6
449 CAPÍTULO 31 TRAUMA URETERAL LUIS OTAVIO AMARAL DUARTE PINTO GUILHERME CHONCHOL BAHBOUT RICARDO ALMEIDA INTRODUÇÃO O traumatismo isolado do ureter é raro. Representa algo em torno de 1% das lesões do apa- relho geniturinário. Sua incidência relaciona-se principalmente com iatrogenias, provenientes de cirurgias urológicas e ginecológicas, ou por ferimentos penetrantes como facadas, disparos de armas de fogo etc 1 . As cirurgias ginecológicas são responsáveis por quase metade das injúrias acidentais ao ure- ter. Calcula-se que essa complicação ocorra em cerca de 2% das histerectomias. A artéria uterina, ramo da ilíaca interna, segue um trajeto ao longo da parede lateral da pelve e, na medida em que se aproxima do colo do útero, atravessa para o sentido medial. Nesse momento costuma passar por cima do ureter (a ponte sobre o rio), que pode ser ligado ou seccionado inadvertidamente durante o ato operatório 1,2 . Os procedimentos urológicos, principalmente aqueles destinados ao tratamento de cálculos renais ou ureterais também merecem destaque. A passagem forçada de ureteroscópios rígidos nos pontos de estreitamento ureteral, tais quais a junção ureterovesical (JUV), ureteropiélica (JUP) e próximo a bifurcação dos vasos ilíacos, pode provocar lacerações e, em casos mais graves, até a avul- são do órgão 3,4 . APRESENTAÇÃO CLÍNICA Diferindo do que foi apresentado até o momento, os ferimentos traumáticos do ureter não habituam cursar com hematúria. Pondera-se que apenas 55% dos casos apresentam este sintoma. Em sua maioria o diagnóstico de lesão ureteral é confirmado de forma tardia, dias ou semanas após

TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

  • Upload
    others

  • View
    17

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

449

CAPÍTULO 31

TRAUMA URETERAL

LUIS OTAVIO AMARAL DUARTE PINTOGUILHERME CHONCHOL BAHBOUT

RICARDO ALMEIDA

INTRODUÇÃO

O traumatismo isolado do ureter é raro. Representa algo em torno de 1% das lesões do apa-relho geniturinário. Sua incidência relaciona-se principalmente com iatrogenias, provenientes de cirurgias urológicas e ginecológicas, ou por ferimentos penetrantes como facadas, disparos de armas de fogo etc1.

As cirurgias ginecológicas são responsáveis por quase metade das injúrias acidentais ao ure-ter. Calcula-se que essa complicação ocorra em cerca de 2% das histerectomias. A artéria uterina, ramo da ilíaca interna, segue um trajeto ao longo da parede lateral da pelve e, na medida em que se aproxima do colo do útero, atravessa para o sentido medial. Nesse momento costuma passar por cima do ureter (a ponte sobre o rio), que pode ser ligado ou seccionado inadvertidamente durante o ato operatório1,2.

Os procedimentos urológicos, principalmente aqueles destinados ao tratamento de cálculos renais ou ureterais também merecem destaque. A passagem forçada de ureteroscópios rígidos nos pontos de estreitamento ureteral, tais quais a junção ureterovesical (JUV), ureteropiélica (JUP) e próximo a bifurcação dos vasos ilíacos, pode provocar lacerações e, em casos mais graves, até a avul-são do órgão3,4.

APRESENTAÇÃO CLÍNICA

Diferindo do que foi apresentado até o momento, os ferimentos traumáticos do ureter não habituam cursar com hematúria. Pondera-se que apenas 55% dos casos apresentam este sintoma. Em sua maioria o diagnóstico de lesão ureteral é con� rmado de forma tardia, dias ou semanas após

Page 2: TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

TRAUMA URETERAL

450

o evento2.

Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri� ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade abdominal ou retroperitoneal. Os pacientes podem evoluir com dor e distensão abdominal difusa, diminuição da diurese, sinais de peritonite e sepse. O acometimento conjunto de outras vísceras abdominais, como intestino delgado, cólon e rins é a regra5.

Os enfermos que sofreram ligaduras acidentais do ureter demonstram dor lombar associada à hidronefrose, náuseas, vômitos, febre e calafrios. Em casos de ligadura bilateral a anúria estará presente2.

INVESTIGAÇÃO DIAGNÓSTICA

O método de imagem de escolha para o estadiamento é a pielogra� a retrógrada. Esse exame pode ser prontamente providenciado quando houver suspeita de lesão durante cirurgias urológicas, como ureterolitotripsias. Baseia-se na passagem de um cateter ureteral, guiado por cistoscopia, com injeção de contraste e captura de imagens pelo aparelho de radioscopia6.

Na presença de ligadura do ureter observa-se uma interrupção brusca na progressão do con-traste pelas vias excretoras. Já nos casos de secção ou avulsão constata-se o transbordamento do mesmo para a cavidade abdominal ou espaço retroperitoneal6.

Na ausência de equipamentos necessários para a realização da pielogra� a, a tomogra� a con-trastada, com cortes tardios, é uma excelente opção. Esse exame permite uma análise apurada de toda a via urinária, apontando áreas de vazamento ou descontinuidade na descida do contraste pelo ureter (Figura 1).

Page 3: TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

LUIS OTAVIO AMARAL DUARTE PINTO, GUILHERME CHONCHOL BAHBOUT, RICARDO ALMEIDA

451

Fig. 1 – Lesão de ureter distal direito. Foto cedida pelo Hospital Municipal Souza Aguiar.

Page 4: TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

TRAUMA URETERAL

452

TRATAMENTO

A abordagem varia conforme a topogra� a e a extensão da lesão ureteral. Pequenos feri-mentos puntiformes e pontuais, decorrentes da manipulação de ureteroscópios, são tratados com sucesso em sua maioria através de implante de cateter duplo J, guiado por cistoscopia. Estima-se a manutenção desse stent por um período mínimo de duas semanas, podendo ser retirado após com-provação de cicatrização, através de pielogra� a ou tomogra� a contrastada de controle7.

Nos casos que demandam exploração cirúrgica é importante localizar os segmentos do ure-ter lesionado, assim como mensurar a extensão e gravidade dos agravos. Na vigência de uma boa aproximação, sem tensão nos cotos, a anastomose término-terminal (T-T), após desbridamento e espatulamento, seria a opção ideal de tratamento (Figura 2 e 3). Deve-se utilizar sempre que possí-vel um cateter duplo J para orientar a ra� a, efetuada de preferência com � o mono� lamentar absor-vível5,7.

Feridas extensas no ureter proximal, que não permitem uma anastomose T-T segura, podem exigir a elaboração de procedimentos cirúrgicos mais complexos, como a transureteroanastomose (anastomose término-lateral no ureter contralateral); a interposição ureteral com segmento intesti-nal; ou até mesmo autotransplante renal2,7.

As lesões do terço distal podem ser tratadas através de reimplante ureteral pelas técnicas convencionais. Na presença de segmentos extensamente comprometidos, uma boa opção é a con-fecção do psoas hitch, que consiste na � xação da bexiga no músculo psoas ipsilateral, favorecendo a realização de um reimplante com menos tensão. Outra alternativa seria a criação de um retalho, ou � ap vesical, pela técnica de Boari, permitindo um reimplante mesmo com comprometimento do ureter até sua porção média.

Page 5: TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

LUIS OTAVIO AMARAL DUARTE PINTO, GUILHERME CHONCHOL BAHBOUT, RICARDO ALMEIDA

453

Fig. 2 e 3 – Lesão de ureter proximal e anastomose termino-terminal para reparo da lesão. Foto cedida pelo Hospital Munici-pal Souza Aguiar.

Page 6: TRAUMA URETERAL · 2019-08-30 · TRAUMA URETERAL 450 o evento2. Nas vítimas de traumatismos penetrantes, com secção do ureter, veri˜ ca-se o extravasamen-to de urina para a cavidade

TRAUMA URETERAL

454

COMPLICAÇÕES

A fístula urinária prolongada é a mais comum. Pode evoluir para urinoma, abscesso e peri-tonite, principalmente quando diagnosticada tardiamente. Outras complicações incluem estenoses cicatriciais do ureter e calci� cações no cateter duplo J, di� cultando a remoção do mesmo7.

REFERÊNCIAS

1. Zerati Filho. Urologia Fundamental. Sao Paulo: Planmark, 2010.

2. Capbell-Walsh. Urology 9th Edition. Philadelphia: Saunders, 2007.

3. Hohenfellner. Emergencies in Urology. Verlag: Springer, 2007.

4. Novick. Operative Urology at the Cleveland Clinic. New Jersey: Humana Press, 2006.

5. Montague. Textbook of Reconstructive Urologic Surgery. London: Informa UK, 2008.

6. Advanced Trauma Life Support for Doctors 9th Edition. American College of Surgeons. 2012.

7. Moorey A. F. et al.: Urotrauma. AUA Guideline. American Urological Association. 2014.