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Trajetória escolar e terminalidade acadêmica para a lunos com deficiência mental: até onde eles podem chegar?
IACONO, Jane Peruzo
Mestre em Educação pela UEM – Universidade Estadual de Maringá Coordenadora do CRAPE – Centro Regional de Apoio Pedagógico Especializado
Resumo Este trabalho tem como objetivo evidenciar a necessidade de definição e regulamentação de certificação escolar para alunos com deficiência mental, com vistas à sua terminalidade acadêmica, de forma a que possam avançar, tanto em sua trajetória escolar, como no encaminhamento para a educação profissional e/ou inserção no mundo do trabalho. Para tanto, aborda questões referentes ao encaminhamento - no ano de 2006, pela rede de ensino de um município do oeste do Paraná - de um grupo de alunos com história de deficiência mental, analfabetos, para a 5ª série do Ensino Fundamental, em escolas da rede estadual. O trabalho está fundamentado na Psicologia histórico-cultural e enfatiza a importância de ações pedagógicas com essa população de alunos, voltadas para o verdadeiro ensino dos conteúdos científicos – neste caso, o ensino da leitura, da escrita e do cálculo como meios, tanto para o desenvolvimento de novas aprendizagens, como para o desenvolvimento das funções mentais superiores desses alunos, bem como o resultado de pesquisa de mestrado referente à terminalidade específica, conforme Art. 59,II, da LDB nº 9394/96. Palavras-chave: Deficiência Mental. Certificação Escolar. Terminalidade Acadêmica. Introdução Ao iniciar os estudos no PDE - Programa de Desenvolvimento Educacional - há
cerca de um ano, defini, para a delimitação do objeto de estudo e do tema e seu
enquadramento com uma das ementas propostas pelo Programa, a seguinte
ementa:
Certificação e terminalidade acadêmica para alunos com história de deficiência mental; Papel do professor da sala de recursos de 5ª a 8ª séries da rede estadual na alfabetização/letramento de alunos analfabetos egressos de classes especiais da rede municipal de ensino de Cascavel-pr; Caracterização dos alunos das salas de recursos ainda não alfabetizados quanto ao nível de apropriação da linguagem escrita; Encaminhamento metodológico em alfabetização/letramento para alunos de 5ª a 8ª séries, analfabetos, em salas de recurso; Apoio pedagógico especializado aos professores das diferentes áreas do conhecimento das escolas/salas de aula onde estão matriculados
os alunos analfabetos egressos de classes especiais (...) (PLANO DE TRABALHO PDE TITULADOS, 2007).
Ao refletir sobre a deficiência mental, sobre a educação historicamente ofertada
para alunos com essa deficiência e a situação daqueles que hoje se encontram
com muitos anos de escolaridade - geralmente efetuada em ambientes
segregados como escolas e classes especiais - mas sem terem recebido
certificação/terminalidade acadêmica e sem poder vislumbrar qualquer
possibilidade para tal, constata-se que as políticas de inclusão escolar para alunos
com essa deficiência - especialmente quanto às possibilidades reais, concretas,
de aprenderem os conteúdos científicos que a escola tem a obrigação de ensinar,
e receberem certificação que lhes permita avançar na escolaridade com chances
de inserção laboral - ainda estão muito distantes de possibilitar que possam
avançar não só na sua escolaridade, como na sua vida de forma geral, ou seja,
naquilo que a ideologia da sociedade capitalista denomina de cidadania. O que
significa ser cidadão para um sujeito que um dia recebeu um rótulo de deficiência
mental que o marcará para sempre e lhe fará ter vergonha de seu passado,
especialmente de seu passado escolar? Estas reflexões iniciais nos remetem à
constatação da necessidade de investimentos em pesquisas sobre a educação
dessa população de alunos, lembrando, a esse respeito, que Vigotski, nas
primeiras décadas do século XX, ao falar da necessidade de estudos sobre a
criança retardada mental, dizia:
No es el estudio por el estudio, sino el estudio con el fin de encontrar las mejores formas de las acciones prácticas, con el fin de solucionar la tarea histórica del vencimiento real del retraso intelectual, de este infortúnio social enorme que ha quedado de la estructura clasista de la sociedad (1995, p. 102).
Estas questões nos remetem a outras reflexões: sob que pressupostos teóricos
realizamos nossa prática pedagógica com alunos com deficiência mental, hoje? O
quanto pudemos avançar ao realizar nossas práticas pedagógicas sob
pressupostos behavioristas ou construtivistas? Que educação desejamos para
eles ou, dito de outro modo, o que esperamos deles a partir da educação que lhes
é oferecida, nesta escola e nesta sociedade? A resposta para tais indagações
fundamenta-se nos pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural ao
demonstrar a importância das interações sociais contributivas e determinantes
para o desenvolvimento de formas de pensamento mais elaboradas,
especialmente para os sujeitos com deficiência mental, cujo “ponto fraco” é a
própria debilidade intelectual, residindo aí sua necessidade maior a ser
impulsionada por meio da educação. Essas reflexões indicam que é preciso
repensar todo o trabalho escolar realizado com esses alunos, pois a escola que
temos está pautada na homogeneidade e reproduz em seu interior a mesma
lógica da sociedade capitalista competitiva, meritocrática, premiando o tempo todo
os “melhores” alunos com “florzinhas e estrelinhas”. E esta lógica, certamente, não
combina com alunos que, na maioria das vezes, serão os últimos a terminar as
atividades escolares, cujas quais, às vezes também, estão muito aquém daquilo
que se exige como desempenho nessa escola. Sobre esta escola e a necessidade
de repensá-la, Mantoan (2001) citando Pierucci e Souza Santos, afirma que,
Pautadas para atender um aluno idealizado e ensinando a partir de um projeto escolar elitista, meritocrático e homogeneizador, as escolas produzem quadros de exclusão que têm, injustamente, prejudicado a trajetória educacional de muitos alunos. Por meio de processos compensatórios e de normalização, as escolas comuns e especializadas proclamam o seu poder e propõem sutilmente, com base em características devidamente selecionadas como positivas, a eleição arbitrária de uma identidade “normal”, que regula as suas práticas educativas e a promoção de seus alunos. Contrariar a perspectiva de uma escola que se pauta por esses padrões conceptuais e organizacionais é fazer a diferença, reconhecê-la e valorizá-la. Somos diferentes de fato e queremos ser agora diferentes de direito, na escola e fora dela. Baseamo-nos pelo direito de ser, sendo diferentes (PIERUCCI, 1999). Contudo, vale a ressalva de sermos iguais, quando a diferença nos inferioriza, e de sermos diferentes, quando a igualdade nos descaracteriza (SOUZA SANTOS, 1995).
A indefinição quanto a uma legislação oficial sobre certificação escolar, sobre
terminalidade acadêmica para esses alunos com deficiência mental, vem
causando grande insegurança a pais, professores e aos sistemas de ensino, que
não sabem como agir diante das dificuldades que vão surgindo na trajetória
escolar desses alunos.
As questões fundamentais giram em torno dos componentes curriculares:
objetivos, conteúdos, metodologia e avaliação. Quanto aos objetivos e conteúdos,
as questões foram e continuam sendo: qual o conhecimento a ser ensinado a
estes alunos, com que objetivos? E quanto às formas de ensiná-los, quanto à
metodologia – são necessários métodos e recursos especiais para se trabalhar
com alunos com deficiência mental? E a avaliação, deve ser diferenciada? Por
que muitos alunos com deficiência mental passam anos matriculados nas escolas
e saem delas evadidos e, muitas vezes, frustrados e humilhados, sem receberem
qualquer certificação?
Esta questão da certificação tem sido uma temática bastante polêmica e
historicamente não resolvida quando se trata de alunos com deficiência mental.
Para as escolas de Educação Especial mantidas pelas APAEs, a situação também
tem preocupado seus dirigentes e professores. Exemplo disso é a recente
publicação, no portal da SEED – Secretaria de Estado da Educação (PARANÁ,
2008), da seguinte notícia:
Secretaria Estadual da Educação poderá certificar alunos das Apaes O secretário da Educação, Maurício Requião, reuniu-se nesta terça-feira (15) (...) Abril/2008 (...) com o presidente da Federação das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) do Paraná, José Turozi, para discutir algumas solicitações da entidade. O encontro aconteceu na sede da Secretaria de Estado da Educação, em Curitiba (...). Durante a reunião, o dirigente da Apae falou sobre a necessidade do auxílio da Secretaria na criação de um sistema para a certificação dos alunos (...). Maurício Requião disse que uma alternativa para a certificação dos alunos é fazê-la a partir das escolas estaduais. “Um colégio pode adotar uma Apae e uma Apae poderá adotar um colégio. Esta seria uma forma rápida e prática para dar suporte aos alunos com necessidades especiais”, sugeriu. (Fonte: Agência Estadual de Notícias).
A complexidade da questão evidencia-se quando se constata que a legislação
brasileira já “procurou resolver” o problema da certificação/terminalidade escolar
para esses alunos, a partir do disposto no Art. 59, II, da LDB nº 9394/06, com a
terminalidade específica, tema de minha pesquisa de Mestrado concluída em
Março de 2004. No entanto, na prática este dispositivo legal nunca foi
concretizado e a referida terminalidade não se efetivou. Assim, se os alunos com
deficiência mental estiverem matriculados nas escolas regulares - mesmo
analfabetos, literalmente - receberão certificação. Mas, se forem alunos das
escolas especiais mantidas pelas APAEs e Pestalozzis, eles não recebem
qualquer certificação que lhes possa fazer avançar na trajetória escolar e/ou
serem encaminhados para a Educação Profissional ou ainda, inseridos no mundo
do trabalho.
Historicamente, os alunos com deficiência mental têm “passado” pela escola, mas
dela têm saído sem uma certificação que lhes permita vislumbrar possibilidades de
futuro, quer continuando seus estudos por meio da EJA - Educação de Jovens e
Adultos - ou em um nível ulterior de estudos, ou ainda, como já dito, para cursar
Educação Profissional ou adentrar o mercado de trabalho.
A avaliação da aprendizagem e a conseqüente certificação são ainda, passada
mais de uma década da promulgação da LDB nº 9394/96, talvez o maior de todos
os problemas em se tratando de alunos com essa deficiência. Independente da
trajetória desses alunos pela escola, se realmente puderam aprender o que a
escola ensinou, em muitos casos essa passagem constitui-se numa experiência
extremamente negativa, já que muitos deles têm até adoecido por não poderem
acompanhar os conteúdos da série/nível de ensino na qual foram matriculados e
têm perfeita consciência disso e, por isso, muitas vezes, se sentem
menosprezados e frustrados. Por outro lado, outros desses alunos, parecem não
perceber as situações estigmatizadoras e até preconceituosas a que estão
expostos no cotidiano das salas de aula e da escola. Esta questão da consciência
ou não de si e de suas dificuldades, quando se trata de pessoas com deficiência
mental, nos remete aos estudos de Vigotski (1995, p. 105) sobre a compensação,
quando diz que:
(...) a base única e exclusiva dos processos de compensação é a reação subjetiva da personalidade da própria criança ante a situação que se cria em conseqüência do defeito. Esta teoria supõe que a única fonte necessária ao surgimento dos processos de compensação do desenvolvimento é a interiorização, pela própria criança, de sua deficiência, o surgimento do sentimento de sua própria menosvalia. A partir do surgimento deste sentimento e do conhecimento de sua própria deficiência, aparece a aspiração
reativa a vencer este grave sentimento, a eliminar esta deficiência própria interiorizada e a elevar-se a um nível superior. Precisamente por esta razão, a escola de Adler na Áustria e a escola da Bélgica, negam à criança retardada mental a possibilidade do desenvolvimento intensivo dos processos de compensação. O desenvolvimento da argumentação dos defectólogos é assim: Para o surgimento da compensação é necessário que a criança interiorize e sinta sua deficiência. Porém, no retardado mental, a dificuldade consiste em que ele assume uma atitude não crítica sobre si mesmo para interiorizar sua própria deficiência e chegar a uma conclusão eficaz para vencer seu atraso (...).
Assim, contraditoriamente, esta questão da não consciência da criança com
deficiência mental de sua condição e de suas conseqüências para o convívio no
grupo social, assume um caráter que dificulta ou mesmo impede completamente
qualquer possibilidade de compensação para os sujeitos que apresentam essa
deficiência, o que é explicitado por Vigotski ao afirmar que,
(...) nas crianças com retardo mental se observa um aumento da autovalorização. Se a esta criança se propõe que haja uma valorização comparativa de si mesmo, de seus companheiros e do professor, resultará que a criança submetida à prova manifestará a tendência a considerar-se a mais inteligente. Ela não reconhecerá seu atraso; devido à autovalorizaçao elevada, o desenvolvimento dos processos compensatórios se dificulta, senão se reduz a zero, porque a criança retardada mental está satisfeita consigo mesma, não nota sua deficiência e, portanto, não experimenta a vivência penosa do sentimento de inferioridade, o qual em algumas crianças constitui a base da formação de seus processos compensatórios (Id., p. 106).
Assim, discutir educação de sujeitos com deficiência mental, implica em procurar
compreender a complexidade de seu funcionamento intelectual, para então
compreender quais suas necessidade educacionais diferenciadas, tanto nos
aspectos da organização curricular, como nas políticas educacionais que devem
ser implementadas para propiciar minimamente seu avanço na trajetória escolar.
Os estudos e os anos de trabalho com populações de alunos com deficiência
mental contribuíram com respostas para algumas de minhas indagações, mas
produziram muitas outras que se inserem no espectro maior dos estudos sobre
esse grupo de pessoas. Desde o início da educação de pessoas com essa
deficiência, ainda no início do século XIX com os trabalhos de Itard com Victor de
Aveyron, há muitas questões sem respostas, pois a própria definição do que seja
deficiência mental neste momento histórico, nesta sociedade, necessita de mais
estudos. Quando analisamos a trajetória escolar de muitos desses sujeitos
constatamos quão pouco eles puderam avançar em sua vida escolar, em seu
processo de apropriação do conhecimento científico que a escola tem que ensinar
para todos os alunos e, conseqüentemente, em suas vidas que também ficaram
como que atrasadas, retardadas, em relação às demais pessoas de sua faixa
etária.
Questões como - significado da deficiência mental hoje; expectativas em relação à
pessoa que recebe um diagnóstico de deficiência mental; limite da capacidade de
aprender dos alunos com deficiência mental; que profissionais e de que forma,
poderiam determinar este limite; com base em quais critérios haveria a
possibilidade de se impor este limite; qual o futuro para um aluno que um dia
recebeu um “diagnóstico” de deficiência mental, na sociedade capitalista
excludente - continuam como perguntas sem respostas na área da deficiência
mental, contrastando com o avanço tecnológico e a frenética aceleração da
própria sociedade, o que, muitas vezes, tem produzido quadros de abandono,
impotência e frustração tão evidentes naqueles que convivem e trabalham com
essa população de pessoas.
A formação do homem como ser histórico e social
O trabalho pedagógico realizado com alunos com deficiência mental, vem sendo
fundamentado em concepções behavioristas que visam o treino de habilidades e,
mais recentemente, em concepções construtivistas que pressupõem um a priori
desenvolvimentista do sujeito. Este estudo, no entanto, busca compreender o
sujeito com deficiência mental numa perspectiva histórico-cultural, em que ele é
visto como alguém que atribui significados a cada uma de suas ações, mesmo as
mais elementares (ex. escovar os dentes), num processo mediado pelos signos
lingüísticos e pelos outros seres humanos, ou seja, de forma a que sua educação
se dê num processo inter e intrapsicológico. Vygotsky (1987, p.161) enfatiza as
origens sociais dos processos psicológicos superiores, expressas na formulação
da Lei Geral do Desenvolvimento Cultural:
Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos; primeiro como algo social, depois como algo psicológico; primeiro entre as pessoas, como uma categoria interpsíquica, depois, dentro da criança, como uma categoria intrapsíquica.
A psicologia histórico-cultural preconiza ser a linguagem - uma das funções
mentais superiores - um instrumento fundamental no processo de apropriação do
conhecimento do homem pois,
A apropriação da linguagem constitui a condição mais importante do seu desenvolvimento mental, pois o conteúdo da experiência histórica dos homens, da sua prática sócio-histórica não se fixa apenas, é evidente, sob a forma de coisas materiais: está presente como conceito e reflexo na palavra, na linguagem. É sob esta forma que surge à criança a riqueza do saber acumulado pela humanidade: os conceitos sobre o mundo que a rodeia (LEONTIEV, 1978, p. 327).
Assim, para os sujeitos com deficiência mental, as possibilidades de se
apropriarem da linguagem em todas as suas manifestações, desde a oral, gestual,
linguagem das artes, até a linguagem escrita, são consideradas não apenas
essenciais, imprescindíveis, mas determinantes para o seu desenvolvimento
mental. A linguagem, para o sujeito com deficiência mental, é reflexo, é
representação, é conceito que traduz toda a experiência histórica das gerações
precedentes e a sua apropriação, depende sim, de suas condições individuais
com relação à deficiência, mas depende também, fundamentalmente, das
condições que envolvem o trabalho pedagógico na ação de ensinar. Mas, como já
enfatizado neste trabalho, é a apropriação da linguagem escrita - uma das formas
mais sofisticadas de linguagem produzida pelo homem – o grande desafio da
escola no ato de ensinar o aluno com deficiência mental e ela não deve ser
secundarizada.
Nas sociedades alfabetizadas, no mundo letrado, a apropriação da linguagem
escrita e da leitura é condição determinante para possibilitar, não só a inclusão
social do homem, mas, sobretudo, o desenvolvimento de capacidades de
pensamento cada vez mais desenvolvidas.
Privar o homem da possibilidade de domínio da língua escrita, implica privá-lo de condições privilegiadas de interação sócio-cultural que o colocariam em contato com o acervo de experiências (conhecimento) codificadas em língua escrita e, portanto, de condições de possibilidades de desenvolver formas de pensamento mais elaboradas, compatíveis com o nível de desenvolvimento socioeconômico já produzido pela sociedade (KLEIN e SCHAFASCHEK, 1990, p. 36).
Dessa forma, não se pode pensar a inclusão escolar de alunos com deficiência
mental apenas para “sua socialização”, compreendida por muitos professores, não
no sentido das interações sociais fundamentais para a hominização do homem,
para sua constituição como ser humano. Socialização, para muitos profissionais
da educação e também da área médica, tem sido compreendida no sentido de o
aluno com deficiência mental freqüentar a mesma escola, a mesma sala de aula
que os demais alunos, embora sem um efetivo trabalho pedagógico que dê conta
de concretizar um ensinar-aprender diferenciado para esses alunos, sempre que
necessário, de forma a que realmente aprendam a ler e a escrever, pois conforme
as autoras anteriormente citadas,
A alfabetização - tomada como processo de apropriação da língua escrita - assume, na escolarização, um papel fundamental: ao instrumentalizar o aluno para a inserção na cultura letrada, cria as condições de possibilidades de operação mental capaz da apreensão dos conceitos mais elaborados e complexos que vem resultando do desenvolvimento das formas sociais de produção. Assim, apreender a língua escrita, é mais do que apreender um instrumento de comunicação: é, sobretudo, construir estruturas de pensamento capaz de abstrações mais elaboradas (Ibid., p. 36).
Dessa maneira compreende-se que matricular os alunos com deficiência mental
na escola regular implica em efetiva e radicalmente trabalhar para que ele se
alfabetize, se aproprie do conteúdo trabalhado e não simplesmente esteja “de
corpo presente” na sala de aula, pois matriculá-lo apenas para que seja
socializado, é esperar muito pouco quanto às suas possibilidades de aprender, é
subestimar suas capacidades e isto, em milhares de casos, foi o que
historicamente aconteceu na educação desses alunos. Estar na escola junto com
todos os outros alunos e apropriando-se dos conteúdos científicos que são
ensinados - no sentido de que as formas cada vez mais elaboradas dessa
apropriação, são condição determinante para o desenvolvimento de formas de
pensamento também cada vez mais elaboradas - não foi, historicamente,
preocupação na educação dos alunos com deficiência mental, vistos, na maioria
das vezes, na perspectiva do déficit e não da potencialidade, vistos do ponto de
vista biológico e não do que poderiam vir a ser, se as condições sob as quais
estudavam fossem outras.
Com relação à importância da interação social na educação do homem, Carneiro
(2007, p. 17) afirma:
Defendendo que “todas” as crianças podem aprender nas interações com os demais, entendo que ter em sala de aula um grupo de alunos com diferentes possibilidades exige que pensemos a aprendizagem de forma coletiva, distinta do modelo de escola que temos hoje. A abordagem histórico-cultural aponta a heterogeneidade como característica de qualquer grupo humano, sendo um fator imprescindível para as interações em sala de aula. A diversidade de experiências, trajetórias pessoais, contextos familiares, valores e níveis de conhecimento de cada membro do grupo viabiliza no cotidiano escolar a possibilidade de trocas, confrontos, ajuda mútua e conseqüente ampliação das capacidades individuais e coletivas (grifo da autora).
Segundo Pino (2000, p. 61) também,
a introdução das relações sociais como definidoras da natureza das funções mentais superiores, ou seja, da natureza humana do homem, constitui uma “subversão” do pensamento psicológico tradicional. Vigotski desloca definitivamente o foco da análise psicológica do campo biológico para o campo da cultura, ao mesmo tempo em que abre o caminho para uma discussão do que constitui a essência do social enquanto produção humana (grifos do autor).
Ermakova e Ratnikov (1986, p. 8) afirmam que “isolados durante muito tempo da
sociedade, os homens perdem (...) ou não adquirem (...) pouco a pouco, suas
qualidades humanas”. A esse respeito, a literatura científica traz a história do
médico Itard, otorrinolaringologista, que em 1801 elabora um relatório, a pedido do
ministro do interior da França, em que narra o caso do menino Victor, de Aveyron.
Victor havia permanecido desde os 3-4 anos, não se sabe ao certo, no meio da
floresta, convivendo apenas com animais e seus hábitos eram os mesmos dos
animais. Não sabia falar, era incapaz de usar racionalmente os instrumentos, não
tinha as noções mais elementares sobre o mundo que o rodeava e após
diagnósticos desanimadores sobre as condições que apresentava, foi submetido
por Itard a um processo de educação bastante interessante, escrito naquele
relatório e que deveria ser objeto de estudo por todos quantos se interessam pela
educação de alunos com deficiência mental (PESSOTTI, 1984).
Aprender, numa concepção histórico-cultural é adquirir, é apropriar-se, é tomar
para si a herança cultural que foi historicamente produzida pelo homem, sendo
que a principal característica do processo desta apropriação ou aquisição, é criar
no homem aptidões novas, funções psíquicas novas, pois de acordo com Leontiev
(1978, p.272),
as aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente “dadas” aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí “postas”. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles “as suas” aptidões, os “órgãos da sua individualidade”, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de educação.
Assim, tem-se a clareza de que a aprendizagem só acontece num processo de
troca entre pessoas. Só efetua-se, segundo Leontiev (1978, p.257),
no decurso do desenvolvimento de relações reais do sujeito com o mundo. Relações que não dependem nem do sujeito nem da sua consciência, mas são determinadas pelas condições históricas concretas, sociais, nas quais ele vive, e pela maneira como a sua vida se forma nestas condições.
Ainda, segundo Leontiev (1978, p.265-267) em seus estudos sobre a origem e o
desenvolvimento dos homens, depois de passarem por algumas fases de
desenvolvimento determinadas puramente pelas leis de evolução biológica, os
homens finalmente constituem-se como seres históricos e sociais, libertando-se
em definitivo da dependência das transferências hereditárias. Significa que se os
animais simplesmente adaptam-se à natureza, utilizando-se das experiências da
espécie, transmitidas por herança biológica e das condições possibilitadas pelo
ambiente natural, com os homens isso ocorre de forma totalmente diferente, pois
eles não se adaptam à natureza no sentido biológico, ao contrário, são os únicos
seres vivos do planeta, com capacidade de dispor do trabalho como força motriz
transformadora da natureza. Pela ação do trabalho, os homens convertem os
produtos da natureza em bens necessários à sua subsistência, mas ao
transformarem a natureza inscrevendo sua marca nos produtos (em forma de
trabalho em repouso), os homens transformam-se simultaneamente sempre em
escalas qualitativamente superiores. Quando nasce,
o indivíduo é colocado diante de uma imensidade de riquezas acumuladas ao longo dos séculos por inumeráveis gerações de homens, os únicos seres no planeta que são criadores . As gerações humanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa às gerações seguintes que multiplicam e aperfeiçoam pelo trabalho e pela luta, as riquezas que lhes foram transmitidas e “passam o testemunho” do desenvolvimento da humanidade (LEONTIEV, 1978, p 267) (grifos do autor).
Sobre a essencial diferença entre os homens - os únicos seres do planeta com a
capacidade singular de criar, de preconceber, de planejar o que vão fazer, ou seja,
que têm a consciência humana - Marx (1987, p.202) diz:
Pressupomos o trabalho sob a forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes à do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade.
É importante lembrar que, independente das condições sócio-econômicas, de
raça, de condições físicas, mentais, sensoriais ou de região geográfica, quando
nascem, as crianças não trazem por herança biológica as experiências culturais
de seus pais. As experiências sócio-históricas produzidas e acumuladas nos
instrumentos, nos objetos, nos signos, nos fenômenos e nas diversas formas de
linguagem, somente poderão ser adquiridas através de sua inserção no meio
social, sempre mediatizadas pela ação de outras pessoas mais experientes. É
neste sentido que “podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem”
(Leontiev, 1978, p. 267) (grifos do autor).
Dessa forma, é impossível imaginar que sem receber uma estimulação adequada,
uma educação de qualidade, sem estabelecer relações sociais no processo de
aprendizagem, uma criança possa desenvolver as conexões neuronais
necessárias à formação de suas estruturas psicológicas superiores como a
emoção, a imaginação, o pensamento, a consciência, a memória, a linguagem,
etc. A aquisição de tais capacidades não surge espontaneamente; o
desenvolvimento da fala e do pensamento lógico, por exemplo, só serão possíveis
para aquelas crianças que estabeleçam relações sociais com uma comunidade de
falantes, que possuam em sua cultura o domínio do pensamento lógico.
Segundo Leontiev ainda (1978, p. 266), formam-se nas crianças “(...) colocadas
muito cedo em condições culturais elevadas todas as aptidões necessárias para a
sua plena integração nesta cultura”, demonstrando a importância de uma
educação qualitativamente diferenciada para crianças que apresentam déficits
cognitivos. Aqui vale ressaltar o significado dessa educação diferenciada para
essa população de alunos. Ao contrário do que historicamente se efetivou como
prática pedagógica, é preciso que esse aluno tenha acesso aos bens culturais
mais elevados, mais sofisticados, como a melhor música, as obras de arte, o
teatro, as diferentes linguagens, enfim todo o conjunto de conhecimento
historicamente produzido pelo homem, pois só assim ele poderá desenvolver
formas de pensamento cada vez mais elaboradas, já que sua debilidade é a
fragilidade das formas como compreende e expressa seu “saber”.
Embora as deficiências de qualquer natureza: físicas, mentais ou sensoriais
produzam, inevitavelmente, conseqüências mais ou menos intensas em termos de
comprometimentos, não se pode, entretanto, ignorar que o grau e a extensão
dessas conseqüências também são determinados pelas condições econômicas,
sociais e culturais da família e do meio no qual a criança está inserida. No entanto,
aqui é fundamental lembrar também, o que afirma Vigotski (1995, p. 106) ao
explicitar a questão da compensação na deficiência mental, afirmando que “con el
problema de las fuentes del desarrollo compensador está relacionado el problema
de los fondos de esta compensación”. E ao questionar “De donde se toman las
fuerzas, qué es la fuerza motriz del desarrollo compensador?” (Id., p. 106) e, em
seguida explicar, que
(...) nosotros apreciamos que la vida social colectiva del niño y el caracter colectivo de su conducta, en los que él encuentra el material para la formación de las funciones internas que surgen en el proceso del desarrollo conpensador, constituyen el fondo de la compensación, en gran medida. Sin ninguna duda, la riqueza o la pobreza del fondo interno del nino, digamos el grado del retraso mental, es el momento esencial y primario que determina hasta qué punto el nino es capaz de utilizar este material. Y sin ninguna duda, los destinos del retrasado mental débil y del idiota se diferencian esencialmente debido a que su fondo interno es muy diferente. Pero esto, además, no es determinante em los grados superiores y es eliminado reiteradamente em el proceso del desarrollo sucesivo del niño.
Vigotski explicita assim, a relativa influência ou, a maior ou menor influência que a
“vida social e o caráter coletivo da conduta da criança” - nos quais ela encontra o
“material” para a formação de suas funções internas que surgem no processo de
compensação - constituem a base, o substrato da compensação ou, dito de outro
modo, constituem a possibilidade maior ou menor de fazer surgir os processos de
compensação. Explica também, que o grau do retardo mental determina até que
ponto a criança é capaz de utilizar aquele material e, que os destinos da criança
retardada mental débil e da idiota se diferenciam essencialmente, mas que isso
não é determinante nos graus superiores.
A despeito de os termos “retardado, débil e idiota” serem considerados pejorativos
nos dias atuais e não mais serem utilizados, nem mesmo para classificar os
diferentes graus de deficiência mental, é absolutamente importante esta afirmação
de Vigotski, tendo em vista demonstrar que o comprometimento mental mais grave
é sim empecilho para a “reação subjetiva da personalidade da criança” (Ibid., p.
105), como fonte que faz surgir os processos de compensação.
Estas questões estão, tanto no bojo das discussões sobre a determinação dos
aspectos biológico e social na vida do sujeito com história de deficiência mental,
como subjacentes às discussões sobre o locus da aprendizagem desses sujeitos:
se em classes ou escolas especiais, se em classes comuns de escolas regulares,
ou melhor, sobre a inclusão ou não desses alunos nas escolas regulares, tendo
sido, esta última questão, motivo de intensos debates nacionais no final do ano de
2007, com a elaboração da versão preliminar do documento Política Nacional da
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e, em Janeiro de 2008,
com a publicação de uma nova versão com modificações fundamentais no que
tange a esta questão do locus onde devem estudar estes alunos.
A qualidade da educação como fator determinante na formação de sujeitos
com deficiência mental
O indiscutível, porém, é que a qualidade da educação que essas crianças com
deficiência mental recebem, preferencialmente iniciada nas primeiras semanas de
vida, é fator determinante em sua formação, não importa o grau de seu
comprometimento. No entanto, a fragilidade dessa educação, dessa formação, do
processo de aprendizagem/desenvolvimento dos alunos com essa deficiência e a
incapacidade dos sistemas de ensino – em todos os níveis: federal, estadual e
municipal – em formular e implementar políticas de inclusão escolar e social para
eles tem sido lamentável, o que se pode constatar pela situação que vem
ocorrendo num município do oeste do Paraná. No início do ano de 2006, a rede
municipal de ensino desse município encaminhou um grupo de 22 alunos
egressos de classes especiais (sendo que alguns deles já tinham sido alunos da
APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), “ainda não
alfabetizado”, para matricular-se na 5ª série do Ensino Fundamental da rede
estadual de educação. Esse encaminhamento gerou grande preocupação por
parte das famílias e das escolas estaduais que receberam esses alunos, já que
eles foram matriculados em turmas de 5ª série em que, a cada hora escolar (de
cerca de 50 minutos), mudam o professor e a disciplina lecionada e, por sua
condição de ainda não serem capazes de ler e escrever, dificilmente poderiam
acompanhar as aulas.
Assim, o que pode ser considerado um equívoco no encaminhamento desses
alunos analfabetos para a 5ª série, é o fato de eles terem sido encaminhados “não
alfabetizados” a partir de pressupostos teóricos que sustentam a crença de que já
teriam chegado ao limite de sua capacidade de aprender os conteúdos escolares
mais abstratos como ler, escrever e calcular, ou ainda, o que talvez fosse pior,
pela crença de que os anos de escolaridade sem sucesso – já que continuam
analfabetos – os faz, potencialmente, candidatos a desocuparem as vagas de
suas salas de aula.
Na verdade, esses alunos, pela sua idade, que variava de 14 a 22 anos, deveriam
ter sido encaminhados para a EJA – Educação de Jovens e Adultos – em
programas de alfabetização com apoio pedagógico especializado por meio de
professor itinerante, que lhes propiciasse atendimento diferenciado, para que
tivessem mais tempo para se alfabetizar, de forma a não serem encaminhados
para o segundo segmento do Ensino Fundamental - a 5ª a 8ª séries - ainda
completamente analfabetos, já que neste segmento escolar a apropriação da
leitura, da escrita e do cálculo é, talvez ainda mais exigida para as novas
aprendizagens, pressupondo-se que a tarefa da alfabetização se concretize nos
anos iniciais do Ensino Fundamental. Lembrando que é preciso considerar que
este nível de ensino – composto por 9 (nove) anos de efetiva passagem pela
escola – só termina, sendo passível de certificação, no 9º ano.
Quanto ao atendimento diferenciado no programa de EJA, este se refere não só
aos encaminhamentos teórico-metodológicos da prática pedagógica, como ao
tempo necessário à permanência desses alunos no programa, que deve ser maior
do que o tempo de freqüência dos demais alunos. Considero ser esta questão do
tempo “maior” a ser propiciado a estes alunos com deficiência mental, como um
dos pontos cruciais em sua escolarização, pois se uma de suas principais
características é a lentidão no aprender, é absolutamente necessária a dilatação
nesse tempo, o que é, inclusive, referendado pela legislação nacional mais
recente, que preceitua:
(...) 4.1. Na organização das classes comuns, faz-se necessário prever: (...) f) temporalidade flexível do ano letivo, para atender as necessidades educacionais especiais de alunos com deficiência mental ou graves deficiências múltiplas, de forma que possam concluir em “tempo maior” o currículo previsto para a série/etapa escolar, principalmente nos anos finais do ensino fundamental, conforme estabelecido por normas do sistema de ensino, procurando-se evitar grande defasagem idade/série (BRASIL,
2001, p. 47- 48) (destaque meu).
A argumentação em favor da freqüência desses alunos na EJA, mas
obrigatoriamente com apoio pedagógico especializado, se deve não só por que –
pela sua faixa etária - eles não poderiam continuar freqüentando turmas de
alfabetização com crianças de 6-7 anos, mas pela clareza de que devem ter
continuidade em seus estudos acadêmicos, não importa se após terem recebido
ou não determinada certificação. Mas, é preciso reiterar também que,
paralelamente à freqüência na EJA, deveriam ter recebido Educação Profissional
conforme a Resolução 02/01 (BRASIL, 2001) para, minimamente, poderem ter
chances futuras de adentrar o mercado de trabalho chamado competitivo. Assim,
não teriam como única opção hoje, retornar à APAE (uma das poucas
possibilidades que têm sido vislumbradas para alguns desses alunos), para
“trabalharem” em suas oficinas pedagógicas no sentido apenas de ocupação de
seu tempo livre, ou para não adoecerem em suas casas, isolados do convívio
social, ou ainda, ficarem perambulando pelas ruas da cidade, homens então, sem
nenhuma perspectiva de futuro.
Na verdade, a indefinição de políticas claras sobre a certificação e os
encaminhamentos posteriores desses alunos, podem gerar atitudes precipitadas
por parte de alguns gestores, cuja preocupação poderia estar mais centrada nas
vagas que esses alunos ocupam indefinidamente nas escolas por que passam e
os “problemas de comportamento” que começam a apresentar, muitas vezes
motivados por anos a fio de consagração de suas dificuldades - ao invés de
investimentos em suas potencialidades/capacidades - numa escola e num sistema
que não conseguem responder minimamente às suas “necessidades especiais”.
Como a questão da terminalidade acadêmica é um tema novo na educação de
alunos com deficiência mental mais acentuada, a possibilidade de obterem
certificação de Ensino Fundamental como os demais alunos, sem terem se
apropriado dos mesmos conteúdos que eles, constitui-se em contradições que
perpassam a temática e têm sido objeto de minhas reflexões teóricas.
Minha preocupação para com o tema, vincula-se à temática maior da educação e
da inclusão destes alunos com deficiência mental, deficiência esta que, por suas
características, como já dito, apresenta as maiores dificuldades para ser incluída,
tanto na escola, como na sociedade de uma forma geral, na medida em que
estes alunos passam 20 (vinte) anos ou mais de suas vidas em escolas –
especiais ou regulares – e não recebem certificação de escolaridade quando
saem da escola. Desta forma, ficam sem qualquer perspectiva de vida futura,
tanto para a continuidade de estudos, como para a inserção no mundo do
trabalho. Então, questionei na minha pesquisa do Mestrado (IACONO, 2004): em
recebendo a referida certificação (terminalidade específica), quais seriam suas
possibilidades para o futuro? Elas existem, numa sociedade capitalista e
excludente?
A dissertação consistiu numa pesquisa teórica e de campo, na qual trabalhei com
5 (cinco) sujeitos e, ao final da pesquisa, concluí que a referida terminalidade -
denominada como “especifica” pela LDB atual, não deveria ser dada a nenhum
daqueles alunos - que constituíam uma amostra bastante expressiva dos alunos
sobre os quais a legislação referia, ou seja, eram jovens com deficiência mental,
egressos ou ainda freqüentando programas de Educação Especial - classes e
escolas especiais para alunos com deficiência mental - mas com muitas
dificuldades para continuar seus estudos e receber terminalidade (leia-se,
certificação).
Concluí também, naquele momento, que a certificação denominada “específica”
poderia ser discriminatória para esses alunos, na medida em que aquele que a
recebesse teria sim seu histórico escolar do Ensino Fundamental, mas não como
o dos demais alunos e sim com uma descrição das “habilidades e competências”
(Resolução 02/01/CNE) das quais tivesse se apropriado durante os anos de sua
escolarização. A despeito do real significado que os termos “habilidades e
competências” trazem - coerentes com a lógica de competição que é inerente ao
modo de produção capitalista - a legislação prescreve ainda, que só deve receber
a terminalidade específica, os alunos com “grave deficiência mental ou múltipla” e
que não se apropriaram do que está previsto no Artigo 32 da atual LDB, ou seja, a
apropriação da leitura, da escrita e do cálculo, como base para as aprendizagens
posteriores – e que estes, após a concessão desta certificação, não fiquem “sem
horizonte”, mas que possam ser encaminhados para EJA – Educação de Jovens
e Adultos e/ou para a Educação Profissional.
Assim, as contradições para a concessão da terminalidade “específica” para
alunos com deficiência mental puderam ser melhor desveladas, a partir da
indagação: de que adiantaria dar terminalidade (certificação) para alunos com
grave deficiência mental, mas com a possibilidade (porque escrita na letra da lei)
de encaminhá-los para a EJA e/ou para a Educação Profissional? A hipótese que
levantamos naquele momento e que a literatura (oficial) nos permitia vislumbrar,
era de que, além de discriminatória, a terminalidade específica tinha como
objetivo a desocupação das vagas desses alunos, já que eles não poderiam ficar
“para sempre” matriculados nas escolas.
Assim, concluí, naquele momento, que essa certificação não deveria ser
concedida ainda, a nenhum dos alunos da pesquisa (05 alunos jovens e adultos),
até que se tivesse clareza de seu real significado e intencionalidade, das reais
condições desses alunos para recebê-la e as bases materiais necessárias para
seus encaminhamentos posteriores.
Esses alunos ficam anos na escola e, na maioria das vezes, por mais que
evoluam em seu processo de apropriação dos conteúdos científicos trabalhados,
essa apropriação não se efetiva no mesmo nível dos demais alunos – tanto no que
se refere à quantidade de conteúdos, como quanto à sua abstração. Dessa forma,
a escola - que historicamente tem atuado na perspectiva de atender apenas a
grupos homogêneos de alunos - tanto com relação à faixa etária, como quanto às
possibilidades de apreensão dos conteúdos destinados àquela série/grupo, fica
completamente desestabilizada, não mais sabendo como agir diante de alunos
com possibilidades tão diferentes de apropriação dos conhecimentos.
Na verdade, mesmo que a terminalidade específica, ou outra forma de
certificação, já houvesse sido regulamentada no Paraná, pouco significado prático
ela teria para o grupo de alunos que hoje freqüenta o segundo segmento do
Ensino Fundamental sem estar ainda alfabetizado. O que esses alunos realmente
precisavam, conforme já explicitado, teria sido freqüentar programas mais
adequados às suas condições naquele momento; um Programa que respeitasse
sua faixa etária, que efetivasse uma prática pedagógica contextualizada em seus
interesses/necessidades, de forma a que fossem trabalhados os conteúdos
científicos e com tempo maior para essa aprendizagem. Nesse aspecto, em que
se valoriza um fazer pedagógico que trabalha com os conteúdos científicos,
partindo do contexto de vida e dos interesses dos alunos, é preciso ser enfático na
defesa de se ensinar a leitura, a escrita e o cálculo, como no caso daqueles
alunos ainda não alfabetizados, encaminhados compulsoriamente, em 2006, para
a 5ª série, por um município da região oeste do Paraná.
Quando se trata do trabalho pedagógico, é absolutamente importante considerar,
que aspectos como o contexto de vida e os interesses dos alunos podem se
constituir como recursos, como meios para se trabalhar o essencial, o que jamais
poderia ficar em segundo plano, que é o ensino do conteúdo científico: o ensinar a
ler, a escrever e a calcular. Como já apontado na introdução deste trabalho, os
aspectos relacionados ao currículo como, objetivos, conteúdos, encaminhamento
metodológico e formas de avaliação, são elementos cruciais na educação que se
faz com alunos com deficiência mental.
Na deficiência mental esses elementos deveriam ser objeto de mais estudos e
pesquisas, pois, diferentemente das demais deficiências em que as “necessidades
especiais” são atendidas com recursos e equipamentos específicos, ficando na
dependência maior da disponibilização de recursos financeiros, na deficiência
mental a questão é bem mais complexa. Certamente, que recursos e
equipamentos materiais contribuem, e muito, para com a educação desses alunos,
mas eles não são determinantes como o são o Programa DOS VOX ou o Jaws,
por exemplo, para o acesso de um aluno cego ao mundo do conhecimento de
forma muito mais rápida que o sistema Braille.
Na deficiência mental, estão em jogo, o raciocínio, a memória, a capacidade de
fazer analogias, de estabelecer relações, associações mentais, enfim, a
capacidade de pensar com logicidade, de utilizar diferentes linguagens, de
desenvolver as funções superiores da mente. O desafio da escola, com esses
alunos, portanto, é considerar o quanto eles puderam avançar - no que se refere à
apropriação do conhecimento ensinado, no desenvolvimento dessas funções
mentais superiores - comparados com eles mesmos, e não com a maioria dos
demais alunos que se apropriam integralmente do “conteúdo programático”
trabalhado, já que a homogeneidade é que caracteriza as diferentes turmas de
alunos.
Esta é uma questão bastante complexa, mas, como já dito, o desafio é ter clareza
de que o aluno com deficiência mental ao ser avaliado quanto à apropriação de
um determinado conteúdo, só deve ser comparado com ele mesmo, não importa a
quantidade de conteúdos que foi apre(en)dida pelos demais alunos e que este
também deveria ter apre(en)dido para ter a mesma nota, por exemplo.
Coerente com estas afirmações, o documento “O Acesso de alunos com
deficiência às escolas e classes comuns da rede regular”, da Procuradoria Federal
dos Direitos do Cidadão, afirma que:
As propostas curriculares reconhecem e valorizam os alunos em suas peculiaridades étnicas, de gênero, cultura; partem de suas realidades de vida, de suas experiências, de seus saberes, fazeres e vão sendo tramadas em redes de conhecimento que superam “a tão decantada sistematização do saber” (BRASIL, 2004, p.23) (grifos meus).
No entanto, quando o documento afirma que as propostas curriculares devem
partir das realidades de vida, das experiências, dos saberes, dos fazeres dos
alunos e vão sendo tramadas em redes de conhecimento que “superam a tão
decantada sistematização do saber”, é inevitável considerar que tal afirmação
aproxima-se muito das práticas escolanovistas em que, equivocadamente ou não,
imperava o espontaneísmo, caracterizando práticas pedagógicas que trabalham
com os conteúdos escolares de forma tão fluida e difusa, que poderia levar os
professores a terem dificuldades para detectar como estaria se efetivando (ou não
se efetivando) realmente a apropriação dos conhecimentos pelos alunos. Esses
professores tenderiam a acreditar que tais alunos estariam aprendendo “no seu
tempo”, “no devido tempo”. Mas, nesse caso, quero enfatizar que a real
preocupação deve ser, realmente, com o tempo – mas não o tempo que o aluno
leva para aprender! – e sim aquele em que se fica esperando essa aprendizagem
acontecer, realizando práticas educativas equivocadas, como por exemplo, as que
enfatizam os aspectos motores do desenvolvimento do sujeito, em detrimento de
um trabalho pedagógico deveras sistematizado e organizado, com objetivos claros
na direção do desenvolvimento das funções mentais superiores desses alunos
com deficiência mental, já que esta é a característica principal de sua debilidade.
Então, se se trabalha com alunos com atraso em seu desenvolvimento intelectual,
não há como tergiversar. Qualquer prática pedagógica efetuada deve ir,
radicalmente, na direção desse desenvolvimento intelectual.
A afirmação anteriormente citada pelos autores do referido documento (Ibid., p.
23) nos alerta ainda, para um ponto fundamental para o qual devemos estar
atentos na educação de alunos com deficiência mental. O saber historicamente
acumulado e sistematizado pelo homem é, na atualidade, extremamente vasto e
seu acesso, embora parecendo disponível no âmbito social como um todo, fica
muito mais difícil, pois ele se pulveriza e como que se dissolve em meio ao mar de
informações e novos conhecimentos construídos diariamente no meio social.
Assim, certamente, não é possível que se possa apreender todo esse
conhecimento, especialmente quando há um atraso intelectual que impede a
mesma rapidez nessa apreensão por parte de todos os alunos que compõem o
conjunto de uma sala de aula. Novamente aqui, é possível verificar a presença da
lógica do capital, pois numa sociedade acelerada, em que há pressa em se
consumir rápido para se consumir mais, há que se aprender rápido para ser
promovido rapidamente para a série seguinte e poder desocupar as vagas para os
próximos alunos que virão ou para não “manchar” as estatísticas de evasão e
repetência do respectivo sistema de ensino.
Ainda sobre os elementos curriculares, é preciso considerar que a avaliação
escolar de alunos com deficiência mental não pode acontecer da mesma forma
que a avaliação dos demais alunos da escola; não só a avaliação do dia-a-dia,
como a avaliação final da série/ano escolar, pois, como já enfatizado
anteriormente, estes alunos precisam ter respeitado o tempo que levam para a
apropriação dos conteúdos – certamente um tempo maior que o dos demais
alunos – sob pena de não os estarmos atendendo nas suas necessidades
especiais, nas suas peculiaridades, desrespeitando assim, o princípio da eqüidade
que preconiza ser preciso atender os diferentes nas suas necessidades
específicas para garantir o princípio constitucional da igualdade de oportunidades.
Dito de outro modo, é preciso atender os diferentes de forma desigual, para
garantir a igualdade e, desta forma, garantir a eqüidade.
Conclusão
Ao refletir sobre a educação escolar para alunos com deficiência mental,
constatamos o quanto há de questões polêmicas e de difícil resolução nesta área
de deficiência, embora já estejamos no século XXI. Porém, antes de se discutir
sobre certificação/terminalidade acadêmica para esses alunos, é necessário ter
clareza de que, para seu desenvolvimento intelectual, é preciso a melhor
educação, uma educação em que esse sujeito não mais aprenda a realizar suas
ações de forma mecânica, mas que elas lhe sejam significativas.
A apropriação da linguagem - uma das funções mentais superiores - é a condição
mais importante do desenvolvimento mental do homem, já que ela se materializa
como conceito, na palavra. Sua apropriação, pelos sujeitos com deficiência
mental, desde a mais tenra idade, determinam seu futuro, sua vida, sendo que a
linguagem fundamental a ser apre(en)ndida inicialmente, nas sociedades letradas,
é a leitura, a escrita e a linguagem matemática, cuja aprendizagem deve ser
objetivo fundamental de todos os professores ao ensinar alunos com atraso no
desenvolvimento e/ou com deficiência mental. É fundamental também, que se
compreenda que a aquisição das funções mentais superiores não acontecem
espontaneamente; é necessário que o sujeito esteja no meio social interagindo
com outros sujeitos que possam “desafiar” seu pensamento na direção de um
desenvolvimento, cada vez mais, qualitativamente superior.
É importante lembrar ainda, que o conhecimento a ser ensinado, também é o
mesmo que se ensina para todos os alunos, embora o nível de apropriação
desses conteúdos difira de aluno para aluno, conforme suas possibilidades
cognitivas e a qualidade do trabalho pedagógico, tanto no que se refere ao
trabalho realizado pelo professor, como à qualidade das interações sociais desse
aluno com seus pares na sala de aula. A partir desses pressupostos, cai por terra
o mito de que alunos com deficiência mental estão nas escolas regulares apenas
para se socializar.
Assim, o desafio maior na educação de alunos com deficiência mental, hoje, é
educar esses alunos junto com todos os outros – já que esta reivindicação é justa,
não porque está na letra da lei e nos documentos oficiais, mas porque vem sendo
reivindicada pelas famílias desses alunos e por eles mesmos, que já não querem
mais estudar em escolas separadas. Devemos ensinar-lhes sim, o saber
sistematizado e, quiçá, mediatizando este ensinar pelas suas próprias
experiências – por que não? – pelos seus contextos sociais, ou seja, na trama de
suas relações humanas, esperando que sejam relações cada vez maiores e mais
intrincadas, superando o pequeno grupo segregado com o qual historicamente
este sujeito (con)viveu desde os tempos bíblicos em que era deixado a morrer de
inanição pela prática da “exposição” (SILVA, 1986) ou nas cavernas com toda
sorte de desvalidos.
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