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O transtorno bipolar do tipo I é caracterizado por pelo menos um episódio de mania, no qual o indivíduo apresenta hu- mor exaltado ou irritável associado com outros sintomas, tais como aumento da pressão para falar, do nível de energia e de atividade (American Psychiatric Association, 2000). Alguns desses pacientes também evidenciam episódios depressivos, com rebai- xamento do humor e diminuição do interesse e da energia. Além do mais, episódios hipomaníacos, mistos ou sintomas psicóticos podem ocorrer, assim como sintomas subliminares como, por exem- plo, uma significativa instabilidade de humor entre os episódios. Todos esses aspectos fazem com que o transtorno bipolar seja considerado um transtorno psiquiátrico grave e recorrente, tendo por vezes curso crônico e incapacitante (Hirschfeldt, 2004). O transtorno bipolar causa um grande número de conseqü- ências psicossociais. Pacientes com transtorno bipolar apresentam aumento da mortalidade por suicídio, homicídio e acidentes (Keck, 1998). O episódio maníaco do transtorno bipolar, em particular, está associado a elevado potencial para o indivíduo se envolver com atividades de risco para si ou para terceiros (Feldman, 2001). Impulsividade, agressividade, hipersexualidade e gastos excessivos estão entre os correlatos do comportamento maníaco associados com esse risco (Hirschfeldt, 2004). Adicionalmente, esse diagnóstico parece estar associado com conseqüências ne- gativas em vários aspectos da vida pessoal. Assim, indivíduos com sintomas do spectrum bipolar estão mais predispostos a problemas no ambiente de trabalho e nos relacionamentos interpessoais (Hirschfeldt, 2004). Pode ocorrer progressivo comprometimento dos relacionamentos familiares ocasionando, sobrecarga aos membros da família (ou cuidadores). Sobrecarga esta que pode ser tanto de natureza objetiva – divórcios, queda da renda familiar – Conferência clínica – Clinical conference Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Del Porto JA) Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Versiani M) José Alberto Del Porto e Marcio Versiani Transtorno bipolar: tratando o episódio agudo e planejando a manutenção Bipolar disorder: treating the acute episode and planning the maintenance Correspondência para: José Alberto Del Porto Rua Dr. Diogo de Fari, 1.087 – conj. 409 – 04037-003 – São Paulo-SP e-mail: [email protected] Resumo O transtorno bipolar do humor é considerado uma condição psiquiátrica grave e recorrente, tendo várias vezes um curso crônico e incapacitante. Levando-se em consideração sua natureza episódica, ao tratar o episódio agudo devemos sempre planejar a terapêutica de manutenção. Este artigo apresenta o caso de uma paciente com uma forma grave de transtorno bipolar, com uma longa história de doença, no momento hospitalizada por um episódio maníaco com sintomas disfóricos. A discussão que se segue é realizada no modelo de uma conferência clínica, com o comentário de dois experts na área, abordando vários aspectos relacionados a diagnóstico, evolução e tratamento do caso. Palavras-chave: transtorno bipolar, mania, mania disfórica, tratamento, conferência de caso. Abstract Bipolar disorder is considered a severe and recurrent psychiatric condition, with a chronic and incapacitating course. Considering its episodic presentation, the treatment of an acute episode has to include the planning of the maintenance. This article presents a case of a woman with a severe form of bipolar disorder, with a long course of the illness and current hospitalization due to a maniac episode with dysphoric features. The discussion that follows was conducted using a clinical conference format, with the comments from two experts in the area focusing on several aspects of the diagnosis, outcome and treatment of the case. Key words: bipolar disorder, mania, dysphoric mania, treatment. Recebido 30-05-05 Aprovado 07-06-05

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  • O transtorno bipolar do tipo I caracterizado por pelo menos um episdio de mania, no qual o indivduo apresenta hu-mor exaltado ou irritvel associado com outros sintomas, tais como aumento da presso para falar, do nvel de energia e de atividade (American Psychiatric Association, 2000). Alguns desses pacientes tambm evidenciam episdios depressivos, com rebai-xamento do humor e diminuio do interesse e da energia. Alm do mais, episdios hipomanacos, mistos ou sintomas psicticos podem ocorrer, assim como sintomas subliminares como, por exem-plo, uma significativa instabilidade de humor entre os episdios. Todos esses aspectos fazem com que o transtorno bipolar seja considerado um transtorno psiquitrico grave e recorrente, tendo por vezes curso crnico e incapacitante (Hirschfeldt, 2004).

    O transtorno bipolar causa um grande nmero de conseq-ncias psicossociais. Pacientes com transtorno bipolar apresentam aumento da mortalidade por suicdio, homicdio e acidentes (Keck, 1998). O episdio manaco do transtorno bipolar, em particular, est associado a elevado potencial para o indivduo se envolver com atividades de risco para si ou para terceiros (Feldman, 2001). Impulsividade, agressividade, hipersexualidade e gastos excessivos esto entre os correlatos do comportamento manaco associados com esse risco (Hirschfeldt, 2004). Adicionalmente, esse diagnstico parece estar associado com conseqncias ne-gativas em vrios aspectos da vida pessoal. Assim, indivduos com sintomas do spectrum bipolar esto mais predispostos a problemas no ambiente de trabalho e nos relacionamentos interpessoais (Hirschfeldt, 2004). Pode ocorrer progressivo comprometimento dos relacionamentos familiares ocasionando, sobrecarga aos membros da famlia (ou cuidadores). Sobrecarga esta que pode ser tanto de natureza objetiva divrcios, queda da renda familiar

    Conferncia clnica Clinical conference

    Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de So Paulo (Del Porto JA)Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Versiani M)

    Jos Alberto Del Porto e Marcio Versiani

    Transtorno bipolar: tratando o episdio agudo e planejando a manuteno

    Bipolar disorder: treating the acute episode and planning the maintenance

    Correspondncia para: Jos Alberto Del PortoRua Dr. Diogo de Fari, 1.087 conj. 409 04037-003 So Paulo-SPe-mail: [email protected]

    Resumo

    O transtorno bipolar do humor considerado uma condio psiquitrica grave e recorrente, tendo vrias vezes um curso crnico e incapacitante. Levando-se em considerao sua natureza episdica, ao tratar o episdio agudo devemos sempre planejar a teraputica de manuteno. Este artigo apresenta o caso de uma paciente com uma forma grave de transtorno bipolar, com uma longa histria de doena, no momento hospitalizada por um episdio manaco com sintomas disfricos. A discusso que se segue realizada no modelo de uma conferncia clnica, com o comentrio de dois experts na rea, abordando vrios aspectos relacionados a diagnstico, evoluo e tratamento do caso.Palavras-chave: transtorno bipolar, mania, mania disfrica, tratamento, conferncia de caso.

    Abstract

    Bipolar disorder is considered a severe and recurrent psychiatric condition, with a chronic and incapacitating course. Considering its episodic presentation, the treatment of an acute episode has to include the planning of the maintenance. This article presents a case of a woman with a severe form of bipolar disorder, with a long course of the illness and current hospitalization due to a maniac episode with dysphoric features. The discussion that follows was conducted using a clinical conference format, with the comments from two experts in the area focusing on several aspects of the diagnosis, outcome and treatment of the case. Key words: bipolar disorder, mania, dysphoric mania, treatment.

    Recebido30-05-05Aprovado07-06-05

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    como tambm subjetiva o preconceito em relao doena, o aumento do estresse pessoal (Dore, 2001).

    O tratamento do transtorno bipolar impe um conjunto de desafios tanto para o paciente quanto para o mdico. Vrios aspectos da doena mencionados anteriormente devem ser con-siderados quando iniciamos o planejamento teraputico individual. Caractersticas associadas psicopatologia especfica, aspectos individuais, a evoluo e o curso da doena, a resposta teraputica anterior, a presena ou no de conscincia de morbidade, a histria de adeso ao tratamento e uma rede adequada de apoio social so algumas das variveis a ser consideradas.

    Assim, aps decidir o local adequado para o tratamento do paciente, o profissional deve planejar uma estratgia racional (American Psychiatric Association, 2002). imprescindvel que a abordagem teraputica do episdio agudo leve sempre em considerao a necessidade do tratamento de manuteno. Com base nas recomendaes de vrios consensos e algoritmos de tratamento (American Psychiatric Association, 2002; Goodwin, 2003; Suppes, 2001), o uso do carbonato de ltio e do valproato de sdio, isolados ou em combinao, tem sido proposto como agentes de primeira escolha no tratamento da mania aguda. A associao com um agente antipsictico tambm recomendada, quando da presena de sintomas psicticos na sndrome mani-forme. Muito embora ainda incipiente, um crescente nmero de evidncias tem servido de base para o emprego de novos agen-tes anticonvulsivantes (gabapentina, lamotrigina e topiramato), assim como dos chamados antipsicticos atpicos (olanzapina, risperidona, aripiprazol, quetiapina, ziprasidona), no tratamento do transtorno bipolar. importante ressaltar que, alm do uso de psicofrmacos, estratgias psicossociais (Vieta, 2004; Justo, 2004) devem ser utilizadas em conjunto na abordagem do pacien-te com transtorno bipolar, como a psicoeducao e abordagens familiares, entre outras.

    Para exemplificar as dificuldades que o clnico pode encon-trar em sua prtica diria com pacientes bipolares, apresentamos um caso de uma paciente que foi hospitalizada em funo de um episdio manaco grave com sintomas psicticos. Logo aps a apresentao do caso, passaremos a comentrios de vrios aspectos relacionados ao diagnstico e sua conduo clnica, destacando-se o tratamento farmacolgico do episdio agudo e o planejamento teraputico futuro.

    Caso clnico

    Histria clnicaA Sra. E. tem 62 anos, de raa branca, divorciada,

    professora primria (aposentada por doena) e encontra-se sob internao psiquitrica h quatro dias. No formula uma queixa principal, dizendo apenas que foi trazida para a emergncia por sua filha. Nos registros do setor consta que a filha da Sra. E encontrou-a em casa, sozinha, muito agitada, falando sem parar e acendendo velas por todos os cmodos, inclusive prximo a recipientes de gs. Frente ao risco potencial desses atos a filha resolveu traz-la para avaliao psiquitrica.

    Segundo informaes de sua filha, a Sra. E. parece ter tido a sua primeira internao psiquitrica por volta dos 25 anos. Nessa ocasio, comeou a evidenciar uma crescente irritabilidade, falando exageradamente e passando as noites sem dormir. Com o passar do

    tempo, a sua hostilidade foi se tornando crescente, principalmente com o esposo, tendo chegado a agredi-lo fisicamente. Foi internada nessa poca, e permaneceu hospitalizada por aproximadamente 30 dias. Recebeu alta recuperada, sem as alteraes comportamentais descritas anteriormente, e voltou a assumir plenamente as suas atividades profissionais.

    Aps essa primeira internao, a Sra. E. teve mais outras seis, motivadas por episdios semelhantes ao anteriormente des-crito. Todas as suas hospitalizaes tiveram uma durao mdia de 15 dias a dois meses, tendo sido tratada com carbonato de ltio, carbamazepina, haloperidol, clorpromazina (isoladamente ou em associao, de acordo com vrios esquemas posolgicos). Numa das internaes foi tratada com eletroconvulsoterapia. No faz referncia a nenhum episdio depressivo desde o incio de sua doena.

    As crises da paciente foram se tornando mais graves com o passar do tempo. Passou a se comportar com se fosse muito rica, gastando todas as economias domsticas, cada vez que, apresentava um novo episdio. importante tambm salientar que, entre os episdios, a paciente no seguia regularmente o tratamento de manuteno com carbonato de ltio. Abandonava o seu uso alguns meses depois da alta, pois dizia que ficava muito trmula. No perodo intercrtico mantinha, segundo a sua filha, um comportamento irritvel, falando demais e tecendo comentrios in-discretos, geralmente de natureza sexual. Houve um agravamento do seu estado nos ltimos cinco anos, o que pode estar refletido nas quatro internaes que sofreu neste perodo.

    Por fim, h cerca de um ano, aps a separao de seu companheiro, comeou a apresentar comportamento continua-mente exaltado, passando a envolver-se em brigas freqentes com os vizinhos e tambm a realizar gastos exagerados. Durante esse perodo morou sozinha e deu praticamente todos os mveis de sua casa, assim como tambm as suas roupas. Nos dias ante-riores sua internao passou a exibir um comportamento mais alterado ainda. Dizia ter muito dinheiro, pois sua famlia era muito rica, possuidora de vrias fazendas. Foi a dois supermercados e fez compras extravagantes e muito caras. Levou para casa cerca de 60 pacotes de biscoitos, inmeras garrafas de usque e vrios produtos de beleza, dizendo que iria do-los aos pobres. Passou a adotar um discurso mstico, julgando-se dona de poderes es-peciais. No dia de sua internao, ao chegar sua casa, a filha constatou que a Sra. E vinha acendendo vrias velas em lugares com potencial risco de incndio (sob a cama, perto das cortinas e de botijes de gs).

    A paciente portadora de hipertenso arterial h longo tem-po, fazendo uso regular de captopril 75mg/dia. Nega ter diabetes mellitus ou outras doenas degenerativas, assim como tambm nega j ter se submetido a cirurgias ou transfuses.

    A me da Sra. E. faleceu de causa desconhecida quando a paciente tinha 7 meses de idade. Seu pai faleceu por problemas cardacos quando ela era adolescente. Possui cinco irmos e uma irm, todos saudveis, no havendo histria de doena mental na famlia. Teve duas filhas, sendo que uma delas faleceu aos 7 meses por complicaes de uma gastroenterite.

    A Sra. E. nasceu de parto normal a termo, sem complica-es. Apresentou crescimento e desenvolvimento normais. A filha da paciente diz que seus tios lembram que, quando era jovem e morava no interior, a Sra. E ficava muito agitada e falante, o que

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    fazia com que seus pais procurassem alguns religiosos e curan-deiros para acalm-la. Sua menarca foi aos 13 anos. Teve duas gestaes e dois partos, sem histria de abortos. Sua menopausa ocorreu h cerca de dez anos e refere no ter tido acompanhamento ginecolgico.

    Conheceu seu companheiro aos 20 anos e com ele viveu at cerca de um ano atrs. A filha da paciente informa que o pai separou-se da me aps a sua ltima crise, quando ela cometeu vrias indiscries, chegando a relatar detalhes de sua vida sexual para todos os conhecidos da famlia.

    A Sra. E trabalhou regularmente como professora prim-ria durante 20 anos. Est atualmente aposentada, devido sua doena psiquitrica e, quando est bem, passa a maior parte do tempo cuidando de sua casa. Reside em casa prpria de alvenaria e com boas condies sanitrias. Desde que seu companheiro a deixou, vive sozinha. Sua filha reside no andar inferior da casa e somente a encontra no perodo noturno, j que trabalha durante o dia. Tinha um bom relacionamento com os vizinhos at cerca de um ano atrs.

    De forma complementar, o exame fsico geral e, em particular, o neurolgico, realizados na paciente, no revelaram nenhuma anormalidade.

    Exame psquicoQuando solicitada, a paciente aceitou prontamente ser

    entrevistada. Trajava-se com vestes prprias e limpas. Tinha os cabelos penteados e as unhas das mos e dos ps pintadas com uma cor extremamente viva (amarelo cintilante). Sabia corretamente a data e o local onde se encontrava. Prestava ateno ao entrevistador e no parecia se distrair com os eventuais barulhos do ambiente. Dava respostas adequadas s perguntas, parecendo compreend-las plenamente. Entretanto, falava ininterruptamente, engatando um assunto no outro, de forma que, com o tempo, afastava-se do tema inicial de sua resposta. Com um volume de voz aumentado, precisava, por vezes, ser interrompida para que outra pergunta fosse feita. Afirmava ser uma pessoa extremamente alegre, dizendo que vivia cantando. Para demonstrar, comeou a cantar uma msica espontaneamente. No final do seu canto comeou a chorar abruptamente, dizendo estar emocionada, e logo aps voltou a sorrir de novo.

    De sbito, comeou a tecer comentrios crticos sobre uma rede de televiso, dizendo no final que, aps a atual internao, iria mandar uma carta para essa emissora para depor o atual presidente da Repblica, pois no o considerava inteligente. Dizia ser uma pessoa muito rica, filha de fazen-deiros, sendo possuidora de vasta fortuna. Acreditava possuir poderes especiais, conferidos por uma entidade espiritual. Com esses poderes poderia salvar as pessoas e at cur-las de doenas e, por isso, tinha que acender velas para afastar os espritos maus.

    Gesticulava o tempo todo durante a entrevista, com ges-tos amplos, tendo se levantado da cadeira algumas vezes, mas aceitando voltar a se sentar quando solicitada. Negava ouvir sons ou vozes que outras pessoas no ouviam. Assim tambm negava ter tido vises ou outras alteraes visuais. No sabia porque tinha sido hospitalizada. Dizia no ter nenhum problema mental, podendo ir embora para a sua casa imediatamente.

    Diagnstico e evoluo inicialA Sra. E. foi hospitalizada apresentando um episdio

    manaco, com sintomas psicticos, do transtorno afetivo bipolar [F31.2 (CID-10)]. Durante sua primeira semana de hospitalizao foi tratada com carbonato de ltio (at 900mg/dia) associado a haloperidol at 10mg/dia. As dosagens seriadas de ltio mostraram valores ascendentes, partindo de zero e chegando ao patamar de 1mEq/L, no qual se manteve. Como, aps cerca de trs semanas, a paciente evidenciasse apenas uma discreta melhora, ainda mantinha a exaltao e os sintomas psicticos da poca da inter-nao. Nesse momento foi iniciado cido valprico (500mg/dia) em associao ao esquema anterior.

    Comentrios do Professor Del Porto

    A s alteraes do humor evidenciadas pela paciente em questo parecem remontar sua juventude, quando os pais, em funo dos perodos em que ficava agitada e falante, a encaminharam aos curandeiros da comunidade em que vivia. A primeira internao ocorreu aos 25 anos, em decorrncia de quadro manaco que incluiu crescente irritabilidade e hostilidade para com o esposo, com agresso fsica. So relatadas posteriormente outras seis internaes, das quais quatro nos ltimos cinco anos (dos 57 aos 62 anos de idade). Agravou-se o quadro nos ltimos cinco anos, ressaltando-se a histria de que, mesmo nos perodos ditos intercrticos, a paciente vinha se mantendo irritada e querelante, brigando com os vizinhos e fazendo gastos exagerados.

    Embora o DSM-IV restrinja em muito o conceito de mania mista (o paciente deve preencher critrios completos para episdios manacos e depressivos, quase todos os dias, na maior parte do tempo, segundo esse manual), outros autores definem os quadros mistos de maneira mais abrangente, na esteira das concepes de Kraepelin e Weigandt. Assim, por exemplo, McElroy et al., 1992) enfatizam a importncia do diagnstico de mania disfrica, de acordo com critrios operacionais mais flexveis, e chamam a ateno para o fato de que tais episdios so mais graves, mais comuns em mulheres, tendo incio mais precoce e prognstico pior. O conceito tem implicaes teraputicas, uma vez que a mania disfrica no responde bem aos sais de ltio, parecendo ser mais bem tratada com anticonvulsivantes (ou, eventualmente, neurolpticos atpicos) e eletroconvulsoterapia (ECT).

    Considerando-se a importncia do humor disfrico nas crises apresentadas pela paciente (evidenciado por hostilidade e agresso ao esposo, brigas com os vizinhos e marcada irritabilidade), cabe refletir nesse caso sobre o conceito e as implicaes teraputicas do diagnstico de mania disfrica. Depreende-se do exposto a relativa ineficcia do ltio, sendo a paciente tratada, nas suas crises, com carbamazepina, neurolpticos e at mesmo com ECT, recurso reservado para os casos geralmente resistentes s abordagens farmacolgicas.

    A persistncia de sintomas importantes nos chamados perodos intercrticos alinha-se em conformidade aos achados de Judd (2002), que em follow up de mais de 12 anos verificaram ser a doena bipolar mais propriamente crnica que episdica, em funo mesmo da persistncia dos sintomas entre os episdios maiores.

    A evoluo seguiu o curso natural da doena; a paciente semelhana de muitos doentes crnicos no observou os

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    tratamentos recomendados para a manuteno. Seguiu-se a uma das crises a separao conjugal, ocorrncia freqente para os pacientes com transtorno bipolar.

    Todos esses dados convergem em assinalar que a doena bipolar uma condio grave, muitas vezes crnica, com elevado custo para os pacientes e suas famlias; todas essas consequncias parecem ainda mais severas para os quadros mistos, aqui includa a mania disfrica. O papel da educao a respeito da doena, enfatizado por Colom et al. (2003), da maior importncia para a adeso ao tratamento e o engajamento dos familiares no processo de cura (palavra aqui utilizada no seu sentido original, de cuidado).

    O elevado nmero de episdios prvios, aliado aos sin-tomas disfricos persistentes, faz pensar na utilidade de outros recursos teraputicos que no o ltio. Nas fases de reagudizao de fato indicado o uso de neurolpticos, em especial os atpicos. H evidncias que comprovam a eficcia dos vrios atpicos na mania aguda, includos aqui os casos de mania disfrica. Consi-derando-se a relativa ineficcia do ltio para esses casos, de se pensar na possibilidade de manuteno com anticonvulsivantes, entre os quais o cido valprico assoma como alternativa razovel (Swann et al., 2002). H tambm estudos, como o de Greil (et al. 1988), que apontam a carbamazepina como alternativa eficaz para esses casos. Por seu perfil farmacocintico e menores interaes, a oxcarbazepina poderia tambm ser cogitada, em que pese a escassez de trabalhos especficos com esse frmaco. Os neuro-lpticos atpicos, em especial a olanzapina, tm sido estudados tambm na fase de manuteno (Tohen et al. 2004). A escolha final ir depender da resposta da paciente s alternativas propostas. Infelizmente, nem sempre possvel utilizar-se apenas um medi-camento, como atestam os trabalhos patrocinados pela Stanley Foundation. De qualquer forma, a polifarmacoterapia, quando necessria, deve ser utilizada, neste e em outros casos, com a necessria cautela, atentando-se para as possveis interaes e o agravamento de efeitos colaterais.

    Comentrios do Professor Versiani

    A paciente tem uma histria de 37 anos de transtorno bipolar, com vrios episdios de mania e sem episdios de depresso. O fato de ter trabalhado regularmente, como professora primria, durante 20 anos, mostra que por um bom tempo a doena teve uma evoluo favorvel, mesmo sem a adeso da paciente aos tratamentos de manuteno com estabilizadores do humor (ltio).

    Na internao atual descrito um quadro de mania com idias delirides, na descrio de Karl Jaspers idias de riqueza, grandeza, poder (Jaspers, 1963). No DSM-IV, essas idias so chamadas de idias delirantes congruentes com o humor. O curso do pensamento est acelerado (a paciente engata uma frase na outra), mas no no grau da fuga de idias, pois os contedos mantm um encadeamento. interessante a erupo abrupta de uma crise de choro no meio de um quadro de aparente alegria e exaltao exageradas e sua rpida reverso. Isso muito comum em quadros de mania.

    As descries de quadros de mania e de depresso em tratados e aulas de psiquiatria tendem a seguir padres lgicos que no correspondem realidade clnica, bem mais complexa.

    A mania descrita como um quadro de exaltao do humor, com todos os seus componentes. Karl Jaspers j alertava que quadros puros de mania ou de depresso so exceo. Quadros mistos seriam a regra. Alm disso, como no caso da paciente deste caso clnico, irritabilidade e agressividade so muito comuns em quadros de mania.

    Cassidy et al. (1998), em um dos poucos estudos feno-menolgicos bem-feitos sobre mania, mostraram que a sintoma-tologia se agrupa em torno de cinco fatores humor disfrico, presso psicomotora, psicose, funo hednica aumentada e irritabilidade agressiva. Na anlise da sintomatologia de uma grande amostra de pacientes com mania, o humor disfrico (depresso, ansiedade e labilidade) apareceu de modo mais claro do que o humor eufrico, ao contrrio do que boa parte dos psiquiatras imagina ou do que os livros descrevem.

    Quanto ao tratamento da Sra. E, torna-se necessrio um alerta. Ela fazia uso regular de captopril, um inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA), e foi-lhe prescrito ltio em dose de at 900mg/dia. Os anti-hipertensivos da classe dos IECAs inibem significativamente o clearance do ltio, podendo induzir intoxicao perigosa, mesmo com pequenas doses do sal (Finley, 1996). A associao de um IECA com o ltio s deve ser feita em casos muito raros, quando absolutamente necessria, e requer monitoramento do nvel plasmtico do ltio com grande freqncia.

    Pacientes em tratamento de hipertenso arterial reque-rem ateno especial quanto ao emprego do ltio. Diurticos tiazdicos, anti-hipertensivos IECA e outros medicamentos diminuem o clearance do ltio. Alm disso, a hipertenso arterial um fator de risco para o comprometimento da funo renal, o que tambm acontece com o ltio.

    A Sra. E no apresentou melhora considervel em seu quadro manaco aps trs semanas de uma associao de ltio com haloperidol (10mg/dia). Foi, ento, acrescentado cido valprico. A associao de dois estabilizadores do hu-mor tem sido muito recomendada, tanto para o tratamento da mania como para o tratamento de manuteno do transtorno bipolar (Grof, 2003; Post, 2004), quando a monoterapia no eficaz.

    A associao de dois ou mais agentes teraputicos no tratamento da mania (estabilizadores do humor ou antipsicticos de segunda gerao) tem pouca base em evidncias de ensaios clnicos controlados e mais fundamentada em estudos de observao clnica.

    Por outro lado, h consenso na experincia clnica de dcadas no tratamento da mania de que a eletroconvulsote-rapia o tratamento mais eficaz e de ao mais rpida. Alm disso, se forem levados em conta os inmeros efeitos inde-sejveis dos medicamentos, que se somam nas associaes, alm de interagirem perigosamente, a eletroconvulsoterapia pode ser vista, tambm, como o tratamento mais seguro.

    ConclusoO profissional envolvido com o tratamento de pacientes

    apresentando um episdio manaco do transtorno bipolar deve levar em considerao vrios aspectos relacionados ao caso para poder realizar um planejamento teraputico mais adequado. Algumas

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    dessas caractersticas seriam a idade de aparecimento da doena, a sua forma de apresentao, as modificaes na apresentao clnica com o passar do tempo e a presena de sintomas psicticos e disfricos. As formas mistas do transtorno bipolar tendem a ter pior resposta ao ltio quando usado como monoterapia. Agentes anticonvulsivantes como o valproato de sdio (usados isoladamen-te ou em conjunto com o ltio ou com os antipsicticos atpicos) tm sido recomendados como mais eficazes nesses casos. O uso

    da eletroconvulsoterpia um opo adicional em casos graves de transtorno bipolar.

    Agradecimento

    Os autores agradecem ao Dr. Leonardo Lessa Telles o fornecimento das informaes sobre o caso clnico que serviu de base para a preparao deste artigo.

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