nos
instrutiva, pois mostra uma viso negativa das sociedades tradicionais e suas
comunidades, neste aspecto e somente nele a viso de Berman sobre a tradio
no ambivalente, mesmo que a maneira de encarar a modernidade seja.
Antes de prosseguirmos nossa discusso devemos observar ainda como
Lwy indica os conceitos de sociedade e comunidade na apreenso romntica. Devemos
ressaltar que o perodo destacado por ele engloba certamente a discusso de Tonnies,
alm da do prprio Weber que tambm cita esta obra na ocasio de discutir o agir em
comunidade ou o agir em sociedade que destacamos anteriormente.
A crtica romntica raramente sistemtica ou explcita e poucasvezes se refere diretamente ao capitalismo como tal. Na sociologiae na filosofia social germnica do fim do sculo XIX podemos
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encontrar algumas tentativas de sistematizaes: elas opemKultur, um conjunto de valores tradicionais sociais, morais ouculturais do passado, Zivilisation, o desenvolvimento moderno,despersonalizado, material, tcnico e econmico; ouGemeinschaft, a velha comunidade orgnica de relaes sociais
diretas, Gesellchaft, a agregao mecnica e artificial de pessoasem torno de objetivos utilitrios. (LWY, 1990, p. 36)
Certamente, reduzir a teoria de Weber sobre comunidade e sociedade
somente a isto seria um erro. Ainda assim, esta esquematizao feita por Lwy pode nos
ajudar numa instrumentalizao de tais conceitos. H aqui uma clara oposio entre
comunidade e sociedade, a primeira uma estrutura orgnica, a segunda artificial que
corresponde ao que o autor chamou de uma tentativa de sistematizao da crtica
romntica. Esta distino encontra eco na teoria de Weber mesmo que ele no seja
taxativo e restritivo desta maneira. O importante aqui, contudo, diz respeito valorizao do elemento orgnico da apreenso de comunidade.
Enquanto Berman (2007) se mostra extremamente satisfeito com o que ele
julga ter sido o trmino das comunidades, que foram varridas da face da Terra pela
modernizao, os autores destacados por Lwy (1990), no trecho acima, possuem uma
interpretao diferente. Podemos deduzir deste trecho que eles consideram, ao menos
em algum aspecto, a perda da comunidade como algo a ser encarado com pesar.
Nesta abordagem isto o que caracteriza o romantismo e podemos encarar a viso
expressa em O Senhor dos Anisdesta maneira. H aqui um pesar pela perda de um
mundo que no mais existe, o mundo da fantasia como disse Lpez (1997) mas tambm,
seno prioritariamente, o mundo da predominncia da comunidade.
Notemos que nem todos os ditos romnticos execram a modernidade. Boa
parte deles, mesmo na viso de Lwy (1990) considera tanto a tradio quanto a
modernidade, tanto a comunidade quanto a sociedade, de forma ambivalente. No
precisamos alongar esta discusso, apenas devemos observar que este componente tico
de crtica modernidade, baseado em valores pr-modernos encontra eco no s na
filosofia social e sociologia na Alemanha do inicio do sculo XX, mas tambm em O
Senhor dos Anis.
A narrativa de Tolkien se mantm, como j dissemos, ligada a uma
temporalidade tradicional na maior parte do tempo. Por isto, talvez, boa parte da crtica
destaca primariamente os aspectos tradicionais da obra e certamente eles existem em
abundncia. Contudo, no h como ignorar que esta narrativa incorpora a mudana e
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prprio autor. Em inmeras oportunidades quando indagado sobre os motivos que o
levaram a escrever seus livros sobre duendes Tolkien diz que ambos estavam ligados
sua atuao profissional como fillogo e professor em Oxford. Segundo ele, seu
trabalho literrio fruto de uma inspirao primordialmente lingstica, [...] iniciado a
fim de fornecer o pano de fundo histrico necessrio para as lnguas lficas.
(TOLKIEN, 2003, p. XIII).
As lnguas lficas a que se refere Tolkien aqui so os idiomas artificiais
criados por ele desde seus tempos de estudante secundarista. Estes idiomas, Quenya e
Sindarin, foram baseados no gals e no finlands respectivamente. Mas, ainda assim, os
elfos que supostamente so os falantes destas lnguas so seres imaginrios,
maravilhosos, e em certo sentido, mgicos. Em outras palavras, os aspectos tradicionais
ganham um grande impulso quando se l O Senhor dos Anis desta perspectiva, afinal,numa abordagem direta na modernidade a racionalidade instrumental e o
desencantamento do mundo no toleram seres mgicos. Neste ponto, a viso de
mundo romntica discutida por Lwy (1990) pode nos auxiliar.
Tolkien ainda refora mais esta tentativa de retomada da tradio quando
revela sua outra motivao: criar um mito para a Inglaterra. Segundo ele, a literatura
inglesa no continha um conjunto de lendas e histrias to belas e grandiosas como as
sagas islandesas, por exemplo. Se quisermos um eixo central em torno do qual, at
agora, a crtica de O Senhor dos Anis se deslocou este: a caracterizao mtica de suanarrativa aprovada e incentivada pelo prprio autor.
II. Um mito em lfico
Elen sla lmen omentielvo, uma estrelabrilha no momento de nosso encontro.
(Frodo TOLKIEN, 2000, p. 83)
Esta caracterizao da narrativa como mito no simples. Reduzir este
conceito a um conjunto de belas e grandiosas lendas seria um erro grosseiro. Nem
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Tolkien, nem seus crticos encaram o mito desse modo. Nosso intento neste breve
trabalho no discutir longamente as nuances das diversas definies possveis para
este conceito nem suas implicaes. Por ora basta-nos uma caracterizao bem ampla
dada por Eliade (2006, p. 16) na qual o mito narra os acontecimentos primordiais do
mundo e dos homens, de certa forma, ele explica como os homens se tornaram o que
so atualmente. Mesmo que o homem moderno no encare as explicaes do mito
como vlidas afinal, elas so mgicas, tradicionais para as comunidades a quem
pertencem os mitos so verdadeiros em si.
Este ltimo ponto interessante. O carter verdadeiro das explicaes do
mito s ocorre por ele ser elemento constituinte desta comunidade. A organizao social
aqui tradicional nos moldes que discutimos anteriormente. Certamente este no o
caso de O Senhor dos Anis, esta obra no elemento constituinte de nenhumacomunidade. H, sim, uma tentativa de retomada da tradio atravs da literatura, de
uma maneira muito prxima a viso de mundo romntica, tal como a analisada por
Lwy (1990) e citada acima.
Antes de prosseguirmos, contudo, devemos ressaltar como Tolkien d forma
a sua narrativa, enquanto um mito para a Inglaterra, ou melhor, como a crtica
incorpora esta motivao do autor em suas anlises. A explicao de Tolkien para o
termo Terra-mdia, numa carta W. H. Auden, de certo modo, corrobora a inteno
do autor de criar um mito e nos serve como um bom ponto de partida:
A Terra-mdia (Middle-earth) no um mundo imaginrio. Onome a forma moderna (que apareceu no sculo XIII e ainda estem uso) de midden-erd > middel-erd, um antigo nome para ooikoumen, o local de moradia dos Homens, o mundoobjetivamente real, no uso especificamente oposto a mundosimaginrios (como a Terra das Fadas) ou mundos no-vistos (comoo Cu ou o Inferno). O teatro de minha histria este mundo,aquele no qual agora vivemos, mas o perodo histrico imaginrio. (TOLKIEN, 2006, p. 229)
O Senhor dos Anis, nesta perspectiva, pretende narrar como o Homem
tornou-se o nico ser inteligente que vive na Terra-mdia. Se notarmos que o
perodo histrico imaginrio ao qual se refere o autor um passado primordial, como
bem observaram Lpez (1997) e Kyrmse (2003), a tentativa de constituir um mito ganha
alguma fora. Na anlise deste ltimo podemos ler acerca do perodo em que se passa a
narrativa: No Senhor dos Anis, passado no fim da Terceira Era, aparecem
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personagens cuja histria podemos acompanhar desde a Primeira Era, muitos milnios
atrs. (KYRMSE, 2003, p. 27). Um bom exemplo destas personagens Elrond, que
discutimos anteriormente.
A noo de passado primordial, presente nesta crtica que queremos
demonstrar fica mais clara quando algumas pginas adiante, Kyrmse, retomando
algumas cartas e entrevistas de Tolkien, diz:
Como, portanto, deveramos visualizar as eras desde ento [final deO Senhor dos Anis] at nossos dias? Uma teoria prope que aQuarta Era seja vista como um perodo antediluviano,culminando no dilvio bblico que as tradies judaico-cristsdatam de 2348 a. E. C. (antes da Era Comum) [...] O final daQuinta Era poderia coincidir com o incio da Era Comum[(nascimento de Cristo)], o que coerente com a crena crist de
Tolkien, e a Sexta Era teria terminado por volta de 1945.(KYRMSE, 2003, p. 38).
Se o incio da Primeira Era, nesta perspectiva, corresponde ao surgimento
do mundo e o desdobramento das Eras na obra de Tolkien avana at nossos dias,
identificar o perodo imaginrio no qual se desenvolve a narrativa como com um
passado primordial muito simples.
Mas antes de prosseguirmos, precisamos esclarecer outro ponto deste
trecho. O desdobramento do que Kyrmse denominou como mito tolkieniano at, pelo
menos, o final da Segunda Guerra Mundial, poderia lev-lo a discutir um pouco maisaprofundadamente as relaes histrico-sociais que marcam O Senhor dos Anis.
Contudo, o que temos nesta anlise, tal como em Stanton (2002), citado acima, uma
transposio de alguns elementos biogrficos para a obra. Mesmo quando na seqncia
deste trecho ele cita a denominao de Guerra das Mquinas pela qual Tolkien se
referia a Segunda Grande Guerra, no h desenvolvimento da discusso deste aspecto.
Em outras palavras, como j dissemos, recua ante a advertncia de Tolkien sobre a
relao de sua obra e sua contemporaneidade.
Devemos ento retomar novamente a anlise de Lpez (1997). O prprio
ttulo deste trabalho j remete, de certa maneira, apreenso mtica de O Senhor dos
Anis: O Narrar ritualstico.... Podemos citar diversas passagens em que a obra
caracterizada como mito, conto mtico, narrativa mtica, etc. Vamos nos ater apenas a
duas destas passagens, pois, em conjunto, elas contm todos os elementos que
precisaremos para discutir a apreenso da narrativa como mito:
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Se o mundo de Tolkien necessita[sse] de uma iluso deprofundidade e solidez [...] iria resumir-se em tcnica artificiosade um mero ilusionista, ou mgico de feira... No este o objetivodo autor de The Lord of The Rings, nem esse o resultado obtidopor ele em sua narrativa. O que se busca o re-encontro, por meio
de Fantasy, da verdade mtica primordial. Ela j consistente, slidae profunda por si mesma. (LPEZ, 1997, p. 63)
interessante notar que Lpez, aqui, leva a identificao da narrativa de
Tolkien com o mito s ltimas conseqncias. O caminho seguido pela anlise
indicado por Tolkien, como dissemos anteriormente, mas a autora radicaliza esta
apreenso e, neste trecho fica clara a distncia da obra de Tolkien com a modernidade,
segundo esta viso. Ela utiliza tambm a definio de mito dada por Eliade, e logo
no pargrafo seguinte nos diz de O Senhor dos Anis:
[...] por sua narrativa relatar algo que modifica a condio humanacomo tal a criao tolkieniana assume as caractersticas de contomtico, pertence aos domnios do sagrado. Tolkien coloca anarrativa como a repetio de um gesto primeiro e divino. (LPEZ,1997, p. 48)
Situar a narrativa de Tolkien nos domnios do sagrado ignora, em certo
sentido, a ligao dos mitos com a materialidade da vida nas comunidades s quais
pertencem. Se a identificao de O Senhor dos Anis com uma mitologia para a
Inglaterra, nos moldes de Tolkien, nos parece uma tentativa de retomar a tradio, naanlise de Lpez (1997) ela retomada efetivamente. Isto fica ainda mais confuso
quando lembramos que Lpez v em algumas passagens a ligao desta narrativa com a
modernidade, como observamos no incio deste captulo, mas no primeiro momento o
no deixa de ter aluses e, posteriormente, a superao do aspecto fragmentrio da
modernidade, levaram-na a esta aproximao com a tradio, com o mito. Ao encarar O
Senhor dos Anis como um mito, a crtica acaba precisando buscar os elementos de
anlise em obras que foram produzidas em um perodo histrico diferente. Por isto,
todos comparam a obra com os contos de fadas. A comparao com o Conto de Fadasnovamente segue uma indicao de Tolkien, de maneira indireta desta vez. Ele elaborou
um ensaio intitulado Sobre Histria de Fadasenquanto escrevia O Senhor dos Anis.
Lpez (1997 e 2004), Kyrmse (2003), Polachini (1984) e muitos outros buscam seu
referencial terico aqui. Tolkien faz uma anlise interessante neste ensaio: ... as
histrias de fadas no so histrias sobre fadas ou elfos, mas sim sobre o Belo Reino,
Farie, o reino ou estado no qual as fadas existem. (TOLKIEN, 2006, p. 15).
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Esta apreenso de Tolkien segundo a qual as histrias de fadas so
histrias sobre Farie, que pode ser traduzido tanto como Belo Reino, como fez
Kyrsem na traduo brasileira deste ensaio, ou como Fantasia, como fez Lpez (1997
e 2004). De qualquer maneira, estas histrias se aproximariam muito da apreenso de
literatura do maravilhoso como definido por Todorov (2004) em sua Introduo
literatura fantstica, isto , so histrias em que o sobrenatural ou a magia existem
de fato. No h como duvidar deles nestas histrias. A aproximao de O Senhor dos
Anis dos contos de fadas pela crtica se d por esta via, como tambm pela
aproximao feita entre o mito e o conto de fadas neste ensaio:
A mente humana, dotada de poderes de generalizao e abstrao,no v apenas grama verde, discriminando-as de outra coisa (econtemplando-a como bela), mas v que ela verde alm de sergrama. Mas quo poderosa, quo estimulante para a prpriafaculdade que a produziu, foi a inveno do adjetivo: nenhumfeitio ou mgica do Belo Reino mais potente. E isso no desurpreender: tais encantamentos de fato podem ser vistos apenascomo uma outra viso dos adjetivos, uma parte do discurso numagramtica mtica. [...] Mas numa fantasia tal como a chamamos,surge uma nova forma: o Belo Reino vem tona, o Homem setorna subcriador. (TOLKIEN, 2006, pp. 28-29)
A definio em que o autor de uma histria de fadas, isto , de uma
fantasia, encarado como um subcriador nos remete crena religiosa de Tolkien.
Como um bom cristo, ele dir que: A Fantasia continua sendo um direito humano:
fazemos em nossa medida e em nosso modo derivativo, porque somos feitos, e no
somente feitos, mas feitos imagem e semelhana de um Criador (TOLKIEN, 2006, p.
63). Aqui, nos cabe ressaltar que a tentativa de retomada da tradio por Tolkien,
diferentemente do que disse Lpez, no se d apenas no mbito esttico, ao menos o
aspecto religioso, deste autor, caminha conjuntamente. Em outras palavras, a tentativa
de retomada da tradio por Tolkien no se d pela utilizao de tcnicas literrias
tradicionais, mas a obra como um todo constituda como expresso de uma viso de
mundo, neste caso, influenciada pelo aspecto religioso e romntica nos moldes descritos
por Lwy (1990).
Ao caracterizar a magia do Belo Reino como uma parte do discurso
numa gramtica mtica Tolkien une as suas trs indicaes para guiar a leitura de sua
obra; aqui esto presentes tanto sua motivao lingstica, a sua criao de um mito
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e a aproximao da obra literria de Tolkien com o conto de fadas atravs de Farie;
por isto este ensaio de Tolkien o referencial terico de seus crticos.
Um ponto que nos chama a ateno que Tolkien no o nico terico de
seu tempo que, de algum modo, se preocupa com o conto de fadas. Apesar de este
ensaio de Tolkien s ter sido publicado no final da dcada de 1940, tanto White (2001)
como Kyrmse (2003) afirmam que ele foi escrito em 1936. Esta datao precisa nos
chama a ateno por ter sido o mesmo ano em que Walter Benjamin escreveu seu ensaio
O Narradorque citamos anteriormente, texto no qual tambm h uma preocupao com
o conto de fadas, mesmo que no seja o elemento central da anlise. Mas, como h
profundas discordncias nas consideraes destes autores talvez nos seja inst