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- TRANSCULTURAÇÃO, MESTIÇAGEM E SINGULARIDADE A mestiçagem está na moda, e é bom descon- fiar deste efeito de moda. A mestiçagem é uti- lizada, no cenário da globa- lização, para designar tudo o que está matizado, colori- do, híbrido ou misturado; ela, por causa de seu sabor supostamente apimentado, está temperando todos os pratos. A mestiçagem é qua- se sempre confundida com a acumulação, o prazer guloso da superabundân- cia barroca, o calor dos Trópicos. É necessário mostrar, ao contrário, que um pensamento do encontro mestiço - pensamento do conflito, da tensão e da transformação - pas- sa antes de tudo por uma experiência de desa- propriação e um reconhecimento da alteridade em nós mesmos. Na passagem do monâdico ao nômade e da auto-suficiência ao horizonte do devir, um pensamento mestiço é um pensamen- to da resistência tanto à uniformização crescen- te como à exacerbação diferencialista dos particularismos. A mestiçagem aponta uma ter- ceira via entre o homogêneo e o heterogêneo, a fusão e a fragmentação e, no plano político, os modelos visando à integração total ou ao retra- imento comunitário. Na mestiçagem, os compo- nentes se encontram, se unem, se recompõem ou compõem um novo conjunto sem perder sua integridade, sua singularidade. (LAPLANTINE, NOUSS, 2001, Prefácio). Esta definição ampla que escapa aos úni- cos campos antropológicos ou sociológicos au- toriza o reconhecimento da mestiçagem num domínio como a estética. Assim, a colagem, forma ar- tística maior da moderni- dade, do cubismo à arte em vídeo, do dadaísmo ao surrealismo e à arte pap, será entendida e se perce- berá como uma expressão mestiça. É a lógica da iconografia cubista: quebrar as formas e juntar os frag- mentos para construir uma nova composição que guar- da a marca da fratura. As mestiçagens das maté- rias e das formas encontram-se para afirmar a crítica e a recusa de um discurso social que ob- jetiva uma totalidade harmoniosa, mas alienante. Assim, torna-se frágil o postulado estético de um sentido manifesto e rígido capaz de transcender e unificar os componentes da obra. Um outro exemplo da mestiçagem estética, sob uma for- ma bem mais antiga, que anuncia, contudo, a colagem, seria o mosaico. 'Além da técnica que fragmenta a obra, o mosaico é mestiço por per- tencer a duas ordens estéticas: a pictural e a arquitetural. A apresentação e a natureza do material estabelecem uma relação de contigüi- dade com a escrita arquitetural. As três expressões artísticas que contribu- em particularmente para dar a entender o que pode ser a mestiçagem estética são, sem dúvida, a música - que vai nos fornecer numerosos exemplos - a dança e o cinema, por essa mes- ma razão: são artes do movimento e da temporalidade que permitem o entrelaçamento sem absorção que desenha a mestiçagem, que representa o seu desenho. Alexis Nouss' RESUMO Este artigo trata de diferentes possibilidades conceituais para se analisar o fenômeno do encontro entre culturas. Ressalta a importância da mestiçagem como expressão de processos sociais que escapam de atribuições ontológicas ou essencialistas. A noção de mestiçagem indica, nesse sentido, uma terceira via interpretativa para se pensar fenô- menos como a dança, a música, o cinema, etc. A construção dessa terceira via representa, assim, uma rejeição da idéia de polarização entre uniformização e diferenciação radical. * Professor Titular da Universidade de Montreal. 104 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS v.33 N. 2 2002

TRANSCULTURAÇÃO, MESTIÇAGEM E SINGULARIDADE106 REVISTA DE C'tNCIAS SOCIAIS V.33 N. 2 e teológicas nos três monoteísmos quando o transcultural amortece a contradição de se no-mear

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-TRANSCULTURAÇÃO, MESTIÇAGEM E SINGULARIDADE

A mestiçagem está namoda, e é bom descon-fiar deste efeito de

moda. A mestiçagem é uti-lizada, no cenário da globa-lização, para designar tudoo que está matizado, colori-do, híbrido ou misturado;ela, por causa de seu saborsupostamente apimentado,está temperando todos ospratos. A mestiçagem é qua-se sempre confundida coma acumulação, o prazer guloso da superabundân-cia barroca, o calor dos Trópicos.

É necessário mostrar, ao contrário, que umpensamento do encontro mestiço - pensamentodo conflito, da tensão e da transformação - pas-sa antes de tudo por uma experiência de desa-propriação e um reconhecimento da alteridadeem nós mesmos. Na passagem do monâdico aonômade e da auto-suficiência ao horizonte dodevir, um pensamento mestiço é um pensamen-to da resistência tanto à uniformização crescen-te como à exacerbação diferencialista dosparticularismos. A mestiçagem aponta uma ter-ceira via entre o homogêneo e o heterogêneo, afusão e a fragmentação e, no plano político, osmodelos visando à integração total ou ao retra-imento comunitário. Na mestiçagem, os compo-nentes se encontram, se unem, se recompõemou compõem um novo conjunto sem perder suaintegridade, sua singularidade. (LAPLANTINE,NOUSS, 2001, Prefácio).

Esta definição ampla que escapa aos úni-cos campos antropológicos ou sociológicos au-toriza o reconhecimento da mestiçagem num

domínio como a estética.Assim, a colagem, forma ar-tística maior da moderni-dade, do cubismo à arte emvídeo, do dadaísmo aosurrealismo e à arte pap,será entendida e se perce-berá como uma expressãomestiça. É a lógica daiconografia cubista: quebraras formas e juntar os frag-mentos para construir umanova composição que guar-

da a marca da fratura. As mestiçagens das maté-rias e das formas encontram-se para afirmar acrítica e a recusa de um discurso social que ob-jetiva uma totalidade harmoniosa, mas alienante.Assim, torna-se frágil o postulado estético de umsentido manifesto e rígido capaz de transcendere unificar os componentes da obra. Um outroexemplo da mestiçagem estética, sob uma for-ma bem mais antiga, que anuncia, contudo, acolagem, seria o mosaico. 'Além da técnica quefragmenta a obra, o mosaico é mestiço por per-tencer a duas ordens estéticas: a pictural e aarquitetural. A apresentação e a natureza domaterial estabelecem uma relação de contigüi-dade com a escrita arquitetural.

As três expressões artísticas que contribu-em particularmente para dar a entender o quepode ser a mestiçagem estética são, sem dúvida,a música - que vai nos fornecer numerososexemplos - a dança e o cinema, por essa mes-ma razão: são artes do movimento e datemporalidade que permitem o entrelaçamentosem absorção que desenha a mestiçagem, querepresenta o seu desenho.

Alexis Nouss'

RESUMO

Este artigo trata de diferentes possibilidades conceituaispara se analisar o fenômeno do encontro entre culturas.Ressalta a importância da mestiçagem como expressão deprocessos sociais que escapam de atribuições ontológicasou essencialistas. A noção de mestiçagem indica, nessesentido, uma terceira via interpretativa para se pensar fenô-menos como adança, a música, o cinema, etc. A construçãodessa terceira via representa, assim, uma rejeição da idéiade polarização entre uniformização e diferenciação radical.

* Professor Titular da Universidade de Montreal.

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-Meu título introduz uma dissonância por-

que propõe uma díade, que pretende serheurística, entre mestiçagem e transcultura. An-tes de interrogar este contraste conceptual, pa-rece útil montar um quadro comparativo dasdiferentes noções que agitam as discussões ereflexões atuais sobre as questões de identidadee de cultura. Não existe consenso entre os dife-rentes autores sobre as definições, e ainda, asabordagens dessas questões pertencem a dife-rentes campos: antropologia, sociologia, filoso-fia, politologia. Esta confusão abre espaço àsmanipulações ideológicas dessas noções esvazi-ando-as do seu potencial especulativo. Torna-senecessário fazer uma distinção entre diferentesnoções rivais: multicultural, intercultural,transcultural, hibridez e mestiçagem.

O multicultural é um conceito operatórioque descreve e define uma situação social quereúne no seio de uma entidade urbana, regio-nal, nacional ou supranacional vários gruposcomunitários, iguais em número e importânciaou não, hierarquizados ou não. Exemplos degrande escala: a civilização romana, o Impériodos Habsburg, o Império Otomano, os antigosreinados e impérios africanos ou ainda numero-sos estados ocidentais atuais. Esta vista panorâ-mica revela uma dificuldade metodológicaporque não discrimina as causas históricas des-tas estruturações societais: conquistas, migrações,alianças, fundações contratuais. O termo con-corrente "multicomunitário" aproxima-se, masapresenta o risco de fazer esquecer o quadroglobal e unitário, a supracomunidade. Nesseponto, ele opera a distinção entre o melting-pot americano, que privilegia um certo quadro,e o mosaico canadense que tende a apagá-Io.Entretanto, esses dois modelos são criticadosporque mantêm as relações de dominação sim-plesmente em diferentes níveis de hipocrisia. Poroutro lado, o multicultural abre-se cada vez maisà diversidade das classes, das línguas e das ori-entações sexuais arriscando-se a constatar so-mente o esfarelamento do tecido social. Enfim,outro acessório terminológico, o "multiétnico"

sofre de essencialismo e de amargura anti-repu-blicana. Os debates em torno de uma cidadaniaeuropéia, na comunidade do mesmo nome, oude uma cidadania multicultural na América doNorte provam que agora o multicultural é umaferramenta indispensável, apesar de ser marcadapelo grave problema da normatividade. As co-res emblemáticas da cidadania ou da nacionali-dade se apagaram, entretanto essas noçõestinham o mérito de ancorarem-se num firmeconceito jurídico. Quanto ao princípio domulticultural, as opiniões divergem: diferença(Wieviorka), reconhecimento (Taylor) , liberalis-mo esclarecido (Kirnlicka), justiça (Rawls) entreoutras proposições.

O intercultural se insere numa visãoconceitual diferente. A noção serve a vislum-brar, nos planos individuais e coletivos, as dinâ-micas dos encontros, dos intercâmbios (narealidade, até de confronto e de rejeição) que seestabelecem quando duas ou várias comunida-des interagem. Não se pode utilizá-Io sem levarem consideração os dados socioeconômicos e oquadro político, visto que os grupos em jogonão gozam igualmente de seus bens e perfisculturais. De um lado eles teriam que possuiruma mesma identidade cultural igualmente for-te ou dominada, o que não é o caso nem dosemigrados que, voluntariamente ou não, dimi-nuem suas distinções a fim de se perder no teci-do social do país hóspede, nem das minorias,autóctones ou nacionais, afastadas do poder ecom autonomia limitada. Por outro lado, ainterculturalidade é tributária de um quadro po-lítico que nasceu da cultura do país anfitrião. Ademocracia das sociedades ocidentais nasceu desua tradição filosófica e de sua concepção dodemos; existem outras origens, como mostraramdiversos movimentos da América Latina ou daÁsia. A dificuldade de articular o intercultural ébem exemplificada pela questão controvertidado ensino das línguas. Salvo algumas exceções,as tentativas de implantação de programas pe-dagógicos poliglotas (línguas estrangeiras,minoritárias ou regionais) são raramente bem-

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-sucedidas porque elas entram em confronto coma crença nas garantias do monoculturalismo parao equilíbrio social. A cultura em si nunca sofreudo multilingüismo e, ao contrário, lhe deve al-guns de seus melhores exemplos literários.

Duas etapas do pluralismo cultural: omulticultural mostra uma realidade social e ointercultural um dispositivo autorizado e esta-belecido por essa mesma realidade. Podemosnotar que essas duas noções não são obrigatori-amente problemáticas e podem representar ummodo eficiente de estar juntos, apesar das inevi-táveis crispações, por exemplo, nos impérios dosHabsburg ou Otomanos antes do nascimento dosnacionalismos, cuja gênese não está exclusiva-mente ligada a uma crise cultural do sistemapolítico. Em compensação, a programação domulticultural ou do intercultural - a passagemredutora do istmo dos ismos, multiculturalismo,interculturalismo - tem valor de sintoma societale ideológico que denuncia uma insuficiência nosistema, sintoma aparecendo no mundo contem-porâneo submetido a importantes movimentosmigratórios, a profundas reorganizações daspopulações e aos efeitos da globalização. Não épor acaso que atualmente e na América do or-te. O multicultural se aproxima assim em termosde estruturas, o intercultural em termos defunção, esse último relacionado com o comu-nicacional, daí a exploração das teses deHabermas sobre a razão comunicacional entreos teóricos que valorizam a globalização.

O transcultural é mais relacionado com ocultural se entendemos essa noção em termosde produção e de representação. No senso es-trito, significa a colocação em comum ou ado-ção generalizada das formas culturais. Doisexemplos em Constantinopla, cidade pródiganeste aspecto: a frase melódica ou rítmica usa-da tanto na tradição otomana majoritária comonas músicas minoritárias (gregas, armenianas,judias, ciganas), as cúpulas hemisféricas queadornam tanto as igrejas bizantinas como asmesquitas otomanas. O domínio religioso é fa-cilmente adepto do transcultural: formas rituais

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e teológicas nos três monoteísmos quando otranscultural amortece a contradição de se no-mear no plural: práticas de devoção e de pos-sessão nos cultos brasileiros e afro-cubanos ' ;figuras de divindades nos politeísmos. Aaculturação aparece cada vez mais como umerro de diagnóstico ideologicamente motivado.Efetivamente, as transferências entre comuni-dades, quaisquer que sejam as relações de do-minação, não operam segundo vias de mãoúnica; não têm perda nem substituição, senãointercâmbios quando dos dois lados os tecidosculturais se modificam segundo a ação das for-mas transculturais. Elementos passam de umacultura a outra quando podem existir nas duas,se bem que transcultural pode se entender numsentido mais largo como nomeando as vias depassagem que permitem o fenõmeno.

A hibridez resulta da produção de umaterceira entidade após o encontro dos dois oumais componentes culturais. Da simbiose ou dosincretismo até a criação original o grau de au-tonomia aumenta. Em música, por exemplo, osound de Tijuana, na fronteira mexico-america-na, o arabesk da Turquia, mesclas de um fundootomano e as contribuições do mundo árabe,ou o rai argelino, oriundo do encontro da músi-ca árabe e da canção francesa e do acolhimentoposterior, entre outros, do reggae e da músicatecno são híbridos. Essas formações aparecemgeralmente entre as duas culturas que existemnas sociedades coloniais e pós-coloniais. O pós-colonialismo anglo-saxão, na sua crítica de tododiscurso purista, teve uma grande consideraçãopara com a hibridez, concebendo-a sinõnimode transcultural em detrimento de suaespecificidade oriunda, entretanto, do seu usoem botânica e zoologia. O transcultural é passa-gem, a hibridez marca uma pausa. Considerarque o crioulo é, como foi muitas vezes citado,um exemplo lingüístico transcultural, seria ne-gar sua integridade semiótica e semântica comotambém sua geografia histórica. Os debates so-bre a crioulidade oferecem, entretanto, uma pers-pectiva privilegiada sobre a extensão da noção

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-de hibridez. Como hibridez inovadora, se falade crioulização quando se trata de sociedadesnascidas da colonização européia e de suas pro-duções culturais. Abandonando essa baseterritorial, ou mesmo territorialista, uma secun-da definição da crioulização é relativa aos cru-zamentos culturais numa escala planetária e àsuposta conseqüente diversificação. Como a lin-güística põde considerar o crioulo como um la-boratório de observação da gênese das línguas,as sociedades caraibanas e latino-americanasteriam antecipado os efeitos da globalização con-temporânea. Paradoxalmente, a hibridez perdea dimensão contestatória que tinha paraBakhtine, seu primeiro teórico, para uma abor-dagem idealista subestimando a persistência daspolíticas de dominação e o interesse comercialde uma hibridez com características exóticas.

A mestiçagem, enfim, descreve a possibi-lidade do salto. Figura anódina ou fútil? ãomais que aquelas que nomeiam A regra do jogoa seqüência autobiográfica de Michel Leiris:Biffures, Fourbis, Fibrilles, léxico do frágil queaparece justamente no poeta - etnólogo (ape-sar do que ele mesmo disse). Será a "ÁfricaFantasma" que o fez entender a fragilidade dasligações?" atureza dupla eu estou preso/ en-tre a natureza dos meus sonhos/ papel nas pa-redes deterioradas de minha cabeça-/ e asimples natureza simplesmente/ CORROLÁRIO/eu não estou em lugar nenhum" (Autres lancersin Haut Mal seguido de Autres Lancers, Paris:Poésie / Gallimard, 1969, p.186).

Pular: pertencer plenamente, e sem trair avárias culturas, ostentar várias ídentídadess/ Searrancar de si mesmo como o saltador em alturaque desafia a gravidade para voar. Gravidadeno sentido de grave, sério, que desafia a criançaque brinca de devir outra ou que, no jogo daamarelinha, pula de casa em casa, da Terra até oCéu. Se o título da maior obra de Júlio Cortazar,é Amarelinha, é evidentemente em referência aseu modo de utilização ( ota: essa expressãomostra apenas como La vie mode d emploi dePerec adota uma estrutura similar) que, apesar

de uma leitura tradicional, do primeiro ao últi-m03 , convida a uma leitura sinalizada dos capí-tulos numa ordem não linear e, por que não,em todas as ordens imagináveis? É também por-que esse romance revolta-se contra o estado dascoisas e do mundo, contra aquilo que é dado-uma-vez-por-todas, contra os modelos impos-tos. Oliveira, alter ego do autor, pergunta: "Então,tem que ficar como o cubo da roda no centro daencruzilhada? De que serve saber ou acreditarque sabemos que cada caminho é falso se não opercorremos com uma intenção que esteja paraalém do caminho em si?". (Amarelinha, tr. L.Guille-Bataillon e F. Rosset, Paris, Gallimard, Col."L'imaginaire", 1996, p304). Avançar no mundocomo em "um jardim com rotas que bifurcam" -para citar Borges, mestre em ficções labiríntícas" ,que dizia, falando do jogo de xadrez "Como elotro, este juego es infinito". um tabuleiro empreto e branco, - o mesmo e o outro - as possi-bilidades de movimento e deslocamentos nãotêm limites. As metamorfoses de Alice em Dooutro lado do espelho reproduzem o diagramade um jogo de xadrez que Lewis Carro li expõeno princípio do livro. 1 ão permanecer o quesomos, apontar o que poderíamos ser. Amestiçagem é mestiça r o condicional e oindicativo. Os escritores argentinos o fazem muitobem, embora a população de seu país seja umadas menos mestiçadas da América do Sul. É quea mestiçagem pode não só pertencer a uma cul-tura sem ser traduzida em uma sociedades comopode escapar de uma como da outra para serefugiar no imaginário.

Amarelinha é uma história de exilados,entre a Argentina e a França, escrita por um exi-lado argentino na França. Exílio vem do latimsalire, saltar. A mestiçagem é exílio fora de si.Dizemos "Eu estou fora de mim". É o que cha-mamos um pulo de um estado de espírito paraum outro. A heroína da mestiçagem será preci-samente Alice que pode estar de um lado e dooutro do espelho que, segundo suas metamor-foses, será bem pequena ou muito grande". Amediação cultural não será um entre-dois cons-

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-tituído, mas o espaço de uma ação, do salto, umentre-dois constituinte.

Isso para dizer que a mestiçagem não éuma condição nem um estado; designa um pro-cesso, ela permite a multipertença. Essa pode serabertura ou fratura, lucro ou perda, feliz ou infe-liz. A mestiçagem não permite nem julgamentode valor, sequer positivo, nem antecipação já quenão pode ser traduzida em termos de essência."Isto é mestiço", "isto não é" são enunciados im-possíveis. A mestiçagem é bastarda, nasce foradas normas, escapa por isso mesmo às gradesnormativas. Um bastardo é um filho natural, e anatureza é o que não se codifica. A integração oua rejeição por e dentro dos códigos identitários eculturais vem depois. O processo mestiço só éoperante quando as grades de percepção e osquadros de recepção são propícios. Se amestiçagem é um processo, ou mais exatamente,se é utilizada para tentar identificar um processo,será entendida no transitório de uma dimensãotemporal. Três desenvolvimentos são então pos-síveis: volta ao homogêneo, formação de umahibridez com a heterogeneidade cristalizada, per-sistência do processo, um devir mestiço sensívelà diversidade dos encontros.

Multipertença feliz ou infeliz, os termosnão propagam nenhuma validação, servem paradescrever as contribuições positivas ou negati-vas do processo mestiço. Algumas ilustraçõesobservadas em diversas latitudes. México: infe-liz no caso do pacbuco evocado por Otavio Paz(O labirinto da solidão), feliz no caso do artistaplástico Guillermo Gómez-Peüa. Viena: o ódiode si de Otto Wininger e a identidade pensadana sua complexidade e sua aceitação por Freud.Caribe: a Tbérêse en miLle morceaux de LionelTrouillot face à Solibo te Magnifique de PatrickChamoiseau. Último exemplo extraído do livroMacunaíma de Mário de Andrade. O polimor-fismo da plástica mitológica estilística e lingüís-tica da obra chamada "rapsódia" por Andradefoi muito estudado e celebrado. Essa mestiçagemcriadora, que é menos exuberante, desenha oúltimo episódio que vou estudar agora.

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O herói despedaçado no seu combate con-tra Veí, a mãe-sol, perde uma perna, os dedosdos pés, as orelhas, seu nariz e seus cocos, "en-fim, todos os seus tesouros" (p.218). Não é só osofrimento físico, porque ele já sofreu tanto. Émais um desmoronamento psíquico, um imensodesespero porque "(...) Macunaíma não encontramais nenhum atrativo nessa terra" (p.219). Estadepressão se inscreve num recorte preciso danarrativa recheada de marcadores temporais: ocombate ao meio dia, depois o começo da tarde,o encolhimento do dia, o crepúsculo, o cair danoite. Ora, Macunaíma, herói de nossa terra, nas-ceu no coração da floresta nativa. Era um negroretinto e filho do medo da noite "(P23). Apesarde tudo, se torna branco com os olhos azuis eparte para aventuras e viagens. E não é que nofinal, depois de um percurso que vai de fracassoem fracasso, ele é vencido pela deusa solar e, noseio da noite, é transformado em constelação, aGrande Ursa. Volta à noite, espaço das metamor-foses". "Atingi o nada e o nada estava vivo eúmido" (C. Lispector Lapassion selon C.H, p.87),citando após o modernismo exuberante, o dodesnudamento, após o de ]oyce, o de Kafka. Anoite é o tempo da mestiçagem, mais do que odia que delimita e categoriza. "A noite todos osgatos são pardos" e, em conseqüência, todo gatopode ser todos os gatos. "Seria o brilho cintilanteembora inútil de uma nova constelação" (p.220).Gratuidade duvidosa porque no epílogo onarrador conta como a epopéia de Macunaímafoi transmitida a um viajante por seu fiel pássaro.Como Horácio para Hamlet, "no silêncio deOuraricoeira, somente o papagaio protegeu doesquecimento a gesta e a palavra desaparecidas"(p.224). O homem confiou a seguir a história aonarrador que a transcreveu. Na Iinearidade textu-al, mesmo contrariada, mesmo bifurcante da nar-rativa, a conclusão é negativa. Neste cenárioestelar, o brilho policromado das aventuras deMacunaíma pertence a todos, está aberto a todasas interpretações, a todos os devires.

Atribuir um lugar bem particular àmestiçagem permite evitar o seu uso indiscri-

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-minado e sua confusão com as noções já citadascomo também com as de mistura e de misto. Amestiçagem, dentre as manifestações dopluralismo cultural é um fenômeno distinto quenutre uma relação privilegiada com o trans-cultural. Ora, esse fenômeno diz respeito à sin-gularidade: o indivíduo, no caso da experiênciahumana, a componente específica, no caso dasproduções culturais. A mestiçagem é um desti-no singular, o destino de uma singularidade,enquanto o transcultural corresponde a um fe-nômeno coletivo. O transcultural é interpessoalou intercultural enquanto a mestiçagem éintrapessoal e intracultural. É em si mesmo queo sujeito mestiço passa de uma identidade aoutra, é em si mesmo que uma expressão mesti-ça passa de um estilo ao outro. O jovem beur *acolhe em si mesmo a herança do Magreb e aherança francesa, o jovem black" * acolhe a pre-sença ocidental e a presença africana, o jovemchicano as culturas do México e dos EstadosUnidos. O adjetivo "jovem" corresponde a umarealidade demográfica, mas simboliza também aflexibilidade identitária e cultural típica dessaidade e tão necessária à mestiçagem. A músicacigana, ao longo de seus percursos territoriais,adota nela mesma colorações indianas, árabes,eslavas ou espanholas, sem esquecer os ritmosdo jazz que se acoplam às mãos dos ciganos.Nos Bálcãs ou no Oriente Médio - para vincularesses dois tipos de exemplos- as orquestras to-cavam indiferentemente suas músicas e as músi-cas dos outros na sua comunidade ou na deseus vizinhos.

É preciso insistir neste ponto. Podemos nosfelicitar do fato que o kantismo ou sua pulsãouniversalista não desapareceu dos discursos nes-tes tempos de afrontamentos e de retraimentos,mas isso não poderia dispensar de nele integrara preocupação da ética contemporânea para asubjetividade individual, que é intersubjetividade,e portanto, inimiga de todo individualismo ego-ísta. Quando a Carta da Academia Universal dasCulturas afirma pensar e defender a "mestiçagem"das civilizações em razão dos movimentos mi-

gratórios planetários, a proclamação erra pelarapidez de seu postulado visto que as culturassó podem mestiçar-se no âmbito dos indivídu-os. Uma nova raciona lida de antropológica deveevitar as dificuldades ligadas àquela das Luzes,isto é, pensar o geral sem o particular. Um mun-do mestiço, evidentemente, significa um mundode mestiços, embora a sociedade francesa sejauma sociedade de franceses. Uma defesa damestiçagem não deve deixar aos adversários oprivilégio do indivíduo.

É a diferença entre transculturalidade emestiçagem, a secunda não podendo aparecersem a primeira, que suscita a expressão "formamestiça" e não "forma mestiçada". Um elementotranscultural é uma forma mestiçada porqueparticipa de dois conjuntos, enquanto uma for-ma mestiça, autoreferencial ou autônoma, passade um conjunto a outro. O termo transculturatem uma história que deveria agir à sua recep-ção e a seu emprego para que ele não seja sim-plesmente uma noção semanticamentealternativa à de multicultural ou à de intercultural.Não se trata de fazer a apologia da mestiçagemem detrimento do transculturalismo, mas de uti-lizar as duas noções a fim de enriquecer e diver-sificar nossos modelos e grades analíticas.

A noção de "tranculturação" aparece como etnomusicólogo cubano Fernando Ortiz paraanalisar a situação cultural de sua ilha. Designao ajustamento do imigrante a seu novo statuspor um processo de negociação entre os ele-mentos da antiga e da nova cultura. A noção foifreqüentemente adotada para descrever as soci-edades da América do Sul e encontrou uma re-novação discursiva em Quebec, e no Canadádesde os anos 80 onde ela designa, ao mesmotempo, os fenômenos culturais estritamente li-gados à imigração e o estilhaçamento identitáriodo sujeito contemporâneo em geral que não sereconhece nas marcas da identificação nacional.Mas, o transcultural tem tendência a imobilizar-se e institucionalizar-se, se transformando emuma forma de culturalismo ou de relativismocultural com todos os riscos de reducionismo

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-inerentes, o que é uma pena porque ele contémum interesse operatório forte.

O transcultural supõe um espaço media-no, quer dizer comum, onde se dissolvem asespecificidades com abandono da integridadeou da especificidade de cada lado. A mestiçagemusa essa medianidade sem confundir-se nela.Transcultural é o uso de uma língua franca aolado das línguas comunitárias: o latim, à árabe;o russo, na época do bloco soviético; o turco, oanglo-americano hoje. Transculturais, a herançamusical otomana reencontrada nas culturas gre-ga, armeniana, judia e cigana ou a integração namúsica erudita turca, de instrumentos originári-os das músicas populares e das tradiçõesbalcânicas, assim como a música latino-ameri-cana, o acordeão e o violino. O transculturalsuscita e ajuda as operações de deterritorializaçãoe de reterritorialização, segundo o léxico deDeleuze e Guattari. Entretanto, ele é em si mesmoestático, fixo e fixador. Ele beneficia de uma fi-xação porque as duas componentes devem in-terromper o seu respectivo devir a fim deencontrar essa forma comum transcultural. Ele étambém fixador porque desenha as fronteirasque as componentes não podem mais transgre-dir ao risco de perder a sua transculturalidade.

Pelo contrário, a mestiçagem é móvel, emconstante devir. Os componentes passam dooutro lado, adotam a outra identidade, qualquerque seja a alteridade assim desposada. A músicaotomana é transcultural, mas o maqam que migrade uma cultura para a outra é nômade e mestiço.Para assegurar um funcionamento eficiente, otranscultural precisa de um elemento catalisador:a música otomana na Turquia, ou na Américado Sul: a música africana, mais exatamenteoesteafricana, que acolheu contribuições indí-genas e européias. A mestiçagem não se prendeàs estruturas medianas ou mediadoras; use-assem estar ligada a elas. A mestiçagem releva da"bricolagem" de Levi-Strauss, extrapolando anoção desenvolvida no Pensamento Selvagem.Nesta obra, ele opõe o sábio, preocupado comas estruturas, submetido a elas, ao "bricoleur"

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que brinca com as estruturas para reconstruir apartir delas outras realidades. O sujeito mestiçoserá "bricoleur" porque poderá adotar, se apro-priar de tal ou tal estrutura sem ficar preso a ela.Uma música mestiça - e não uma músicamestiçada que releva do transcultural - vai seapropriar ou de tal fraseado, ou de tal ritmo, oude tal modo de outra tradição e a incorporará.

A mestiçagem é o mesmo e o outro insis-tindo na conjunção. No contexto sul americano,por exemplo, as músicas oeste africanas vão cru-zar tradições estrangeiras sem perder suas ca-racterísticas fundamentais em um modo similaràquele dos fenômenos religiosos. Por outro lado,a música erudita pode adotar elementos estran-geiros - a música clássica ocidental: Debussy,Bartok, Stravinsky, face às tradições asiáticas oufolclóricas ou ao jazz -, mas ela o faz no âmbitode um projeto estético dominante que dissolveas especificidades, enquanto que a música po-pular opera por desvio, esse acarretando even-tuais transformações. É aqui que se produzalguma mestiçagem na esfera do ritmo, do for-mato musical ou da instrumentação. LeonardoAcosta escreve, em relação às músicas da Amé-rica Latina: "(...) os instrumentos são europeus,mas a maneira de tocar não é mais a mesma.Embora os músicos interpretem um ar como umavalsa ou uma mazurca, ninguém se engana; narealidade, eles tocam outra coisa. É como se umoutro espírito governasse as antigas formas, tal-vez uma entidade alegre ou maliciosa tal comoo Texcatlipoca mexicano ou o Shango yoruba.Nada parece estar no seu lugar: o que era alegreficou triste, o aristocrático deixou o lugar para opopular, o sério para o delírio. "(1992, p.231).Relembramos ainda os avatares do acordeão ale-mão no México e na Argentina, e do violão es-panhol que se transforma em tres em Cuba, emcuatro no Venezuela, em seis em Porto Rico, emguitarron no México, em charango no Peru, ete.

A mestiçagem é uma embriaguez. Mestiço,não se anda direito, ao longo de uma linha retaidentitária bem nítida; hesita-se, titubea-se -movimentos que coreograficamente são total-

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-mente positivados - andamos em zigue - zague,do nome desses balseiros que passem de umaborda a outra do Bósforo e da Corna de Ouro.Entretanto, essa alternância não é contida oureduzida no seio de uma harmonia ordenada. Aaritmética da mestiçagem é pouco ortodoxa. Osujeito brasileiro, quanto às suas origens, não éum terço índio, um terço africano e um terçoeuropeu; ele é 100% índio, 100% africano e 100%europeu. Quer dizer que ele é índio, africano eeuropeu cada um à sua vez e plenamente cadavez. Outros exemplos existem que sofrem damesma partição que não é da ordem dasubtração, mas da adição: o Judeu que é tantojudeu como francês, alemão ou espanhol; o Japo-nês pertence tanto à modernidade como àtradição; o Turco que não é nem a metade oci-dental nem a metade oriental, mas totalmenteocidental e totalmente oriental. O sujeito mestiçonão ignora as fronteiras, ele até as reconhece,mas se sente a vontade tanto de um lado comode um outro.

Efetivamente, a mestiçagem é ambígua. Elanão nutre a ambigüidade, essa lhe é intrínseca,é uma qualidade de seu modo de agir. Dessemodo tomada numa concepção dinâmica a am-bigüidade perde o valor negativo que a revestetradicionalmente na esfera psicológica ou mo-ral. A ambigüidade não é a ambivalência. Aambivalência é conciliadora: isto e seu contrá-rio, ao mesmo tempo verdadeiro e falso, preto ebranco, bom e ruim. Exibe os matizes da alvora-da ou do crepúsculo, pressupondo uma ordemtranscendente que contém o dia e a noite. Ela ésintética, pressupondo uma temporalidadeglobalizante que concilie e harmonize os estadosdiferentes em sincronia. A ambigüidade recusaa conciliação; niilista, ela nega: nem isso, nemaquilo, nem verdadeiro, nem falso, nem bom,nem ruim, nem preto, nem branco, nem dia nemnoite. Mas, mantendo a liberdade de devir, issoou aquilo, preto ou branco, dia ou noite, emdiacronia, graças a um princípio corolário, queé o da alternância. Nenhum naturalismo ouessencialismo resiste ao princípio de alternância

já que ele arruina a fixidade dos seres ou dosentes jogando constantemente com o devir. Nojogo das preposições espaciais, se a ambivalênciaé situada acima das qualidades, estados ou con-dições que ela engloba, a ambigüidade está nafrente, recusando com firmeza a tentação de umaqualquer transcendência. Ela não se assombradiante da contingência, mas esposa-a.

O fato de zapear poderia ser um exemploda experiência estética da mestiçagem, se nãohouvesse uma conotação de superficialidade.Seria necessário pensar o zapear lento. Umavinheta turística: uma rua para pedestres, umacidade grande, o verão; os terraços dos restau-rantes adornados de colorações musicais gene-rosamente derramadas ao longo de suacaminhada; você esta envolvido na música ára-be, ou grega, ou espanhola etc. A impressão deuma grande fita sonora, a mesma música, mascom modulações diferentes. Uma lembrança deinfância: sobre Ben-Yebuda a grande avenidade Tel-Aviv. As comunidades das diásporas seagrupavam segundo seus bares prediletos: Hún-garos, Poloneses, Romenos, Alemães. Falavamalto, as conversações animadas, apaixonadas, sebem que ao passar de um terraço para outroestava imersa em banhos acústicos sucessivos esentia que uma mesma identidade podia ter vá-rias línguas. Não é isso que nos ensinam os es-critores cuja obra conhece uma escrita bilíngüeou multilíngüe?

O que separa a mestiçagem do transculturalé a questão da mediação. O transcultural encon-tra o seu lugar na mediação. Para a mestiçagem,a mediação é apenas um lugar de passagem.Convém, nesse ponto, não confundir a mediaçãoe a mediatização. A mediatização é contingente enecessária, ela tem uma virtude técnica que éestabelecer pontes, transições. Vivemos uma épo-ca vibrante de mediatização exponencial de to-dos os tipos, assim todas as novas tecnologias decomunicação, do telefone celular ao Web, masessa hipermediatização não acarreta uma intensi-ficação ou uma melhoria dos intercâmbios, dosencontros. De fato, ela tende, muitas vezes, a re-

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-forçar o individualismo e a autarcia. A mediaçãosocial, ideologicamente motivada e dirigida, queaponta a transparência, que a erige em ideal, amediação para o sujeito será produtora de opaci-dade (ver Caune, 1999, pp. 169-177) autorizandoe provocando o salto da mestiçagem. Espessuraa pensar a partir das espécies da exterioridade deLévinas, que a identifica à alterídade, A mediaçãoé então a não mediação, o espaço da não medi-ação, do salto, do espaço vazio que permite aliberdade de ação, o vazio que, na filosofia ori-ental, permite a interação e as mutações entreos princípios opostos ontológicos ecosmológicos, esse "seísmo" ou "vazio de pala-vra" que Barthes esperava do Japão para provo-car uma "turbulência do sentido" 0984,p.10), ofracasso dos sistemas semióticos ocidentais, istoé o verdadeiro encontro da alteridade, já queessa não poderia ser apreendida antecipadamen-te num saber qualquer."

Não se trata, entretanto, de negar a neces-sidade das mediações, mesmo correndo o riscode chegar em um universo constituído de enti-dades impenetráveis, é preciso, contudo, evitarde fetichizar a mediação, de considerá-Ia comoum fim embora ela seja apenas um meio.

Nesse aspecto, uma noção permitindo ilus-trar e apoiar uma crítica da mediação é o princí-pio de secundaridade que sublinha a distinçãoentre mestiçagem e transcultura, já que essa úl-tima apoia-se num princípio de igualdade cujacrítica ideológica mostrará que pode dissimularestratégias dominadoras e manipuladoras. Umtal princípio de secundaridade foi enunciado eteorizado por Rémi Brague (999) em relação àRoma. Roma acolhe o que vem de Atenas e fazdesta recepção sua fundação. A mediação não éapenas medianidade; é a mediação que faz amestiçagem romana, isto é dar a César apenas oque não pertence a ele. Essa mestiçagem da me-tamorfose se encontra na era moderna em inúme-ros pensadores e artistas da América Latina e doCaribe na sua relação com a herança européia.

O filósofo venezuelano Briceno Guerrerosupõe igualmente um tal princípio quando evo-

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ca o primeiro dos três discursos que ele atribuiao pensamento latino-americano: a identificaçãoamericana à Europa segunda. Secundaridade queele ilustra por uma observação gramatical no queconcerne a primeira pessoa do plural em espa-nhol, nosotros que ele relê na sua etimologia:nos-otros, e comenta: "(. ..) nós não somos oci-dentais, mas temos em nosso seio uma alteridadeocidental representada por esse "otros" separa-do por um hífen que liga as duas palavras em"nos-otros" 0994, p.13). Ou, mais fenome-nologicamente: "(v..) o sujeito do qual falamossuporta um outra sujeito de maneira tão íntimaque a palavra nos-outras unida pelo dígito ex-pressa melhor a realidade que a oposição aber-ta nos/eles c. ..)" (id.) Intimidade que remete auma outra teoria sul-americana, brasileira, a domovimento antropofágico dos modernistas.

O princípio de secundaridade sustenta areflexão sobre o plágio, modulação mestiça, entreo Oriente e o Ocidente, na escrita do cronistaDjelâl, um dos narradores do Livro negro deOrhan Pamuk:

Se o universo dos sonhos que chamamos uni-verso é uma casa na qual penetramos com oestupor do sonâmbulo, as diversas literaturasparecem relógiospenduradas nas paredes des-sa residência. (. ..) 1- É estúpido dizer que talou tal relógio que tiquetaqueam em uma dassalas da casa dos sonhos está na hora certa ounão; 2- É igualmente estúpido declarar que talrelógio está adiantado de cinco horas porquedisso poderíamos deduzir, segundo essa mes-ma lógica, que esse mesmo relógio está atrasa-do sete horas; 3- Se um dos relógios marca novee trinta e cinco, e se outro relógio indica novee trinta e cinco depois de um certo tempo, che-gar a conclusão que o segundo imita oprimei-ro é absurdo 0997, pp.245-246).

A hora certa não existe em lugar nenhum,ou mais precisamente esse relógio marca a horacerta e aquele também. Esse "e" que empregoaqui não é inocente. É culpado de alta traiçãogramatical porque ele não cumpre sua tarefa deconjunção. Ele expressa, assim, a verdade da

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-mestiçagem. Pois que o sujeito brasileiro, que éíndio e africano e europeu, o músico de Istam-bul que toca música otomana e música grega ouarmeniana ou judia não correspondem a umalógica da acumulação. Eles não capitalizam. O"e" não fecha uma estrutura de totalidade, mar-ca uma abertura e a passagem possível entredois termos, ou mais. Encontramos esse pensa-mento do "e" na filosofia de dois autores, umadmite a transcendência e o outro se coloca ra-dicalmente na imanência, Lévinas e Deleuze. Essaaproximação, alias, é, em si, um exercício depensamento mestiço. É precisamente o "e" damestiçagem que autoriza essa aproximação:Lévinas e Deleuze, não uma resolução dialética,mas a tentativa de entrar alternativamente nosseus respectivos pensamentos.

Deleuze escreve assim que o "e" não "énem uma reunião, nem uma justaposição, maso nascimento de um gaguejo, o traçado de umalinha quebrada que sempre sai em adjacência,uma sorte de linha de fuga ativa e criadora."0996, p.16) O desafio é substituir o "é" pelo "e"declinação do verbo fetiche das ontologias dasubstância, da essência daquilo que é uma vezpor todas e não se modifica. Enquanto o "e"não é "uma relação ou uma conjunção particu-lar, é o que subtende todas as relações, o cami-nho do todas as relações, e que faz fugir asrelações fora de seus limites.

O transcultural possui essa função quepermite que ele seja útil à mestiçagem: não fun-dir seus componentes num conjunto funcional,mas fazer com que eles se encontrem sem dis-solver as especificidades. Pois o transcultural éuma passarela que deixa que me encontre ooutro, prática do pulo mestiço. O "e" tem a res-ponsabilidade de sempre reconduzir a alteridadesem fixá-Ia, cristalizá-Ia em um simples paineldas diferenças. Exigência senhorial de uma éti-ca da alteridade em relação a qual o sujeito nuncaestá quites, assim como mostrou Lévinas: "Aconjuntura entre o Mesmo e o Outro, onde asua vizinhança verbal já se coloca, é o acolhi-mento frontal e face a face do Outro para mim.

Conjuntura irredutível à totalidade, pois a posi-ção "vis-à-vis" não é uma modificação de "aolado de ..." Mesmo quando terei religado o ou-trem a mim pela conjunção "e", outrem conti-nua a me enfrentar, a se revelar em seu rosto."0990, p.79) Confronto onde o outro nunca éreduzido ao mesmo, onde a distância se man-tém mesmo quando se estabelece o diálogo. "Alinguagem fala onde falta a comunidade entreos termos da relação" (ibid., p.70). A comunida-de onde a medianidade engana a relação mesti-ça porque são as mediações que esquecem deser simples transições. A mestiçagem é passartotalmente sem armas (sobretudo) nem baga-gens, de uma identidade a outra, se reencarnarna outra.

Uma memória e uma narrativa recolherama história do devir mestiço. E se o devir mestiçodeve ser saber, ele será conascimento" , um nas-cimento ao outro e com o outro, numa dinâmi-ca infinita. Um saber de biblioteca e não decomputador. Esse último, pelas suas possibili-dades de conexões sem limites, desenha umatotalidade potencial, a idéia de um saber fecha-do. Uma biblioteca é um livro e um livro e umlivro ... ao infinito. Um infinito movediço, caóti-co, desigual. Ora esta desigualdade garante oreconhecimento da alteridade. Na metafísica oci-dental, o igual é o corolário do mesmo, de duasmaneiras: seja o igual é o mesmo, X é igual a Yporque X é. o mesmo que Y; seja o igual se de-fine em relação ao mesmo: X é igual a Y, os doissendo iguais em relação a um Z que é invaria-velmente mesmo. Entretanto, Lévinas nos ajudaa entender como a igualdade, se é válida politi-camente, é mais frágil filosoficamente: "O saberabsoluto, tal qual foi procurado, prometido ourecomendado pela filosofia, é um pensamentodo Igual.e.) Consiste em fazer o Outro se trans-formar no Mesmo. Em compensação, a idéia doinfinito 'implica um pensamento do Desigual"0984, p.85) O pensamento da mestiçagem é umpensamento da alteridade que para escapar aogelo ontológico deve ser concebido ao infinito.Sempre outro e sempre outro e sempre outro ...

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-Uma singularidade se multiplicando ao

infinito poderia ser acusada de cair noessencialismo, o que seria sem redenção possí-vel aos olhos do diferencialismo pós-moderno.Num certo sentido, é verdade, seria mais umessencialismo plural, um pluri-essencialismo,como nota Edgar Morin ao escrever: "A dificul-dade de pensar a Europa é primeiro essa dificul-dade de pensar um no múltiplo, o múltiplo noum: runitas multiplex' (1990, p.24) A singulari-dade mestiça: retrato de um perverso polimorfodo identitário, a saber a liberdade de reagiridentitariamente a bem mais estímulo que admi-timos. Uma outra figura emblemática se ergueentão procurando a postura política correta: con-fessar um donjuanismo da pertença. Glorificar amestiçagem como possibilidade de comunida-des das singularidades.

NOTAS

1 Que, além do mais, estabelecem relações entre siou têm prolongamentos na Europa, como mostramas pesquisas de Ismael Pordeus Jr.

2 A mestiçagem sendo um processo não se restringeà antropologia e à sociologia. É também ativa nodomínio estético. Vou dar alguns exemplos nessaspáginas, privilegiando a aventura humana e me di-ferenciando assim da abordagem adotada por F.Laplantine, em Métissages. De Arcimboldo à Zumbi.

3 As três partes sucessivas: Do outro lado, Desse lado,De todos os lados ...

4 "Le Jardin aux sentiers qui bifurquent", "O Jardimcom rotas que bifurcam" é o título de uma narrati-va e da primeira parte da coletânea Fictions (Paris,Gallimard, 1957). É somente uma citação porque,para ele, a literatura dissolve o direito autoral. Po-der ser todos e cada um é uma prática eminamentemestiça.

S Deve essa lição a F. Laplantine.6 G. Deleuze, 1973, p.8-20• N. da T.: árabe nascido na França

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•• N. Da T.: afrodescendente7 Na sua procura de difração do sentido, Barthes,

apesar de tudo, não escapa a uma fascinação qua-se mística para um vazio que seria absoluto, e en-tão homogêneo, ao oposto do heterogêneo mestiço.

• NDT: em francês connaíssance (conhecimento) e co-naissance (canascimento). Intraduzível em português.

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