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Carlos Antônio Leite Brandão/ transtemporalidade (conclusão e conferência) Transdisciplinaridade, transculturalidade e transtemporalidade dedicam-se a avizinhar contextos disciplinares, culturas e temporalidades. São trabalhos aparentados e tarefas obrigatórias para todo intelectual do século XXI; são traduções, ou seja, operações de condução para lá, para cá, para passar ou para fazer passar, de um campo para um outro qualquer, saberes, culturas e tempos, os quais são colocados em ambiente de diálogo, e não de competição. A partir do estudo que fizemos por ocasião do seminário “A arte da memória e a memória do futuro”, realizado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG, resumimos aqui alguns dos procedimentos, objetivos e cuidados afetos à transtemporalidade, a qual foi pensada justamente a partir do problema da migração entre tempos, equivalente ao problema da migração entre culturas e campos do conhecimento. Esse estudo inspirou-se no quadro de Piero della Francesca, A Flagelação de Cristo, e teve como seu motivo uma outra pesquisa em que procuramos confrontar a arquitetura e a cidade contemporâneas com o Renascimento e, em particular, com a concepção de humanismo cívico e de república, com Leon Battista Alberti e o seu De Re Aedificatoria, o primeiro tratado de arquitetura da época moderna. Diante do avizinhamento de contextos tão díspares, o ambiente físico contemporâneo e o ambiente intelectual do quattrocento florentino, a conexão de contextos impôs verificarmos em que medida ela poderia ser operada e a que ela se distinguia das demais formas historiográficas. Eis, de forma resumida, algumas das nossas conclusões: 1. A transtemporalidade produz o súbito avizinhamento de contextos distintos no tempo, sem grandes zonas de transição e mediação entre eles, tal como na pintura de Caravaggio o claro e o escuro sucedem-se sem áreas de transição ou cinza. 2. A contigüidade que se produz entre tempos distantes da história afeta o “pintor da história”, o qual não se dedica a narrar ou descrever os fatos, personagens e épocas, mas a compreender sentidos insuspeitados mediante a inesperada contigüidade das cenas por ele avizinhadas. 3. A transtemporalidade exige distinguir e dominar a especificidade de cada um dos contextos, como o fazem as roupas e a ambiência de fundo em A Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca, de modo a não confundi-los, a não cair na generalidade superficial, a evitar o anacronismo, a contrabalancear o movimento de correlação entre os contextos e a manter viva a tensão entre eles. 4. O pensamento do historiador transtemporal opera alternando interminavelmente o vaivém horizontal e em zigue-zague entre os contextos cronologicamente distantes e o mergulho na especificidade de cada um deles. 5. Trata-se de um trabalho de tradução entre tempos. À semelhança da tradução interlingual e a tradução intersemiótica, este trabalho supõe uma terceira língua, “meta-campo” ou “código-fonte”, previamente adivinhados ou habitados pelo intérprete da história. Esde meta-campo é o que lhe permite comparar e traduzir os tempos entre si, e é figurado nas faixas brancas e ocres que compõem o piso de A Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca. Cumpre a esse intérprete decifrar ou inventar o código-

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Carlos Antônio Leite Brandão/

transtemporalidade (conclusão e conferência) Transdisciplinaridade, transculturalidade e transtemporalidade dedicam-se a avizinhar contextos disciplinares, culturas e temporalidades. São trabalhos aparentados e tarefas obrigatórias para todo intelectual do século XXI; são traduções, ou seja, operações de condução para lá, para cá, para passar ou para fazer passar, de um campo para um outro qualquer, saberes, culturas e tempos, os quais são colocados em ambiente de diálogo, e não de competição. A partir do estudo que fizemos por ocasião do seminário “A arte da memória e a memória do futuro”, realizado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG, resumimos aqui alguns dos procedimentos, objetivos e cuidados afetos à transtemporalidade, a qual foi pensada justamente a partir do problema da migração entre tempos, equivalente ao problema da migração entre culturas e campos do conhecimento. Esse estudo inspirou-se no quadro de Piero della Francesca, A Flagelação de Cristo, e teve como seu motivo uma outra pesquisa em que procuramos confrontar a arquitetura e a cidade contemporâneas com o Renascimento e, em particular, com a concepção de humanismo cívico e de república, com Leon Battista Alberti e o seu De Re Aedificatoria, o primeiro tratado de arquitetura da época moderna. Diante do avizinhamento de contextos tão díspares, o ambiente físico contemporâneo e o ambiente intelectual do quattrocento florentino, a conexão de contextos impôs verificarmos em que medida ela poderia ser operada e a que ela se distinguia das demais formas historiográficas. Eis, de forma resumida, algumas das nossas conclusões:

1. A transtemporalidade produz o súbito avizinhamento de contextos distintos no tempo, sem grandes zonas de transição e mediação entre eles, tal como na pintura de Caravaggio o claro e o escuro sucedem-se sem áreas de transição ou cinza.

2. A contigüidade que se produz entre tempos distantes da história afeta o “pintor da história”, o qual não se dedica a narrar ou descrever os fatos, personagens e épocas, mas a compreender sentidos insuspeitados mediante a inesperada contigüidade das cenas por ele avizinhadas.

3. A transtemporalidade exige distinguir e dominar a especificidade de cada um dos contextos, como o fazem as roupas e a ambiência de fundo em A Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca, de modo a não confundi-los, a não cair na generalidade superficial, a evitar o anacronismo, a contrabalancear o movimento de correlação entre os contextos e a manter viva a tensão entre eles.

4. O pensamento do historiador transtemporal opera alternando interminavelmente o vaivém horizontal e em zigue-zague entre os contextos cronologicamente distantes e o mergulho na especificidade de cada um deles.

5. Trata-se de um trabalho de tradução entre tempos. À semelhança da tradução interlingual e a tradução intersemiótica, este trabalho supõe uma terceira língua, “meta-campo” ou “código-fonte”, previamente adivinhados ou habitados pelo intérprete da história.

Esde meta-campo é o que lhe permite comparar e traduzir os tempos entre si, e é figurado nas faixas brancas e ocres que compõem o piso de A Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca. Cumpre a esse intérprete decifrar ou inventar o código-

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fonte, seja através de imagens pertinentes, seja através de conceitos como “flagelação” ou “república”, através dos quais os contextos distanciados compartilham uma linguagem e inauguram o debate entre si. 6. Para isso fazer, o episódio, o documento, o autor ou a ação histórica específica devem ser um pouco “desistoricizados”, perder um pouco de suas raízes, de modo a dar passagem ao universal e ao transtemporal. Dessa forma, torna-se possível medi-los com a régua de um outro tempo e contexto. Isso permitiu, dentre outros exemplo, fazer com que a noção de código, oriunda do campo jurídico, migrasse para outros campos como a informática, a genética, o trabalho, a linguística e a medicina. 7. O método transtemporal, se é que possível entender como método princípios de cautela afetos à operação de fazer contíguos tempos e temporalidades distintos, sabe que o que é comum, contactado e posto em contagio não é o núcleo ou o todo de um documento, um autor, um episódio, uma ação ou um momento histórico, mas apenas uma franja ou aspectos dele, os quais intersectam a franja ou aspectos de um outro contexto. Isto preserva aqueles núcleos, dos quais irradiam os sentidos vários e possíveis de serem desvelados, além daqueles que uma correlação específica traz à cena. O historiador transtemporal é um diretor de cenas: ele coreografa uma dança de amor a dois, ou até a três, mas também de intransponível solidão. 8. Os tempos, os contextos, os autores e os documentos avizinhados “re-apresentam-se” com novos sentidos. O súbito avizinhamento entre eles transignificam-nos, como ao dizermos ter sido Leonardo um pintor paleolítico. Isso altera tanto o nosso entendimento do que seja paleolítico quanto a imagem que temos de Leonardo, o qual é conectado com os mundos da hidrologia, da geologia e da engenharia que o fascinavam talvez até mais do que o mundo da pintura. O método transtemporal crê que os autores, documentos, textos e episódios demandam um “acréscimo de ser”, como diz P. Ricoeur, uma expansão interminável de sentido e uma salvação do desgaste da interpretação estereotipada e de um sentido único fixado para todo o sempre, como aliás foi feito com o Renascimento. 9. Para isso, o olhar do historiador deve privilegiar o estranhamento, tal como os “olhos de madeira” de Montaigne ao tornarem contíguas as sociedades do canibal e a sua, até mostrar como a sociedade francesa e inglesa era mais absurda do que a dos selvagens da América recém-descoberta. Este historiador tem, assim, uma queda pelo insólito e traz uma suspeita daquilo que parece muito claro e evidente, como nossa suposta “civilidade”. 10. O método transtemporal não narra, não descreve e nem pretende explicar os autores por sua biografia, os episódios históricos pela sua conjuntura, os textos por seu significado semiótico intrínseco ou os contextos por suas causas últimas. Seu objetivo é interpretar, compreender, prender e friccionar um tempo com o outro para provocar a faísca de um significado e de um sentido inéditos. 11. Para tanto, ele obriga um tempo a atravessar as fronteiras entre as épocas e estilos, como os da história da arte, até ver transfiguradas suas substâncias e tensioná-los frente a um outro pólo histórico, com o qual troca seus íons. Cumpre ao historiador transtemporal fornecer e manter a voltagem entre esses pólos, o que ele faz violentando-os em sua unidade original transmitida pela tradição, rompendo e quebrando o estereótipo em que foram pensados, até reintegrá-los naquilo que chamamos de meta-campo, tal como a “reescritura” de Alberti e de Shakespeare ou as montagens de Artur Bispo do Rosário. Este historiador é um re-escritor, um remontador, um re-inscritor das coisas no tempo. As coisas já foram ditas. Cumpre-nos redizê-las, reescrevê-las reinscrevê-las em um outro contexto. 12. Isto implica que a novidade buscada por este historiador transtemporal não está propriamente no ineditismo dos objetos de trabalho, na descoberta de uma nova fonte ou documento ou no acúmulo de um cabedal de informações, mas no olhar

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que examina o acervo já depositado na história e na historiografia, e que joga com ela como cartas de um baralho sobre o tabuleiro do tempo. 13. A escala de tempos com o historiador transtemporal trabalha é o conjunto dos tempos. Aos seus olhos, eles formam o baralho do seu jogo, a república da história, na qual as várias épocas e contextos dialogam entre si. Essa república é provisória: dura enquanto dura aquela migração de íons no tempo, ao termo do que as cenas – como a de Cristo e de Urbino – retornam à sua terra original e voltam a se disponibilizar para novos acasalamentos. O enigma dos contextos originais nunca é esgotado. 14. Cabe ao historiador transtemporal cuidar desta contínua reintegração, sem a qual ele incorre no vício que o ronda permanentemente: diluir os contextos e substituir a república dos tempos por uma babélica anacronia deles, feita do desentendimento das épocas. Este desentendimento se mascara num discurso superficial e numa tagarelice incontida, dos quais devemos nos cuidar. 15. A transtemporalidade sabe que um tempo não substitui outro, não é sinônimo de um outro tempo e nem descreve fielmente um outro período da história. Ela sabe que a história não se repete nunca e que o futuro está sempre aberto. 16. A perspectiva transtemporal é humanista como a de Brunelleschi e de Alberti. Ela não vê o todo do real, ela não o abarca integralmente. Ela consegue perceber apenas partes dele, às quais cuida de proporcionar. A verdade que ela pinta não pretende o saber absoluto, não é dogmática e nem idealizada, mas experienciada, contextualizada, construída em uma escala selecionada pelo historiador, a qual revela algumas dimensões e correlações ao mesmo tempo que esconde outras. A transtemporalidade permite afirmações e analogias verdadeiras, mas reconhece o valor relativo delas, a parcialidade e o caráter provisório da equivalência dos sentidos por ela vislumbrada. A verdade que ela busca encontra-se no “entre si” dos tempos, dos contextos e das coisas – um “entre si” que o historiador constrói –, e não no “em-si” deles. 17. O que move o historiador transtemporal é o sentimento de incompletude, e não a ambição totalizante. 18. Para manter a tensão entre os tempos, como o Renascimento e a contemporaneidade, o “hábito mental” do historiador transtemporal dá o mesmo peso – como a Oddantonio e a Cristo, em Piero della Francesca, ou a Alberti e a cidade contemporânea, como estamos a estudar – aos dois contextos que torna contíguos, mesmo que isso não se manifeste explicitamente no seu discurso, de caráter eminentemente retrospectivo. Sua mentalidade é ágil, zigue-zagueante e plástica, como a do pintor em tela, a de Alberti e sua efígie do “olho alado”, a de Mercúrio e suas asas nos pés, e a de Ariel, de Shakespeare. 19. Ao fundir em um horizonte comum o passado e o presente, como Alberti e a metrópole do século XXI em torno do “meta-campo da república”, a transtemporalidade abre novos horizontes e desenha mundos possíveis, como uma futura cidade republicana. 20. A estratégia transtemporal não se opõe às outras correntes historiográficas, ao saber por fundamentos, por causas ou por deduções. Ao contrário, alimenta-se delas, pois são elas que garantem operar a transtemporalidade em profundidade, e não superficialmente. Seu método, contudo, é outro: é comparativo e prospéctico, como o que dominou o Renascimento. Ele multiplica associações, analogias e metáforas, tal como Leonardo e Alberti construíram o conhecimento. Este método troca a busca de um ponto arquimediano do saber e da história pela agilidade de movimentar-se entre os nós de suas teias, vislumbrar percursos e adivinhar simpatias entre eles, antes que cheguem as provas e as documentações. Os documentos servem a uma tese adivinhada, mais do que uma tese decorre deles. É a tese que descobre documentos, mais do que os documentos levam a uma tese. É o Renascimento que “causa” a Antiguidade Clássica, e não a redescoberta da Antiguidade Clássica que causa o Renascimento. Nosso historiador, como Piero

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della Francesca, transvê similitudes transtemporais ao mesmo tempo que se inventa a si mesmo. 21. A transtemporalidade é urbana. Ela só foi possível diante da contemporaneidade e sua contração de espaços, culturas e tempos, amalgamados uns sobre os outros e entre os outros. O mundo urbano avizinhou também saberes e disciplinas. Estes avizinhamentos de culturas, saberes e espaços não são apenas homólogos da contigüidade de tempos atual. São também instrumentos necessários para a feitura da operação transtemporal e da comunhão de perspectivas e pontos de vista com que ela trabalha. 22. O tempo transtemporal não é linear e nem cíclico, pois não vê a história se repetindo, nunca. Sua figura é a de uma espiral, na qual, entre um ponto e outro, há grandes silêncios, incompreensões e imprevistos. Além disso, essa imagem nos sugere a de um mola e sua propensão ao impulso, ao avanço, à prospecção e ao desenho de mundos possíveis. O que move seu historiador é o sentimento da incompletude e o exercitar-se sempre, e não a ambição totalizadora. Ele tateia o futuro, um futuro impossível de ser deduzido das condições presentes e passados. E ele sabe disso. 23. Sendo a verdade transtemporal provisória e desenhada na “fusão de horizontes”, como diz H. G. Gadamer, entre o passado e o presente, por exemplo, a transtemporalidade é sempre aberta, cônscia da historicidade da história. Conforme mudam o presente e os contextos espaciais e sociais, mudam-se aqueles horizontes e o nosso modo de visar o passado e o futuro. A transtemporalidade ressignifica incessantemente seus objetos, documentos e personagens. Conforme nosso contexto atual, eles são constelados de formas diversas, tal como as estrelas nos permitem desenhar milhentas formas de constelações. Seja por isso, seja por lançar-se ou ser lançada no tempo futuro, a transtemporalidade tem na imaginação do historiador um instrumento essencial para ser operada. 24. Um conceito, uma imagem ou uma equação que correlacionam contextos temporais distintos, como “república”ou “flagelação, são polissêmicos. Várias camadas de sentido neles se abrigam e é isto que lhes dá a capacidade de universalização, da qual tanto se afasta o pós-modernismo. Essa polissemia permite a tais conceitos, imagens ou equações servirem de tinta para desenharmos as linhas do futuro que pretendemos para nós, ainda que essa empresa comporte inevitáveis riscos. É ela que permite ao intelectual compreender conteúdos não apreensíveis da análise empírica, estatística ou factual da realidade. Essa capacidade do conceito, das equações e das imagens contíguas, como a de Piero della Francesca, permitem tensionar o real e desafia-lo, em sua verdade positiva. A tensão entre ambos os fazem ressignificarem-se mutuamente. 25. Além dessa tensão entre o campo do real e o meta-campo que a metodologia transtemporal admite, uma outra tensão amadurece a história transtemporal, assim com à “história dos conceitos” de R. Koselleck: a tensão entre o “espaço da experiência” e o “horizonte de expectativas”. Aquele inexiste sem este, e vice-versa. O historiador transtemporal cuida de coloc´s-los em diálogo. Ele dá frescor ao passado e renova as expectativas e os universais da modernidade, como as noções de “república” ou de “liberdade”. 26. É possível trabalhar a transtemporalidade no ambiente urbano ou pós-urbano contemporâneo, em regime sincrônico na medida em que várias temporalidades coexistem simultaneamente neste ambiente. Individual e coletivamente, vivemos estratos e situações de diferentes temporalidades e ritmos, cumprindo-nos fazê-los dialogarem entre si, e não jogá-los uns contra os outros. A transtemporalidade não serve apenas para friccionarmos períodos cronologicamente distantes, mas também temporalidades diversas e vividas simultaneamente, e entre as quais trafegamos sem notar. Este ambiente histórico urbano é o que permitiu à transtemporalidade emergir como possibilidade historiográfica. Achatar os termos e camadas de que ele é composto; homogeneizar os discursos e culturas; não permitir a articulação entre

Vinícius Schuchter
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eles; não viabilizar o diálogo entre os lugares variados e as variadas escalas do urbano ou do pós-urbano é eliminar tanto a república possível na atualidade quanto as condições que permitem à transtemporalidade subsistir. Assim fazendo, aprende-se com a transtemporalidade a olhar o mundo sob a forma do outro e sob vários pontos de vista, mesmo se opostos, tal como fez Ésquilo em Os persas. 27. Da mesma forma que a cidade atual reinterpreta seus lugares e “reusa” os “traços” do passado, tal como os define Bernard Lepetit, a transtemporalidade reativa lugares da história e os “reusa” para preencher as “falhas” do nosso contexto, tal como a “república” que nos falha. A transtemporalidade examina o documento do passado como se contemporâneo fosse, e isto contagia e desloca os lugares e espaços de nosso tempo e de nossa cidade temporais e físicos, como ao se friccionar a história de Romeu e Julieta com a de Riobaldo e Diadorim, em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa (como feito na montagem do Grupo Galpão, em 1990, sob a direção de Gabriel Vilella). 28. Ao promover diálogos entre tempos, a transtemporalidade tem como tarefa fazer da cidade, cidade. Por mais que esta cidade possa estar em vias de desaparecer. Esta tarefa é a mesma da transculturalidade e da transdisciplinaridade, ao promoverem articulações entre culturas e saberes, e não rupturas e hegemonias. Fazer da cidade, cidade, assemelha-se a viabilizar o convívio de mundos plurais dentro de uma mesma e única república. Antes que as percamos, a cidade e a república, definitivamente. Quanto mais a transtemporalidade confere nitidez a esta república possível no horizonte, mais ela abre o passado a jogos, remodelagens e reescrituras. E mais ela os reinscreve em nosso tempo, em nosso futuro e em nós.!

Vinícius Schuchter