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TRAVESSIA PARA UM OUTRO TEMPO

travessia para um outro tempo - Fundação Astrojildo Pereira · A retórica da intransigência e a pedagogia política da transigência Paulo Fábio Dantas Neto A o lado da insistência

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travessia para um outro tempo

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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

Fundação astrojildo pereiraSEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected]

Presidente de Honra: Armênio Guedes (In memoriam)Presidente: Alberto Aggio

política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.políticademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. Coelho(In memoriam)

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2016 by Fundação Astrojildo Pereira

Obra da capa: Minha infância iluminada, de Edinaldo Sousa ([email protected])

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF : Fundação Astrojildo Pereira, 2016.ISSN 1518-7446 No 45

200p.

CDU 32.008 (05)

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política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Julho/2016

travessia para um outro tempo

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Sobre a capa

Edinaldo Pereira de Sousa, o Sousa, como é conhecido, o autor das belas obras que iluminam a capa, contracapa e abertura de cada seção deste número da nossa revista

quadrimestral, é paraense de Santarém, mas radicado em Manaus, há 45 anos. Na capital do Amazonas, ele exerceu, por mais de vinte anos, a profissão de desenhista publicitário e hoje sua principal atividade profissional é a de radialista, tendo uma das grandes audiências no estado.

Trata-se de um artista plástico completo que viaja por vários estilos, como cartunista e aquarelista, que é sua principal paixão. Já participou de diversas exposições com os mais variados temas, sempre expressando sua visão cotidiana da região amazônica, da qual é um apaixonado.

Hoje, o Sousa vive uma fase que ele define como “aquarelista digital”, já que transferiu toda sua paixão, conhecimento e domí-nio da técnica como aquarelista para o mundo virtual. E o resul-tado foi uma exposição com trinta “telas” nas quais pincéis, tintas e telas foram substituídas por modernas ferramentas tecnológi-cas, mas a criatividade, a sensibilidade e a expressão não deixa-ram de ser as peculiares a um típico artista da Amazônia.

Emocionem-se e vibrem com os notáveis trabalhos que ele selecionou especialmente para a nossa Política Democrática, da qual é leitor permanente.

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SumárioEDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEMA DE CAPA: TRAVESSIA PARA UM OUTRO TEMPOA retórica da intransigência e a pedagogia política da transigência Paulo Fábio Dantas Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11Razões da agoniaLuiz Werneck Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17Desentendimento, dogmatismo, mediações ausentesMarco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20Implosão do populismo assistencialista e espaço para ampla e desejável viradaJarbas de Hollanda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

II. ObSERVATóRIOAs duas esquerdas Luiz Sérgio Henriques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33Da reengenharia republicana em prol do Estado Democrático de DireitoJosé Vigilato da Cunha Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37O crime compensa?Eliane Cantanhêde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44Uma pauta para a transição democráticaAugusto de Franco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

III. COnjUnTURAO novo Febeapá ou o golpe na semânticaPaulo César Nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57Escândalo: da ditadura à democraciaLúcio Flávio Pinto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61Mulheres na política. Para que? Por que?Tereza Vitale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70O brasil pós-PT: da democracia formal à democracia social ou nova democraciaChico Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

IV. ECOnOMIA E DESEnVOLVIMEnTOÉ de chorarVicente Nunes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79País de bolso vazio, mas com modernos aviões de caçaMilton Coelho da Graça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84Um novo jeito de enfrentar a criseMíriam Leitão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

V. CIÊnCIA E TECnOLOGIA & MEIO AMbIEnTEInovação tecnológica, coordenação política e transversalidadeRenan Gonçalves Leonel da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93brasil: vanguarda ambiental e agrícolaArnaldo Jardim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99Valor da águaEliseu Roberto de Andrade Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

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VI. AS CIDADES E A GOVERnAnÇA DEMOCRÁTICAPor trás das aparências no espaço municipalFausto Matto Grosso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109Segurança Pública e o papel dos municípiosFelipe Sampaio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

VII. QUESTõES DO ESTADO E DE CIDADAnIAO protagonismo que o brasil recusaIvan Marques / Natália Pollachi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125O professor que bota moralPriscila Cruz / James Ito-Adler. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

VIII. DIREITO & jUSTIÇAA liturgia do impeachmentSacha Calmon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135Os vários lados da reforma trabalhistaAlmir Pazzianotto Pinto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138

IX. EnSAIOA semântica do contraditório numa comédia da arte das aparênciasPaulo Elpídio de Menezes Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

X. bATALhA DAS IDEIASCuidado com a antipolíticaSergio Fausto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151O que está acontecendo com a filósofa?Luís-Sérgio Santos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154historiadores por mais democraciaPablo Spinelli / Vagner Gomes de Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156

XI. MUnDOEpitáfio do lulopetismo diplomáticoPaulo Roberto de Almeida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161Deus salve a rainhaPaulo Delgado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164Por que África e brasil precisam se manter unidos?Silvana Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166no intervalo de um séculoSilvio Queiroz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

XII. MEMóRIADa cruz à estrela: a trajetória da Ação Popular Marxista-LeninistaEsther Kuperman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173A ruptura indolor – o conceito de crise na história do comunismo brasileiroMichel Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

XIII. RESEnhADívida: os primeiros 5000 anosTiago Camarinha Lopes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189Escritos em guardanaposJ. R. Guedes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196

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Editorial

Apesar de todas as dificuldades que o Brasil ora enfrenta, consequência sobretudo de 13 anos de governos despreo-cupados com o hoje e o amanhã dos brasileiros, começa-se

a perceber que homens e mulheres, jovens e idosos, acreditam, sempre mais, na possibilidade de se dar uma volta por cima.

De acordo com a pesquisa DataFolha, divulgada no dia 16 de julho, metade dos entrevistados consultados em todo o território nacional manifesta-se favorável à continuidade de Michel Temer na Presidência da República até 2018, apenas 32% defendem o retorno de Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto e o restante (18%) ou deseja eleições extraordinárias ou se omite em dar resposta.

Outro avanço importante para dar cobertura aos primeiros e decisivos passos do governo Temer, a fim de criar condições favo-ráveis a deixarmos o atoleiro econômico-financeiro, político, social e ético montado pela ausência de projeto nacional e pela incompetência da presidente Dilma e sua equipe, foi a vitória do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) na disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados, no dia 14 de julho corrente, graças a uma correta articulação interpartidária. Este novo passo avan-çado no Legislativo, com mais de 60% dos votos, além de signi-ficar maior garantia das perspectivas de se abrir novos cami-nhos para o país permitiu fragilizar o chamado Centrão, um amontoado de parlamentares que se movimenta única e exclusi-vamente em função de seus interesses estritamente pessoais.

Para o último domingo deste julho, dia 31, estão sendo convo-cadas mobilizações populares em todos os estados, desde as capi-tais até pequenas cidades do interior, tendo como bandeiras centrais a confirmação do impeachment de Dilma – não apenas pela Comissão Especial de senadores que, há meses, estuda e discute os motivos do seu afastamento em definitivo, mas também no Plenário do Senado, com a expectativa de que o resultado seja idêntico ou melhor do que o do Plenário da Câmara Federal – e o

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início das grandes reformas (política, do Estado, da Previdência, o pacto federativo, dentre outras).

Nesta edição de Política Democrática, como é costumeiro nela, a expressiva maioria dos articulistas, constituída de algumas privilegiadas cabeças que estudam e analisam a nossa reali-dade, em que se destacam Augusto Franco, Jarbas de Holanda, Lúcio Flávio Pinto, Luiz Sérgio Henriques, Luiz Werneck Vianna, Marco Aurélio Nogueira, Míriam Leitão, Sergio Fausto, dentre outros, concentra-se na abordagem de diferentes ângulos do momento difícil de que estamos sendo vítimas e as perspectivas que se apresentam para dela sairmos.

Em nossas habituais Seções, como Tema de Capa, Observató-rio, Conjuntura, Economia e Desenvolvimento, Questões do Estado e da Cidadania, Direito e Justiça, Ensaio, As Cidades e a Governança Democrática, Batalha das Ideias e Mundo, cada um desses autores busca mergulhar fundo nos aspectos da delicada e complexa situação socioeconômica repleta de problemas, em uma conjuntura desfavorável à vida material, ao bem-estar da maioria, em que os valores éticos e morais foram substituídos por abjetos mecanismos de corrupção, objetivando pura e simples-mente manter a máquina do poder sob hegemônico controle.

Nessa sua rica e instigante contribuição teórica, eles buscam identificar as origens internas e externas dos nossos atuais problemas, e apontam possíveis caminhos para pisarmos em terra firme, no rumo de uma sociedade em que se possa dialo-gar, sem intolerância e discriminação, democraticamente aber-tos para construirmos um espaço de convivência econômica e social em que haja oportunidades iguais para todos, calçada numa estrutura científica, de inovação tecnológica e de irrestrito respeito ao meio ambiente.

Trata-se de um momento que poderá ser usado para um fértil aprendizado cívico e para um crescente amadurecimento demo-crático e republicano.

Boa leitura!

Os editores

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I. Tema de capa

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Autores

Jarbas de HollandaJornalista, autor de um blogmail de análise política semanal.

Luiz Werneck ViannaSociólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Marco Aurélio NogueiraProfessor de Teoria Política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp, São Paulo.

Paulo Fábio Dantas NetoCientista político e professor da Universidade Federal da Bahia.

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A retórica da intransigência e a pedagogia política da transigência

Paulo Fábio Dantas Neto

Ao lado da insistência na assim chamada narrativa do golpe, o discurso das forças políticas afastadas recentemente do governo federal destaca-se pelo tom preditivo. Afoitas como

nunca, anunciam o caos político e social como resultado neces-sário do sentido antipopular – pecado mortal, para elas – de toda e qualquer ação ou declaração, real ou imputada, do governo interino. Em raciocínio circular, vaticinam o fracasso dessa inte-rinidade “neoliberal”, resultado lógico e independente de ações concretas, daquilo que afirmam ser o pecado original dessa inte-rinidade. Assim, origem e futuro do governo interino explicam-se mutuamente. Tudo retoricamente explicado e resolvido. Dialética manca e obscura sobre a cena complexa.

Penso não ser coincidência que esse discurso convirja (na parte preditiva, não no diagnóstico do “golpe”) com o de setores que, na imprensa e no ambiente político, mais do que propria-mente no mercado, difundem uma ideologia ultraliberal. Vozes assim já ensaiam anunciar que a credibilidade de uma nova postura fiscal se esvairá porque a atitude política do governo inte-rino, na relação com o Congresso, partidos, servidores públicos e outras “impurezas” do mundo real, afasta-se do script fundamen-talista que esses setores propõem.

O cacoete de apontar patologia e fracasso em tudo o que não é espelho de sua crença une os dois extremos de um contencioso que tenta travar a política, mesmo que o extremo daquilo que se autonomeia esquerda torça e aja abertamente contra o governo

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1212 Paulo Fábio Dantas Neto

Temer e o outro – de uma nem sempre assumida direita – siga numa crítica mais branda e enviesada, nutrindo expectativas de instrumentalizar a nova situação.

Percebe-se nos dois discursos, além das afinidades eletivas apontadas, uma comum contaminação por aquilo que Albert Hirschman chamou de “retórica da intransigência”. Cada uma das pedras que têm sido atiradas, na Geni em que procuram converter o governo interino, apoia-se em um ou em mais de um dos três tipos de tese que, segundo Hirschman, são historica-mente defendidas pelo pensamento político reacionário diante de aspirações e movimentos de mudança política e social. São elas as teses da perversidade (segundo a qual os efeitos das mudanças tendem a se opor aos seus objetivos declarados), da futilidade (a de que promessas de mudança não levarão a lugar novo algum e sim à conservação do mesmo) e da ameaça, a convicção reacioná-ria de que reformas no status quo darão lugar ao caos e à destrui-ção do que foi conquistado antes.

Para nos acautelar contra ambas as correntes de adivinhos o que há, além do fato do governo interino respirar há menos de um mês e por isso ser imprudente concluir por seu sucesso ou desas-tre, é muita confusão de informações e versões conflitantes circu-lando, tanto no Brasil, como lá fora. Vale considerar – pedindo perdão pelo uso de um já hoje lugar comum – que quem não esti-ver confuso está mal informado.

Uma das confusões mais curiosas é criada por tentativas ziguezagueantes de tornar plausível a fábula do golpe. Afinal, a Lava-Jato foi parte cúmplice e decisiva do golpe, ou o golpe foi dado para detê-la e, logo, foi contra ela? Delações e gravações devem ser desqualificadas como ardis de criminosos autointeres-sados, mentindo a serviço de uma conspiração golpista ou algu-mas delas podem ser seletivamente arroladas para sustentar uma defesa veraz da presidente afastada? Versões e argumentos que mudam conforme o interesse em cada lance imediato da conjun-tura não ajudam a entender o que há de mais relevante no conjunto da crise política. Seria mais realista e construtivo, da parte dos que se opõem ao governo interino (e é legítimo que o façam), enten-der que o governo se equilibra como algodão entre cristais. O caminho de uma oposição firme e responsável, em vez de tentar desestabilizar o governo interino, poderia ser o de fazer do Congresso endereço central de pressões ligadas a interesses sociais, com o intuito, desde já, de negociação política dos termos do ajuste fiscal e seus impactos sobre políticas públicas como

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1313A retórica da intransigência e a pedagogia política da transigência

educação e saúde e, logo mais, dos termos de uma distribuição social o menos regressiva possível dos custos presentes e futuros de prováveis reformas liberais da previdência social e a das rela-ções reguladoras do mundo do trabalho.

O que predomina, contudo, nessas primeiras semanas, são ações de contestação que desafiam limites da ética republicana e da convivência democrática e tentativas canhestras de usar fatos (quando não se produz factoides) para pregar quaresmas, como nas exonerações a jato de ministros do governo interino. Seria preferível que, em vez disso, pudesse continuar havendo acober-tamento, como a do ministro da educação do governo afastado ao ser flagrado oferecendo dinheiro pelo silêncio do então senador Delcídio Amaral? E seria necessário, ou útil, contar, com objeti-vos de comparação, o número de pessoas, investigadas ou citadas por delatores, que acessaram o ministério, ou nele se mantive-ram, nos dois governos?

Sem maquiar versões, percepções e opiniões como se fossem fatos e verdades, pode-se dizer, com base nesse tipo de indicador (maior ou menor exposição à Lava-Jato ou ao STF) que não há diferença relevante entre os governos Dilma e Temer. E daí? Opiniões melhor informadas e dotadas de saudável ceticismo analítico sabem que o conjunto dos operadores políticos vinha agindo dentro de uma lógica sistêmica, digamos, pouco republi-cana. Ao lidar discursivamente com ética e corrupção e com as imprescindíveis apurações e punições é preciso ponderar e distin-guir essa circunstância “geral” das condutas de operadores que, agindo em proveito próprio, ou de um grupo, o fizeram para além desse constrangimento sistêmico.

Tornou-se cansativo dizer, com razão, que a Lava-Jato e o conjunto das instituições de controle têm papel positivo crucial para a compreensão e a solução da crise ética e política. E para serem eficazes, seus freios de arrumação deverão estar associados – como em geral estão – com vigilância institucional permanente. Mas a sociedade que sustenta o sistema de justiça irá mal se se deixar encantar pela metáfora da faxina geral. Em sua intransi-gência primária, essa metáfora ignora o fato de que, dentro de regras democráticas, uma elite política nova e melhor não surgirá das cinzas da atual. Quadros políticos, dirigentes e militantes de partidos (PT e PMDB incluídos) e essas instituições mesmas, com as experiências negativas e positivas que acumularam antes e durante a crise, têm papel a cumprir em virtual renovação da polí-

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1414 Paulo Fábio Dantas Neto

tica brasileira. Se não são nem poderiam ser santos, também não podem ser simploriamente reduzidos a quadrilhas de malfeitores.

A política democrática é opção por uma visão de mundo que não faz noções de legitimidade e ilegitimidade derivarem, sem mediações, das de bem e de mal. Felizmente para nós (essa é a razão que justifica moderado otimismo no atacado, apesar das mazelas do varejo), desde 1988, a mediação mais efetiva tem sido feita pelo direito acolhido na Constituição e por instituições que ela consagrou e não por esse ou aquele governo, supostamente dotado de DNA ideológico, político ou moral, pelo qual ele procure se auto-definir. É essa nova condição, incompatível com qualquer seletivi-dade arbitrária ou facciosa, partidária ou não, que cumpre preser-var e pode se firmar como nova tradição política, para avançar na democracia, na cultura pluralista, na prosperidade material com responsabilidade fiscal e ambiental e na aspiração, não só de inclu-são social, mas de redução sustentável de desigualdades sociais. É um horizonte novo e promissor de nossa república.

Mas análises e avaliações mais imediatas e factuais sobre possibilidades de superação do atual impasse político pedem crité-rio mais modesto: o da possibilidade de um governo obter articula-ção e apoio político e parlamentar para governar. Fique claro que se trata de fazer isso com idas e vindas, avanços e recuos, em conjuntura que é – obviamente e compreensivelmente – favorável ao chamado campo conservador. Isso em razão, principalmente, de consequências sociais da política de um governo afastado que, simbolicamente (embora não tão substancialmente, muito menos procedimentalmente) se identificou como de esquerda.

Para ilustrar essa ideia recorro aqui a uma reiterada analogia que se tem feito entre o governo Temer e o governo Sarney, racio-cínio sempre feito com base no que foram mazelas daquele passado e no que se julga ser as do presente. Com ressalva quanto aos riscos de anacronismo histórico intrínsecos a analogias desse tipo, lembro um aspecto sugestivo que vai além do protagonismo do PMDB, comum aos dois contextos. É que circunstâncias polí-ticas impuseram focos monotemáticos às respectivas missões de ambos os governos.

A memória do governo Sarney mostra, por um lado, conserva-dorismo na cultura política patrimonialista, amadorismo técnico no trato de políticas públicas setoriais e fracasso na sustentabili-dade de uma política econômica coerente. Tudo isso fez daquele governo vidraça quando vieram as eleições presidenciais de 1989.

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1515A retórica da intransigência e a pedagogia política da transigência

Mas a memória completa mostra também que ele entregou a enco-menda mais relevante que recebeu da sociedade (e não das urnas, é bom lembrar), que foi conduzir e garantir a conclusão da transi-ção democrática, retirando do caminho o que então se chamava de entulho autoritário para permitir a emergência de uma nova ordem política, democrática, da qual a Carta de 1988 é o docu-mento decisivo e a força mais concreta e duradoura. Se os fatos vierem mesmo a autorizar a analogia (e isso é só uma hipótese, não uma profecia) a memória do governo Temer poderá ter seme-lhante perfil, de variadas mazelas, seguidas de reprovação eleito-ral em 2018 e, por outro lado, a entrega da sua encomenda prin-cipal, monotemática também, embora diferente da do governo Sarney. Agora não se trata de dar à luz uma nova ordem política, pois a ordem democrática resplandece no vigor da legitimidade política da Constituição de 88. Por isso sumiram da agenda propostas (seriam golpistas?), como a de um constituinte “exclu-siva”. Trata-se agora é de levar esse sistema político disperso e pouco legitimado, que subjaz no âmbito de uma ordem política forte e muito legítima, a produzir decisões legislativas que permi-tam, mediante ajustes emergenciais e uma política econômica continuada, tirar o país do fundo do buraco econômico e social em que foi atirado.

A coalizão parlamentar, a composição ministerial, a imagem simbólica transmitida e os solavancos cotidianos do governo inte-rino refletem, de diversos modos, essa encomenda. Se ela for entregue, estaremos conversados, sem embargo de juízos críticos sobre tantos outros aspectos, importantes, decerto, mas não tão emergenciais, em termos de prazo. Juízos que informarão a opção vencedora e as perdedoras, junto ao eleitorado em 2018, num possível ambiente de debate político, não de briga de turmas, como ocorreria numa eleição hoje, que potencializaria a retórica da intransigência e tenderia a reproduzir a política do impasse. Acaso Temer e sua coalizão entreguem mais do que a encomenda estrita que receberam, sob suspeita, aí será um inesperado supe-rávit extra econômico, de previsível apelo eleitoral. Seria do jogo democrático também.

Por esse critério político indicativo, a substituição do governo Dilma pelo de Temer coloca o Brasil mais perto (ou menos longe) da possibilidade de chegar a 2018 com chance de, pelas urnas, pelos movimentos e pelas instituições, encontrar um caminho mais seguro para prosseguir na democratização da sua democra-cia. O desafio é remeter à história esse momento de instabilidade

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e constrangimento da vida pública, promovido por ações e inações nada inocentes de agentes políticos, no Executivo, no Legislativo, em partidos e empresas e por omissões de muitos intelectuais e ativistas atrelados, por opção ideológica ou pragmatismo político e existencial, a uma visão dicotômica e/ou corporativa do mundo.

Mudança mais decisiva poderá vir a ser uma reorientação dos interesses sociais e políticos conflitantes, no sentido da transi-gência democrática. Isso ampliaria horizontes da elite política e de uma cidadania “comum”, que vinha se dispensando de maior participação na vida pública. Nos embates da crise, a parte mais jovem dessa cidadania, curiosa e ciosa de direitos individuais e coletivos, está tendo de tocar música sem partitura política, ou está sendo treinada para a participação política e social nos limi-tes impostos pela retórica intransigente daquela visão anacrô-nica. Com isso é duvidoso que essa mudança ocorra, ao menos em prazo curto.

Para acontecer, ela dependerá, entre outras coisas, de haver tempo e espaços para um aprendizado intensivo, teórico e prático, de como sustentar e ampliar direitos pelo método político da tran-sigência. Fora, é claro, do Judiciário e instituições de controle, que adotam e devem seguir adotando outra pedagogia, a do dever republicano, que acolhe e ambienta a transigência democrática, sem com ela se confundir.

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Razões da agonia

Luiz Werneck Vianna

À primeira vista, a cena política brasileira atual defronta o observador com uma terra devastada, varrida por ódio e ressentimento, chão calcinado onde nada de bom pode-

ria medrar. Tal percepção poderia levá-lo até a conjeturar se não estaria diante de um caso perdido, uma sociedade que perdeu o rumo, condenada à autoextinção, como no caso de culturas do México pré-hispânico e de tantas outras apenas conhecidas pelos vestígios arqueológicos que deixaram.

Mas basta reorientar seu olhar para a vida cotidiana, fechar as páginas dos jornais e fazer ouvidos moucos aos noticiários das rádios e da TV, principalmente ignorar o que se vocifera nas redes sociais da internet, para que corrija sua avaliação, pois tudo ali segue no seu fluxo usual no mundo do trabalho e nas suas principais instituições. Fora de foco, portanto, desvios imprevistos de curso.

A falta de comunicação entre política e sociedade é marca crônica da modernização brasileira, filha de um processo autori-tário, que se manteve por gerações, em que o Estado e suas agên-cias dispuseram do poder discricionário de modelar uma socie-dade à qual se recusou liberdade de movimentos. Quando se admitiu que seres subalternos tivessem o direito de se organizar em torno de seus interesses, tal direito foi condicionado por uma ação tutelar exercida pelo Estado, tal como na ordenação corpo-rativa sindical criada na primeira Era Vargas, mas que deixou à margem os trabalhadores do campo, então largamente majoritá-rios na estrutura ocupacional do país.

Tirante o curto interregno dos felizes anos de meados de 1950 aos infaustos do pós-1964, momento em que as demandas por autonomia dos seres subalternos urbanos e rurais ganham força, o script das décadas seguintes de aceleração a ferro e fogo da modernização, levado a efeito pelo regime militar, tomou a socie-dade como uma base passiva para a consolidação de um capita-lismo autoritário, na esquecida conceituação de Otávio Velho no seu Capitalismo autoritário e Campesinato. A sociedade foi trans-figurada por uma ação que lhe veio de cima a partir de um plano

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de estado-maior, enquanto, na dimensão da política, era imobili-zada coercitivamente.

A democratização do país, realizada num contexto de transi-ção com o regime militar, se nos trouxe as liberdades civis e públi-cas e a Carta inovadora de 1988, com seus institutos de defesa de direitos, não se fez acompanhar de mudanças significativas nas relações entre o Estado e a sociedade, que ainda conservam as linhas mestras da nossa tradição de capitalismo autoritário.

A democracia não importou em rupturas, inclusive no terreno da formulação de narrativas sobre os destinos do país. Exempla-res da continuidade entre os dois momentos, o agronegócio – de indiscutível sucesso econômico –, cujas fundações, ao fim e ao cabo, se enraízam no monopólio da terra e nas políticas de favo-recimento promovidas pelos projetos de colonização do hinterland do regime militar; e as ideologias nacional-desenvolvimentistas que nos acompanham, com ênfases diversas tanto à direita – casos dos regimes de 1937 e do recente regime militar – quanto à esquerda, desde os anos 1930.

Houve, decerto, formações partidárias originárias do processo de democratização que apresentaram alternativas a essa tradi-ção, particularmente as nossas duas versões da social-democra-cia, o PT e o PSDB. Esta última, governo em dois mandatos presi-denciais, mais aplicada em diminuir e controlar o papel do Estado na economia, tal como testemunhado por sua política de privati-zações, do que orientada para a animação da sociedade civil e do estabelecimento de vínculos com a vida associativa.

O caso do PT é mais intrigante, uma vez que ele inicia sua trajetória numa aberta denúncia do capitalismo autoritário, de suas práticas e instituições, inclusive da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e do exclusivo agrário, voltado com energia para a valorização das instituições sociais e de defesa da sua autonomia diante do Estado, para, mais à frente, sucumbir aos cantos de sereia da tradição republicana autoritária. Nessa conversão, seu projeto de mudança não viria de baixo, da agrega-ção de forças sociais mobilizadas em torno de reformas substan-tivas no terreno da democracia política, mas por cima.

Da primeira metade do primeiro governo Lula, em que subsis-tiam elementos de continuidade com a experiência de governo do PSDB, transita-se, sem que os fundamentos dessa mutação tenham sido justificados perante a sociedade, para a modelagem nacional-desenvolvimentista. Para suas relações com o Legislativo, os meca-

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1919Razões da agonia

nismos de cooptação do presidencialismo de coalizão bastariam, reforçados por um engenhoso e criminal sistema de extração de recursos de empresas públicas com que literalmente se passou a comprar apoio parlamentar. Por esse caminho turvo, bafejado por um partido com origem na esquerda, mais uma vez a modelagem do capitalismo autoritário encontrou formas de sustentação.

A política é refratária às linhas retas. Aqui, é sabido, ela prefere os caminhos em ziguezagues, como nesse do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, pois o alvo atingido de verdade é menos ela do que a natureza do nosso capitalismo autoritário, que inspirou suas práticas de governo e que estão, agora, com suas fontes de reprodução à morte.

A agonia a que ora somos submetidos provém da política tal como a conhecemos desde que ingressamos na modernidade, porque definitivamente nossa sociedade se tornou mais moderna que seu Estado e começa a demandar por mais espaço a fim de se auto-organizar. Os idos de junho de 2013, um levante da sociedade contra esse Estado que está aí, são a maior confirmação disso.

O que nos falta é tentar acompanhar pela cabeça, pela refle-xão, o caminho que já fizemos com os nossos pés, jogando ao mar esse entulho de ideias velhas que ainda povoam a cena como fantasmas de outro tempo.

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Desentendimento, dogmatismo, mediações ausentes

Marco Aurélio Nogueira

Cada época carrega consigo um conjunto de características dominantes que demarcam o modo como se desenvolvem as práticas sociais em cada campo específico de atuação.

A nossa não foge à regra.

Hoje, na política, a marca é a crise: nenhum sistema funciona bem, mais desagrada que agrada, cria mais problemas que solu-ções. Crise de governabilidade, crise de representação, crise da democracia, crise dos partidos – as etiquetas são muitas. Os gover-nos estão na berlinda, seja de que partidos forem. Governam pouco.

Na economia, muita coisa gira em torno da flexibilidade. A loca-lização perdeu relevância. Deve-se organizar e empreender a partir de planos elásticos, trabalhar de modo polivalente, evitar estoques, incrementar a produtividade mediante desproteção do trabalho e inovação tecnológica, explorar as vantagens da rotatividade, do consumo conspícuo e da substituição incessante de bens, seja por pressões da tecnologia, seja em decorrência da obsolescência programada. A flexibilidade responde às exigências da nova fase de acumulação. Pode ter efeitos que favoreçam o trabalho, mas em termos objetivos o desvaloriza enquanto fato de massa, concen-trando-o em nichos especializados e empurrando o conjunto dos trabalhadores para o inferno do desemprego ou do subemprego.

Na universidade, fala-se muito em produtividade: os incenti-vos são para que se faça mais em menos tempo, se conquiste sempre mais visibilidade, se publique sem interrupção e se frequente um número sempre maior de eventos. Há controles e exigências de todo tipo, a pesquisa e a pós-graduação se expandi-ram, mas o cenário não é dos melhores, especialmente nos países, como o Brasil, que se atrasaram na constituição de seus sistemas universitários (e de ensino, em geral) e que hoje se movem sufoca-dos pela invasão do mercado, pela rigidez e inelasticidade orça-mentária, pela crise pedagógica e pela sindicalização dos espaços acadêmicos, sem conseguir atender de modo adequado nem à demanda dos jovens e da sociedade nem ao próprio mercado.

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2121Desentendimento, dogmatismo, mediações ausentes

O quadro se desdobra no plano dos relacionamentos. Aqui, a marca forte é o desentendimento, a disposição de construir forta-lezas de onde pelejar com os demais e vocalizar a própria opinião, tanto fazendo se isso é feito ou não para que se alcancem melho-res patamares de entendimento. É uma marca que se combina com o desejo de ser “diferente” e de não integrar nenhuma “comu-nidade maior”, ou seja, de se individualizar e se tribalizar, fechando-se em guetos.

Efeitos do desentendimento

Há efeitos colaterais que derivam do predomínio dessa marca, especialmente quando os relacionamentos são atravessados por disputas políticas. Um deles é a elevação da temperatura verbal: não basta divergir, é preciso reduzir o outro a pó, tratá-lo como inimigo e não somente como alguém de quem se discorda. Em nome disso, o léxico da vida cotidiana ganhou em veemência na mesma velocidade que perdeu em rigor e coerência. A agressão verbal tornou-se prática discursiva. A elegância, a serenidade, a modéstia, a dúvida e o respeito ao pluralismo saem de cena, em benefício de argumentos de autoridade, frases de efeito e grosse-ria, essa última entendida como recurso de convencimento. Os interlocutores agem por uma espécie de compulsão retórica. Muitos nem sequer querem debater e eventualmente persuadir, mas intimidar. Outros tantos, convencidos ao extremo da “verdade” inerente às suas opiniões, não admitem a possibilidade de serem persuadidos pelo lado oposto.

Um segundo efeito é a expansão do dogmatismo, da postura que se apresenta como imbuída de uma superioridade intrínseca, que se afirma a partir de certezas prévias e trata a dúvida como expressão de tibieza, atitude de quem não seria forte o suficiente para manifestar a própria opinião. O dogmatismo, como se sabe, agride a realidade, os fatos e as evidências. O dogmático é alguém que segue livros, manias e escrituras, que somente chega ao real a partir de esquemas pré-concebidos, que ele invariavelmente associa a um tipo superior de verdade, filosófica, epistemológica ou religiosa.

A direita retrógrada e fundamentalista é uma fábrica de dogmáticos que jamais fecha. Ela se expande justamente quando o dogmatismo se reforça, pois depende bastante da fé cega e do fanatismo típicos dos dogmáticos e dos incautos, que precisam de muletas para se posicionar.

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2222 Marco Aurélio Nogueira

O marxismo, que é patrimônio da humanidade inteligente e livre de preconceitos, também tem sua versão dogmática. Nasceu libertário, secular e radicalmente antidogmático, mas, ao ser popu-larizado e instrumentalizado politicamente, impulsionou o dogma-tismo, abrigando em seu próprio círculo inúmeros seguidores fiéis, imunizados contra os fatos, prisioneiros de convicções eternas, que não poderiam mudar jamais. O marxista dogmático é aquele perso-nagem que se tem em alta conta, que pensa enxergar mais longe que os demais, que se considera firme como uma rocha, não abre mão de citações, livros-guia e manuais, não tendo um pingo de dúvida sobre o futuro radiante que virá com a revolução socialista. Como é um ser inseguro e necessitado de autoafirmação, costuma brigar mais com os marxistas não dogmáticos do que com as correntes que disputam a verdade com o marxismo. É fácil locali-zar nele a persona do arrogante. Não é propriamente um revolucio-nário, ainda que se apresente assim. Muitos deles são conservado-res no plano da moral e dos costumes, refratários a inovações e à diversidade cultural. Na política, usam o maximalismo para defen-der posições radicalizadas na retórica e superlativas na indigna-ção, mas pouco efetivas em termos práticos. Tendem a formar séquitos obedientes e igrejinhas que se acham autossuficientes e para as quais todos os infiéis são “inimigos de classe”.

O marxismo, porém, não é dogmatismo e rigidez doutrinária. Seu coração transgressor, totalizante, historicista e dialético continua a latejar, distante de determinismos mecânicos, da repe-tição passiva de frases de manuais, da pregação maximalista de “revoluções” que não encontram raízes em um terreno social cate-goricamente dinâmico e mutante. Ainda que hostilizado e desa-fiado pelos dogmatismos que vicejam em seu próprio interior, o marxismo mantém vivo seu compromisso racional, sua abertura filosófica e sua plasticidade em termos de práxis política. Junto com outras filosofias e teorias, compartilha a busca de uma criti-cidade que dialogue com a vida e se proponha a transformá-la, dando corpo a uma utopia realista.

Dogmáticos de todos os tipos – marxistas, religiosos, socialis-tas, neoliberais, conservadores, reacionários, de direita ou de esquerda – fazem um mal danado ao convívio social, à política e ao debate público democrático. São a antipedagogia em movi-mento: deseducam, dificultam que as pessoas pensem com a própria cabeça, travam o fluxo saudável de divergências e discus-sões, impedem a formação de consensos. Atuam como verdadei-ros agentes do obscurantismo e do retrocesso ético-político.

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2323Desentendimento, dogmatismo, mediações ausentes

Para pessoas assim, não há remédio que cure. Elas estão imunizadas contra a razão crítica e a história, que não as afeta. Continuam agarradas ao passado, que lhes dá segurança ontoló-gica e base para demonstrações de virtuosismo teórico. Vivem em outra dimensão de tempo e espaço. Não se consideram dogmáticas, mas sim “ortodoxas”, portadoras de verdades e convicções duras, intransigentes, das quais julgam ser os únicos porta-vozes.

No Brasil dos dias correntes, é fácil vislumbrar os efeitos perversos desta prevalência do desentendimento e do dogma-tismo. Enfrentamos dificuldades épicas para manter viva uma discussão que precisa seguir em frente, rumo ao que deveria ser a tarefa de todos: reduzir animosidades e disputas estéreis, espe-cialmente entre os democratas, para que assim se tenha alguma força para reformar o país.

O horror às mediações

Nossos dias andam congestionados de heróis e super-heróis, de gente convicta e determinada, que não tem dúvidas nem leva desaforo para casa, que perde amigos só para não perder o prazer de difundir uma frase contundente, que acha que a indignação precisa ser verbalizada com palavras fortes, se possível gritadas com veemência e ardor, que vê inimigos e conspiradores em todo canto, que faz da contraposição uma arma que fere e alimenta polarizações paralisantes, que acha que “tudo é política” e que as disputas por poder são o sal da terra.

São dias povoados por pessoas que têm horror à moderação, a pontes e mediações, que não cogitam de buscar articulações dialéticas que levem a unidades superiores e que, convencidas do valor heurístico da “luta”, pensam que a todo momento é preciso ativar batalhas e conflitos contra tudo e todos. São pessoas que competem, refratárias à cooperação, e que veem os moderados como uma espécie de raça inferior, formada por gente frouxa, dúctil demais, que capitula. Pessoas, em suma, que se entregam passivamente a estigmatizações dogmáticas, que vetam o pensar e o conhecer.

É uma espécie de mal da época, que pulsa com especial vibra-ção no Brasil de 2016, mais até do que pulsou em outros momen-tos, como em 2014, quando o país praticamente se separou em dois. Hoje temos mais do que “dois países”. Eles são muitos, distintos entre si e incomunicáveis, cortados por diferenças

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2424 Marco Aurélio Nogueira

sociais abissais, mas também por desentendimentos semânticos, disputas políticas e animosidade ideológica, tudo exponenciado e inflamado de forma irracional. O país real, porém, é um só, as maiorias caminham na mesma direção, ainda que achando que estão a escolher rumos particulares, individualizados.

Se olharmos para a política brasileira atual, para o sistema, vemo-lo de pernas para o ar, ofegante, desorientado. Nada parece funcionar bem nele, ainda que ele se mantenha e se reproduza há décadas. Deve-se tomar cuidado quando se fala que nossas insti-tuições políticas vão bem, correspondem ao que delas se espera. O sistema funciona mal, mas parece blindado. Há partidos em número excessivo, constituídos como projetos pessoais vazios de intenções substantivas, graças a uma legislação que tudo permite. Os prepotentes, os arrogantes, os medíocres, os indiferentes aos cidadãos que deveriam representar ainda mantêm seus postos, quase inabaláveis. Alguns primam pela desfaçatez, outros se agarram quase fanaticamente aos pedaços de poder a que tive-ram acesso, como se fossem eternos e não pudessem desaparecer. O sistema se mostra estável, mas não produz efeitos virtuosos – acima de tudo, não produz consensos e consentimentos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia.

Na sociedade civil, sempre vista e tratada como eixo “positivo” e coração ético do Estado, o desentendimento assentou praça, a exibição de força tornou-se regra, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que todos falem o tempo todo. Aí dorme o problema principal, pois sem um ativismo democrático que construa pontes e as empregue para viabilizar uma pressão que prepare um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e de recuperação do Estado. É impressionante, mas parece que ninguém se dá conta de que a democracia está perdendo qualidade não só porque o sistema político enfartou, mas porque os cidadãos democráticos não são capazes de se arti-cular entre si e estão se devorando uns aos outros. A esquerda moderada e a centro-esquerda assistem à sua inoperância e a esquerda “pura”, mais radicalizada, é prisioneira de seus próprios fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Ambas estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade duramente conquistada ao longo da democratização do país. Sem a superação desse quadro, será difí-cil acontecer algo novo, até porque faltam lideranças, partidos, dirigentes e militantes com particular descortino político.

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2525Desentendimento, dogmatismo, mediações ausentes

Estamos nos tornando uma nação de muita política e de pouquíssima política: de políticos ausentes e cidadãos indigna-dos, que não sabem dialogar, não conseguem definir quem são os “inimigos principais”, os aliados e os adversários, não têm qual-quer plano de voo, sem que ninguém apareça para fazer o mínimo requerido pela democracia: mediação.

Está na hora de começarmos a recordar alguns fundamentos. E a traduzi-los em termos práticos.

Back to basics

Não será somente com homens e mulheres moderados que moveremos a roda da História, ação que depende muito da força, da convicção e da sagacidade de massas e políticos. Mas sem pessoas com disposição para ouvir, ponderar, argumentar, mediar, será impossível cogitar de um futuro mais justo, fraterno e dialógico.

Por mais dificuldades que tenhamos para reconhecer isso – dadas as várias nuances teóricas e ideológicas que se associam ao conceito –, a democracia é um valor e uma “técnica” destina-dos, em última instância, a incrementar a convivência entre as pessoas e melhorar a distribuição dos recursos sociais.

A democracia também é, evidentemente, um procedimento para que se tomem decisões e se compartilhe o poder político, mas aquela sua finalidade básica está sempre presente. Em boa parte é por isso que preferimos a democracia à tirania, por exem-plo. Com a prevalência da democracia, mesmo que “imperfeita”, temos mais chances de conviver melhor.

Isso deveria significar que estamos dispostos a pagar o preço da democracia. Ou seja, a lhe fornecer os pré-requisitos para que possa existir e produzir suas vantagens. Hoje, porém, ainda que todos se considerem democratas e cantem loas à democracia, há uma carência enorme em termos de aceitação dos pressupostos da convivência democrática.

A democracia exige que se aceite o conflito e a contradição – as diferenças, as desigualdades, as “lutas de classes” – não somente como legítimos, mas também como virtuosos: é mediante a expli-citação e o processamento de seus antagonismos que uma comu-nidade conhece a si própria.

Não pode haver democracia, portanto, sem pluralismo.

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2626 Marco Aurélio Nogueira

A aceitação do conflito e do pluralismo impõe a tolerância: o outro não é seu inimigo, mas alguém que pensa diferente de você, que tem interesses distintos dos teus, outros credos e valores, outro modo de encarar e viver a vida. Ele não difere de você no fundamental e um dia, quem sabe, poderá pensar igual a você. Não é necessariamente um “amigo” e pode ser tratado como um adversário. Mas você está obrigado a conceder a ele o direito de respirar e se manifestar, sob pena de prejudicar a si próprio, incentivando o adversário a vê-lo como inimigo.

Faça você mesmo um teste. Saia do céu dos princípios e desça à vida cotidiana: tolerar é aceitar, admitir e conviver, é consentir ainda que tacitamente, e é também ter capacidade de resistir e suportar. Contém uma clara dimensão de “sacrifício”, mas sua lógica é a da busca de uma vida melhor: de uma vida nutrida por conflitos e antagonismos que são processados e assimilados, que animam e organizam o conjunto.

A tolerância, por sua vez, não encontra espaço para se afirmar sem a aceitação do respeito mútuo, da racionalidade crítica e da honestidade. Os humanos não nascem com tais atributos reflexi-vos: educam-se para incorporá-los. O cidadão politicamente educado é, em tese, um agente que as sociedades democráticas produzem para fazer com que seja possível uma convivência de melhor qualidade. Ser educado em termos políticos – ser um cida-dão – não é evidentemente ser escolarizado em termos formais, ainda que isso ajude bastante: é conhecer regras e procedimentos com que se tomam decisões, é deter e organizar informações, se apropriar de recursos (intelectuais, éticos, morais, técnicos) para a análise e a compreensão crítica do quadro abrangente. Um cida-dão educado tem seu ringue no espaço público: é aí que ele luta e busca se realizar. A interação dialógica racional é sua principal ferramenta de trabalho, dado que ele não existe para “esmagar” o próximo – afinal, não é um soldado –, mas para persuadi-lo, convencê-lo de novas verdades e abrir-se, ele próprio, para as verdades do outro.

Tudo isso faz com que o sujeito democrático esteja capacitado para decifrar os enigmas da história: seu tempo, seus ritmos, a dialética passado-presente-futuro, sua sinuosidade, seu caráter sempre aberto e jamais predeterminado. Ele está preparado para compreender que as coisas não acontecem por simples atos de vontade, que há correlações de forças e circunstâncias objetivas, historicamente determinadas, que pesam e precisam ser devida-mente consideradas, assim como ações de outros protagonistas. Tem

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2727Desentendimento, dogmatismo, mediações ausentes

condições de planejar sua ação tendo em vista o conjunto dos agen-tes e os processos “duros”. Em suma, ele sabe que há uma continui-dade histórica que se expressa como vantagem e como problema.

Em um de seus mais belos e vigorosos textos, o Dezoito Brumá-rio, de 1852, Marx observou: a história, ao se fazer, “oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, na medida em que promove a reprodução da “tradição de todas as gerações mortas”. Objeti-vando-se como uma sucessão de diferentes gerações, na qual “cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças produtivas que lhes foram transmitidas pelas gerações preceden-tes”, a história possibilita que cada geração, agindo “em circuns-tâncias radicalmente transformadas”, dê sequência ao modo de atividade que lhe foi transmitido mas, ao mesmo tempo, modifi-que as antigas circunstâncias mediante a execução de uma “ativi-dade radicalmente diferente”, para usar frases consagradas na Ideologia Alemã, que o próprio Marx havia escrito com Engels alguns anos antes.

A consciência da continuidade histórica potencializa o sujeito democrático. Fornece a ele melhor noção de sua própria força de realização, ajudando-o a compreender melhor aquilo que pode realizar. Ao mesmo tempo, ajuda-o a valorizar a modéstia: o mundo não começou com ele e antes dele muitos fizeram coisas sem as quais nada teria sido possível, nem sequer os atos que singularizam o sujeito em uma dada época.

O desentendimento amplificado sem critério racional produz neblina e fumaça, que confundem, iludem e turvam a visão. Não beneficia a ninguém, mas é mais prejudicial para quem luta por liberdade, democracia, igualdade e justiça social, que são conquis-tas do esclarecimento. A retórica inflamada e indignada, o anún-cio bombástico do apocalipse, a vitimização e o ataque implacável aos que pensam de outro modo bloqueiam a racionalidade crítica. Prestam um desserviço.

Vivemos em uma época paradoxal: brilhante e opaca, partici-pativa e improdutiva, de inovação, progresso, excesso e desperdí-cio, de conquistas obtidas com o empenho de várias gerações e desafios que se acumulam, de sofrimento organizacional, excita-ção e mal-estar, de vida dinâmica e flutuante. Mas é a nossa época, e teremos de aprender a lidar com ela se quisermos cogitar de transformá-la.

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Implosão do populismo assistencialista e espaço para ampla

e desejável viradaJarbas de Hollanda

Profundidade e amplitude das consequências sociais da crise econômica e do descalabro das contas públicas. A primeira responsável por uma paradeira generalizada das atividades produtivas – traduzida em taxas recordes de fechamento e de recuperação judicial (alternativa à falência) de empresas; e de desemprego e inadimplência.

A segunda – o enorme desequilíbrio fiscal entre receitas caden-tes e despesas cada vez maiores do gigantismo estatal. Impondo cortes e abandono de programas das três esferas do poder público. Inclusive nas áreas de saúde, educação, segurança, mobilidade urbana; de par com o calote aos fornecedores de bens, serviços e obras, estendido em vários estados e municípios ao atraso da quitação de vencimentos dos servidores.

E os efeitos dessas duas crises potencializando a indignação popular diante da sequência de escândalos de corrupção desven-dados pelas investigações da operação Lava-Jato, e paralelas, ou filhotes, bem como as grandes manifestações de rua dominadas pelas demandas “Fora Dilma”, “Fora PT”. Os referidos escândalos, ou megaescândalos, sendo qualificados, corretamente, – por auto-ridades do Ministério Público, da Polícia Federal, do Judiciário (do juiz Sérgio Moro a ministros do STF) – como parte de um esquema de “corrupção sistêmica” instalado nos governos petistas.

O nefasto coquetel das crises econômica, fiscal e ética teve e segue tendo custos desastrosos para o Brasil, internos e externos. Mas a ampla percepção social das causas reais dessas crises e da conexão entre elas – também pelas camadas de menor renda e baixo nível de informação – criou significativas condições políti-cas favoráveis a reformas realistas e consistentes da economia, obstruídas pela demagogia do populismo assistencialista.

E também abre caminho – com o relevante concurso de tais investigações – para o resgate e um indispensável salto de quali-dade da gestão do Estado. Gravemente deteriorada pelo sufocante

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2929Implosão do populismo assistencialista e espaço para ampla e desejável virada

aparelhamento partidário do conjunto da máquina administra-tiva federal, posto em prática ao longo dos governos do PT.

Aparelhamento que constitui peça-chave da montagem do controle político do país pelo lulopetismo. Instrumentalizado a partir da ocupação por quadros indicados pelo PT dos órgãos da administração direta, das estatais, dos bancos públicos, dos fundos de pensão e até das agências reguladoras.

Para o custeio da expansão das estruturas do partido. E para dois importantes objetivos político-institucionais e político-eleito-rais. Os primeiros voltados à construção de hegemonia no Congresso Nacional por meio do acesso de sócios (com destaque para as lideranças no Senado e na Câmara do principal partido, o PMDB) a parte dos cargos e às verbas da máquina federal.

E os segundos objetivos ligados ao financiamento das campa-nhas eleitorais, na ambiciosa escala da hegemonia buscada. A ser viabilizado por negócios, basicamente de grande vulto, atrativos de empresários de maior porte de diversos segmentos da econo-mia – dos fornecedores de obras e serviços aos do sistema finan-ceiro. Entre os quais megacontratos na Petrobras e na Eletrobras, obras na Venezuela e em Cuba, criação de “campeãs nacionais” na área de telecomunicações.

Negócios condicionados a decisões do governo e do comando do lulopetismo, envolvendo empréstimos subsidiados do BNDES e benefícios fiscais seletivos. Todos com encaminhamento articulado à contrapartida de tal financiamento – parte formalizada por Caixa 1, e parte paga clandestinamente. Não apenas aos tesoureiros do PT (os três últimos presos), mas também aos dirigentes e outros quadros do partido, em contas de “laranjas” aqui e no exterior.

No cenário nacional à frente – após a confirmação pratica-mente certa do impeachment de Dilma Rousseff, bem como das disputas do pleito municipal – o último quadrimestre de 2016 será dominado por intenso debate em torno de medidas e de projetos do governo não mais interino de Michel Temer.

Medidas (entre as quais as “amargas” que ele antecipou) e projetos voltados centralmente para a recuperação progressiva do equilíbrio fiscal e uma retomada de investimentos a partir de parcerias público-privadas nas áreas de infraestrutura.

E projetos de mudanças constitucionais, constantes de propos-tas da equipe econômica, com aprovação no Congresso depen-dente do predomínio no PMDB de sua tendência reformista (da

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3030 Jarbas de Hollanda

proposta “Ponte para o Futuro”) e de articulação com o bloco também reformista liderado pelo PSDB. Pois esses projetos, como o da reforma da Previdência, enfrentarão fortes resistências corporativas e fisiológicas.

E esse debate será provavelmente travado sob o impacto de mais desdobramentos das investigações sobre corrupção. Estas – e não o oposicionismo radical do lulopetismo às reformas – consti-tuindo o que pode afetar a estabilidade do novo governo por causa de provável envolvimento maior da cúpula peemedebista do Senado.

Outro tema do último trimestre do ano será a disputa pelo elei-torado do PT. As recentes operações da Lava-Jato e dela derivadas, “Custo Brasil” e “Abismo” (realizadas dias depois de o STF devolver à força-tarefa de Curitiba e encaminhar ao Ministério Público de Brasília as investigações sobre o ex-presidente Lula) ampliaram o isolamento político e o desgaste social do PT e de seu chefe.

Este coquetel vai estreitando, ainda mais, as perspectivas do partido nas eleições municipais deste ano, já levando-o à desis-tência de candidaturas próprias em várias regiões do país, sobre-tudo em cidades de maior porte. O que está pondo em xeque também o plano do uso dessas eleições para a montagem de uma “Frente Brasil Popular” que aglutinaria os “movimentos sociais” esquerdistas para o “Volta Lula” em 2018. Plano centrado na lide-rança por ele de agressiva manipulação das resistências corpora-tivas às “reformas antipovo” do “governo golpista de Temer”.

A erosão – que tende a acentuar-se com mais desdobramentos das referidas investigações e possível prisão do próprio Lula – vai reforçando os projetos de partidos mais à esquerda, como o PSOL, bem como os do PDT, de Ciro Gomes, e da Rede Sustentabilidade, de Marina Silva, voltados para arrebanhar quadros e parcelas do tradi-cional eleitorado petista. Seja atraindo os decepcionados com as práticas de corrupção, seja trabalhando a “inviabilidade” de mais uma candidatura de Lula. Projetos (centrífugos) que, após o pleito municipal (e seus prováveis resultados muito ruins para o PT) serão encaminhados, de par com o desencadeamento da luta entre várias das correntes internas por novo comando para o partido.

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II. Observatório

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Autores

Augusto de FrancoCientista político, especialista em redes sociais, em desenvolvimento local e sustentável.

Eliane CantanhêdeComentarista política de jornal e TV.

José Vigilato da Cunha Neto Advogado, procurador do Banco Central (aposentado)

Luiz Sérgio HenriquesTradutor e ensaísta. Um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil.

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As duas esquerdas

Luiz Sérgio Henriques

Há cerca de dez anos, o mexicano Jorge Castañeda, ator e analista da política latino-americana deste nosso tempo conturbado, propôs um esquema simples, mas relativa-

mente eficaz, para entender as esquerdas no poder, especialmente a partir da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela por meio do voto. As esquerdas, dizia Castañeda, tinham no subcontinente uma natureza dupla, segundo admitissem, ou não, as novas condições derivadas do fim do comunismo real e da obsolescência dos padrões da guerra fria.

Brasil, Uruguai ou Chile, por exemplo, teriam enveredado por um caminho próximo das social-democracias europeias, adotando políticas pluriclassistas e respeitando os requerimentos do regime representativo. Coerentemente, em relação à economia, a questão se resumiria a regular de outro modo os mercados, para além da experiência liberal dos anos 1990, mas sem violar seus princípios básicos nem descuidar dos equilíbrios macroeconômicos. Um moderado reformismo social estaria em curso nestes países, atacando primeiramente a pobreza extrema e, de forma indireta, a desigualdade.

A Venezuela e os demais países ditos bolivarianos eram exem-plos de esquerda radical, inspirada muitas vezes no ambiente hiperideológico dos anos 1970 vertido para o novo contexto de interdependência e de redes globais. Com ou sem razão, tratava-se aqui de refundar a nação e implantar democracias de alta intensidade: formas diretas de participação e líderes carismáticos

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3434 Luiz Sérgio Henriques

eleitoralmente “invencíveis” iriam mais uma vez se associar para lançar as bases do “socialismo do século XXI”. Tal intento se pretendia diverso do socialismo do século XX, ainda que desde o primeiro momento não fosse muito difícil ver em operação as cate-gorias do velho repertório, com a adição inquietante de “coisas nossas”, como o caudilhismo e o militarismo, dessa vez em roupa-gem progressista.

Os processos ora em curso na Venezuela e no Brasil, estrutu-ralmente tão diferentes entre si, complicam a dicotomia de Castañeda. A Venezuela, sob Chávez e, agora, Nicolás Maduro, não deixou em momento algum de ser totalmente dependente da renda do petróleo – o excremento do diabo, na expressão famosa. E o Brasil, ainda que assediado pelo fantasma da reprimarização da economia, inclusive nos anos triunfantes do lulismo, conti-nuou a ter uma economia diversificada e a ser uma sociedade complexa, em que amplos setores de classe média, pelo menos em tese, são refratários aos apelos anacrônicos do populismo.

Realidades contrapostas, portanto, mas, como sabemos, razões e motivos “ideológicos” não decorrem automaticamente de “bases materiais”. Eles se cruzam e contaminam, determinam a percepção dos problemas de um modo ou de outro, podendo inclu-sive agravá-los ou dramatizá-los substancialmente. Houve quem, à esquerda, despreocupando-se com a exigência de análises dife-renciadas, propagasse a ideia de um bloco latino-americano maci-çamente contra “o capital” e o neoliberalismo.

Governos nacional-populares na região seriam a nova vanguarda anticapitalista e anti-imperialista, retirando o protagonismo da moderada esquerda europeia de feição social-democrata. E, à direita, a desolação intelectual não poderia ser maior, com tentativas de ressurreição do vetusto armamentário anticomunista.

Nada a fazer no plano argumentativo se as coisas fossem deixadas assim. O espaço da política se reduziria a bem pouca coisa se, diante destas crises estruturalmente desiguais, mas temporalmente “gêmeas” – o total desastre venezuelano e a aguda crise institucional brasileira –, não tentássemos acionar os meca-nismos de uma autorreflexão dura e impiedosa. Inútil dizer de Maduro, como disse Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, que es loco como una cabra. Mero insulto pessoal, um tanto folclórico, que não vai à raiz do problema nem revela, infelizmente, um diri-gente capaz de contribuir para a superação pacífica do desastre à vista de todos naquele país.

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3535As duas esquerdas

Da nossa parte, impossível aceitar sem renovado sinal de alarme a derivação “bolivariana” de manifestações petistas que denunciam o suposto “golpe parlamentar” e reiteram obsessiva-mente a contraposição frontal entre amigos e inimigos (a “direita”), como se a democracia política não exigisse, para sua vigência, um amplo terreno comum entre os contendores, no qual se viabiliza o próprio discurso público e a situação de recíproco assédio, de luta e proximidade, que marca a atuação de forças políticas amadure-cidas, ainda que representem interesses e visões conflitantes.

Má retórica e péssima política fazem com que o procedimento inteiramente constitucional do impeachment – não fossem o PT e intelectuais sabidamente ligados a seu campo campeões absolu-tos de pedidos de impeachment contra todos os presidentes da redemocratização! – seja aproximado, de modo fantasioso, de suposta ofensiva imperialista contra os governos populares da América Latina.

A esquerda brasileira ou, pelo menos, seu principal partido deixa-se atrelar ao antiamericanismo primário dos tempos da guerra fria. Um recuo que, capaz de inflamar núcleos atrasados num primeiro momento, não tarda em demonstrar seus limites e prejudicar o próprio interesse nacional de cada um de nossos países, impedindo-os de manter um diálogo crítico e aberto com o grande país do Norte, especialmente com suas forças progressis-tas, que muitas vezes insistimos em negar ou desconhecer.

Não há partido na democracia “burguesa” que possa entender a reforma do Estado como controle ideológico dos diferentes órgãos daquilo que alguns chamam sistema de integridade – a Polícia e a Receita Federal, o Ministério Público, o Judiciário. No entanto, nos movimentos mais recentes do petismo, chama a atenção, entre outras contradições, aquela que imputa ao governo “ilegí-timo” de Temer a disposição de parar a investigação judicial mais emblemática dos nossos dias, ao mesmo tempo que, em docu-mento oficial, o PT afirma com todas as letras que “a Operação Lava-Jato desempenha papel crucial na escalada golpista”. E para remediar este e outros males, o remédio teria consistido em imple-mentar, no auge da popularidade de Lula, a “reforma do Estado” segundo o modelo chavista, intervindo ilegalmente nas “estrutu-ras de mando” de órgãos como a Polícia, o Ministério Público, o Exército e o Itamaraty (“Resolução sobre a conjuntura”, Diretório Nacional, 17/05/2016).

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3636 Luiz Sérgio Henriques

Outra canhestra derivação filobolivariana é o reiterado ataque frontal à “mídia monopolista”, culpada, nesta versão primitiva, de amalgamar classes médias (a malfadada “pequena burguesia” do discurso comunista mais tacanho de muitas décadas atrás), elites corrompidas, com exceção naturalmente dos empreiteiros, e grupos do aparelho repressivo de Estado, interessados em “crimi-nalizar” a oposição, como se isso fosse possível num moderno Estado democrático de direito.

Deixamos assim de formular qualquer ideia de regulação constitucional dos meios de comunicação para combater o coro-nelismo eletrônico e outros fenômenos deletérios, por causa da incapacidade de nos distanciarmos, sem ambiguidade, da tal “hegemonia comunicacional” de feitio chavista – que, de resto, tem pouco de hegemonia e muito de dominação simples e bruta, funcional ao monopólio da fala por parte do caudilho em exercício ou do partido de vanguarda cuja existência, por si só, na visão de seus dirigentes e militantes mais fanatizados, lança uma sombra de ilegitimidade sobre todos os demais.

Quase trinta anos depois da Carta de 1988, a esquerda brasi-leira ainda não tirou de sua história os recursos para construir uma forte social-democracia, cujo compromisso essencial seja, além dos objetivos de reforma, a defesa da legalidade democrática e suas insti-tuições, que dão vida e densidade a tais objetivos. Não consegue estabelecer parâmetros altos para a ação de um reformismo latino-americano mais unitário, generoso e integrador. A vertente demo-crática fraca termina por abrir o flanco para a vertente autoritária e personalista. Condena-se assim a recomeçar em condições piores – e sempre depois de tempestades que, como na Venezuela, caudilhos meticulosamente semeiam e, agora, colhem.

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Da reengenharia republicana em prol do Estado Democrático de Direito

José Vigilato da Cunha Neto

Nos últimos 50 anos, o mundo mudou. As mudanças tecno-lógicas, sociais e econômicas foram de grande alcance, com repercussões profundas, que levaram à desorganiza-

ção política e administrativa das principais nações do mundo, inclusive do Brasil.

A globalização desprotegeu e empobreceu o trabalhador, despreparado para enfrentar tais mudanças; os organismos inter-nacionais e as centrais sindicais internacionais estão lentos nas ações e obtenção de acordos e tratados internacionais para a proteção do mundo do trabalho.

As fronteiras se enfraqueceram e o mundo interagiu, não só na economia, mas também nas relações sociais e no uso da tecno-logia. O comércio e a proteção dos direitos humanos internacio-nalizaram-se e a informação e o conhecimento tornaram-se aces-síveis e intercambiáveis, principalmente com a internet.

O mundo tornou-se mais transparente e ampliaram-se as condições para ele ser radicalmente democrático, meio de vencer as crises e reduzir os conflitos sociais. O povo assenhorado de informações amplas tornou-se mais crítico e também passou a disseminar suas insatisfações, criando inclusive mobilizações populares com o uso das redes sociais.

Os governos foram inaptos para atender as demandas sociais, principalmente porque foram tais mudanças muito rápidas e os obsoletos sistemas políticos não tiveram capacidade de acompa-nhá-las e atender insatisfações e carências geradas pela transfor-mação social.

No Brasil, não foi diferente. Hoje, o brasileiro é majoritaria-mente urbano. Há uma dívida social enorme, não há efetividade nos servidos públicos essenciais, os quais são deficientes e inefi-cientes, porque há corrupção, irracionalidade administrativa, desperdícios de dinheiro público, e, principalmente, falta partici-pação popular no processo político.

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3838 José Vigilato da Cunha Neto

Infelizmente, o brasileiro se decepcionou com a política e polí-ticos, aumentou o seu descrédito com as instituições e partidos políticos, carecendo de mais democracia direta e de debate demo-crático, para se tornar mais consciente, e, consequentemente, lutar pelo Estado Democrático de Direito.

Sob outro aspecto, consolidaram-se, nos ordenamentos jurídi-cos de várias nações e nos organismos internacionais, novos paradigmas, novos princípios jurídicos e políticos, novas bases jurídicas para a construção de uma nova sociedade. Novidades estas que impulsionam os direitos humanos e que devem ser apri-moradas, politizadas e, sobretudo, concretizadas.

O Brasil está na vanguarda desse avanço. A Constituição Cidadã de 1988 incluiu não só a novidade dos princípios fundamentais (CRFB, arts. 1º a 4º), como também não se limitou a garantir efeti-vamente direitos, liberdades e garantias nela explícitas. Assegurou com eficácia também “status” constitucional aos direitos humanos nela implícitos e aos explicitados dos tratados e convenções interna-cionais aprovados nos termos da Carta Política.

Na última Constituinte brasileira (1987/1988), que existiu “para instituir um Estado Democrático” (preâmbulo), o embate entre os parlamentares progressistas e os conservadores-neolibe-rais foi acirrado e quando o “centrão” veio com sua proposta subs-titutiva não teve forças para tirar os direitos humanos fundamen-tais (políticos, culturais, sociais e econômicos) já consagrados no âmbito internacional e nem tampouco muitos dos avanços conso-lidados na Comissão de Sistematização, que foram fruto de novos princípios e da intervenção democrática do povo brasileiro.

A Constituição Federal vigente, promulgada em 5 de outubro de 1988, declara em seu art. 1º que “A República Federativa do Brasil”... “constitui-se em Estado Democrático de Direito”, com base no pressuposto indispensável que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou direta-mente, nos termos” da “Constituição”.

Consolidou-se em um único dogma a essência do ordenamento jurídico e do sistema político brasileiro: o Estado Democrático de Direito. É ele corpo e alma da República Federativa do Brasil, uma república democrática em que seus poderes Executivo, Legis-lativo e Judiciário são democráticos.

Já se passaram mais de 25 anos e este dogma não é obede-cido, e, para ele ser concretizado, urge uma reegenharia para

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3939Da reengenharia republicana em prol do Estado Democrático de Direito

concretizar o Estado Democrático de Direito, alicerce do nosso sistema politico e viga mestre do nosso ordenamento jurídico. Com ele, o brasileiro ganha dignidade, cidadania e assume o papel de sujeito de sua própria história.

O constituinte estabeleceu objetivos permanentes para o Estado Democrático de Direito, deixando cristalino que ele visa: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a margina-lização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promo-ver o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CRFB, art. 3º).

Integra também o Estado Democrático de Direito a fórmula de organização política que fixa como Poderes da União, independen-tes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (CRFB, art. 2º), o que está protegido pelas cláusulas pétreas, que é o permanente, aquilo que não pode ser abolido, que é: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos poderes; IV – os direitos e garan-tias individuais (CRFB, § 4º do art. 60).

Os direitos, liberdades e garantias individuais do Estado Democrático de Direito estão espalhados em toda a nossa Consti-tuição e, principalmente, contidos no seu Título II. Merece desta-que o que contém o “caput” do art. 5º, agregável a todos os demais direitos, garantias e liberdades, que são os princípios da igual-dade perante a lei e da inviolabilidade do direito à vida, à liber-dade, à igualdade, à segurança, à propriedade.

E, ainda, integram o Estado Democrático de Direito os princí-pios que regem as relações internacionais com o Estado brasileiro, pois tais princípios repercutem no ordenamento jurídico do país, merecendo destaque “a prevalência dos direitos humanos”, o “repú-dio ao terrorismo e ao racismo” e a “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade” (CRFB, art. 4º, II, VIII e IX).

Consoante o disposto no § 1º do art. 5º da Constituição brasi-leira, tem aplicação imediata o Estado Democrático de Direito (3) e seu princípio máster, que é o democrático (CRFB, § único do art. 1º), bem como os princípios que lhe fundamentam, que são: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e V – o pluralismo político (CRFB, art. 1º).

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4040 José Vigilato da Cunha Neto

Em razão do mesmo dispositivo (CRFB, § 1º do art. 5º), também tem plena eficácia e aplicação imediata todos os demais direitos, garantias e liberdades fundamentais, que abrange os direitos individuais e coletivos (v.g. CRFB, art. 5º); os direitos sociais (v.g. CRFB, art. 6º); os direitos políticos e a nacionalidade (v.g. CRFB, art. 14); e os direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos (v.g. CRFB, art. 17).

E, também, conforme o art. 5º e seus parágrafos, a Constitui-ção determina aplicação imediata para os direitos, garantias e liberdades decorrentes do regime (democrático-republicano) e dos princípios que adota, e, os contidos nos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos.

Com este modelo de proteção e eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, o Brasil superou outros países que tinham Constituições avançadas (v.g. Portugal). O povo brasileiro acreditou no direito como instrumento da mudança da realidade social, e, por isso, estes direitos humanos fundamentais são contemplados na Constituição, não como uma promessa para o futuro, mas para realização imediata.

De conformidade com a Carta Magna, o atendimento das necessidades do povo, por meio de serviços públicos essenciais acessíveis a toda a população é dever inarredável dos governos da União, das unidades da Federação e dos municípios.

Contudo, inobstante inegáveis melhoras, constatadas todos os anos, nas politicas públicas, são elas insuficientes, defeituo-sas e sem efetividade, e, tais falhas somadas ao desperdício de recursos humanos, materiais e financeiros, provocaram uma grande crise das instituições pelo não atendimento das carên-cias sociais. E, para vencer tal crise, fala-se em reformas de cunho politico-institucional.

Ocorre que as reformas do Estado não resolvem os principais problemas e sequer aumentam o nível de felicidade e bem estar social da sociedade brasileira.

É fácil concluir que tais reformas – por mais bem intenciona-das que sejam – causarão graves frustações ao povo trabalhador, representarão apenas aprimoramentos e avanços em um Estado anacrônico, já que o atual está construído em pilares ultrapassa-dos, e, ainda, é baseado em um sistema politico que está em confronto com a vigente Constituição.

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4141Da reengenharia republicana em prol do Estado Democrático de Direito

São muitas as discrepâncias existentes entre as atuais bases do Estado brasileiro e o Estado Democrático de Direito, e, por isso, necessita ele ser urgentemente concretizado, pois só assim haverá observância dos direitos sociais – “a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desampa-rados”, consagrados no art. 6º da Carta Constitucional.

Ressalte-se que outros dispositivos constitucionais ampliam essas garantias e asseguram outros direitos sociais que integram o Estado Democrático de Direito, como o caso, por exemplo, da educação (CRFB, arts. 205 a 214), da segurança pública (CRFB, art. 144), da comunicação social (CRFB, art. 220), da cultura (CRFB, art. 215 e 216), dos desportos (CRFB, art. 217), do patri-mônio histórico e cultural (CRFB, arts. 30, IX, 216 e 230, V, § 1º), da ciência e tecnologia (CRFB, arts. 218 e 219), do meio ambiente saudável (CRFB, art. 225) e da assistência social (CRFB, arts. 203 e 204), destacando a proteção às crianças, à juventude, aos defi-cientes, aos idosos e à família (CRFB, 226 a 230) e ao índio (CRFB, arts. 231 e 232).

Tais direitos sociais, entre outros essenciais para a população definidos por lei, devem corresponder a serviços públicos concre-tizados por politicas públicas em que o destinatário é o povo, e, por isso, este deve neles intervir democraticamente, inclusive em fóruns de âmbito nacional, estadual, distrital e municipal, e também em conselhos populares nos três níveis de governo.

A inadiável reengenharia em prol do Estado Democrático de Direito resulta na radical transformação do Estado, representa uma ruptura com o sistema político atual. Ela significa uma nova organização politica, para que o Brasil seja realmente republi-cano, dentro de uma concepção de radicalidade democrática, com participação popular, pluralismo político, cidadania e respeito à dignidade da pessoa humana.

A reengenharia em prol do Estado Democrático de Direito deve ser colocada em prática por exigência do povo trabalhador e dos eleitores, em um ambiente de liberdade e amplo debate e realizada à luz dos direitos humanos e com a finalidade clara e determi-nada de revolucionar as organizações sociais e politicas brasilei-ras, reerguidas para “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-mento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (preâmbulo).

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4242 José Vigilato da Cunha Neto

A hermenêutica constitucional é induvidosa no sentido que o dogma do Estado Democrático de Direito constitui a essência do nosso ordenamento jurídico; ele é tão importante que, ao mesmo tempo, é base da organização politica do Estado e topo na hierar-quia do ordenamento jurídico brasileiro.

Todo o nosso ordenamento jurídico está subordinado ao dogma do Estado Democrático de Direito; todos os princípios, regras e normas constitucionais com ele devem harmonizar. Ele é a regra básica, sendo inconstitucional e ineficaz qualquer norma que afaste a sua aplicação ou desrespeite o seu conteúdo,

As mudanças exigem pragmatismo, cooperação entre os entes da Federação e criatividade na superação dos obstáculos formais.

Consoante o Estado Democrático de Direito, toda a sociedade brasileira deve ser organizada democraticamente, não pode haver no Estado nenhuma organização que não seja democrática, consequentemente, todos os órgãos e entidades, públicas ou privadas, deverão ser democráticas.

A radicalidade democrática e a participação popular são traços do Estado Democrático de Direito que devem estar em toda a administração Pública, que passa a ser participativa, seja no levantamento de necessidades junto à população; seja nos plane-jamentos e orçamentos participativos; seja nas gestões democrá-ticas, compartilhadas e colegiadas; seja na normatização e na coordenação, com ampla participação popular; seja na execução, na fiscalização e avaliação dos resultados, da gestão e dos gastos públicos realizados.

Enfim, em todas as etapas e fases, haverá participação popu-lar e os gastos de dinheiro público merecerão todos os meios e formas de controle (popular, interno, externo, parlamentar, minis-terial e jurisdicional).

Os objetivos do Estado Democrático de Direito (CRFB, arts. 1º e 3º), são os perseguidos com a Revolução Pacífica, tudo visando uma nova sociedade, com meio ambiente ecologicamente equili-brado para a atual e as futuras gerações, na construção de um desenvolvimento sustentável.

Com a reengenharia em prol do Estado Democrático de Direito, a Administração Pública Participativa é transparente, nela somente será feito o que a lei autoriza e não pode o agente público privilegiar ou prejudicar ninguém, já que ele tem o dever de ser imparcial, eficiente, honesto, ético e buscar o interesse público.

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4343Da reengenharia republicana em prol do Estado Democrático de Direito

Os gastos com dinheiro público somente são válidos se obedecem à legalidade, razoabilidade, legitimidade, publicidade, economici-dade, eficiência e eficácia.

Isto tudo já é cogente, é direito público subjetivo de cada um dos cidadãos. Chegou a hora de o povo exigir que seja obedecida a Constituição da República Federativa do Brasil, concretizando o Estado Democrático de Direito.

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O crime compensa?

Eliane Cantanhêde

Estarrecida, a opinião pública brasileira é surpreendida, todo santo dia, com uma nova operação da Polícia Federal e detalhes nauseantes de corrupção. Num dia, assalto ao

crédito consignado de servidores endividados. No outro, desvio de verbas da Lei Rouanet para casamentos luxuosos. Num terceiro, mensalinho para a madrinha da bateria de uma escola de samba e R$ 18 milhões para empresa desistir (!) de contrato. E os valo-res?! Ladrão de colarinho branco não é nada modesto, tudo é na casa dos R$ 70 milhões, R$ 100 milhões, R$ 370 milhões...

Por trás desses desvios “pitorescos” de dinheiro público e desses milhões surrupiados da saúde, da educação, da habita-ção..., há sempre um esquema envolvendo agentes públicos, empresas privadas, doleiros e, invariavelmente, políticos. Um “abismo” de corrupção, como ilustra o nome da nova operação, com foco no Centro de Pesquisa da Petrobras.

Há um lado péssimo nisso tudo, a revelação de quão corrupto o Brasil se tornou, até bater nesse “abismo”. E há um lado ótimo: nunca antes neste país as investigações foram tão longe, atingi-ram tantos culpados e remexeram tanto as entranhas de um poder doentio, fétido. Mas há ainda incertezas quanto às conse-quências. Quando um Carlinhos Cachoeira ressurge, todo sorri-dente, sendo mais uma vez preso, para ser solto no dia seguinte, a sensação é de indignação. Santa falta de tornozeleiras!

Em 2002, Cachoeira filmou um pedido de propina de Waldo-miro Diniz, braço direito de José Dirceu no início da Era Lula. Em 2012, Cachoeira caiu na Operação Monte Carlo, sobre um esquema de máquinas caça-níquel, e ficou nove meses preso. Em 2013, foi flagrado dirigindo embriagado e se safou ao pagar fiança. Em 2016, caiu de novo, agora na Operação Saqueador, sobre lavagem de R$ 370 milhões.

Foi aí que a opinião pública descobriu que, apesar de conde-nado a 39 anos por peculato, corrupção ativa, violação de sigilo e formação de quadrilha, Cachoeira vai muito bem, obrigado, com mulher bonita e filha bebê – enquanto os não delatores, como José Dirceu, amargam a dura vida na cadeia. O que ainda falta

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4545O crime compensa?

para que esse contraventor pare de rir e pague pelos crimes que cometeu, comete e continuará cometendo?

A isso se some a boa vida dos ladrões de colarinho branco que entregam os comparsas. A delação premiada é um instrumento efetivo, reconhecido e essencial nas investigações, mas, com o número de delatores chegando perto de 100, o prêmio começa a parecer excessivo. Muito roubo para pouca pena. Como mostrou a revista IstoÉ, Pedro Barusco, ex-gerente da Petrobras (atenção: nem diretor era!), fez delação, comprometeu-se a devolver US$ 100 milhões (quase R$ 400 milhões) e, assim, livrou-se da cadeia e está recolhido ao aconchego do lar, uma bela mansão com piscina, na praia de Joatinga, com uma das vistas mais lindas do Rio.

E vai por aí afora. Paulo Roberto Costa, Nestor Cerveró, Fernando Baiano e, não tarda muito, também Sérgio Machado, roubaram, roubaram e roubaram dinheiro público, mas, como delataram os outros, são punidos com tornozeleiras e trocam celas inóspitas, macacões coloridos, banhos frios e rancho indi-gesto – destinados, por exemplo, a Roberto Jefferson – e vão lamentar a sorte em mansões de milhares de metros quadrados, quadras desportivas, piscinas espetaculares, vistas estonteantes. Vale a pena delatar! Vale a pena roubar?

Só falta agora o deputado afastado Eduardo Cunha delatar todo mundo, devolver um bocado de verdinhas das suas trustes na Suíça e aderir a uma tornozeleira eletrônica para curtir férias douradas num apartamento milionário, abastecido com os melho-res uísques e os vinhos mais caros, com a mulher desfilando suas bolsas Prada do quarto para a sala e da sala para a cozinha. Pronto, Justiça feita!

Vanguarda do atraso

Examinemos agora uma rápida comparação para melhor entendermos nossa realidade. Rússia, Índia, África do Sul, Nigé-ria, México e mesmo a China, segunda maior economia do mundo, são países considerados emergentes e muito corruptos, como o nosso. Mas com uma diferença: o Brasil é o único que está dando o exemplo, remexendo suas entranhas, expondo seus podres e discutindo ardentemente como construir um futuro mais decente. Onde mais se veem os maiores empreiteiros presos, os principais políticos denunciados, as instituições tão determinadas?

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4646 Eliane Cantanhêde

Com tanto dinheiro desviado dos cofres públicos, em tantas frentes e com tão variados personagens, é razoável dizer que o Brasil ganhou a medalha de ouro da corrupção antes mesmo da Olimpíada, como ironizou o jornal de mais prestígio no mundo, o The New York Times. Mas a avaliação ficaria mais correta e seria mais justa se também incluísse o Brasil como forte candidato a vencer a corrida contra a corrupção. O troféu é a Lava-Jato.

Em contatos com embaixadas estrangeiras em Brasília, inclu-sive a dos Estados Unidos, a Transparência Internacional disse que o Brasil é um case a ser estudado, e nas duas pontas: como foi possível chegar a tal nível de corrupção? E como é o processo que permite descobrir tudo, expor ao público e começar a punir os culpados? A terceira ponta exige uma reflexão bem mais complexa: quais serão as consequências, o que vem em seguida?

Foi possível chegar a esse tsunami de corrupção porque a lei do país permite e às vezes até estimula, as regras de controle das estatais e das corporações são frouxas e a impunidade para ricos e poderosos impera. Quando roubar é fácil, muita gente passa a roubar. E, quando muita gente rouba, o céu é o limite. Daí porque, onde o Ministério Público, a Polícia Federal, a Receita Federal e a Justiça põem o dedo, acham um tumor milionário ou bilionário. Até no crédito consignado, até na Lei Rouanet.

O processo de identificar, comprovar, expor e punir está avan-çadíssimo. A Lava-Jato passou a ser uma operação-mãe, que produz robustos filhotes, como Zelotes, Custo Brasil, Boca Livre, Turbulência e Saqueador. E o juiz Sérgio Moro não está mais sozi-nho. Em São Paulo, Brasília, Recife e no Rio desabrocham juízes, procuradores e promotores de uma geração que soma vontade com a capacidade.

Os políticos se sentiam a salvo quando o pau quebrava na cabeça dos “outros”, os empreiteiros, funcionários e operadores, mas o timing pode se virar contra eles, que entram na mira justa-mente quando a opinião pública, estarrecida com o tamanho dos desvios, quer sangue e pelotões de fuzilamento. A justiça chega aos políticos quando a paciência se esgotou e, com ela, o cuidado, a frieza e o bom senso. O risco, principalmente na mídia, é por todo mundo no mesmo paredão e atirar indistintamente.

A Odebrecht, por exemplo, doou para centenas de políticos, em dezenas de campanhas. Toda doação é propina? Todo político é ladrão? Se fosse assim, seria melhor fechar o Congresso, jogar fora a chave da democracia e instalar uma ditadura. Quando,

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4747O crime compensa?

aliás, não há “lava-jatos”. Ninguém fica sabendo quem é corrupto, quanto rouba, de onde rouba. O sangue e os pelotões de fuzila-mento são por razões muito diferentes do combate à corrupção.

Desde as históricas manifestações de junho de 2013, chega-mos ao momento mais delicado desse fantástico processo que põe o Brasil na vanguarda dos países emergentes. Fuzilar todos é explodir tudo. Denunciar práticas e punir quem merece é implo-dir o que tem de ser implodido e construir pontes para o futuro. Nem toda doação de campanha é crime, nem todos são iguais.

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Uma pauta para a transição democráticaAugusto de Franco

No dia 21 de setembro de 2014, cerca de um mês antes da última campanha eleitoral, publiquei no facebook um texto chamado Antiprograma de Governo. O artigo foi escrito

para a eventualidade de Dilma perder a eleição. Mas é incrível como permanecem atuais as propostas que foram feitas. Inclusive sobre a Operação Lava-Jato (ou o petrolão), que ainda não existia (não, pelo menos, com a dimensão que adquiriu). Permitam-me reproduzi-lo com algumas atualizações. Serve perfeitamente para o governo de transição ou para quem o suceder. É uma espécie de pauta para a transição democrática.

Antiprograma de Governo

Não acredito muito em governos. Por isso tenho um antipro-grama e não um programa. Meu antiprograma de governo é da planície e não do planalto. É muito curto, porque não quer enga-belar as pessoas com promessas vãs e nem sufocá-las com supe-ravits de ordem estatal, mas apenas protegê-las da sanha auto-crática dos soberanos eleitos e ensejar que elas possam defender a democracia que têm para, a partir dela, inventarem as democra-cias que querem ter.

Meu programa tem apenas três pontos:

1 – Instalar uma operação Mãos Limpas no Brasil

2 – Iniciar um processo de redemocratização do país

3 – Dez propostas sobre o que não fazer no governo

1 – Instalar uma Operação Mãos Limpas no brasil

No Brasil da última década, houve uma degeneração generali-zada das instituições e uma perversão das práticas republicanas, seja pela corrupção, seja pela privatização partidária da esfera pública, seja pela alocação não transparente de recursos de toda ordem para financiar ou apoiar projetos (antidemocráticos) de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado

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4949Uma pauta para a transição democrática

aparelhado. É claro que tudo isso não vai se resolver apenas com uma (eventual) troca de governo. Será necessário começar alguma coisa parecida com aquela operação Mani Pulite (Mãos Limpas), que ocorreu na Itália na década de 90.

Eis uma pauta (óbvia, conquanto incompleta) para começar:

I – Quem ocupou e ocupa cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão no governo e no Estado, nas empresas estatais e nas instâncias paraestatais (lista completa dos últimos 13 anos e 5 meses: é a base para as investigações seguintes).

II – Quais as organizações da sociedade civil que foram objetos de convênios ou termos de parceria nos últimos 13 anos e 5 meses, qual o montante de recursos que foram transferidos a tais entida-des e a que título. [Ao que saiba, isso ainda não foi feito, abar-cando os últimos].

III – Quais as empresas que foram contratadas na última década pelo governo e por empresas estatais (lista completa: apenas de empresas contratadas repetidamente ou de empresas diferentes com os mesmos donos ou acionistas majoritários e para valores acima de 1 milhão de reais). [Uma parte desse trabalho já foi feito pelas operações Lava-Jato e Acrônimo, tendo vindo à tona dezenas de empresas associadas ao esquema criminoso de poder, sobretudo empreiteiras].

IV – Quais os veículos da chamada mídia alternativa que rece-beram recursos públicos por meio de publicidade, patrocínio ou por outros meios, de órgãos do governo, do Estado, de empresas estatais e de instâncias paraestatais e quanto cada um desses veículos recebeu na última década. [Um levantamento sobre a chamada “rede suja” começou a ser feito].

V – Quais as pessoas do governo e das empresas estatais cujos nomes foram envolvidos (ou vieram à tona) em escândalos de corrupção na última década, onde elas estão empregadas atual-mente e como vivem. [A Operação Lava-Jato e outras já avança-ram nessa investigação, mas falta muito ainda].

VI – Qual o patrimônio, declarado ou não, ou os bens em nome de terceiros porém usufruídos, das pessoas que ocuparam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão no governo, no Estado, nas empresas estatais e nas instâncias paraestatais, durante a última década. [Acrescente-se agora o patrimônio – declarado ou disfarçado (em nome de laranjas) – do chefe Lula e de sua família, bem como dos principais agentes do esquema petista].

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VII – Quais as disparidades entre o patrimônio e o estilo de vida das pessoas referidas no item anterior, antes e depois de assumirem os cargos mencionados. [Idem].

VIII – De onde vieram os recursos para pagar os advogados de defesa dos réus no processo do mensalão (e quais foram os hono-rários cobrados por tais advogados, por acusado). [Acrescente-se agora os réus do chamado petrolão].

IX – Quais os nomes das pessoas que usaram cartões corpo-rativos da Presidência da República e da presidência de empre-sas estatais nos últimos 13 anos e 5 meses, quem foram os bene-ficiários desses pagamentos e qual foi o montante gasto (por titular do cartão).

X – Quem são – e onde estão – os doleiros que mantiveram rela-cionamentos com funcionários (de primeiro, segundo e terceiro escalão) do governo e de empresas estatais nos últimos 13 anos e 5 meses e quais foram as operações realizadas com a intermediação desses doleiros. [Muitos doleiros já foram descobertos pela Opera-ção Lava-Jato, inclusive Alberto Youssef, que serviu como ponta do fio para desenrolar a meada. Seguir os doleiros é a chave].

2 – Iniciar um processo de redemocratização do país

Se o PT sair, para sempre, do governo federal é sinal de que a nossa democracia representativa conseguiu reativar (com atraso de um mandato, na verdade de dois) o importante critério da rota-tividade ou alternância democrática. É claro que isso não basta. Será necessário realizar um processo de redemocratização do país, que é um processo contínuo. Na verdade, nada mais é do que a continuidade do processo de democratização.

Mas falamos em redemocratização, por quê? Ora, porque houve uma ditadura (1964-1984) e os governos que vieram depois (Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma) às vezes deram seguimento a esse processo (de redemocratização) e, às vezes, retro-gradaram (impulsionando iniciativas de autocratização). Em espe-cial, tivemos retrocessos importantes nos governos Lula e Dilma em relação aos governos eleitos anteriores, que precisam ser rapida-mente corrigidos. Portanto, trata-se, sim, de redemocratização.

Essa redemocratização teria como pontos críticos:

I – Dissolver os quistos partidários instalados nas instituições do Estado. Instituições reais têm estruturas e dinâmicas próprias,

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que se materializam em regras, costumes e culturas organizacio-nais particulares. Tudo isso faz parte da sua natureza; ou seja, sem isso não temos, na verdade, instituições. Se convertermos as instituições em palcos de disputa maioria x minoria, degenera-mos tais instituições transformando-as em extensões partidá-rias. Neste caso, das instituições (públicas) resta apenas a casca: seu funcionamento vira mera encenação de decisões que já foram tomadas em outro lugar (privado). [Esta será a primeira tarefa].

II – Desarticular as tentativas em curso de estabelecer controle partidário-governamental sobre os meios de comunicação (mesmo que disfarçados com o nome de social ou civil), rever o chamado marco civil da internet e iniciar processos de democratização do acesso a tais meios. [Com a saída do PT do governo afasta-se este perigo; mas a revisão do marco civil deve constar da pauta].

III – Reestatizar as agências reguladoras que foram governamen-talizadas para colocá-las à mercê do partido do governo e de seus aliados. [Importantíssima tarefa para o governo de transição].

IV – Restabelecer a prestação pública de contas para as centrais e outros órgãos sindicais (em tudo que abranja recursos arrecadados compulsoriamente pelo poder público). [Idem].

V – Rever toda a coleção normativa que rege os Fundos de Pensão e o Fundo de Amparo ao Trabalhador, de modo a coibir seu uso como aparelhos de organizações privadas para travar lutas em prol do controle do Estado além de utilizá-los para malversar recursos públicos. [Idem-idem, embora talvez não haja tempo hábil nos próximos dois anos para concluir essa mudança].

VI – Rever os critérios de financiamento, fomento, apoio ou patrocínio de órgãos estatais às organizações da sociedade civil. [Na undécima hora, o governo Dilma editou o Decreto 8.726, de 27 de abril de 2016, que regulamenta a Lei 13.019, de 31 de julho de 2014: tanto a lei quanto o decreto precisam ser revistos pelo atual governo ou pelo que lhe suceder].

VII – Revogar o Decreto 8.243 (que institui a Política Nacional de Participação Social). [Este decreto “não pegou” em razão da resistência democrática da sociedade. Deve ser agora formal-mente revogado].

VIII – Reformar o PNDH 3 – Programa Nacional de Direitos Humanos (no sentido de impedir que os direitos humanos possam ser usados como arma na luta político-ideológica de grupos priva-

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dos que almejam conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir da ocupação do aparelho de Estado). [Idem].

IX – Revogar o Decreto 5.298 (que institui uma Força Nacional de Segurança Pública, chamando-a eufemisticamente de “programa de cooperação federativa”, como organização militar centralizada e subordinada ao governo e não como órgão de Estado) e não permitir a articulação de guardas nacionais de caráter pretoriano (isso deve ser objeto de emenda constitucional). [Este é o desafio mais difícil de ser enfrentado, depois que a oposição dormiu no ponto e deixou que fosse aprovada tal medida – ainda de 2004 – proposta pelo consi-glieri Thomaz Bastos. Mas deve-se alterar a inserção institucional dessa força militarizada, tirando-a do âmbito do governo].

X – Retomar a tradição da política externa brasileira de não-a-linhamento ideológico (sobretudo rever radicalmente a atual polí-tica de apoio à protoditaduras e ditaduras e repelir qualquer tentativa de formação de blocos político-ideológicos e militares que almejem reeditar a guerra fria).

É claro que esses dez pontos não fazem a democracia avançar (no sentido da democratização da democracia que temos em dire-ção à que queremos). Eles apenas corrigem o retrocesso, recupe-ram o que foi feito em termos de autocratização da democracia durante a “Era Lula”. [Compreende-se aqui os governos Dilma dentro da “Era Lula”].

3 – Dez propostas sobre o que não fazer no governo

I – Que o governo não enfreie a democracia que temos: funda-mentalmente, que não restrinja a liberdade, que não viole a publi-cidade (ou transparência), que não fraude a eletividade, que não falsifique a rotatividade (ou alternância), que não descumpra a legalidade e que não degenere a institucionalidade.

II – Que não queira controlar os meios de comunicação e a internet (tentando disfarçar qualquer controle partidário-gover-namental ou estatal sobre essas atividades com os nomes de controle “social” ou “civil”).

III – Que não queira voltar no tempo instituindo formas de participação hegemonizadas por organizações hierárquicas e autocráticas travestidas de “movimentos sociais” (mas que funcio-nam como correias de transmissão de partidos).

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IV – Que não queira degenerar a democracia em um regime plebiscitário de tipo chavista (bypassando as instituições para estabelecer uma ligação direta entre o líder e as massas).

V – Que não pretenda reformar o sistema eleitoral para estabe-lecer a partidocracia (com voto em lista fechada e pré-ordenada, fidelidade partidária e financiamento exclusivamente estatal de campanha). [Acrescente-se aqui pelo menos dois pontos de uma reforma política necessária e urgente: o voto distrital e o parlamentarismo].

VI – Que não caia na tentação de, a qualquer pretexto, orga-nizar guardas nacionais militarizadas de tipo pretoriano (ou forças nacionais de segurança permanentes subordinadas ao Executivo).

VII – Que não dê continuidade a atual política externa ideoló-gica de alinhamento e apoio a protoditaduras e ditaduras.

VIII – Que não participe de qualquer articulação regional (como o bolivarianismo latino-americano), hemisférica (Sul x Norte) ou mundial (sobretudo como a que a neoditadura russa de Putin está tentando capitanear), que pretenda reeditar a guerra fria e a velha política de blocos em nome de combater algum suposto império do mal, o capitalismo internacional, a globalização transnacional etc.

IX – Que não queira, a partir do Estado, educar a sociedade ou reformar a natureza humana para produzir qualquer monstruo-sidade como um “homem novo”.

X – Que, enfim, não queira impor hegemonia sobre a sociedade, que deixe a sociedade em paz, não coibindo as pessoas de experi-mentar novas formas mais interativas de democracia, tanto nas suas manifestações de protesto, quanto nos livres ensaios comuni-tários de vida e convivência social que já estão empreendendo inovadoramente em todo lugar.

Este foi o texto, que, em parte, continua atual. Interes-sante é que algumas medidas preconizadas já se concretizaram. Mas a pauta proposta serve também como plataforma para esse novo tipo de oposição que emergiu da sociedade, que deve conti-nuar exercendo a resistência democrática (não apenas contra este ou aquele governo, mas também contra o velho sistema político que apodreceu) para o prosseguimento do processo de democrati-zação que foi enfreado pelo lulopetismo. Um governo de transição não poderá levar a efeito uma pauta para a transição democrática como esta sem o decisivo apoio da sociedade.

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III. Conjuntura

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Autores

Chico AndradeFormado em História e Geografia, pós-graduado em Ciências Políticas, com especialização em Instituições e Processos Políticos do Legislativo, é presidente do PPS no Distrito Federal.

Lúcio Flávio PintoJornalista, criador e editor do Jornal Pessoal, de Belém.

Paulo NascimentoProfessor do Instituto de Política da Universidade de Brasília (UnB).

Tereza VitalePedagoga, editora de profissão. É militante nacional do Partido Popular Socialista, integrante e uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Mulheres do PPS.

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O novo Febeapá ou o golpe na semântica

Paulo Nascimento

As pessoas de mais idade entre nós certamente devem se lembrar do famoso Febeapá – o Festival de Besteiras que Assola o País, glossário de notas criado na década de 60

do século passado pelo saudoso jornalista Sérgio Porto, conhe-cido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, sobre as sandices pronunciadas por políticos e autoridades, durante o regime militar.

Tudo indica que agora estamos vivenciando um segundo Febeapá, desta vez protagonizado pela esquerda de salão das universidades brasileiras, e que se materializa na torrente de cartas-abertas, abaixo-assinados e manifestos de repúdio que inundam as redes sociais, tendo como tema único o suposto “golpe” efetuado contra a presidente Dilma Rousseff.

O interessante é que, nessa avalanche de denúncias, está ausente uma explicação plausível que justifique porque o impedi-mento da presidente deve ser caracterizado como golpe. É certo que a política não pertence à esfera da verdade, e por isso o uso da retórica para fins políticos é perfeitamente compreensível. Mas, no meio acadêmico, poder-se-ia esperar uma maior atenção para com o emprego político de conceitos. Afinal de contas, trabalhar concei-tos faz parte do esforço teórico da intelectualidade acadêmica.

Para caracterizar como golpe um processo de impeachment que partiu da rejeição unânime das contas do governo Dilma pelos membros do Tribunal de Contas da União (TCU), e que foi a seguir respaldado por decisões da Câmara Federal e do Senado, e avalizado pelo Supremo Tribunal Federal, foi preciso oferecer um

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cardápio variado de definições, capaz de agradar a todos os gostos e paladares.

Graças, então, à retórica dos intelectuais pró-Dilma Rousseff, ficamos sabendo que existem vários tipos de golpe: “golpe parla-mentar”, “golpe midiático-jurídico”, “golpe institucional”, “golpe transversal” etc. Sem fundamentação sólida para o emprego de qualquer um destes termos, acabou-se por ampliar de tal forma a definição de golpe que nela pode caber qualquer coisa. E um conceito que abarca tudo, na verdade não serve para nada.

Muitas vezes, os apoiadores da ex-presidente alegam que, embora o processo de impeachment tenha seguido a lei, ele obede-ceu a maquinações políticas e intenções mesquinhas, o que o caracterizaria como golpe. Mas esse argumento tampouco se sustenta. Intrigas, lutas pelo poder, formação e dissolução de alianças – o jogo político que fascinava pensadores como Maquia-vel – sempre existiu desde a criação de um espaço público na Grécia clássica, e, se realizado nos marcos das leis de um Estado de Direito, não pode ser considerado golpe, termo que deveria ser reservado para rupturas da ordem constitucional, o que não houve no impedimento da presidente Dilma.

Da mesma forma, ações políticas motivadas por inveja, sede de poder, vingança, etc., se realizadas nos marcos da constitucio-nalidade, podem ser criticadas do ponto de vista político ou ético, mas não do ponto de vista legal. O Estado de Direito não julga os motivos da alma humana, mas a legalidade da ação política.

É preciso insistir neste ponto: golpe e impeachment são concei-tos diferentes. Ser a favor ou contra um golpe define a opção pela democracia. Por isso, quem acusa alguém de ser golpista o está acusando de ser antidemocrático. Já ser contra ou a favor de um instrumento constitucional como o impeachment define posições políticas. Ou seja, nada impede que o impeachment seja criticado por, talvez, ter sido acionado em um momento político inade-quado, ou por seus protagonistas terem dado pouca atenção às dificuldades do day after. Mas mesmo se for esse o caso, a má política deve ser denominada de má política, não de golpe.

Aliás, devemos lembrar que o PT entrou com pedidos de impea-chment contra todos os governos pós-ditadura militar que antece-deram ao governo Lula. Se há algum partido que contribuiu para a cultura do impeachment no Brasil foi justamente o Partido dos Trabalhadores. Seria interessante saber se os intelectuais e artis-tas que agora falam interminavelmente de “golpe”, também se

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manifestaram da mesma forma quando o PT tentou passar no Legislativo o impeachment dos ex-presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

Outro ponto fraco na acusação de golpe é que ela geralmente tenta se respaldar em teorias de conspiração. A eficiência dessas teorias não está exatamente na argumentação factual, mas na capacidade de ligar eventos e fatos pouco ou nada conectados, dando-lhes uma suposta coerência lógica. Desta forma, a conspi-ração contra o governo de Dilma Rousseff teria sido arquitetada por uma ampla coalizão golpista: Câmara e Senado Federais, Supremo Tribunal Federal, Tribunal de Contas da União, Minis-tério Público, Polícia Federal, juízes de primeira instância, e, é claro, a mídia. Isto sem mencionar as multidões que foram às ruas apoiar o impeachment da presidente. Nesta ótica, cada uma das ações dessas entidades e cada ato dos manifestantes teriam obedecido à coordenação golpista que, nas versões mais deliran-tes, recebia ordens dos Estados Unidos. É difícil acreditar que intelectuais bem informados, e cujo sentido profissional exige fatos concretos, possam apoiar esse tipo de fábula.

Por outro lado, a flexibilidade das teorias de conspiração produz paradoxos risíveis. Se novos eventos exigem uma correção da teoria, ela inverte sua explicação sem a menor preocupação em manter um mínimo de coerência. Assim, durante muito tempo a Lava-Jato foi criticada pelo PT por ser a ponta-de-lança do golpe contra seu governo; mas quando as investigações começaram a bater na porta de partidos e políticos ligados ao governo Temer, o discurso mudou, passando a afirmar que, na verdade, o golpe foi perpetrado justa-mente para... impedir as investigações da Lava-Jato!!!

Importante também assinalar que os inúmeros casos de corrupção e desvio de dinheiro público perpetrados pelo governo do PT e sua base aliada, e que periodicamente vêm a público, são completamente ignorados pela esquerda de salão das universida-des, mesmo se acompanhados de provas robustas. Parece existir uma blindagem ideológica que impede os fatos de contribuírem para a formação do juízo político das pessoas, o que é especial-mente grave naqueles setores responsáveis pela formação de opinião como os intelectuais.

Pior ainda, a recusa em aceitar a legalidade de um processo de impeachment que está sendo realizado de forma transparente e dentro da lei, pelo único motivo que a pessoa acusada é de seu grupo político, demonstra que boa parte da esquerda brasileira, apesar de

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falar constantemente de democracia, não entendeu absolutamente nada sobre os fundamentos e o ethos desta forma de governo. Só aceitam como democráticas as decisões que lhes favorecem.

Não se pode negar, infelizmente, que este Febeapá contempo-râneo sobre golpes e conspirações tem tido certo êxito em servir como uma espécie de sinal pavloviano para as matilhas de ativis-tas do lulopetismo começarem a salivar e a tratar como “golpis-tas” as pessoas favoráveis ao impeachment. É por este motivo que as universidades públicas, de locus de debates, se transformaram em ambiente de tensão ideológica.

De qualquer forma, toda esta mobilização não esconde o fato de que os intelectuais petistas falharam miseravelmente em fundamentar um conceito plausível de golpe para o caso do impea-chment da ex-presidente. Ao contrário, se golpe houve, foi o que eles perpetraram na semântica da língua portuguesa.

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Escândalo: da ditadura à democraciaLúcio Flávio Pinto

A corrupção na licitação para a maior obra em andamento no país, a hidrelétrica de Belo Monte, com orçamento de R$ 32 bilhões, pode dar ao Brasil a oportunidade para o ajuste de

contas com o mago econômico da ditadura e conselheiro pessoal de Lula e Dilma: o ex-ministro Delfim Netto.

Foi – e ainda é – corrupta a mais poderosa autoridade civil do regime militar? Ela ocupou o mais importante dos ministérios, o da Fazenda, durante um terço do tempo (sete anos seguidos, mais quatro anos como ministro do planejamento e um como dono da pasta da agricultura) que durou a ditadura, no total, 12 anos dos 21 da sua duração?

Ele foi responsável pela formação da maior dívida externa dentre todos os países do mundo na época. Encarnou a truculên-cia da tecnocracia na execução das políticas do governo federal, aproveitando-se de todos os mecanismos de exceção colocados ao seu dispor, que mantiveram a democracia em confinamento.

Mesmo com todo esse currículo, o economista Antonio Delfim Netto sobreviveu ao fim da ditadura. Não foi arrolado, indiciado ou processado por nenhuma instância no curso da retomada da normalidade política do país, como se as marcas da sua ação tives-sem se desfeito e a memória sobre o que ele fez tivesse sido apagada.

De forma muito sagaz, que constitui uma das suas qualida-des, Delfim se transferiu para a atividade parlamentar, que tanto desprezou enquanto integrou o poder executivo. Primeiro por um partido que guardava coerência com o seu perfil. Depois, pela agremiação que desempenhava a função de oposição consentida, o PMDB, que o recebeu de braços abertos e cenário decorado. Até essa ambiguidade se exaurir, inviabilizando mais um mandato de deputado federal.

Sua maior façanha, porém, foi sair do limbo oficial, no qual os tucanos o mantiveram, graças a um personagem que teria tudo para ser o seu antípoda, vítima de uma das milhares prisões arbitrárias do governo militar: o líder operário Luiz Inácio da Silva. Delfim foi

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uma das primeiras pessoas que Lula buscou para ser seu conse-lheiro tão logo se elegeu presidente da república, em 2002.

Apesar da surpresa, que provocou muita perplexidade entre os observadores da cena nacional, a iniciativa tinha sua justifica-ção. O PT precisava desfazer a imagem de inimigo do mercado e aproveitar os amplos e profundos conhecimentos de quem coman-dou poderosas engrenagens do poder – dentro e fora do país.

Essa necessidade era vital, especialmente na transição (que Fernando Henrique Cardoso realizou como “nunca antes”) da gestão do PSDB para a do Partido dos Trabalhadores. Com o dólar crescendo 40% e a ameaça de ataque especulativo dos abutres internacionais, Lula tinha que atravessar o fosso com muito cuidado e ponderação. Não podia cometer erros nem vacilar.

A questão é que Delfim foi um dos mais influentes conselhei-ros de Lula durante os seus dois mandatos. Prosseguiu nessa função, aproveitando-se das sombras para usufruir ainda mais como o amigo do rei, por todos os quatro anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Só se desligou dos petistas quando os erros crassos da dama de ferro, no alvorecer tempestuoso do segundo mandato, começaram a deixar que a água penetrasse na sua caravela mal governada (tão ruim – ou mais – do que a embarca-ção simplesmente desgovernada).

Quais dos conselhos do mago do “milagre econômico” brasi-leiro, com taxas ao redor de 10% de crescimento anual do PIB, entre 1967 e 1974 (à base de poupança externa – e, naturalmente, endividamento), foram aplicados pelos dois presidentes petistas? E os efeitos dessas orientações? Foram contribuições dadas pelo puro interesse público, em favor da coletividade, ou atenderam as conveniências da empresa de consultoria do ex-ministro e suas extensões comerciais e políticas, dentre elas a plutocracia paulista encastelada na Fiesp, a Federação das Indústrias de São Paulo?

Ele ganhou dinheiro (e dinheiro “por fora”, pelo Caixa 2), graças à sua ascendência sobre Lula e Dilma? Os dois fizeram o jogo de Delfim involuntariamente ou sabiam exatamente o que faziam? Tiraram proveito dessa cumplicidade?

São as pertinentes perguntas suscitadas por revelações e informações prestadas à força-tarefa da Operação Lava-Jato por alguns dos seus principais punidos, já na condição de delatores voluntários. Flavio Barra, por exemplo, afirmou que a sua empresa, a construtora Andrade Gutierrez, fez transferências

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para a Aspen, empresa de consultoria do ex-ministro, e a LS, de um sobrinho dele, Luiz Apolônio.

A transação foi realizada em virtude da construção da hidrelé-trica de Belo Monte, da qual Flávio David Barra era executivo. Segundo ele declarou à Procuradoria Geral da República, no segundo depoimento de delação premiada, os repasses de propi-nas a Delfim foram feitos através de contratos fictícios. O valor do repasse era proporcional à participação da Andrade no consórcio de empreiteiras de Belo Monte

Antes de Barra, o próprio presidente afastado da empresa, Otávio Marques Azevedo, já revelara o acerto de repasse de 15 milhões de reais para Delfim, a pedido do ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci. O ex-ministro se tornara credor desse dinheiro pela sua participação na formação do consórcio vencedor do leilão de Belo Monte, realizado em 2010.

Foi surpreendente a vitória desse consórcio, do qual participa-vam por pequenas empresas, sem tradição em grandes obras, como a hidrelétrica do rio Xingu, projetada para ser a quarta maior do mundo, causou surpresa. Do outro lado estava um consórcio integrado por firmas experimentadas em construção pesada. Só depois é que o jogo se revelou, com a parceria de empresas estatais lideradas pela Eletrobrás e os fundos de pensão, à frente o Previ: as empreiteiras deixaram de ser aspirantes à concessão de energia e passaram a realizar a obra,

Azevedo declarou que Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de Dilma (de cuja campanha elei-toral de 2010 foi o coordenador), lhe solicitou o pagamento de R$ 15 milhões para Delfim Netto “dedutível do 1% de propina a ser paga”. A Andrade Gutierrez “atendeu essa determinação de Palocci, porém descontou o valor pago a Delfim do montante total solicitado aos partidos PMDB e PT, em partes iguais”.

A propina para os dois partidos, de acordo com Azevedo saiu na forma de doações eleitorais oficiais e em campanhas eleitorais. O ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto e o ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão (deputado federal do PMDB do Maranhão) foram os interlocutores dos partidos no encaminhamento dos valores acertados, o equivalente a 1% de um contrato global, que era de R$ 140 bilhões, acrescido de um primeiro aditivo, de 5%. A propina seria de R$ 14 milhões.

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Outras empreiteiras envolvidas no projeto de Belo Monte, como a Odebrecht e a Camargo Corrêa também participaram da tran-sação. Barra disse que “repassou às demais empresas integrantes do Consórcio Construtor a necessidade de atender à demanda de valores destinados a Delfim Netto. Inclusive apresentando Luiz Apolônio aos representantes das empresas”. Nessa reunião, reali-zada no escritório da Andrade, ficou decidido que as demais, “até mesmo por falta de alternativa, atenderiam ao pedido do Ministé-rio das Minas e Energia”.

A propina seria paga pelos vencedores da concorrência púbica, mas que, “qualquer que fosse o vencedor da licitação, haveria espaço para as empresas que tivessem ficado de fora”.

O leilão para a construção da hidrelétrica, inicialmente com orçamento de R$ 19 bilhões (depois alterado para R$ 28,5 bilhões e agora estando em R$ 32 bilhões) foi realizado em 2010 e os surpreendentes ajustes concluídos no ano seguinte. Tudo indica que as modificações efetuadas não se deveram apenas a procedi-mentos técnicos de engenharia ou financeiros. Podem ter resul-tado de uma ampla negociação de bastidores, envolvendo as empresas e os partidos políticos da base do governo, como acon-teceria em outros setores e obras, dos quais o mais conhecido agora é o da Petrobrás.

Os dirigentes da Andrade Gutierrez disseram que o ex-minis-tro e o pecuarista José Carlos Bumlai (amigo de Lula) foram responsáveis pela formação do consórcio vencedor do leilão de Belo Monte. Barra admitiu que chegou a ser procurado por Bumlai e seu filho, Maurício Bumlai. Os dois foram pedir a ajuda do executivo para cobrar valores das demais empreiteiras envolvidas com Belo Monte.

Barra garantiu que não os atendeu, “porque se tratava de assunto estranho ao conhecimento e às atividades” dele e da sua empresa. Mas “inferiu” que o fazendeiro “teve alguma participa-ção na formação do segundo grupo investidor, que acabou ganhando o leilão de Belo Monte”.

Como é que um fazendeiro, sem qualquer relação com a cons-trução de uma usina de energia, nem participação no governo, se sente autorizado a intermediar a organização de leilão especiali-zado para uma obra do porte de Belo Monte, com custo definido em dezenas de bilhões de reais?

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Sem qualquer desses requisitos, mas com tal poder que levou à inferência do dirigente de uma das maiores empreiteiras do país, Bumlai agiu como intermediário, lobista e testa-de-ferro (ou laranja)? De quem? Ora, de quem lhe deu os poderes que ele exerceu, os mesmos conferidos informalmente (mas de forma a serem respeita-dos nos bastidores do poder) a outros agentes da transação.

“O grupo concorrente era formado por empresas de pequeno porte, sem experiência no setor e se necessário conhecimento do projeto Belo Monte, e que, soube mais tarde, ter sido estrutura com a ajuda de Delfim Netto e José Carlos Bumlai, de forma que era absolutamente previsível que não conseguiriam preparar um estudo adequado para participar do leilão e muito menos que tivessem qualquer capacidade técnica ou estrutura econômica para executar o projeto com tamanha estrutura”, explicou o presi-dente afastado da Andrade. “Assim acreditava que tal consórcio ser mesmo figurante, que não tinha condição de ‘ficar de pé”.

Essa movimentação pode ter a assinatura de Delfim, a mesma do falso milagre econômico do Brasil durante o regime militar, da mani-pulação do índice da inflação de 1972 e outras proezas que só agora, finalmente, a opinião pública terá a oportunidade de esclarecer.

Quando seu nome foi citado pela primeira vez na Lava-Jato, há três meses Delfim explicou a O Estado de S. Paulo que apenas fizera uma assessoria. Como até pouco antes da realização do leilão de Belo Monte só um concorrente se apresentara, ele “ajudou” a montar o segundo grupo para competir com o primeiro.

“Prestei uma assessoria. O segundo grupo era formado por empresas menores que não estavam no grupo anterior. Era uma montagem (do segundo grupo) para que houvesse concorrência. Depois ficou visível que isso não ia acontecer. A Eletrobrás tomou conta do processo. Isso aconteceu entre 2011 e 2012. Então eu me retirei normalmente. Terminou, não ia ter concorrência. Ia ter uma escolha direta”.

Em março, quando a imprensa revelou que seu nome apare-cera na delação da Andrade Gutierrez, Delfim sustentou que não recebera nada: “O que eu recebi foi por essa assessoria. Nunca recebi nada por conta de Belo Monte. Foi uma vida muito efêmera. Eu nunca recebi absolutamente nada”.

Aos 88 anos, 67 deles na vida pública, com tudo para chegar ao fim da sua biografia com uma imagem gloriosa, embora montada à base de fraudes e ardis, Antonio Delfim Netto, com a decisiva ajuda

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de Lula e Dilma, pode ter cometido um velho e lendário erro: a do criminoso que sempre volta à cena do crime. Em tempo, talvez, de ser submetido ao que a história fará, embora, talvez, tardiamente: ser submetido a um ajuste de contas com a nação.

O momento não podia ser mais apropriado. É quando o Brasil empreende a maior investigação de corrupção de todos os tempos, não por coincidência em período de plena liberdade formal, presente das democracias. Assustada, envergonhada e indignada pela revelação de tanta apropriação ilícita de dinheiro público, parte da sociedade se volta para o passado atrás de melhores refe-rências ou de um modelo idílico no trato da verba pública.

Por falta de rigor, certas correntes reapresentam o regime militar como modelo de honestidade sem atentar para uma circunstância: o férreo controle da informação e a censura estatal sobre a imprensa, que bloqueava no nascedouro a divulgação de fatos desfavoráveis ao governo. A mera reprodução das listas de temas proibidos que a censura enviava aos órgãos de comunica-ção para cumprimento ou lhes impunha diretamente os interdi-tos, através de censores instalados nas redações, demonstra quanta corrupção havia, escondida pela miragem da ilha da fantasia, da bonança, do bem-estar e da seriedade.

Algumas acusações foram feitas ao todo-poderoso czar da economia, mas a opinião púbica jamais tomou conhecimento da existência dessas denúncias. Dois relatórios de órgãos de infor-mação – um da Aeronáutica e outro do Exército – localizados em 2014 no Arquivo Nacional, sugeriam que Delfim teria criado um esquema de corrupção que lhe permitiria conquistar o governo de São Paulo em 1974 e, depois, a Presidência da República.

O primeiro informe (que é a forma embrionária de um relatório formal), de maio de 1969, pretendia alertar a “comunidade de informação” do governo militar. Sustenta que o homem forte do regime, “movido por ambição pessoal desmedida”, fez pactos com grupos econômicos nacionais e internacionais com a intenção de chegar ao topo do poder.

“Seu objetivo imediato é enriquecimento pessoal. Seu objetivo mais remoto é o de sustentação financeira de um plano político que o conduziria ao governo do Estado de S. Paulo, na pior das hipóteses”, diz o informe, que é uma abordagem preliminar, carente ainda de maior apuração, completando: ”Delfim Netto aspira à própria Presidência da República”.

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O ex-ministro foi alvo constante de monitoramento por uma parte da inteligência militar, que não o aceitava e mesmo procu-rava combatê-lo. Antes de assumir o governo, em 1974, o presi-dente eleito (por via indireta, pelo Congresso Nacional) Ernesto Geisel recusou a indicação de Delfim para o governo paulista, embora o pedido tenha partido do próprio presidente Médici, ainda no cargo, a quem sucederia.

Em entrevista dada pouco tempo atrás, Delfim admitiu que rece-beu de Médici a informação. Geisel argumentou que os militares temiam perder o poder com a eventual ascensão de Delfim à política. “Não quero porque ele, com a Avenida Paulista, vai tomar o governo”, teria dito Geisel a Médici, segundo Delfim reconstituiu.

O suposto esquema de corrupção é detalhado num relatório de 14 páginas difundido pelo Centro de Informação do Exército (CIE), sob o número 721, de 21 de dezembro de 1971, com o título “Minis-tro Delfim Neto – Villar de Queiroz”. A referência é ao diplomata José Maria Villar de Queiroz, que foi embaixador, assessor do Ministério da Fazenda e encarregado de negociações externas.

O informe diz que ele foi personagem “indispensável” e “figura mais importante do esquema Delfim, por se tratar de pessoa com importantes ligações na área internacional”. Em nome do minis-tro da Fazenda, Villar de Queiroz atendia pedidos de Delfim e, ao mesmo tempo, representava os interesses de grupos internacio-nais fortes àquela época, como o banco Safra, Sammy Cohen, León, José Cândido Ferraz e Pacovitch. “Há, ainda, os grupos internacionais, de banqueiros e operadores em financiamentos na área do eurodólar”, garantia o informante.

Segundo ele, Villar de Queiroz era o responsável pelas negocia-ções internacionais, incluindo o reescalonamento da dívida de todos os ministérios importantes ao longo dos sete anos em que Delfim foi o homem mais poderoso do governo. Ele planejava contro-lar integralmente as áreas de fazenda, finanças, comércio exterior e o Instituto Brasileiro do Café. O disputadíssimo IBC era então a autarquia mais importante do governo no comércio internacional. As exportações de café somavam um bilhão de dólares por ano.

A conquista do IBC teria multiplicado a influência do ministro. “Ele representa, sem sombra de dúvida, a maior força dentro do governo, um verdadeiro primeiro-ministro sem as desvantagens da oficialização do cargo de premiê”.

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Para conduzir os negócios internacionais Delfim montou o “grupo do Ministério da Fazenda”, com 11 integrantes, que contro-lava os mais importantes cargos públicos e comandava empresas privadas com interesses no governo. A assessoria de imprensa do ministério ficou encarregada do lobby junto aos veículos de comu-nicação. Todos empenhados em uma “política que interessa, sobretudo, aos grupos internacionais” e que atuaria no Brasil “em termos de agiotagem oficializada”.

A rede, segundo o informe, manobrava todas as peças sensí-veis do governo e da iniciativa privada para garantir poderes a Delfim. “Não resta dúvida de que jamais houve um esquema tão poderoso no Ministério da Fazenda, esquema que reúne a corrup-ção e a subversão de esquerda; negócios internacionais, intrigas políticas na área do governo; sinecuras para os elementos do grupo; tratamento desigual para os que não se integram ou não cooperam; manipulação de imensas verbas do ministério; permuta de interesses em detrimento do governo”, relata o informe.

O relatório conta que um ex-presidente do IBC, Mário Penteado Faria e Silva, foi derrubado do cargo porque resistiu aos “negocis-tas do café”, que faziam transações através de “contratos espe-ciais” com o governo.

O relatório descreve uma teia de conspiração política traçada por Delfim para livrar-se de adversários internos, até tornar-se o ministro mais poderoso do regime militar.

Outra denúncia feita no interior das engrenagens surgiu quando Delfim Netto estava no exílio dourado a que o condenara o general Ernesto Geisel. Sucessor do presidente que mais presti-giara Delfim, o general Emílio Garrastazu Médici, em cujo governo o “milagre econômico” promovido pelo ministro da Fazenda, iniciado ainda no governo do marechal Costa e Silva, conviveu com a maior violência estatal, com prisões arbitrárias, torturas e mortes de adversários do regime, Geisel concordou em deixar Delfim ocupar a disputada embaixada do Brasil em Paris.

O adido militar, coronel (do exército) Raimundo Saraiva, produziu um relatório no qual dizia que o embaixador estava levando propina na negociação do principal empréstimo para outra obra com características semelhantes às de Belo Monte: a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, destinada a ser a quarta maior do mundo, posto que perderá justamente para a obra que lhe deu continuidade, no rio Xingu, também no Pará. Delfim teria recebido uma comissão dos agentes financeiros, liderados pelos

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franceses, que também forneceriam metade do conjunto de gigan-tescas turbinas da usina.

A divulgação do relatório foi vetada na época. Delfim contes-tou o coronel Saraiva, que acabou sendo transferido. O assunto morreu. Espera-se que renasça agora como contribuição para que o Brasil, ao invés de retroceder, avance ainda mais na consolida-ção do regime democrático.

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Mulheres na política. Para que? Por que?

Tereza Vitale

Muitas pessoas não conseguem perceber a importância das mulheres estarem no poder, delas ocuparem espaços no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. Para muitos

homens essa é uma questão desnecessária, e muitas mulheres têm grande dificuldade de se perceberem ocupando esses espa-ços, que, historicamente, são dominados pelos homens. Elas só se veem trabalhando em casa e eles fora de casa! E a divisão sexual do trabalho fica restrita a esses papéis tradicionais de gênero. Aquilo que foi “ensinado” é o que prevalece. Poucas e poucos se libertam destes papéis pré-fabricados ao longo dos séculos.

Mas, a necessidade de as mulheres auxiliarem no sustento familiar levou muitas delas a perceberem que podem mais, muito mais do que reproduzir, cuidar, limpar, “estar”. Perceberam que podem “ser”, podem fazer e acontecer. Podem ser donas de seu nariz, de seu corpo, de suas vontades, de sua vida. Podem ter objetivos sem estar atreladas a casamento. Mas que este pode ser uma relação muito saudável se houver respeito recíproco. Além de saudável, pode ser uma relação feliz! UFA, que coisa boa, ser feliz, se realizar na vida sozinha ou acompanhada! Ter um compa-nheiro ou uma companheira...

Esta introdução é para dizer que as mulheres avançaram neste quesito “sair de casa” em busca de sonhos, de objetivos para criar sua própria história de sucesso pessoal. Que as formas de ser assim ou assado também se modernizaram, que hoje as opções são inúmeras, que os meios de comunicação colaboram para conhecer-mos o mundo além do nosso portão, da nossa escola, da nossa vizinhança. Mas e na política? Elas se alçam à vida política?

NÃO! As mulheres são mais que 50% da população. São mais de 50% dos eleitores. E sub-representadas na vida política... A democracia exige igualdade de gênero no sistema político e o Brasil ocupa o ridículo 158º lugar entre 188 países do mundo. Na América Latina está em último! Pasmem! É um país injusto com as mulheres e podemos ampliar este leque: além da desigualdade de gênero, temos a de classe e a de raça na política. Como dizem, nossos poderes são de homens, brancos e de classe média(alta).

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7171Mulheres na política. Para que? Por que?

Portanto, a democracia está bem longe de ser completa. A desi-gualdade de gênero é estrutural. A quem interessa mudar essa realidade? Aos partidos políticos? Acho que não! Estamos nessa luta há anos e nada melhora. As leis que temos a nosso favor vêm carentes de sansões e sabemos que por isso não são cumpridas em partes ou na íntegra. Há sempre um jeitinho para escamotear o que é de lei e o que é de extrema importância para as mulheres que fazem política: os míseros 5% do fundo partidário que deveriam ser empregados em programas de promoção às mulheres na política.

Uma boa pergunta: Por que as mulheres na política? O que altera? Se justiça democrática é sinônimo de paridade na política, se essa paridade significa ocupação de espaços de poder e se temos uma questão complexa que é a política ser um espaço masculino, é dever de todos proporcionar às mulheres condições de participação em igualdade de condições, nesses espaços masculinos. É necessária a preocupação e a realização de ações que as aproximem da oportunidade de discutir e tomar decisões.

Elas começam a se interessar, se percebem como alguém que pode fazer a diferença nas discussões. E fazem mesmo, a dife-rença! Temos uma visão diferenciada de mundo, não pelo simples fato de nascermos mulher, mas pelo fato de nos tornarmos mulher. Essa já era a fala, pela constatação, de Simone de Beauvoir, lá atrás, na obra O segundo sexo, no final da primeira metade do século passado (1949). É a inserção social que nos faz diferente do homem e a diversidade de pensamento, como todo tipo de diversi-dade, leva as situações a serem enriquecidas.

Dizem: mas elas são poucas. Poucas as que gostam da polí-tica, poucas que se dispõem a deixar suas casas para irem discu-tir política. Por isso, poucas mulheres na política! Concordo com essas teses, em parte. Mulher não deixa sua casa e seus afazeres por besteira. Por isso, a valorização de seu papel é importante. Por isso, a política tem que ser discutida, por isso é importante a discussão cidadã do papel da política nas nossas vidas. Tudo a nossa volta é política e ela se resume à nossa real participação: na escola, na nossa rua, no nosso bairro, nossos locais de estar diariamente... tudo é movido pela política! Se nos furtarmos dessa questão, outros estarão resolvendo nossa vida à nossa revelia. Sem nossa participação, não vale nem reclamar!

Uma mulher incentiva a outra a participar. E cada vez mais teremos mulheres nos partidos discutindo no mesmo tom e à mesma razão que os homens. Basta um empurrãozinho... e lá

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estarão elas participando em pé de igualdade. Assim estaremos incentivando as mulheres a chegarem ao Parlamento. Incenti-vando candidaturas pra valer e incentivando que mulheres votem em mulheres. Esta é outra questão cultural que temos que “atacar”. Se as mulheres são mais que 50% dos eleitores e não temos mulheres que nos representem como parlamentares, essa conta não fecha. Cadê nossos votos? Foram para os homens!

E nossas teses não são para se votar em mulher porque é mulher, simplesmente. Ninguém pede isso quando incentiva medi-das afirmativas como as cotas, p.e., queremos que as mulheres candidatas estejam bem preparadas para a política para fazer valer nosso “voto em mulher”. Isto é óbvio!

E uma das prerrogativas para que elas se tornem candidatas em pé de igualdade com os homens, está sob a responsabilidade dos partidos. Elas têm menos recursos financeiros, menos tempo livre pra correr atrás destes recursos, menos influência em coliga-ções. Todos estes entraves são combatidos por nós quando luta-mos pela reforma política que abarque o sistema eleitoral em nosso favor. O ideal, para alterar este quadro, menos lentamente, é o financiamento público de campanha e a lista fechada com alternância de sexo. Tendo maior controle sobre as candidaturas e a aplicação do financiamento de campanha garantiríamos mais sucesso para eleger mulheres.

Sem estes artifícios, que chamamos de medidas afirmativas (cotas para vagas em candidaturas, financiamento público, lista fechada), demoraremos dois séculos para alcançar a paridade de representação nos parlamentos. Dois séculos!!!

Em outubro próximo, nossas eleições serão municipais. Uma oportunidade única para as candidaturas de mulheres. Trata-se do poder local! O Poder que está bem perto das mulheres. Do Local onde vivem, do Local onde está sua família, do Local em que vão e voltam..., ou seja, podem trabalhar com uma plataforma eleitoral bem conhecida, de seu inteiro domínio.

Para as candidatas à prefeita, as políticas públicas para as cidades são voltadas ao transporte coletivo, para a educação infantil e ao ensino fundamental, ao atendimento à saúde além de voltar-se ao ordenamento territorial do solo urbano e à proteção do patrimônio municipal.

A prefeita, que é a representante do Poder Executivo municipal, tem que trabalhar em conjunto ao Poder Legislativo municipal, que

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7373Mulheres na política. Para que? Por que?

é a Câmara dos Vereadores, cuja atribuição é elaborar leis de competência dos municípios, e fiscalizar a atuação e gerenciamento dos recursos do orçamento. Uma fiscalização não só em relação ao bom uso dos recursos públicos, mas também quanto ao atendi-mento adequado às demandas dos habitantes do município.

Tudo bem!!! Homens e mulheres podem perfeitamente cumprir essas agendas municipais. Mas por que nos interessa que a mulher esteja nos representando nos municípios? Qual a dife-rença? Por que os homens não nos representam?

Espera-se que as mulheres defendam pautas específicas que nos dizem respeito, o que chamamos de Plataforma das Mulheres. Homens também podem se comprometer com nossa pauta, mas deles esperamos menos, bem menos...

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O brasil pós-PT:

da democracia formal à democracia social ou nova democracia

Chico Andrade

Os desafios da democracia em países em desenvolvimento, como o Brasil, são imensos, porquanto aqui não fomos capazes de resolver os problemas básicos de natureza

material, como a pobreza, a fome, a violência, o desemprego, a educação e, sobretudo, a corrupção.

E em qualquer parte do mundo onde essas questões sociais primárias e geradoras de mais desigualdades não foram enfrenta-das com sentido de transformação, a democracia quando sobre-vive é à custa de sistemas presidencialistas forjados e viciados e de muita e permanente instabilidade. Daí a urgente necessidade de se rediscutir a inconsistência do atual sistema de governo em nosso país, buscando envolver as mais amplas camadas de forma-dores de opinião onde quer que se encontrem.

Vivemos uma espécie de intervalo da crise, tão grave ela é, com o afastamento ainda temporário de Dilma e a interinidade de Michel Temer na Presidência da República. E só isso, num país de indiscutíveis atrasos sociais e culturais, em que grande parte da população pobre e excluída viveu nos últimos 12 anos a ilusão da chegada ao paraíso do consumo, sem se dar conta da insustentabilidade disso. Apenas por essa vã sensação, pode-se perceber o grau de desencanto e a perspectiva assombrosa de maior desagregação social.

Os cientistas políticos e sociais vêm se utilizando bastante nas últimas décadas da expressão capital social, como pressu-posto intangível de maior integração entre o Estado e a sociedade e entre os cidadãos. Ora, o problema é que, para se auferir capital social, é preciso exatamente transpor esse ciclo econômico que misturou dominação econômica com negação de direitos ou carência de cidadania, por conta de séculos de predomínio polí-tico excludente e concentrador da riqueza. Dizem esses cientistas que o capital social pode:

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7575O Brasil pós-PT: da democracia formal à democracia social ou nova democracia

1. Tornar os cidadãos consumidores sofisticados da política e oferecer canais por meio dos quais suas demandas possam ser articuladas;

2. Tornar os burocratas mais cooperativos entre si;

3. Promover a virtude na cidadania, saindo de uma dimensão individualista para uma orientação comunitária, produzindo cidadãos mais obedientes às leis e, portanto, facilitando a imple-mentação de políticas públicas;

4. Tornar a democracia o mais consensual possível.

Se tais premissas forem, de fato, razoáveis, então, será em meio a esta inominável crise que teremos de ter a capacidade de superar os ranços, mitigar a raiva alienada e perpassar as vingan-ças, pequenas e grandes para apontar os elementos edificadores para a Nova Democracia que o país está a exigir, ou para estabe-lecermos os acordos para alcançarmos a sonhada Democracia Social ou ideal.

Para tanto, os atores sociais e políticos mais importantes precisam se dar conta da grandeza de seu papel na história, que já não comporta mais as velhas máximas maniqueístas com as quais a esquerda tradicional se constituiu no passado e até aqui viveu. É necessário que estes setores que abarcam o grosso da energia do chamado capital social (associações, sindicatos, ONGs), se deem conta, não apenas da dura e inescapável reali-dade de um país devastado econômica e moralmente, deixado que foi exatamente por aqueles que prometiam a sua salvação com um discurso tão antigo quanto ineficiente para os tempos atuais.

É preciso deixar cair sem medo aquelas terríveis e autoritárias máscaras manipuladoras de consciências ingênuas, num país de tantos contrastes e diante de um mundo que já não comporta mais promessas de soluções pseudorevolucionárias, mas requer trabalhadores bem formados e antenados com esta realidade mutante tecnologicamente e socialmente desafiadora.

É necessário que compreendamos todos a importância de melhor usar as inteligências humanas para construirmos novos elementos de barganha frente à força e tenacidade dos capitais financeiro e industrial. É preciso elevarmos ao máximo a nossa capacidade criadora para nestes novos tempos ainda podermos disputar o protagonismo de uma nova representatividade de classe laboral.

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7676 Chico Andrade

É absolutamente indispensável nos desprendermos de concepções que um dia despertaram nossos sonhos, mas que hoje não se mostram mais capazes nem de encantar as novas massas de estudantes e trabalhadores, nem de apontar para as soluções econômicas para os problemas que o cruel mundo globalizado nos impôs.

Já no cenário político, temos a obrigação de apontar e começar a construir os parâmetros da saída desse carcomido sistema presi-dencialista de cooptação para um sistema mais includente, politica e ideologicamente, que poderá ser a implantação do Parlamenta-rismo, precedido de mudanças radicais no modo de se elegerem os representantes no parlamento e da adoção de mecanismos como o voto distrital misto, o recall e a intermitência dos mandatos.

Em meio à esperança de superação da crise econômica, resta a expectativa de um breve desfecho favorável ao país na votação definitiva do impeachment, para enfrentarmos com mais substân-cias esse debate da substituição do sistema de governo em nosso país. O Parlamentarismo pode ser o caminho de uma Nova Demo-cracia ou da democracia social no Brasil.

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IV. Economia e Desenvolvimento

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Autores

Milton Coelho da GraçaJornalista, economista e comentarista de jornal e TV.

Míriam LeitãoJornalista, economista e comentarista de jornal, rádio e TV.

Vicente NunesJornalista econômico e editor de Economia do Correio Braziliense.

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É de chorar

Vicente Nunes

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, está certo de que venceu a disputa com a ala política do governo ao definir o rombo nas contas públicas de 2017 em R$ 139

bilhões, mas não há nada o que comemorar. Ainda que o déficit seja menor do que o estimado pelo merca do, o número é assusta-dor, qualquer que seja o parâmetro de comparação.

As finanças do país estão no vermelho desde 2014 e não há previsão de quando voltarão a apresentar supe rávit – talvez em 2019. O buraco persiste mesmo com a socie dade despejando, todos os anos, quase 36% do Produto Inter no Bruto (PIB) em impostos nos cofres do Tesouro Nacional. O governo brasileiro é o retrato do descontrole.

Ao anunciar o rombo de R$ 139 bilhões, Meirelles, com seu sorriso característico, disse que o saldo negativo real nas contas da União é de R$ 270 bilhões. É o que ele chama de déficit es tru-tural. Levando-se em consideração a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o aumento de gas tos, o buraco cai para R$ 194 bilhões.

Para chegar à meta, o go verno está contando com R$ 55 bilhões em receitas extraordinárias. O minis tro garante que, diante dessa realidade e do défi cit de R$ 170,5 bilhões estimado para este ano, o rombo previsto para 2017 é um avanço e um “esfor ço” no sentido do ajuste fiscal. Certamente, era possível fazer mais, pois está evidente o quanto o Estado brasileiro é incha do e ineficiente.

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8080 Vicente Nunes

Espertamente, o go verno não anunciou au mento de impostos para 2017 para facilitar a vida de Meirelles. O presiden te interino, Michel Temer, preferiu deixar as maldades para de pois de agosto, quando, acredita, estará efetivado no cargo com a aprovação do impeachment definitivo de Dilma Rousseff.

Mas que ninguém se iluda, a elevação de tributos está definida e faz parte dos R$ 55 bilhões em receitas extras que a Fazenda prevê arrecadar. Há ainda o desejo oculto de se chegar ao fim do ano com um rombo menor que o anunciado, como um tro féu a simbolizar o compromisso com a austeridade.

País de joelhos

A questão fiscal está hoje no centro de todos os problemas econômicos que o Brasil enfrenta. Ao destruir as finanças do go verno, Dilma desencadeou uma onda de desconfiança sem pre-cedentes. A inflação disparou. O dólar subiu e a bolsa de valores despencou. Os juros retomaram aos níveis de 2006. Em meio a tantas incertezas, as empresas cortaram a produção. As famílias, muito endividadas, reduziram o consumo. A recessão deu as ca ras, desempregando 11,4 milhões de pessoas.

Todo esse desastre foi regado a uma crise política que resultou no segundo processo de impeachment de um presidente da Repú-blica em apenas 25 anos. O Brasil ficou de joelhos. Muitos ainda dizem que o processo de afastamento de Dil ma é injusto. Não é. Por tudo o que a petista fez, a perda de mandato é mais do que justa.

É inadmissível que um chefe de Estado promova tanto estrago na economia e tanto sofrimento à população sem qualquer punição, como se fosse a coisa mais normal do mundo. O ideal seria que ela tivesse a grande za de renunciar, para evitar a guerra política que se instalou no país. Mas a arrogância a impede de tal grandeza.

O que todos esperam é que o governo Temer não repita os mesmos erros de Dilma e não se deixe contaminar pela com placên-cia de parte do mercado financeiro. Um déficit menor para 2017 não é garantia de nada. Os desafios que estão colo cados são muitos. Nos dois meses em que está no Palácio do Planalto, o peemedebista flertou com o populismo fiscal, pen sando apenas no poder. Aumen-tou gastos sem constrangi mento, como os R$ 68 bilhões decorren-tes do reajuste aos ser vidores, rasgando o discurso de responsabi-lidade na gestão da coisa pública com o qual assumiu.

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8181É de chorar

Meirelles acredita que, com a meta de déficit de R$ 139 bi lhões no ano que vem, o governo enterrará a desconfiança dos agentes econômicos, dando início a um ciclo de crescimento que ajudará, por meio do aumento das receitas, a facilitar o ajuste das contas. Contudo, todos os sinais de alerta estão liga dos. O governo nunca primou por valorizar cada real pago pe los contribuintes e já houve frustração demais na área fiscal. Acabou o tempo de prometer. A hora é de entregar.

De mãos dadas

Por mais que o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, insista em dizer que não há espaço para cortes de juros neste ano, os investidores mantêm firme a aposta de redução da taxa básica (Selic), que está em 14,25%, a partir de outubro. Os donos do dinheiro estão certos de que, aprovado o impeachment definitivo de Dilma Rousseff, o go verno de Michel Temer baixará uma série de medidas para re forçar o ajuste fiscal, o que permitirá ao BC afrouxar a política monetária, mesmo com a inflação ainda distante do centro da meta, de 4,5%.

O discurso duro de Ilan faz parte da nova roupagem do BC, que tenta reconstruir a credibilidade perdida. Ele acredita que as ações do banco devem estar perfeitamente casadas com as pala-vras emitidas pelo comando da instituição. É essa sintonia que guiará as expectativas do mercado. Para Ilan, até agora, tudo está funcionando como o previsto. Tanto que as proje ções de inflação vêm caindo. As estimativas deste ano baixaram para 7,26%. As de 2017 cederam para 5,40% e as de 2008, para 4,71%. Já as previ-sões para 2019 e 2020 ancoraram nos 4,5%.

O presidente do BC sabe que este é só o começo de um traba-lho árduo. E não bastará apenas o esforço da instituição para que a inflação permita a tão esperada queda dos juros. Na ver-dade, o banco tem papel de coadjuvante no processo. As cartas estão com o Ministério da Fazenda, ao qual cabe apresentar as medidas para o ajuste fiscal, e com o Congresso, que precisa avalizar o que foi proposto.

Os técnicos do BC não gostam muito dessa posição secundá-ria. Preferem dizer que a autoridade monetária está de mãos da das com a equipe de Henrique Meirelles e com o Legislativo num processo maior, que é o da reconstrução de um país que luta pa ra sair de uma gravíssima recessão. Vaidades à parte, todos no

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8282 Vicente Nunes

Banco Central reconhecem que, se o governo não se empenhar para aprovar, ainda neste ano, a Proposta de Emenda à Consti-tuição (PEC) que limita o aumento de gastos e não levar adiante projetos importantes como a reforma da Previdência Social, o rompimento com o mercado será traumático.

Pós-impeachment

Enquanto aguarda pelo ajuste fiscal e vai colhendo os frutos de um compromisso claro de levar a inflação para o centro da meta até o fim de 2017, Ilan tenta resolver um problema mais urgente: encontrar um ponto de equilíbrio para o dólar, de forma que não pressione a inflação nem tire a competiti vidade das exportações, o que poda em risco o único ajuste que o Brasil fez, o das contas externas.

A orientação, fechada com o diretor de Política Monetária, Reinaldo le Gra zie, é de agir de forma gra dual, sem sobressaltos, para evitar volatilidade desne cessária no mercado, pois, nos últi-mos tempos, o que não faltou foi ruído no câm bio. Com interven-ções pon tuais, de US$ 500 milhões ao dia, por meio de contratos de swap (venda da moeda) reverso, espécie de compra futura de dólar, Ilan explicita que o BC está aten to a qualquer movimento atípico do mercado e, dis cretamente, começa a desmontar a montanha de US$ 60 bi lhões em contratos tradicionais de swap.

Ilan tem ouvido de vários interlocutores do sistema finan-cei ro que a inflação vai cair. Mas a velocidade dependerá da força com que Temer emergirá depois de aprovado o impeachment de Dilma e do discurso que ele adotará. O presidente interino já avi sou que está preparando um pacote de maldades para lançar as sim que for anunciada a decisão do Senado. E a aposta é de au mento de impostos e de cortes mais radicais nas despesas do go verno. O risco é de o peemedebista se inebriar pelo poder e acre ditar que, sendo mais complacente com os males que afli-gem o país, será reeleito em 2018.

Cara nova

Economista-chefe da Quantitas Asset Management, Ivo Cher-mont ainda está resistente em ver um quadro mais benig no para a inflação em 2017. As projeções dele apontam para um Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 5,7%, bem distante dos 4,5% prometidos por Ilan. No entender dele, com essa taxa,

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8383É de chorar

é impossível pensar em queda dos juros. Mas ele acredita que, se o ajuste fiscal andar, o BC cederá e assumi rá que o arrocho refor-çará o peso da política monetária, ao contrário do que se viu nos últimos anos, quando a autoridade monetária ficou isolada.

Para Chermont, não há dúvidas de que um déficit de R$ 139 bi lhões, em 2017, quarto ano seguido de contas no vermelho – é um terror para o BC. Contudo, dada a realidade do país, a tendên cia é de o time chefiado por Ilan olhar mais para as ques-tões estru turais, como as medidas encaminhadas ao Congresso, que, se aprovadas, darão uma cara nova às finanças do país. “Se tudo ca minhar como o desejado e esperado, veremos redução de juros, ainda neste ano, mesmo com uma inflação um pouco maior do que o indicado pelo BC”, afirma.

Ele, porém, está mais cético que a maioria do mercado. Na avaliação dele, a Selic só começará a cair a partir de novembro e descerá até 11,25% ao longo dos meses seguintes. “Este é o quadro mais compatível com a ortodoxia mostrada pelo BC de Ilan”, diz. A próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) está marcada para os dias 19 e 20 de julho. Mais do que o resultado, que todos já sabem – os juros serão mantidos em 14,25% –, o que dará o tom será o comunicado pós-en contro. Será o primeiro docu-mento preparado inteiramente pelo novo BC. Não é pouca coisa.

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País de bolso vazio, mas com modernos aviões de caça

Milton Coelho da Graça

Recentemente, além da Rússia, que está sofrendo sanções econômicas impostas pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), seis países europeus padecem, há

anos, recessões como a nossa e também por conta de má admi-nistração financeira – Portugal, Espanha, Itália, Grécia e Chipre.

Com exceção deste último, pequeno país-ilha, que superou a crise, principalmente graças ao firme (provavelmente pelo baixo valor) apoio do Banco Central Europeu, os outros ainda enfren-tam problemas de alto desemprego, baixa produção, inquietação política, maiores índices de criminalidade, redução da atividade científica e outros, que já começamos a sofrer mas – preparem-se – ainda vão piorar muito. A arte de reduzir a crise ao mínimo exige firme e rápido reequilíbrio das contas correntes e, a seguir, construção de um saldo que assegure recuperação da “saúde” financeira à entidade pública, seja ela país, estado ou município.

O que deve nos assustar e alertar é que nada garante – com exceção do notável trabalho da Operação Lava-Jato – que o Estado brasileiro esteja sequer traçando o caminho mais curto e seguro para essa recuperação.

Tivemos uma experiência semelhante, há muito pouco tempo. Há menos de 40 anos, o governo Geisel herdou o preço do Brasil Grande, concebido e buscado pelo anterior governo Médici, mas que existia apenas na imaginação dos militares. Na verdade, era o Brasil Grande Devedor.

Quando Geisel assumiu e viu o tamanho da encrenca formada pelo “choque do petróleo”, a hidrelétrica de Itaipu, a hidrelétrica de Tucuruí (um fracassão), a Transamazônica (outro fracasso), as caríssimas pesquisas da bomba e do submarino nucleares (sem contar o que já devia estar sendo afanado sem a vigilância esperta de Sérgio Moro, procuradores e Polícia Federal), tudo isso compli-cado pelo terrorismo ameaçador da Linha Dura, pensou: “Está na hora de sair desse embrulho”. Começou mudando, em abril de 1976, o controle do Congresso. Cinco territórios foram promovi-dos a estados. Com mais 15 senadores e uma porção de deputa-

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8585País de bolso vazio, mas com modernos aviões de caça

dos, a maioria nas duas Casas do Congresso passou a ficar mais conservadora do que na Velha República, porque oriunda dos estados menos desenvolvidos.

Depois indicou, para sua sucessão na Presidência, um militar em quem tinha absoluta confiança, o general João Batista Figuei-redo, que acabou executando a parte mais complicada do plano. Um deputado da oposição ousara apresentar uma emenda consti-tucional instituindo a volta da eleição direta para a Presidência e Vice-Presidência da República. Mesmo não havendo dúvida sobre a posição liberal-conservadora de Tancredo e a maioria do Congresso sob controle da Arena (partido governista), os militares sabiam que um número significativo de parlamentares, embora de direita, tinha convicções democráticas e civilistas.

E Figueiredo tinha outras razões para se preocupar. A maioria da Arena já estava se formando em torno de Paulo Salim Maluf, já famoso por suas malufadas. Figueiredo era um “grosso” oficial de cavalaria, mas também um “finíssimo” agente da inteligência militar (ex-diretor do Serviço Nacional de Informações). E decidiu (obviamente, com o apoio de todo o seu grupo, cada vez mais inquieto com as ações terroristas da “linha dura”) criar uma “dissidência” na Arena. A ideia de ter José Sarney como compa-nheiro de chapa agradou ao instinto conciliador de Tancredo.

Mas a economia não tem as mesmas sutilezas da política. Fosse quem fosse o primeiro presidente civil pós-ditadura, ele teria de administrar o caos financeiro do país, onde a inflação chegou a DOIS MIL POR CENTO, em 1984. Só depois do Plano Real – e já no fim do governo Fernando Henrique Cardoso (2001) – voltamos a ter as finanças equilibradas.

Acontece que logo escolhemos dois outros presidentes, doidi-nhos para gastar o que não deviam nem podiam. A presidente Dilma, por exemplo, chegou ao cúmulo da irresponsabilidade. Já com a crise econômico-financeira instalada, pegou um avião e foi a Estocolmo apenas para confirmar e garantir a compra de 36 aviões de caça Gripen, de que o país não precisa nem jamais precisará.

Graças ao maior brasileiro de todos os tempos – Barão do Rio Branco –, somos o único país do mundo com dez vizinhos e sem qualquer encrenca com nenhum deles.

Numa altura destas, a Suécia entenderia um adiamento ou mesmo desistência da compra dos aviões. Mas dona Dilma fez o contrário nessa viagem de três dias (ainda deu uma esticada até

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à Finlândia só para disfarçar): foi só para confirmar a compra e o pagamento dos aviões. E o pior: que eu saiba, nenhum jornal, nenhum deputado ou senador, nem qualquer pessoa do governo Temer, propôs a iniciativa de pedir desculpas à Suécia e desauto-rizar a garantia dada por dona Dilma.

A outra crise durou quase 20 anos. E sem gastar 15 bilhões de dólares em aviões de caça.

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Um novo jeito de enfrentar a crise

Míriam Leitão

O ministro Henrique Meirelles deixou claro nas suas conver-sas dentro do governo sobre a meta fiscal que, este ano, a atual equipe pegou o bonde andando, mas em 2017

será considerado responsável pelo que acontecer. Por isso, “sob nenhuma hipótese” a meta fiscal poderia ser um déficit maior que o de 2016. Desta forma, ele rechaçou as propostas mais expansio-nistas. Mesmo assim, R$ 139 bilhões é um déficit enorme.

É muito difícil fazer uma reversão de um resultado tão nega-tivo sem aumento de carga tributária. Mas não foi incluído aumento de imposto. A hipótese de elevação da Cide, apesar de ser considerada um “imposto verde”, também foi deixada de lado pelo impacto inflacionário que poderia representar.

Para fazer seus cálculos, o governo partiu de projeções de arrecadação muito mais pessimistas do que as feitas pelo mercado. Normalmente era o oposto. Vários bancos e consultorias previram uma receita maior, porque apostam em crescimento do PIB de até 2% para 2017, e porque acreditam que novos impostos serão cria-dos. O governo projetou uma alta de 1,2% na economia e não está contando com novos tributos. A receita extra virá apenas das privatizações e concessões. Ao todo, R$ 55 bilhões.

O secretário de Acompanhamento Econômico, Mansueto Almeida, explica que agora não se pode simplesmente criar um número de receitas extraordinárias, porque o TCU exige que cada projeção de ganho com privatização ou concessão seja acompanhada de uma nota técnica que justifique como se chegou a esse número.

A Casa Civil está envolvida em vários projetos de redução de gastos por aumento de eficiência e para isso está tendo a consul-toria, sem qualquer custo, da McKinsey para o cruzamento de bancos de dados que evitem a sobreposição de benefícios. Outra consultoria está sendo dada por técnicos do Banco Mundial, BID, Cepal e OCDE, no que se chama “expenditure review”. Essa revi-são das despesas, para se testar sua eficiência e detectar desper-dícios, vai se concentrar nos dois grandes orçamentos: saúde e educação. Além disso, serão revistas todas as políticas setoriais.

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8888 Míriam Leitão

Há diversos regimes especiais para setores que foram dados há muito tempo e ninguém analisou a eficácia desse gasto.

O Brasil é assim. Um gasto é criado e vai ficando. Cresce de forma vegetativa, é usufruído por um grupo de interesse. Ninguém fala nada e vai ficando, empilhando-se nesse estado perdulário. Por isso será importante conferir essas políticas setoriais. A revi-são do auxílio-doença pode economizar R$ 6 bilhões, calculam técnicos do governo. Trabalhadores adoecem, claro, mas há quem se dependure no benefício. Há outras mudanças que podem render recursos ao governo, mas o mais importante dessa revisão dos gastos é que não será como de outras vezes.

“Não entrou no Orçamento nenhum centavo dessa receita que pode ser conseguida com melhoria de programas e eficiência no gasto. Se esse dinheiro vier será ótimo, mas não estamos contando com ele” – diz Mansueto.

O governo vai preparar o Orçamento de 2017 como se já esti-vesse aprovado o limite para as despesas. O aumento de gastos será principalmente pelo custo da previdência, mas as outras despesas serão corrigidas apenas pela inflação. Antes, o governo mandava uma proposta com uma estimativa de receita e o gasto decorrente. O Congresso recalculava a receita para cima e criava novos gastos. Agora não poderão mais fazer isso, porque a despesa estará fixada dentro do limite. O país poderá então, discutir Orça-mento e escolher um gasto em vez de outro.

Outra mudança a ser conferida é que o governo vai criar duas estatais. Não se assuste, leitor. Elas serão criadas apenas para tornarem possível a privatização. A Lotex ficará com uma parte da loteria, a que cuida da raspadinha, e será vendida assim que for desmembrada. Pode acontecer a mesma coisa com a parte de seguros da Caixa.

O país terá que enfrentar sua verdade fiscal nos próximos anos. A receita líquida do governo central era de 18,7% do PIB em 2013. Caiu em todos os anos, e em 2017 deve ser de 16,6%. A administração anterior fez vários truques, como pedir dividendos antecipados a bancos públicos. Agora, e daqui em diante, o país terá que parar de inventar dinheiro. A era dos truques acabou.

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8989Um novo jeito de enfrentar a crise

Contas quebradas

Uma pergunta que não quer calar: onde foi mesmo que o Brasil perdeu o pé nas contas públicas? Importante pensar sobre isso para encontrar alguma solução e evitar, no futuro, a repetição do mesmo erro. Quando as receitas subiram, o governo elevou as despesas; quando as receitas caíram fortemente, o governo conti-nuou expandindo as despesas e aí se perdeu.

Em 2009, no auge da crise financeira internacional, as receitas líquidas do governo central tiveram a primeira queda depois de cinco anos de altas fortes. Naquele ano, o governo ampliou as despesas em 9,6% acima da inflação. Mas o momento era de crise no mundo inteiro, de esforços dos governos para manter o crescimento e, por isso, fazia sentido. Era o típico caso de política contracíclica.

No ano seguinte, 2010, o país cresceu forte e se recuperou. As receitas aumentaram. Aquela era a hora de começar a segurar as despesas para ajudar as contas a se ajustarem, mas o governo elevou o gasto em 16%, acima da inflação. Foi quando perdeu completa-mente o pé: no governo Lula e para eleger a presidente Dilma.

No primeiro ano do primeiro mandato, Dilma tentou segurar as pontas e fez um pequeno ajuste. Caíram as receitas, mas caíram também as despesas. No ano seguinte, houve uma pequena recu-peração da arrecadação e o governo passou a ampliar sistematica-mente os gastos ao nível de 6% ao ano, descontada a inflação. Com a recessão, a receita despencou e aí o país entrou no buraco fiscal.

A austeridade não é um fim em si mesma. O mérito não é a despesa caindo sempre. O que se busca é o equilíbrio e o melhor uso do dinheiro coletivo enviado ao governo para que ele faça escolhas sábias. E as escolhas feitas pelo governo, nos últimos anos, não tiveram equilíbrio nem sensatez.

Esse período será estudado como de desperdício e de erros sequenciais. E não foram apenas em Brasília. No Rio, as receitas de royalties em expansão não foram usadas para se preparar o futuro. Houve alguns bons investimentos, como os que levaram a educação do 26º para o 4º lugar, ou os que espalharam uma polí-tica de segurança com estratégia e foco.

Ao mesmo tempo, na abundância ninguém viu as perdas com os excessivos subsídios a empresas que nada tinham de estraté-gicas. Agora, o estado está no pior dos mundos: as receitas de royalties caíram, os subsídios ao capital permanecem, e os ganhos com educação e segurança estão se desfazendo no ar.

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9090 Míriam Leitão

Em Brasília, uma parte do aumento da riqueza foi usada para os programas que atenderam aos pobres. Mas foi a menor parte. O grande quinhão foi dirigido aos ricos em políticas como os subsídios e favorecimento ao capital e benesses corporativas. O novo governo vai apenas reduzir, ligeiramente, os subsídios ao capital e tem cedido às pressões das empresas.

O Brasil precisa analisar mais profundamente o gasto público para corrigir um velho problema: o de que a maior parte é apro-priada pelos não pobres, uma fatia considerável se perde na inefi-ciência, e outra vai para programas que não são avaliados. Mesmo sendo bons, eles devem ser aperfeiçoados para aumentar a eficácia.

O governo Temer descobriu, sem maiores esforços, apenas fazendo uma avaliação superficial, que há 900 mil pessoas depen-duradas no auxílio-doença por mais de dois anos, ou que existem 45 mil pessoas recebendo dinheiro para não pescar em Brasília. Quando a pesca está liberada, onde se amontoam esses pescado-res do Lago Paranoá? Os programas sociais precisam ter ende-reço certo e devem ser avaliados constantemente. Isso não é exatamente austeridade. É respeito ao dinheiro do contribuinte.

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V. Ciência e Tecnologia &

Meio Ambiente

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Autores

Arnaldo JardimDeputado federal licenciado (PPS-SP) e Secretário de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.

Eliseu Roberto de Andrade AlvesPesquisador e fundador da Embrapa, foi presidente da Embrapa e da Codevasf.

Renan Gonçalves Leonel da SilvaPesquisador de pós-doutorado do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp.

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Inovação tecnológica, coordenação política e transversalidade

Renan Gonçalves Leonel da Silva

Parece ser uma narrativa já consolidada a de que o Brasil não teve sucesso em atingir uma economia baseada no conheci-mento e na inovação tecnológica. Essa dificuldade é tida como

um problema estrutural e, recorrentemente, aparece como um fator crítico para os que estudam o desenvolvimento socioeconômico brasileiro. É também interpretada como um desafio inerente às economias latino-americanas, por evidenciar uma provável inca-pacidade dos governos da região em coordenar agendas de políticas públicas virtuosas para reestruturar o setor produtivo.

Esta é uma discussão antiga e pode-se dizer que já se crista-lizou no pensamento social sob a roupagem de um aparente “fracasso”. O Brasil segue na promessa de desenvolvimento e, segundo os que estudam a economia brasileira a fundo, os policy-makers não têm sido capazes de promover uma boa governança dos agentes econômicos para viabilizar um salto qualitativo na nossa economia. Será?

Trata-se de um debate que, por décadas, compôs a agenda de pesquisa da economia crítica e do desenvolvimento econômico na América Latina. Essa discussão tem o potencial de resgatar a análise de experiências diversas – desde as peripécias do Estado Novo de Vargas até a campanha neodesenvolvimentista do governo Lula. Os debates em torno da importância da inovação tecnoló-gica e do planejamento de uma possível reconversão industrial para o moderno, high-tech, de certa maneira estão ligadas a essa agenda. O resultado é que, devido a insistência dessa agenda,

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9494 Renan Gonçalves Leonel da Silva

desde o início do século XXI o tema da inovação tecnológica ganhou grande relevância.

Com mais ênfase a partir de 2004, a economia brasileira reuniu esforços reais para superar a “condição” de ineficiência na promo-ção da inovação tecnológica. Não foi o suficiente, mas avançou. As iniciativas ocorreram pela via das instituições públicas e o debate sobre a inovação tecnológica “apareceu” como relevante em distin-tas esferas do governo federal (como o BNDES, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o Ministério da Saúde, para citar alguns). O chamado Sistema Nacional de Ciên-cia, Tecnologia e Inovação (SNCT&I) foi expandido (o que não quer dizer, automaticamente, “aprimorado”) e a política científica e tecnológica brasileira passou a contar com um número maior de instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento, principal-mente com a ampliação do sistema universitário federal.

Isso levou a uma ampliação significativa dos recursos destina-dos para o SNCT&I. Segundo Elisabeth Gibney, entre 2005 e 2010, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) dobrou seu desembolso e, segundo Luisa Massarani, em 2013, o governo federal atingiu a marca expressiva de 12,7 bilhões de reais gastos com ciência e tecnologia (C&T). Os números pioram significativamente a partir de 2014, quando se verifica um corte expressivo de recursos: um “duro golpe” para projetos em execu-ção. Toda a epopeia termina com a própria fusão do MCTI com a pasta do Ministério das Comunicações, praticada em 2016 pelo presidente interino Michel Temer, o que descontentou grande parcela dos cientistas brasileiros. Portanto, estamos diante de uma contradição: mas como pode ser possível que a inovação tecnológica seja uma narrativa central da política pública, e a ciência, não?

O lado positivo da história política é que ela nos mostra, na prática, porque devemos “separar o joio do trigo”. Se o país não sustenta uma agenda de Estado para a ciência e, ao mesmo tempo, promove um discurso em defesa da inovação tecnológica, isso soa como grande incoerência. E essa incoerência parte de uma inca-pacidade dos dirigentes da política, e da própria sociedade, de entender as teorias e modelos interpretativos do processo de inovação. É, também, entendido como incapacidade de coordena-ção política do Estado brasileiro: suas instituições não têm sido ineficazes na tarefa de disseminar o conhecimento como peça-chave da gestão governamental em várias áreas (Saúde, Econo-mia, Educação, Meio Ambiente etc.). Seria, portanto, papel do

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9595Inovação tecnológica, coordenação política e transversalidade

Estado garantir transversalidade aos temas de ciência, tecnologia e inovação como parte integrante do sistema de governança das políticas públicas.

A escalada do pensamento neoliberal e sua reprodução em forma de política pública fez progredir, como diretriz central dos governos no Brasil, pelo menos quatro mitos fundamentais: (a) que o Estado não deve nutrir interesse na inovação tecnológica, já que esse deve ser um empreendimento de “mercado”; (b) que o Brasil, por ser uma economia de industrialização tardia, não é capaz de coordenar uma política industrial com foco em conhecimento e inovação, uma vez que a indústria ainda não atingiu o amadureci-mento necessário para inovar; (c) que o SNCT&I brasileiro é predo-minantemente público e, por isso, não deve servir ao sistema produtivo (e nem o sistema produtivo deve atender demandas do SNCT&I); e (d) que os interesses de quem faz ciência são os mesmos de quem faz inovação. Mas por que essas afirmações são mitos?

No que se refere ao papel do Estado na inovação, ele é tão fundamental quanto necessário. Principalmente nas economias de capitalismo avançado, em que o sistema produtivo já teria atin-gido um grau relativo de maturidade, o processo de governança dos agentes econômicos está presente como rotina na gestão governamental. Em países como os EUA, por exemplo, a universi-dade se comporta como um ator estratégico: não apenas por ser espaço de produção do conhecimento de fronteira, mas devido seu papel como ente transformador da ciência em mercadoria – um elemento central ao processo de inovação e que faz das universi-dades centros de interesse para os governos e o setor produtivo.

O interesse do Estado é potencializar essa atividade, já que as instituições de pesquisa são as organizações responsáveis pela gestão do conhecimento e pela sua transformação em novos produtos ou processos. Isso gera um circuito virtuoso, que pode servir como o “gatilho” inicial para o processo de reconversão econômica no plano no âmbito local. Portanto, a inovação tecno-lógica pode ser mais um problema de coordenação e governança institucional do que capacidade instalada.

Isso remonta ao segundo dos mitos apresentados, o de que os agentes econômicos do Brasil não estão sendo eficazes em promo-ver essa coordenação. É mesmo um fato que as universidades criticam o setor produtivo (por seu aparente desinteresse em inovar) e, por outro lado, os empresários atacam o isolamento e a morosidade das universidades do país, as chamadas “ilhas de

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conhecimento”. Nesse contexto, o papel da política pública é essencial. E, em alguns aspectos, os governos do país parecem ter avançado na promoção de instrumentos para aproximar esses dois “mundos”, ainda que isso não se constitua como uma política industrial robusta.

Um exemplo importante nessa direção tem sido a promoção de alguns instrumentos de governança do desenvolvimento produ-tivo em Saúde. Com mais ênfase nos últimos cinco anos, verifi-cou-se no Brasil a popularização de um amplo debate entre o governo federal (no âmbito do Ministério da Saúde e do BNDES), empresários emergentes da indústria farmacêutica e o sistema nacional de C&T, no sentido de fortalecer o chamado “Complexo Industrial da Saúde” – cujo slogan é promover a “nacionalização da biotecnologia brasileira”.

Esta política ficou explícita sobretudo a partir de 2012. Na ocasião, o Ministério da Saúde e o BNDES implementaram as chamadas “Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, PDPs” (Portaria GM/MS Nº 837/2012): destinadas a induzir a transferên-cia de tecnologia entre instituições públicas e privadas para viabi-lizar a produção nacional de novos medicamentos e, com isso, melhorar o acesso do SUS aos produtos de elevada complexidade tecnológica. Nas PDPs, o governo financia projetos de investimen-tos firmados por parcerias entre dois ou mais laboratórios (públi-cos ou privados, nacionais ou estrangeiros) que devem assegurar a produção de insumos fundamentais para o SUS. É obrigatória a presença de algum laboratório público na parceria. Além disso, elas devem prever, como parte do investimento, a instalação de uma infraestrutura para atividade de pesquisa e desenvolvimento.

Um aspecto importante das PDPs refere-se ao fato de o governo federal assegurar seu papel como comprador de toda a produção de medicamentos desses laboratórios, como garantia de estabili-dade na demanda. Os recursos para a construção das plantas biofarmacêuticas são provenientes do BNDES e do Ministério da Saúde, na forma de empréstimos de longo prazo, que capitalizam as empresas para o investimento produtivo nesse setor.

Assim que foi implementada em junho de 2013, a política financiou 27 PDPs, com a formação de parcerias entre 17 labora-tórios privados e 8 públicos. Pouco mais de um ano depois, em setembro de 2014, foram submetidos projetos para mais 104 parcerias, envolvendo 57 laboratórios privados e 19 públicos. Estes acordos preveem o desenvolvimento de 101 produtos de

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9797Inovação tecnológica, coordenação política e transversalidade

interesse da saúde pública brasileira (dentre eles, 73 medicamen-tos imunobiológicos e outros 28 produtos de saúde). Dentre as PDPs praticadas, existem 9 firmadas para o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, as chamadas PDPs de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PDP-P, D&I), cujo foco são drogas de elevada complexidade técnica e científica. Segundo o Portal Saúde, na última reunião do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), existem 98 parcerias vigentes, com 27 produtos sendo adquiridos. Desde 2010, as PDPs proporciona-ram uma economia de mais de R$ 2 bilhões para o SUS, e o GECIS acredita que é possível economizar mais de R$ 4 bilhões em gastos anuais da saúde.

O resgate desta experiência mostra que, além da capacidade de coordenação, a transversalidade é um aspecto essencial presente no processo de inovação tecnológica. A política das PDPs é importante, pois mostra que as ações para inovar podem ser transversais, partir de áreas do governo com maior capacidade institucional e que não necessariamente possuem como objetivo o desenvolvimento econômico, como é o caso do Ministério da Saúde. É uma experiência que derruba, também, o mito que o SNC&T brasileiro não possui aderência ao setor produtivo. Certa-mente este não é um processo espontâneo, que ocorre como uma estratégia de rotina entre os grupos. No entanto, sabe-se que a promoção de novos instrumentos de governança entre os atores é parte fundamental para fazer essa relação funcionar, já que a organização dos espaços de inovação passa pela disseminação do conhecimento como ativo estratégico. Garantir transversalidade ao tema, no conjunto das políticas públicas e das decisões no âmbito privado, pode ajudar a fomentar uma mudança de trajetó-ria dos agentes econômicos nos distintos setores da economia.

Mas o que dizer sobre o questionamento dos interesses de quem faz ciência e de quem faz inovação? Naturalmente, os objetivos desses grupos são distintos. A produção de conhecimento científico requer um esforço contínuo de aprendizado, crítica e atualização, algo que demanda tempo e cujo objetivo é ampliar a fronteira da ciência e mudar os paradigmas que a sustentam. Este tem sido o direcionamento histórico da instituição universitária, que cristali-zou em si a busca por tal empreendimento, e é necessário compreen-der seu papel para além de uma perspectiva utilitarista. Já a inova-ção tecnológica busca a criação de produtos e processos que permitam dois processos centrais às economias capitalistas:

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acúmulo de capital e melhorias na produtividade do trabalho. Se isso não for garantido ao empresário, ele dificilmente irá “inovar”.

É importante lembrar que as economias nacionais, sobretudo de países em desenvolvimento, não sustentam agendas de inova-ção tecnológica quando estes dois elementos (acúmulo e produti-vidade) são garantidos de outras maneiras. Ademais, em um contexto tão acentuado de financialização e globalização produ-tiva, é cada vez mais difícil aos países pobres manter sequer seu processo corrente de industrialização. Nunca foi tão necessário desenvolver as capacidades institucionais do Estado brasileiro para garantir maior transversalidade do conhecimento nos seto-res da economia, visando à criação de uma agenda sustentável de coordenação política para a inovação tecnológica.

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brasil: vanguarda ambiental e agrícola

Arnaldo Jardim

Foi-se o tempo em que o Brasil era caracterizado como o país do futebol. Menos pelos deméritos recentes de nossa sele-ção canarinho e muito mais pelo amadurecimento de outras

vocações nacionais, hoje podemos nos orgulhar de ostentarmos uma condição ímpar: somos uma grande potência agrícola e somos, ao mesmo tempo, a grande potência ambiental do planeta. Apesar do aparente paradoxo, estamos conseguindo avançar simultanea-mente nestas duas direções: produzir cada vez mais alimentos para o mundo e preservar recursos naturais para as futuras gerações. Ao contrário do que muitos apregoam, não são caminhos opostos; pelo contrário, são simbioticamente complementares.

O Brasil guarda 12% da água doce do mundo, tem 500 milhões de hectares de florestas, 350 milhões de hectares de áreas mari-nhas e 2 milhões de espécies vivas distribuídas em 6 diferentes biomas. Ao mesmo tempo, produz 200 milhões de toneladas de grãos por ano, é o maior produtor de soja, café, açúcar, laranja e o segundo maior exportador mundial de produtos agropecuários.

Além do mais, optamos por reservar mais de 60% de nosso território para preservação ambiental. Não estamos falando de áreas inóspitas ou inabitáveis. São terras que poderiam ser convertidas e destinadas ao aproveitamento econômico. No entanto, de forma muito sábia e corajosa, o povo brasileiro decidiu destinar à exclusiva proteção de nossa riquíssima biodiversidade quase dois terços das terras. Enquanto isso, a agricultura, que ocupa apenas 8% do território nacional, graças à sua extraordi-nária pujança e desenvolvimento tecnológico, é a grande respon-sável por garantir a segurança alimentar e energética do mundo, agora e, principalmente, no futuro.

Esta nossa realidade, sem paralelo no cenário planetário, descortina para nós um tempo vindouro especialmente promis-sor. Temos aqui uma incomparável vantagem comparativa e estra-tégica: conseguimos preservar nossa biodiversidade ao mesmo tempo em que nos tornamos os grandes fornecedores mundiais de comida, de energia renovável e, sobretudo, de imprevisíveis e reve-

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ladoras descobertas científicas sobre nosso preciosíssimo patri-mônio genético, já que 90% dele ainda é desconhecido.

Com esse enorme potencial agropecuário, o Brasil também necessitará ampliar a expansão do uso de energias limpas como o etanol da cana-de-açúcar, acelerando ainda a transição para uma nova matriz de transporte, em detrimento da locomoção individual, com prioridade para a ferrovia e a hidrovia.

Nunca é demais ressaltar que a agropecuária brasileira, em boa parte graças aos investimentos públicos em ciência e tecnolo-gia – como veremos mais adiante -, encontra-se na vanguarda da produção mundial. Por esse motivo, cumpre superarmos a oposi-ção entre agropecuária e sustentabilidade e caminhar na direção de uma agropecuária sustentável. Mas para alcançarmos tal objetivo, será preciso prosseguir no desenvolvimento científico e tecnológico, com o objetivo simultâneo de aumentar a produtivi-dade e preservar adequadamente a terra e os imensos recursos naturais que dispomos.

Propomos a definição e implantação de uma política de desen-volvimento regional, com prioridade para a Amazônia e a região Nordeste, nos marcos da nova economia de sustentabilidade, conforme definido no XVIII Congresso Nacional do Partido Popu-lar Socialista, em São Paulo.

A controvérsia em torno da sustentabilidade, como premissa do desenvolvimento, está vencida. A mudança da matriz energé-tica, o caminho na direção de uma economia não dependente do consumo de carbono é irreversível e o grau de ousadia do engaja-mento dos diferentes países nesta mudança será fator relevante e estratégico para o Brasil na competição internacional.

Embora o país detenha vantagens excepcionais nesta conjun-tura, falta-nos ainda clareza na definição do rumo a tomar. Todas as decisões da política econômica, inclusive as relativas à velha matriz, como o projeto do pré-sal, devem tomar como norte o futuro do pós-carbono.

Do contexto dos desafios ambientais, o aquecimento global, resultado da emissão do chamado efeito estufa, merece uma aten-ção particular, sobretudo em função dos crescentes alertas que a comunidade científica vem fazendo sobre a possibilidade de aumento da temperatura média do planeta em velocidade e inten-sidade maiores do que aquelas que têm sido apontadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.

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Devido às enormes consequências que o aquecimento global poderá ter na vida da população do planeta – diminuição de flores-tas e da produção agrícola, escassez de água doce, migração de populações e outras –, há uma urgente necessidade de mobiliza-ção de governos e nações do mundo inteiro para uma ação de combate e adaptação aos problemas provocados pelo efeito estufa.

No Brasil, as políticas públicas voltadas para o meio ambiente foram estabelecidas de forma sistemática desde os anos de 1960. Os avanços foram inegáveis e vale a pena fazer um resumo de como conseguimos chegar nesta situação privilegiada, especial-mente em São Paulo, seguindo diretriz do governador Geraldo Alckmin. Existe um esforço permanente para fazer com que nossa agricultura fique na vanguarda da sustentabilidade. Este esforço é de nossas universidades, entidades da sociedade civil, institutos de pesquisa e de milhares de profissionais e agricultores que se dedicam a experimentar técnicas de sustentabilidade.

Comemoramos recentemente inúmeras novidades na área do controle biológico de pragas e doenças por meio da utilização de ácaros predadores, fungos, parasitas, nematoides e insetos, conforme pesquisas desenvolvidas por nosso Instituto Biológico. Estas novas tecnologias são capazes de substituir a utilização de agroquímicos, não deixam resíduos, não afetam a saúde de ninguém e não causam impacto ambiental relevante. Quanto à preservação dos solos e das águas, editamos novas normas para melhor aplicação de técnicas de manejo e plantio, especialmente para a cana-de-açúcar. Por meio dos exitosos programas Integra e Nascentes, financiamos a recuperação de áreas degradadas e incentivamos fortemente a recuperação de matas ciliares.

O programa Melhor Caminho recupera estradas vicinais e, sobretudo, ensina técnicas de conservação que evitam erosões e assoreamentos. O programa Aplique Bem qualifica profissio-nais para o uso racional de agroquímicos e nossas equipes de extensão rural da Cati difundem as técnicas de plantio direto, tratamento de dejetos animais, biodigestão ou compostagem de materiais orgânicos e carcaças, nitrogenação biológica de solos, integração lavoura-pecuária-f loresta, recuperação de pasta-gens degradadas, sistemas agroflorestais e outras voltadas à agricultura ecológica e orgânica. Nosso Instituto de Zootecnia tem desenvolvido técnicas extraordinárias para dar mais preco-cidade aos rebanhos (como é o caso do Boi 777, cujo ciclo completo até o abate é de apenas 21 meses), fortificação de leite, melhoria da nutrição animal etc.

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O Instituto Agronômico, que completa 129 anos neste mês, não cansa de lançar novos cultivares, mais resistentes à estresse hídrica, às pragas e que melhoram a produtividade de nossa agricultura. O Instituto de Tecnologia de Alimentos desenvolve técnicas para o melhor aproveitamento dos alimentos e o Insti-tuto de Pesca tem conseguido resultados importantes no repo-voamento de nossa fauna aquática. Estamos na reta final da elaboração do Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono) paulista e fizemos recentemente um aprofundamento da compreensão e planejamento para o desafio de segurança alimentar versus mudanças climáticas. Tudo isso representa uma agricultura harmônica com o meio ambiente e de baixa emissão de gazes de efeito estufa. É a agricultura de baixo carbono que garante produtividade no campo ao tempo em que cumpre nossa missão de combater o agravamento das mudanças climáticas.

Além de todas estas tarefas, que exigem compromisso com a preservação ambiental, sabemos que a melhoria da renda de quem mora no campo é um grande aliado da conservação. Por isso, ainda para comemorar a semana do meio ambiente, no último dia 31, assinamos 134 projetos para o desenvolvimento rural de associações ou cooperativas de pequenos produtores agrícolas, com aporte financeiro de R$ 58 milhões a fundo perdido por meio do programa Microbacias II. Fomentar o progresso sustentável dos pequenos agricultores é diretriz do governo paulista que seguimos à risca com efeitos extremamente benéfi-cos do ponto de vista ambiental.

Finalmente, com orgulho, podemos afirmar que São Paulo foi o primeiro aluno da classe no cumprimento da hercúlea tarefa de inscrever posses e propriedades rurais no CAR (Cadastro Ambien-tal Rural). Se pegarmos como base os dados do IBGE, que servem de parâmetro para medir performance do cadastramento nos estados brasileiros, São Paulo atingiu 100% da área cadastrável. Isto é um feito notável, só atingido graças ao empenho de milha-res de profissionais, do setor público e privado, que demostraram ser apuradíssima a consciência ambiental dos agricultores paulis-tas. Nosso próximo passo será dar início ao PRA (Programa de Regularização Ambiental) das propriedades rurais, confirmando que São Paulo sabe produzir ao mesmo tempo em que conserva.

O Brasil estabeleceu metas ambiciosas para o nosso Programa Nacional de Emissões de Gases Causadores do Efeito Estufa, o único caminho viável para isto é adotarmos definitivamente o conceito de Bioeconomia para orientar o desenvolvimento do

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setor agropecuário, que hoje, mais do que alimentos, produz fibra e energia.

Muito mais do que petróleo, o mundo precisará, nos próximos 30 anos, de comida, água potável e energia limpa. Precisará de medicamentos, fibras, compostos e descobertas científicas. São Paulo e o Brasil estão prontos para se inserir neste futuro promis-sor como grandes protagonistas. Vamos ao futuro!

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Valor da água

Eliseu Roberto de Andrade Alves

A água sustenta a vida. Está aí seu valor. É produto único e sem similaridade. O que dá valor a um bem ou insumo é a escassez. Mesmo sendo vital, quan do um insumo é abun-

dante, como o ar, no senti do que excede à demanda interna e não pode ser exportado ou armazenado, o excedente vale zero. Não existe ninguém para comprá-lo. Quando pode ser estocado, a estratégia de valoração é retirá-lo do mercado.

Tem um aspecto interessante. A água pode tor nar-se escassa no local onde ela é abundante. Exemplo: o Rio Grande nasce na Serra da Mantiqueira, em Minas, ajuda a formar a represa de Furnas, deságua no Paranaíba para chegar ao Rio Paraná. Como a água de Furnas é usada para gerar ele tricidade e o consumo urbano, então ela pode tornar-se escassa no local onde é abun-dante. E qual o seu preço? É o mesmo que as hidroelétricas pagam, quando captam a água para gerar eletricidade. Ou, então, o que pagam as empresas que, abastecem os consumidores urba-nos, quando captam a água. Como não pagam nada no mo mento da captação, o preço da água para agricul tura é zero nesse caso. E se as represas estiverem vertendo água, além da quota mínima? Aí não existe escassez, e, portanto, nada há a pagar.

Além da complexa lei do mercado, a água, como recurso natu-ral, tem muitos componen tes e situações. Existe até o custo de oportuni dade. No exemplo acima, há alternativas de uso. Obvia-mente, é mais lucrativo vender para quem paga mais. Num bem tão importante, saber quem paga mais é muito complicado. Diga-mos que a agricultura pague menos. Perderia a com petição para outros usos, possivelmente com sérias consequências para abas-tecimento ali mentício interno e as exportações.

A água para consumo humano é prioritária. Por isso, há leis, portarias, incentivos e proibições. É o caso típico das licenças para a irrigação. Como consequência, pode haver redução da produção e, num extremo, fome. Como avaliar isso? O merca do fornece apenas parâmetros, mas a decisão final lhe escapa. Quem fica com a decisão? A sociedade e, por fim, o governo, por meio das institui-ções e regulações. Da mesma forma, a cobrança de tarifa de água

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105105Valor da água

na captação é competência do governo que pode se valer de leilões especialmente planejados, o que é raramente praticado.

Argumenta-se que as hidroelétricas devolvem a água para o rio e, sendo assim, nada têm a pagar. Se na jusante das represas houver consumo humano, e a produção de eletricidade reduzir a água para consumo humano, caracteriza-se a es cassez. Ainda há o fato de que as represas evapo ram muita água que não forma nuvens nas re giões que interessam. Um dado: só a evaporação da represa de Sobradinho equivale à vazão outorgada do Rio São Francisco. Quando inexistem as represas, havendo abun dância de água, o preço para quem for captá-la é zero.

Há celebrado teorema da teoria econômica que diz que, quando a quantidade disponível de um insumo excede seu uso, seu preço é zero. O teorema apenas capta e, muito bem, o significado de escassez. Por que pagar pelo excedente de um bem que superou o consumo? Quem tiver recur sos pode comprar a sobra, desde que o bem não seja perecível, e vender no próximo ano. Isso é o que se chama corretamente de especulação. Aí, o conceito de sobra é mal usado. Tem que incluir a demanda dos especuladores para medir correta mente a sobra.

As estatísticas mostram que a agricultura con some 70% da água usada pelo ser humano. E quanto do ar a agricultura consome? Ninguém fa la disso, exatamente porque o preço do ar é zero. Antes de glorificar esse tipo de estatística, deveria ser salien-tado que, na maioria das situações, a agricultura não está compe-tindo com alternativa. No caso, consome um bem cujo preço é zero. Ou ço falar que o Brasil é grande exportador de água por ser grande exportador de produtos da agri cultura. Ninguém se lembrou de perguntar quan to vale a água exportada. Na mesma linha de ra cio-cínio, a agricultura é criticada por competir com a geração de ener-gia. Uma verdade parcial. Cabe perguntar, se fosse o caso, o que é mais im portante produzir – comida ou energia?

Há políticas para lidar com escassez de água que limitam o mercado, como cobrar tarifas mais elevadas dos que consomem acima de certo pa drão e multas para o consumo exagerado. De mo do geral, quando a escassez é crítica, usa-se o ra cionamento. Por ele, os mais pobres são os mais prejudicados. Também proibi-ções, como o uso de água para irrigação, frequentam as agendas dos governantes, embora ineficientes. Se a escassez de água persistir, é melhor cobrar tarifa da captação. É a forma mais eficiente de racionamento. Qual é o grande problema dessa polí-tica? Normalizada a chuva, o governo continuará a cobrar a tarifa. Por isso, essa opção é rejeitada.

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A argumentação mantém fixo o valor da tecnologia. Há muitas inovações que têm enorme perspectiva de economizar água como o plantio (pequenas represas, cultivares que consomem menos água. Exemplo: foi descoberto pela Embrapa um gene que aumenta a tolerância à seca na cultura do café. E já existe tecnologia para transferi-lo para outras plantas. Mais: há equipamentos de irriga-ção muito eficientes que consomem menos água que os em uso. Os irrigantes precisam de financiamento para comprá-los. A tecnolo-gia liberta o homem dos grilhões do mercado e da natureza.

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VI. As cidades e a Governança Democrática

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Autores

Fausto Matto GrossoEngenheiro, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e membro do Movimento por uma Cidade Democrática.

Felipe Sampaio Moderador do tema Segurança Pública, da Conferência Nacional sobre as Cidades, FAP, março 2016. Organizador deste texto.

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Por trás das aparências no espaço municipal

Fausto Matto Grosso

Aproximam-se as eleições. Os primeiros pré-candidatos começam a aparecer. Será que teremos boas opções ou seremos reduzidos, mais uma vez, à triste condição de

votar no menos pior?

O pano de fundo do processo eleitoral que se aproxima é o da frustração provocada pela natureza da pratica política existente no Brasil, caracterizada pelo descompromisso programático, pela promiscuidade entre o público e o privado, pela corrupção, pelo clientelismo e pela degenerescência das práticas políticas, situa-ção essa que afeta os mais diferentes partidos e suas lideranças.

Mas afinal, como separar o joio do trigo, se nas eleições todos os discursos são parecidos e os candidatos aparentam serem todos iguais, aos olhos dos eleitores?

Uma boa ajuda para a tomada de decisão do voto pode vir da análise da tipologia de lideres políticos construída pelo chileno Carlos Matus. Chimpanzé, Maquiavel e Ghandi, assim o autor tipificava os estilos de liderança política, em uma escala do pior para o melhor.

Tais como nos grupos de chimpanzés, os líderes, assim classi-ficados, são caracterizados pela expressão “o fim sou eu”. A forca representa o seu atributo político principal. Não existe projeto algum – o líder guia a manada a lugar nenhum e é guiado pela lógica de que “o projeto é o chefe e o chefe é o projeto”. É o estilo

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mais primitivo de fazer política. Os ditadores sul-americanos, velhos e novos, são uma boa representação desse espécime.

“Os fins justificam os meios” é a síntese da ideologia que sustenta o estilo Maquiavel. Em relação ao estilo anterior, a grande diferença é que, neste caso, há um projeto que transcende o líder. O projeto não é mais individual, mas coletivo, tem base social, sendo impossível realizá-lo sem o líder messiânico. Aqui, o poder pessoal não é o objetivo, mas o instrumento. Nesse contexto, não há adversários, e sim inimigos que devem ser derrotados e, se necessário, eliminados. A esquerda autoritária foi pródiga em produzir tais lideranças.

Acontece que a humanidade já conseguiu produzir, embora mais raramente, outro tipo de líder, que baseia a sua liderança na força moral e no consenso. Gandhi é o paradigma desse tipo de liderança política. Talvez um bom exemplo mais recente seja o de Nelson Mandela.

Também aqui o projeto é coletivo, mas o líder não disputa para sê-lo. Não precisa força física, lidera pela superioridade de seus valores e da sua ética. Não precisa construir inimigos para vencê-los, mas sim subordinar e ganhar os adversários pela razão obje-tiva do projeto socialmente superior. Pratica a coerência entre discurso e ação, essa coisa hoje tão rara na política, cuja escassez está na origem da desmoralização dos líderes políticos.

Tais estilos de lideranças políticas raramente são encontrados em estado puro. Também, o líder não os escolhe ao seu bel prazer. O estilo real de cada político acaba sendo uma combinação parti-cular entre esses estilos básicos e ainda vai depender do contexto dentro do qual se realizam as disputas.

A cada estilo de liderança vai corresponder, no exercício do poder, um comportamento político esperado. O de pensar e usar o governo como coisa sua, ou comportar-se segundo princípios repu-blicanos. O de isolar-se no uso pessoal do poder ou de compartilhá-lo com a sociedade. O de perpetuar conflitos ou buscar convergên-cias que possam viabilizar projetos de interesse público.

A essa altura, cada um deve estar procurando colocar as figu-rinhas dos líderes das disputas nos álbuns de personalidades, ou nos porta-retratos que lhes correspondem. O critério é de cada um, assim como a responsabilidade do acerto ou erro.

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111111Por trás das aparências no espaço municipal

Prefeitos: gerentes ou líderes?

A maioria das prefeituras municipais tem vivido, nos últimos anos, um período de imensas dificuldades, como reflexo direto da crise que assola o país. Será que prefeitos mais ou menos compe-tentes fariam diferenças fundamentais nos resultados para a população, especialmente naquilo que se refere ao seu desenvol-vimento humano integral?

As crises profundas, apesar dos sofrimentos que impõem, muitas vezes são oportunidades para enxergarmos o que ocorre nas profundezas submersas da estrutura da sociedade.

Há muito vivemos uma crise de financiamento do Estado, em todas as suas esferas – nacional, estadual e municipal – e uma crise ética que se coloca com toda a sua contundência. Déficits públicos crescentes, aumentos de impostos, infraestrutura suca-teada, serviços públicos de péssima qualidade. Corrupção, estilos autoritários de decidir e governar, falta de confiança nos gover-nantes e descrédito na política. Esses são sinais visíveis dos problemas que marcam o tempo presente.

O olhar para esses fenômenos sinaliza, para alguns, a discus-são de mais Estado ou menos Estado, para outros a simples troca dos nossos políticos e escolha de gestores mais competentes. Errado: esse tipo de Estado e esse tipo de governo estão esgota-dos, já não conseguem resolver os desafios de uma sociedade que sofreu profundas transformações, tornando-se mais complexa, mais articulada, e mais consciente da sua autonomia. Este é o cerne da questão.

Todo governo tem que ter capacidade de gestão, mas isso não é suficiente. Não é possível resolver a imensa demanda reprimida da sociedade sem mobilizar os imensos recursos que estão fora dos orçamentos públicos. Fora do governo existem recursos imen-sos desperdiçados. São recursos financeiros, cognitivos, organi-zativos, políticos, entre outros. Há que se somar toda essa riqueza, articulando um orçamento ampliado por uma nova governança baseada na democracia e na responsabilidade solidária.

Colocando em termos práticos, quanto vale o eficiente traba-lho da Pastoral da Criança no combate à desnutrição infantil, quanto vale o imenso voluntariado da cidade a serviço da solida-riedade humana, quanto vale o potencial produtivo e de respon-sabilidade social das nossas empresas, quanto vale o conheci-mento das nossas universidades, o potencial dos pequenos

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negócios e das organizações da sociedade civil? Tudo isso é desperdiçado, não converge para ajudar no enfrentamento dos desafios do desenvolvimento da cidade.

Há que se juntar esse imenso potencial em um projeto baseado na maximização da coesão social, na organização das interde-pendências do conjunto dos atores da sociedade para produzir níveis crescentes de desenvolvimento humano. Há que se perceber que a sociedade política, sem a sociedade civil, já não dá conta das imensas demandas de uma sociedade democrática, complexa e articulada em redes. Esta apartação é a fonte da nossa crise de capacidade de governo e de deslegitimação da representação.

Nessa visão, o governo deve ser um agente organizador das potencialidades existentes. Esta é a experiência de regiões que trilharam caminhos mais sustentáveis de desenvolvimento. Robert Putnam estudou e identificou esse modelo nas cidades desenvolvidas no norte da Itália. É dele o conceito de capital social: o conjunto formado pela confiança social, pelas normas e redes articuladas para resolver os problemas comuns com compromisso cívico. Quanto mais densas forem estas redes, mais possibilidades existirão de que os membros de uma comunidade cooperem para obter um benefício comum.

Para cumprir esse papel novo não são suficientes gerentes. A materialização dessa utopia possível depende de uma mudança cultural, depende do surgimento de lideres que possam entusias-mar e ter o crédito da sociedade. Tais líderes seriam capazes de organizar com a sociedade um grande projeto de longo prazo, em que houvesse a convergência ampla de interesses e fosse calçado em uma liderança moral inequívoca.

Os momentos de crise podem, muitas vezes, ser as oportuni-dades de criação do novo. As crises são como momentos de partos, sendo caracterizadas pela existência de uma situação em que o “velho já morreu, mas o novo ainda não nasceu”. As possibilida-des são apenas duas, acreditar em mais do mesmo ou ousar no parto de novos paradigmas para a gestão pública.

Apressar a emergência de um novo estilo de liderança e de um modo novo de governar é um dos maiores desafios contemporâneo do pensamento progressista.

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Vereadores para que?

Há um sentimento generalizado de decepção no que diz respeito aos detentores de mandatos eletivos. Em muitas cidades, plenários de Câmaras Municipais chegaram a ser invadidos pela população que clamava pela redução do número de vereadores, de suas remunerações ou dos percentuais de repasses financeiros para os legislativos.

Entretanto, em uma democracia desenvolvida, os legislativos são mais importantes do que os executivos, especialmente nos municípios. Naturalmente não estou falando desse parlamento em crise, mas sim de sua reinvenção. Neste ano, serão realizadas eleições municipais, o que esperar da nova safra de vereadores, o que cobrar deles?

Muitas são as questões a serem enfrentadas. A crise clama por uma radical inovação nos legislativos municipais. Há um déficit de representatividade, de afirmação da autonomia e prerrogati-vas, e de qualidade do processo legislativo.

A distância entre a sociedade política e a sociedade civil é imensa. Na exacerbação do individualismo, que marca os tempos atuais, os parlamentares, no geral, representam as suas próprias vaidades ou projetos pessoais e não as opiniões existentes na sociedade. De um lado, a política virou profissão; do outro, a sociedade não se organiza para qualificar a representação.

A palavra vereador é afim de dois termos do latim: verear e vereda. Verear é andar pela cidade, e vereda significa caminho. O papel do vereador é conhecer a cidade e traçar o seu rumo. Não existe função mais importante do que essa. Entretanto, vereador, normalmente, faz campanha como se fosse prefeito e depois não cuida da essência da função de verear, fazer e aprovar leis e fisca-lizar a administração municipal. Promete o que não pode entregar ou acaba entregando sua autonomia ao executivo, muitas vezes em troca de favores ou nomeações para atender a sua “clientela”.

É necessária a transformação das Câmaras Municipais em caixa de ressonância da sociedade, em lugar de encontro da democracia participativa com a representação. Sim, porque, ao contrário do senso comum, em sociedades complexas, nas quais as questões não podem ser resolvidas apenas em decisões simpló-rias do tipo “sim ou não”, o parlamento deve ser o local – e a polí-tica a arte necessária – para a construção democrática de consen-sos ampliados, em torno de interesses legítimos da sociedade.

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114114 Fausto Matto Grosso

As Câmaras Municipais devem ser os locais de construção de projetos de futuro das cidades, compartilhados com a cidadania, para se obter um mínimo de coesão social e uma governabilidade baseada em valores éticos, cívicos e republicanos.

Fortalecida pela representatividade, a Câmara pode afirmar a sua independência em relação ao Executivo, rompendo com a tradi-ção de executivos que fazem leis, subvertendo a lógica natural, e de vereadores alinhados segundo os pobres critérios de serem “bases” ou serem oposição, que aviltam o papel dos vereadores.

Há ainda o déficit de qualificação da ação legislativa. Há que se ter também um mínimo de profissionalização nas assessorias nas Câmaras Municipais, um bom exemplo disso é a Assessoria do Senado. As assessorias parlamentares não podem ser apenas o exército de reserva de cabos eleitorais para as próximas elei-ções. Fiscalizar o Executivo não é tarefa trivial, não é apenas fiscalizar a legalidade dos atos, exige informação precisa sobre o andamento e resultados dos programas e projetos executados pela administração, com base em indicadores, estudos e pesqui-sas. Para isso, mediante concurso público, a Câmara deve montar assessorias técnicas competentes, talvez, até remanejando cargos de assessorias individuais dos vereadores para viabilizá-las.

Tais inovações são utópicas, diriam alguns. Sei disso, mas respondo associando Bilac a Galeano: “Ora (direis) ouvir estrelas. [...], perdestes o senso! [...] eu vos direi que muitas vezes desperto [...] abro a janela, [...] e vejo [...] a Via Láctea”. É verdade, adoro utopias. A gente dá um passo e elas se afastam um passo, mas têm exatamente esse papel de nos ajudar a caminhar no rumo certo.

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Segurança Pública e o papel dos municípios

Felipe Sampaio

Os conteúdos dos discursos eleitorais sobre a segurança pública ainda permanecem superficiais e conservadores. Na maioria das vezes, predominam os assuntos de polícia,

do sistema prisional e da justiça. Ou seja, prevalece o combate ao criminoso, em nível estadual e no âmbito do Judiciário, ao invés de políticas para a formação do cidadão, para o incentivo à boa convivência social e a prevenção criminal.

A rigor, o Brasil nunca teve uma política nacional de segurança pública. Nenhum presidente se dispôs a mexer nesse problema. Falta um Plano Nacional de Segurança Pública; faltam investi-mento, custeio, inteligência, atuação integrada, tecnologia etc. Não há um “SUS da segurança pública”, um sistema nacional.

A maioria dos estados também não dispõe de Plano Estadual de Segurança Pública. As cidades apresentam situação ainda mais precária, atrasada, contentando-se com a condição de rece-bedores das políticas estaduais para segurança.

O papel do município na segurança pública

É comum acharmos que os problemas de segurança pública são de responsabilidade da polícia e da justiça. Desse modo, a discussão sobre segurança acaba ficando restrita aos governos estaduais e ao Poder Judiciário. Porém, está cada vez mais claro que as Prefeituras e as Câmaras Municipais precisam tomar para si a responsabilidade de mobilizarem e coordena-rem as ações relacionadas com segurança pública no âmbito de suas cidades.

É no município que as pessoas vivem. Por isso, o município surge como um novo ator, que deve ser incorporado à discussão e à ação em segurança pública. A arquiteta urbanista americana Jane Jacobs escreveu em seu livro Morte e vida das grandes cidades que a segurança pública não se resolve só com polícia e cadeia, porque é uma questão relacionada com a qualidade da convivência entre as pessoas, com a variedade das construções urbanas e das paisa-gens, com a diversidade econômica e humana das cidades.

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116116 Felipe Sampaio

Está na hora de as prefeituras começarem a coordenar ou mediar o conjunto amplo das ações públicas e da sociedade no tema da segurança. Afinal, é o município que cuida dos bares (horários, música ao vivo, bebidas para menores...) e do trânsito, cuida de iluminação pública, educação, saúde, governança participativa, integração de políticas, planejamento urbano, saneamento, praças, e ainda mobiliza as questões de gênero, juventude, raça etc.

Tudo isso está relacionado em um Plano Municipal de Segu-rança Pública, em sintonia com as políticas estaduais e federais. Não basta construir uma quadra esportiva na comunidade. Não é só reforçar o policiamento. Tem que haver inteligência na ação e planejamento. Tem que haver diálogo entre as várias secreta-rias da prefeitura, e integração das suas ações com as estaduais e federais.

Para haver segurança, é necessário que a cidade seja social e economicamente justa. Não podemos mais fazer a discriminação entre políticas urbanas para ricos e para pobres. Não se pode ter postes de luz com LED na beira-mar e escuridão no subúrbio. Não se pode ter esquadrão antissequestro para os ricos e ronda osten-siva para os pobres.

O município tem também um papel fundamental no trata-mento das questões de gênero, que desencadeiam a violência contra as mulheres. Também é no nível do município que se pode realizar as melhores ações de educação contra a discriminação do segmento LGBT, raças e religiões.

As drogas são um grande vetor do crime no Brasil e em outros países. Grande parte da droga é distribuída por jovens, entre amigos, no cotidiano ou em eventos etc. Só se produz drogas porque há consumidores, e estes vivem principalmente nas cida-des. Se o crime organizado é caso de polícia, o consumidor e o pequeno traficante são problemas do município.

As drogas causam o crescimento acentuado da população carcerária, especialmente entre os jovens de baixa periculosi-dade. Na maioria, são prisões em flagrante pela polícia militar que não decorrem de investigações realizadas pela polícia civil. São delitos de varejo, sem uso de armas e sem confronto. Este pequeno varejo de drogas, praticado por jovens de baixa periculo-sidade, é agravado pelo sonho de terem um modo de vida urbano baseado numa cultura consumista.

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117117Segurança Pública e o papel dos municípios

Na falta de escolas, de esportes, de saúde, de emprego, de uma cidade agradável para viver, o jovem passa a querer se afirmar por coisas de marca, como o celular. Muitos escolhem se afirmar também pelo heroísmo da marginalidade. É difícil se inserir na sociedade. A tarefa de resgatar esse jovem a partir de outra pers-pectiva de inclusão é uma missão do poder municipal.

Além disso, a construção de uma nova política para segurança pública, com foco no município, exige iniciativa e criatividade, inclusive na ação policial. Porém, essa criatividade é atrapalhada pelo nosso modelo antiquado militarizado do maior contingente policial, a polícia militar estadual, com sua rigidez disciplinar. É fundamental reformular as polícias do Brasil e engajá-las nas discussões com a sociedade, inclusive em nível municipal.

O modelo policial e a questão municipal

O sistema policial brasileiro carece de uma reformulação ampla, na gestão e nos propósitos. Antes de falarmos de desmilitarização e de reforma das polícias, comecemos com um exemplo mais simples de redefinição das atividades policiais. Em São Paulo, por exemplo, o Instituto Sou da Paz constatou que grande parte das emergências policiais tem a ver com desentendimentos pessoais, brigas de vizinhança e questões de família. São ocorrências que não precisariam ser resolvidas pela polícia, mas por agentes muni-cipais de mediação de conflitos e por ações de prevenção. Imagine-mos o desperdício de deslocar viatura, policiais, tecnologia, para resolver casos banais do cotidiano. Nem tudo pode ser tratado como caso de polícia.

É oportuno o país pensar novos conceitos sobre a segurança, como, por exemplo, nos formatos de polícia comunitária mais próxima da população, assim como na participação da comuni-dade nas discussões sobre segurança. Porém, o formato militar da maior parte do contingente policial ainda inibe a convivência entre a polícia e o cidadão. O policial militar de hoje tem que ser tratado como um profissional especialista em segurança pública. Não pode simplesmente ser submetido a uma disciplina militar. Ele trabalha dentro da comunidade, mas está longe das pessoas. A prefeitura precisa trazer as instituições policiais para a discus-são com a população, nos bairros, nas comunidades, nas orga-nizações sociais. É comum ouvir nas comunidades que “a PM é a polícia do povão”.

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118118 Felipe Sampaio

No entanto, outro fator de afastamento da população é a falta de recursos disponíveis para equipar a tropa, assim como a polí-cia civil. Ocorre com frequência um policial ter que comprar seu material de proteção, como uniforme, botas, coletes e usar seu celular pessoal, porque não recebe da instituição. São fatores que desestimulam o policial a buscar envolvimento com as comunida-des, porque se sente desvalorizado.

Por outro lado, no Brasil permanece o pensamento popular preconceituoso, decorrente do período da ditadura, de que a polí-cia é uma corporação violenta. Há também uma percepção popu-lar de que a polícia civil é “polícia de rico”. Este preconceito dimi-nui o apoio da sociedade à causa da polícia. Por exemplo, a Constituição Federal de 1988 deixou de fora a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública e o piso salarial. O policial é um cidadão comum, um trabalhador.

Trazer os policiais do bairro para discussões sobre segurança com a comunidade, com a igreja, com as organizações, é uma tarefa da prefeitura, acabando com os preconceitos contra o poli-cial, ouvindo suas orientações profissionais sobre segurança, discutindo prevenção contra drogas e violência doméstica, combi-nando ações conjuntas entre a polícia, as secretarias municipais e a sociedade.

Atualmente discute-se, no Congresso Nacional e nos órgãos de segurança, a reforma das polícias, principalmente sobre a desmi-litarização das polícias militares estaduais e sobre a implantação do “ciclo completo de polícia”. No Brasil, há uma deficiência nas investigações policiais por causa da separação entre as funções da polícia militar e da polícia civil. Por um lado, a polícia militar prende suspeitos em grande quantidade. Por outro lado, a polícia civil tem a função de investigar, mas não consegue apurar a enorme quantidade de delitos de menor complexidade. Não dá tempo e não há recursos. A polícia civil não consegue nem dar conta de construir processos de qualidade sobre os crimes mais complicados sob sua responsabilidade.

A polícia que prende não é a mesma que investiga. São duas polícias separadas, com atividades distintas. A que prende é militar. A que investiga é civil. A que prende não tem atribuição para inves-tigar e a que investiga não tem alcance para prender. O resultado é a falta de qualidade da investigação (inteligência, inquérito, gestão). É possível implantar práticas em que a polícia militar realize etapas da investigação nos crimes simples, nos flagrantes etc.

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119119Segurança Pública e o papel dos municípios

Os municípios sofrem com esta separação completa de papéis. Às vezes, a única viatura da PM na cidade tem que se ausentar durante horas para levar um suspeito a uma delegacia em outra cidade para lavrar uma ocorrência. Os municípios precisam se incorporar a essa discussão junto aos deputados e aos governos estaduais para apresentarem suas sugestões e discutirem ativi-dades complementares entre a polícia estadual e as guardas municipais, e outras pastas da administração pública.

As guardas municipais também são um instrumento impor-tante das cidades na prevenção do crime, da violência doméstica, da ocupação desordenada do espaço público, da depreciação dos bens públicos. Os guardas municipais podem cumprir funções articuladas com outras secretarias municipais, com as polícias estaduais, com a polícia rodoviária federal etc.

Outras dificuldades enfrentadas pelos municípios

A falta de recursos e o sucateamento das estruturas policiais vão além das polícias estaduais. Vejamos o caso da Polícia Rodo-viária Federal, por exemplo. É normal viajarmos durante horas por estradas federais e não vermos postos e nem viaturas da PRF em funcionamento pleno. A Polícia Rodoviária é importante instru-mento de proteção dos municípios, na contenção e repressão ao tráfico, roubo de veículos e de mercadorias, assaltos violentos etc.

Já no caso das UPPs no Rio de Janeiro, os policiais fazem plantão em containers sem ar condicionado, sem banheiros, tendo que fazer refeições com suas despesas ou contar com a solidarie-dade da comunidade. As jornadas de trabalho são extensas.

Mais uma vez, a motivação e o moral da polícia são abalados. O distanciamento entre o policial e a rua, e o bairro, começa pelo desprestígio com que ele é tratado pelo próprio Estado.

São exemplos de que o custeio da estrutura policial chega a ser mais significativo do que o investimento, e esse custeio recai sobre os governos estaduais, que não aguentam o volume de gastos.

É essencial saber se existem as condições para que uma nova estrutura investigativa se viabilize, e quanto custa essa estrutura eficiente. Não há estudos, por exemplo, sobre as necessidades atuais das polícias civis nem se levantou ainda quanto custa a desejada polícia eficiente (polícia científica, gestão, equipamentos, inteligência, tecnologia, ciclo completo etc.). Ou seja, a eficiência

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não depende exclusivamente de um modelo de polícia única. Está faltando gestão.

O processo de democratização nas polícias militares é recente. Faz pouco tempo que os praças e os cabos conseguiram espaço para opinar, criticar e propor. Mesmo assim, ainda é limitada a participação deste setor na formulação das políticas de segurança pública. Ainda é preciso testar a polícia militar em um novo ambiente, mais democrático, com atuação comunitária.

Não temos garantias de que uma polícia desmilitarizada de ciclo completo por si só terá sucesso. Qualquer modelo deverá passar pelo planejamento e funcionamento com foco na questão municipal e na integração de pastas e de polícias. Contudo, a discussão nacional sobre o ciclo único de polícia (coordenada pelo deputado federal Raul Jungmann, PPS-PE, como relator do tema na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em 2015), provocou um acirramento na tensão entre a polícia civil e a polícia militar. Imagine o esforço que deverá ser feito para colocar essas polícias para trabalharem em conjunto, acrescentando-se a isso as organizações populares, as instituições municipais etc.

Há também a precariedade dos presídios brasileiros. Não há vagas, não há ressocialização, não há separação por grau de delinquência, não há recursos nem inteligência que nos permitam enxergar uma saída. O Estado perdeu o controle do sistema prisional. O crime organizado age fora dos presídios comandado por presos e a população carcerária é autogovernada. Não basta prender se não julgar, se não ressocializar.

Mais uma vez aqui aparece o município como fundamental promotor da reinclusão desses ex-criminosos na sociedade e no apoio a suas famílias. Isso se faz com integração de políticas nos municípios.

Sugestões para os municípios

Os municípios devem chamar os estados e a União para o debate da segurança pública. Não precisa esperar pela desmilita-rização da PM, nem pela unificação desta com a polícia civil. Há muito a se fazer, desde já, integrando-se pastas e políticas relacio-nadas com questões que afetem a segurança pública. Cobrar a elaboração dos Planos Estaduais e Federais.

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121121Segurança Pública e o papel dos municípios

No mundo, já existem diferentes modelos de polícia que, mesmo estando baseados na organização militar, já conseguem realizar o ciclo completo. A questão não é simplesmente ser militar ou não. Existe também um conceito novo, o de Justiça Restaurativa, que precisamos estudar e compreender. Trata-se de um processo pelo qual todas as partes ligadas a uma ofensa em particular, se reúnem para resolver coletivamente como lidar com as conse-quências da ofensa e suas implicações para o futuro.

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VII. Questões do Estado e de cidadania

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Autores

Ivan MarquesDiretor executivo do Instituto Sou da Paz.

James Ito-AdlerCofundador e presidente do Cambridge Institute for Brazilian Studies e doutor em Antropologia pela Universidade de Harvard.

Natália PollachiCoordenadora do Instituto Sou da Paz.

Priscila CruzFundadora e presidente executiva do movimento Todos pela Educação e mestra em administração pública pela Harvard Kennedy School.

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O protagonismo que o brasil recusa

Ivan Marques Natália Pollachi

Apesar do debate sobre controle de armas ter ganhado rele-vância nos últimos anos – tanto em relação à segurança interna de diversos países quanto por transferências inter-

nacionais que fomentam conflitos e crimes transnacionais – o Brasil tem deixado de explorar seu potencial para ser protagonista no tema, uma vocação que seria natural por uma série de razões e uma escolha que traz consequências práticas importantes.

Começamos pelo nosso vergonhoso primeiro lugar na quanti-dade de mortes por armas de fogo do mundo. São cerca de 40 mil mortos por armas de fogo todos os anos e 110 pessoas todos os dias. Nossa região latino-americana é recordista em proporção de mortes por armas, enquanto a média mundial é de 40% aqui chega a 70% de todas as mortes violentas.

Em tempos olímpicos, muito se discutiu sobre o risco que a epidemia do vírus zika oferecia à realização dos jogos no Brasil. Todavia, é mais fácil ser atingido por uma bala perdida no Rio de Janeiro do que contrair zika, segundo informações do professor Eduardo Massad, epidemiologista da Faculdade de Medicina da USP, reproduzidas pela revista Exame em reportagem do início de julho. Estes dados que seriam encarados como uma calamidade se a causa fosse qualquer novo vírus surpreendem pelo motivo oposto: se tornaram apenas mais um lamento protocolar nas conversas sobre segurança pública.

Uma das principais medidas de prevenção desta violência – nossa política nacional de controle de armas, cuja lei é considerada

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126126 Ivan Marques e Natália Pollachi

um modelo internacional – está relegada ao segundo plano e nunca foi implementada em sua totalidade. Enquanto isso, prosperam as obsessivas e ultrapassadas propostas de aumento de penas para os crimes já consumados, atingindo apenas a pequena proporção de criminosos que nossas polícias conseguem identificar.

Como se não bastasse, há ainda outro lado menos conhecido nesta temática. Temos uma indústria de armas mundialmente representativa. Somos o quarto maior exportador de armas peque-nas e leves (principalmente de revólveres e pistolas), temos uma das maiores indústrias de munição do mundo e uma significativa produção em algumas armas de combate, como artilharias antiaéreas. São produtos que alimentam não apenas nossa violên-cia doméstica, mas também a insegurança em outros países, conflitos deflagrados e crises humanitárias.

Assim como nossa lei nacional de controle, os tratados e programas internacionais assinados pelo Brasil para o combate à violência armada dificilmente conseguem produzir os efeitos que deles se esperam. Sofrem primeiramente da lentidão na internali-zação ao ordenamento jurídico nacional e em seguida da falta de capacidade de utilizá-los em todo seu potencial.

O Tratado de Comércio de Armas, por exemplo, é o primeiro no mundo a regular este bilionário comércio inserindo a proibição de exportação em caso de embargo internacional ou de sério risco de uso em crimes contra humanidade, contra os direitos humanos ou de desvio para o crime organizado. Em vigor desde 2014, já conta com a ratificação de 83 países entre os quais estão grandes exportadores como Reino Unido e Alemanha. Foi assinado pelo Brasil em 2013, mas está há três anos em um moroso processo de ratificação no Congresso que ainda está longe da conclusão.

Do ponto de vista da transparência, ainda é pouco o que sabe-mos sobre a contribuição de nossos produtos em guerras e confli-tos pelo mundo. O documento que rege nossa política de exporta-ção de armas é sigiloso e data do auge da ditadura na década de 1970. Nas últimas comparações internacionais de transparência neste comércio ficamos entre os piores países, atrás da Rússia e empatados com a China. As autorizações que nosso governo emite para que as empresas brasileiras exportem armas e munições são peças relevantes no xadrez das relações internacionais e na composição da nossa política externa, mas atualmente nos é vedado conhecê-las em profundidade.

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127127O protagonismo que o Brasil recusa

Também diz muito sobre nossa indústria o fato de que, com a benção e colaboração do Ministério da Defesa, continuamos a produzir e exportar mísseis com munições de fragmentação. Trata-se de um tipo de arma condenado internacionalmente pelos notórios danos humanitários e que há oito anos é banida por diversos países pelo Tratado de Oslo.

Quando uma bomba de fragmentação brasileira atinge hospi-tais e crianças no Iêmen, o que seria um caso de sucesso da indústria exportadora brasileira se transforma em pesadelo para a imagem do país no exterior. Quando armas de fogo brasileiras ilustram os manuais de identificação policial da Guatemala, um dos países com pior índice de violência armada do mundo, nossas intenções de cooperação ou liderança regional soam vazias. Senti-mento semelhante quando observamos manifestantes em prol da democracia e da liberdade religiosa pelo mundo sendo duramente calados por bombas de efeito moral que exibem em suas cápsulas nossa bandeira verde e amarela. Assim, o Brasil é parte do problema. Temos ao nosso dispor um Tratado que pode promover um comércio internacional mais responsável acumulando poeira na espera pela ratificação.

Além do comércio legal, também há toda a esfera do tráfico ilícito. Aconteceu em junho de 2016, em Nova Iorque, o sexto encontro bianual de Estados para debater o Programa de Ação contra o tráfico de armas das Nações Unidas. Trata-se de acordo sobre mecanismos básicos de marcação e rastreamento de armas, assim como de troca internacional de informações para a preven-ção e combate ao tráfico.

O Instituto Sou da Paz participou da Conferência e, apesar de já acumular mais de 15 anos de experiência no tema, surpreendeu-se com a falta de participação do governo brasi-leiro, que sequer entregou o devido relatório de 2016. No tema de marcação e sistemas de dados o Brasil poderia atuar ofertando cooperação ou defendendo o uso de tecnologias mais avançadas, no tema do rastreamento e troca de informação poderia ser receptor de cooperação internacional, mas não se posicionou de nenhuma das duas formas. O vácuo de liderança na região e a extensão do seu prejuízo foi evidenciado pelo fato de que entre todos os 21 eventos paralelos não havia sequer uma mesa tratando da América do Sul e apenas uma tratando da América Central e do Caribe, algo certamente incompatível com a crônica violência armada em nossa região.

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128128 Ivan Marques e Natália Pollachi

O documento final, adotado por unanimidade e resultado de intensos debates não contou com contribuições significativas do Brasil. Entre suas conclusões, passaram a ser reconhecidas de forma inequívoca a ligação intrínseca entre falta de desenvolvi-mento econômico e social e a violência armada, assim como o efeito diferencial da violência armada entre os gêneros. São cons-tatações mundiais que o Brasil parece ainda não ter assimilado.

Em maio deste ano, o Sou da Paz também esteve em uma Conferência sobre Violência Armada e Populações Vulneráveis em Buenos Aires que reuniu representantes dos governos e sociedade civil dos países do Cone Sul. Fomos o único país sem represen-tante público porque a polícia federal não obteve autorização em tempo hábil para ir.

Expondo sobre nossos índices de homicídio pelo menos 100% maiores que de nossos vizinhos e sobre o fato de jovens negros brasileiros estarem sujeitos a um índice três vezes maior do que da população geral, se tornou ainda mais flagrante a inconsistên-cia daquele país que algum dia teve a pretensão de ser um líder pacificador regional.

Não faltam na memória dos interlocutores os discursos de brasileiros inflamados pelos índices de violência e pelos diários casos de tráfico transfronteiriço. Mas tampouco nos faltam instrumentos de controle e cooperação para combater o tráfico de armas: uma lei nacional modelo, mecanismos e comitês de coope-ração do Mercosul, protocolos do Cone Sul, o Programa de Ação para o combate de Tráfico de Armas da ONU e o Tratado de Comér-cio de Armas, por exemplo. No entanto, optamos por não utilizá-los em todo seu potencial.

Somos tanto fornecedores/fontes quanto vítimas da violência armada e, ainda assim, este é um protagonismo que renegamos. Não tomamos a iniciativa pelo Sul Global, pela América Latina e nem pela nossa própria população. Como se conter o tráfico de armas não fosse prioridade suficiente para nossa população e para os policiais que padecem em confrontos com criminosos que se utilizam dessas armas ilegais e que sabem que as mesmas armas alimentam todo o restante da cadeia criminal.

O que precisa estar claro nesta escolha é que, quando se trata de um tema que tem consequências diretas sobre a vida da nossa população e sobre o Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos, uma posição menos ativa se traduz em uma mensagem clara: não é nossa prioridade agir em algo que está ao

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129129O protagonismo que o Brasil recusa

nosso alcance para gerar mudanças concretas na garantia dos direitos mais básicos nas ruas brasileiras e do mundo.

Não faltam razões para que os responsáveis por nossa política externa assumam suas responsabilidades neste tema em que somos duplamente medalha de ouro, no pior sentido, passemos a ser também parte da solução. Enquanto aguardamos, a sociedade civil continuará a ser reconhecida como a nossa diplomacia paralela.

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O professor que bota moral

Priscila Cruz James Ito-Adler

Já é difícil colocar e manter a agenda educacional no centro das políticas públicas, aqui no Brasil, quando o cenário está mais tranquilo; imagine então com a atual crise política e

econômica. Mas se o nosso maior erro histórico é o descaso com a educação, até quando vamos repeti-lo? Por quantas crises tere-mos que passar?

Os jovens que entrariam agora no mercado de trabalho formam gera ção que acreditou na possibilidade de um país muito melhor. Mas, com a redução da oferta de emprego, isso parece escapar por entre os dedos. E pior, além de encontrarem ambiente muito mais difícil – o número de contratos de estágio caiu 15% de 2014 para 2015/ e há previsão de que da similar ou até superior neste ano –, esses jovens são pouco qualifica dos, o que lhes dá ainda menos com petências para encontrar oportuni dades onde há vazio, eficiên-cia onde há desperdícios, e energia de mu dança onde há inércia.

De acordo com os dados das avalia ções de larga escala, essa geração aprendeu pouco na escola. Apenas 9% têm os conheci-mentos básicos em matemática, e 23% em língua portu guesa. Além disso, tiveram poucas chances, dentro e fora da escola, para desenvolver outras competências tão importantes quanto, como coopera ção em projetos, comunicação, criati vidade e capa-cidade de criar estraté gias para solucionar problemas com ple-xos, entre outras. A boa formação dos jovens é neces sária para fazer o país todo crescer.

Mas é ainda mais importante em tempos como estes, em que a navegação no mar revolto e incerto exige muito mais de todos nós. E, de novo, não nos preparamos para mais essa crise.

As pesquisas educacionais, que temos em abundância, têm nos mostra do a inadequação do modelo de escola para o aluno atual. Essa lacuna tem di ficultado sairmos de uma situação de me lhora constante – mesmo que muito tímida – dos indicadores educacionais para avan ço mais vigoroso, que dê conta do nosso imenso atraso em menor tempo.

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131131O professor que bota moral

É lacuna que engloba questões de gestão da escola e da sala de aula, mas também de como o equipamento público é pensado e orga-niza do, tanto na parte física quanto na pedagó gica. Precisamos de proposta mais contem porânea e afinada com as demandas tanto dos jovens quanto da vida em sociedade, do mundo do trabalho e da cidadania, como diz o art. 205 da Constituição Federal.

Em meio às incertezas que estamos vi vendo hoje no Brasil – somadas aos me gadebates sobre planos e programas edu cacio-nais de porte nacional, ministros de educação entrando e saindo, ocupações de escolas por alunos e greves dos profes sores –, precisamos repactuar o que é uma boa educação. E no coração de toda essa complexidade, estão a figura do aluno e sua relação com o professor.

Recentemente, o Instituto Positivo divulgou o resultado de uma pesquisa qualitativa sobre que fatores influen ciam o desem-penho acadêmico de alunos do ensino médio, da perspecti va deles mesmos. Entre eles, estão a valorização da família e o fato de esses jovens desejarem cumprir a expectati va de seus familiares em relação a seu potencial. Os entrevistados também revelaram claramente o que esperam de um bom professor.

Em suas pró prias palavras, disseram que gostam de professo-res que "botam moral" e gerenciam bem a sala de aula para não ter bagunça; que interagem e não ficam só falando na frente da sala; e que criam aulas interessantes, com mídias variadas.

Para eles, um bom professor é di nâmico, descontraído e aces-sível; estimula e engaja os alunos durante as aulas; cobra e elogia ao mesmo tempo; usa as mídias sociais para in teragir com os estudantes fora da aula; tem paciência para tirar dúvi das; contex-tualiza o que está ensi nando com conteúdos aplicados e dá exem-plos da vida real; e conversa e orienta seus alunos para a vida profissional futura.

Pelas características apontadas, fi ca clara a diferença que os próprios jovens fazem entre um professor com autoridade e um autoritário. É im portante destacar que os alunos sa bem avaliar perfeitamente um bom professor, mais que a política educa cional. E que, para eles, é a figura do cente que mais influencia o seu aprendizado e o prazer de estar na escola e de aprender.

Eles, portanto, nos dão um recado importante, que mais uma vez parecemos não querer ouvir, porque acreditamos em solu ções mági-cas para a Educação. São os professores que fazem a diferença.

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132132 Priscila Cruz e James Ito-Adler

Ainda circula pelos grupos de debate sobre educação no Brasil uma frase que a consultoria McKinsey apresentou em 2010: a qualidade de sis tema algum supera a qualidade de seus professo-res. Essa é uma afirmação tími da. O correto seria dizer que a qualidade de um país não supera a de seus profes sores. Até quando vamos insistir no erro de não cuidar de que o professor seja, de fato, o profissional mais estratégico para o desenvolvi-mento forte e sustentável do Brasil?

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VIII. Direito & justiça

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Autores

Almir Pazzianotto PintoAdvogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

Sacha CalmonAdvogado, é coordenador da especialização em Direito Tributário das Faculdades Milton Campos.

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A liturgia do impeachment

Sacha Calmon

O instituto do impeachment tem ori gem no direito norte--americano, fi liado ao Common Law, o direito in glês costu-meiro, com seus prece dentes judiciais ( judje made law).

Nossa filia ção jurídica é ao direito romano-germânico, conhecido como direito continental euro peu, cuja característica está em criar normas jurídicas mediante leis.

Quando falamos de direito civil, comercial, tributário, penal, pro cessual e assim por diante, a nossa referência é a praça euro-peia continental, excluída a Grã-Bretanha, especialmente ao direito por tuguês, espanhol (Ordenações Filipinas), fran cês (Código de Napoleão), italiano e alemão.

No que tange ao direito político, entretan to, nosso parentesco é com o direito norte- americano. Isto se deve a duas vertentes dis tintas. Em primeiro lugar, a Europa optou pe la supremacia do Parlamento e pelo regime parlamentarista de governo, nele incluído o chamado “semipresidencialismo” tardio da França (Charles de Gaulle), de Portugal (mais ameno) e, recentemente, dos países do Leste Europeu.

Ainda assim, os parlamentos domi nam a paisagem, ocupando no Judiciário posi ção mais discreta. O controle de constitucio-nalidade das leis é feito por cortes constitu cionais fora do aparato jurisdicional desde 1920, por obra de Kelsen. De outra vertente, adotamos dos EUA o presidencialismo, a Fe deração, os Três Pode-res (Legislativo, Executi vo e Judiciário) e o controle difuso de consti tucionalidade e da Suprema Corte.

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136136 Sacha Calmon

No parlamentarismo, o governo não tem prazo certo. Os gabi-netes governativos caem por vários motivos e são formados novos governos, sempre por intermédio de eleições. O povo arbitra as crises de governabilidade.

No presidencialismo, os governos têm prazo certo, mas os governantes, os parlamentares e os juízes vitalícios podem ser deseleitos por dois instrumentos jurídico-políticos: o impeach-ment e o recall. Caso vertente, nos interessa o primeiro.

Nos Estados Unidos, inexiste foro privilegiado que significa privata lex, uma lei particular para alguns, contra o princípio de que somos to dos iguais perante a lei. É um resquício nos so, odioso, do Império, que vai se findar em revisão constitucional brevemente. Lá, o im peachment tem causa genérica: decoro, ges tão temerária, perjúrio, o que causar como ção e o que não couber no bom governo.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 e a lei enrijeceram em demasia o instrumento constitucional. A autorização da Câmara exige 2/3 dos deputados, um quorum dificí limo. Além disso, elencamos hipóteses de destituição em caráter exemplifica-tivo (nu merus apertus), ou seja, a lista não é taxativa (nos EUA, o iter é rápido e sumário e sem itens prévios). Eles sempre são mais prag máticos e objetivos.

A tendência no Brasil é tratar o impeach ment como processo judicial, quando é, ao contrário, instrumento político de correção, prestigiado pela Constituição, daí decorren do as artimanhas do advogado-geral da União em querer submeter a decisão mate rial (mérito) a ser tomada pelo Senado à re visão pela Suprema Corte, tão certo está do resultado da votação desfavorável à atual manda-tária. Isso, contudo, é impossível pela própria natureza do remé-dio político do im peachment, tanto que não há menção a isso na literatura norte-americana (três proces sos: Andrews, Nixon e Clinton), nem na brasileira (Collor).

Brossard, nosso autor mais prestigiado, a repudia veemente-mente. É fácil entender a razão. Em matéria de recursos, os países da família continental europeia construíram a tese de que toda regra de competência deve ser expressa. Destarte, os recursos, quando possíveis, que deve recebê-los e julgá-los, exigem lei. A Constituição de 1988, no seu imenso discurso sobre a compe-tência do Supremo Tribunal Federal, tanto a originária quanto a derivada, não prevê recurso de decisão do impeachment pelo Senado, sendo favorável ou desfavorável o resultado para o presi-dente a ele submetido (art. 85).

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137137A liturgia do impeachment

Por outro lado, a lei específica do impeachment, tampouco, nada prevê a respeito. Logo, em matéria de mérito, a decisão do Senado é última e irrecorrível. O STF tem contra ver se foi obser-vado o devido processo legal, os prazos, as formalidades. E nisso exaure-se a sua intervenção, já preclusas as fases anteriores do procedimento de julgamento do impeachment, de fora os casos que lá chegaram e foram repelidos.

De ver que esse processo, além de não ter natureza de ação judicial, não se passa no interior do Poder Judiciário, perante um órgão jurisdicional. Longe disso, ocorre no âmbito de outro poder legitimado pelo voto popular, o Congresso Nacional bicameral. Seria estúrdio, contrário ao princípio da separação dos poderes, existir recurso sobre o mérito da decisão do impeachment pelo Senado. No caso reverso, ex absurdo, teríamos que admitir o poder do Congresso de reformar acórdãos do STF. O relatório do senador Antonio Anastasia é formidável, irretorquível. O impeach-ment é página virada.

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Os vários lados da reforma trabalhista

Almir Pazzianotto Pinto

Recente manifesto, divulgado por 19 ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST), expressa veemente repulsa contra algo que denominam "desconstrução do Direito do

Trabalho". O documento também defende a Justiça do Trabalho, cujo papel "ganha relevância nos momentos de crise em que a efeti-vação dos direitos de caráter alimentar é premente e inadiável".

Desconheço alguém que ignore a importância do Direito do Trabalho, e se dedique à insensatez de tentar desconstruí-lo. Quanto à Justiça do Trabalho, não há motivo para defendê-la, pois não é alvo de conspiração.

Para atacá-la, seria necessária emenda constitucional subs-crita por um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, com o objetivo de alijá-la do rol dos órgãos do Poder Judiciário. Se tal manifestação de demência houvesse, não passaria despercebida.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943, mediante decreto-lei, exige análise serena e desapaixonada. Não há, porém, como desconhecer que pertence à época da locomotiva à lenha, do telefone de manivela, do ferro de passar roupa a carvão, das estradas de terra batida, dos teares mecânicos. Como obra perecível, é vítima do tempo e dos acontecimentos.

O documento dos ministros se inicia com a citação de frase do papa Leão XIII, na Carta Encíclica Rerum Novarum: "Do trabalho do homem nasce a riqueza das nações”; divulgada em 1891 como resposta ao Manifesto Comunista, de Marx e Engels, cuja primeira edição data de 1872.

Leão XIII condena a solução socialista que, para combater o infortúnio dos "homens das classes inferiores", "instiga nos pobres o ódio contra os que possuem, e pretende que toda a propriedade de bens particulares seja suprimida". Ataca, em seguida, o comu-nismo, por ele considerado "princípio de empobrecimento"..., "porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias."

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139139Os vários lados da reforma trabalhista

Segundo o papa, compete ao Estado "proteger a propriedade particular e impedir as greves”. O remédio mais eficaz e salutar consistiria em "prevenir o mal com a autoridade das leis, e impe-dir a explosão, removendo a tempo as causas de que haverão de nascer os conflitos entre operários e patrões".

Entre os deveres que dizem respeito ao pobre e ao operário, nas palavras de Sua Santidade, estariam o de "fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu, por contrato livre, conforme a equidade; não lesar seu patrão, nem os seus bens, nem a sua pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas".

Na opinião de Rudof Fischer-Wollpert, autor de Os papas, com a Rerum Novarum, Leão XIII "procurou encontrar uma posição conciliatória entre patrões e empregados". Defendia o proletário contra a exploração desumana, mas não execrava o capital. Ao Estado incumbiria o encargo de resguardar os proprietários contra o socialismo, o comunismo, e as agitações grevistas.

A frase do papa Leão XIII entra no Manifesto dos Ministros como Pilatos no Credo. Que a Consolidação das Leis do Trabalho envelheceu, a idade o comprova. Um dos males, talvez o maior, da legislação cujo centro de gravidade é a CLT, consiste na inse-gurança jurídica, ref letida em milhões de dissídios individuais, na morosidade de julgamento, nos valores desproporcionados de condenações.

A insegurança gera o receio do acúmulo de passivo oculto, de dívidas geradas pela fragilidade do recibo de quitação passado mediante a assistência e homologação do sindicato ou do Ministé-rio do Trabalho.

A hostilidade entre patrões e empregados não pode ser motivo de satisfação. Mais de 12 milhões de desempregados bastam para mostrar a necessidade de se fazer algo em favor da segurança jurídica. Legislar cabe ao Congresso Nacional. Ao chefe do Execu-tivo, sancionar, promulgar, e fazer publicar leis.

Se todos se conduzirem dentro das respectivas esferas consti-tucionais, o Brasil caminhará melhor para superar a crise.

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IX. Ensaio

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Autor

Paulo Elpídio de Menezes NetoCientista político, foi reitor da Universidade Federal do Ceará (1979/83), é membro da Academia Brasileira de Educação e é autor de vários livros.

ERRATANa última edição, a de nº 44, cometemos um grave erro. O autor do belo en-saio “Da revolução à democracia: uma transição incompleta” (p. 125 a 134), Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira, não é um jornalista paraense, como publicamos, mas, na verdade, se trata do historiador, mestre em História na Unesp/Franca e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História e Cultura na mesma instituição. Pedimos escusas a ele e aos nossos leitores.

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A semântica do contraditório numa comédia da arte das aparências

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Diz-se, com certo orgulho, que no final das contas, a demo-cracia não está tão mal na América Latina. Algumas vozes chegam a admitir que as nossas instituições políticas estão

bem consolidadas. É possível que alguns indícios observados (não falemos sobre indicadores, por recatada prudência) sejam verdadei-ros ou que não passem da projeção inconsciente de nossas utopias. Seja como for, se a presença frequente de generais nas chefias de Estado, por este lado do Planeta, pode ser levada em conta da quebra de requerimentos constitucionais básicos, melhoramos significativamente na escala republicana de governo democrático.

Exceção feita à Venezuela, os generais recolheram-se às suas casernas. Os longevos irmãos Castro pertencem a outra categoria de ditadores, não são, de fato, militares de carreira, sequer conhe-cemos a sua patente, tampouco são caudilhos, embora detenham o controle da força armada e as empreguem politicamente, sob justi-ficadas intenções. Fora o coronel Hugo Chávez, nestas derradeiras duas décadas não há registro, por aqui, de nenhum militar à frente de Estados e seus governos. O que não é garantia confiável contra o risco de cairmos nos laços dos condottiere políticos de ocasião, dos salvadores e emissários da revelação, dos “enviados” trazidos nos braços dos populismos históricos – para nos salvar do nosso opróbrio, da nossa miséria e da nossa insensatez.

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O tragicômico do ritual do impeachment

A cerimônia do impeachment a que fomos condenados pela imposição do destino e a irresponsabilidade dos homens e mulhe-res no exercício do governo, arrasta-se descuidadamente diante de nossos olhos, entre surtos de comicidade explícita e esgares de drama. Movimentam-se pelas Comissões, agitadamente, atores inseguros de seu papel, em negociação aberta para o apresamento de almas indefesas, e mulheres insinuantes com seus argumen-tos audazes e combativos, prenhes de lealdades passageiras…

Os rituais celebrados nas pajelanças do impedimento presi-dencial demonstram, entretanto, que as nossas instituições conti-nuam frágeis e os atores que se movimentam pelo palco apinhado de transeuntes – velhos canastrões que a tolerância da assistên-cia aceita e mantém, com raros apupos dissonantes – e ainda dão as cartas desse jogo fora de moda.

Esquecemos as advertências lançadas por José Bonifácio, o maior dos nossos poucos estadistas, na relação direta do esqueci-mento a que foi lançado, sobre o sortilégio das manipulações do poder. Lembremo-nos, ao menos, de Rui, tornado citação erudita ritual e conveniente de textos jurídicos, quando reclamava, nas frondes da República Velha, que “ainda não houve presidente nesta democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos”. E arrematava afirmando que a Lei de Responsabili-dade, nos crimes do chefe do Poder Executivo, não fora adotada “senão para não se aplicar absolutamente nunca”.

E avançava em considerações que retratam situações e circuns-tâncias que persistem hoje, ainda: “O presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade siste-mática do Poder Executivo”. Mudou o presidencialismo ou muda-mos nós, em pouco mais de um século? Essas evidências ignoradas estão presentes nas alongadas discussões que dissimulam a retó-rica atrasada que cerca o velório alegre de nossas instituições.

As crises, como os problemas, se desfazem por si mesmos

Vivemos conjuntura agravada pela persistência em práticas historicamente repetitivas, muda-se a fachada suspeita de uma improvisada construção republicana, sem que se altere a estru-tura em ruína; pavimenta-se uma ciclovia em encosta arriscada sem que se leve em consideração a força das marés e o transcurso

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do tempo útil. Segundo essa metodologia arcaica do governo do Estado, as crises só terminarão quando surgirem novas crises, umas empurrando as outras para os escaninhos do esqueci-mento, assim como temos vivido, desde que o Príncipe Regente pôs-se a deliciar-se, entre os seus estafantes afazeres da Coroa, com músicas sacras no Convento de Santo Antônio. E Dom Pedro II, nosso rei-ciência, deslumbrava-se com as descobertas arqueo-lógicas do Egito…

Confundem-se no varejo da incompetência histórica de nossos governantes as instituições, as políticas e as normas de Estado que definem compromissos de longo prazo – liberdade, segurança, bem-estar, crescimento econômico e social, expansão do conheci-mento – com as políticas de governo, instrumentais, estratégicas, sujeitas a mudanças para que as funções essenciais do Estado sejam cumpridas.

A seguir-se receita preservada entre nós para o governo do Estado, as crises político-institucionais e as que a elas se asso-ciam só se resolverão com o surgimento de novas crises, uma a empurrar as outras para os escaninhos do esquecimento.

A confusão proveitosa entre o que sejam Estado e governo

Confundem-se, no varejo da incompetência histórica de nossos governantes, das instituições, das políticas e normas de Estado, justamente as que definem os compromissos de longo prazo – liberdade, segurança, bem-estar, crescimento econômico e social, a expansão do conhecimento etc. – com as políticas do governo, estas, instrumentais, estratégicas, sujeitas a mudanças para que as funções essenciais do Estado sejam realizadas.

Sem a percepção clara dos paradigmas que regem as relações entre Estado e governo, entregam-se os governantes, com rara cria-tividade, conforme suspeitava Jonathan Swift na sua Arte da mentira política, à práxis da mentira: a mentira política nasce na cabeça de um governante em desespero de causa para ser amamen-tada e embalada pela credulidade popular. De mentira faz-se dúvida e verdade pelo jogo inconsútil da semântica, inverte os sinais lógicos do entendimento e apaga a clareza das intenções.

No Brasil, como na maior parte dos países, democráticos ou não, um novo mundo de aparências suplantou a realidade. Este sistema de tornar-se parecido transformou-se, por fim, em uma comédie des apparences, segundo alguns analistas desengajados.

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146146 Paulo Elpídio de Menezes Neto

Dá-se, hoje, uma forma bem consequente de personalização do poder: a imagem substitui a ideia, a promessa à ação, a interpre-tação ao fato, as virtudes públicas convivem com os vícios priva-dos. Os atores do poder do Estado não se defendem das acusações de que são alvos: detratam os acusadores, procuram desqualificá-los como cidadãos e pessoas; desmontam o dolo de que são acusados e o transformam em ações de interesse público…

Roger-Gérard Schwartzenberg, cientista político francês, usa a expressão jeu d’artifice (jogo de artifício) para definir a estraté-gia política, forma acabada de exercício da impostura: palavras, imagens e suportes ideológicos, tudo se combina e articula para enganar o público, a opinião pública, os cidadãos – e confundir o seu esforço para chegar à verdade.

Estratégias múltiplas e cumulativas para a manipulação da verdade

Textos apócrifos aparecidos na web e as ideias que sugerem, uns de Chomsky, outro de Lenine e mais dispersos; e textos de autoria comprovada – todos falam de estratégias sobre a manipu-lação de massa através dos meios de comunicação de massa. Sem que sejam injustamente omitidos textos reputados de psicólogos e cientistas políticos, juristas e semiólogos. Uns e outros ocupam-se, segundo sua visão dos processos sociais, da engenharia da manipulação da realidade, da verdade e da mentira políticas, seja por iniciativa do aparelho do Estado, seja pela political media, nas vertentes amplas do poder, dos que lá estão e pretendem mantê-lo e dos que querem alcançá-lo e conservá-lo…

Em breve sumário, aconselham, entre outros dribles da contra-realidade: a) a técnica da distração (como desviar a atenção do público dos problemas importantes e das ações governamentais, com a inundação de informações insignificantes; b) criar problema para oferecer soluções; c) estratégia da gradualidade para tornar aceitável uma medida inaceitáve; d) explorar o aspecto emocional em detrimento da reflexão, criar cenários falsos, induzir a conclu-sões superficiais; e) falar a linguagem popular, usar de gírias e obscenidades permitidas para estimular a mediocridade e a igno-rância do público; f) eleger “inimigos” internos e situações amea-çadoras: se possível eleger um inimigo externo poderoso ao qual não possa desafiar pelas armas; g) atribuir a fatores externos a situação interna da economia; h) fazer-se de vitima de forças poderosas; i) aliciar movimentos sociais e a consolidação de

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conselhos transversais como forma prática de coletivos democrá-ticos, concorrentes das instituições constitucionais – e fazê-los constitucionais; j) a aceitação do contraditório ao discurso do poder equivale a dar força a manobras contra a ordem “republi-cana”, e a favorecer a ação “golpista” da “direita”…

O “nós”contra eles

Ignorar essas armadilhas que os fatos e suas circunstâncias armam corresponde, como diz o escritor Luiz Ruffato, aceitar que o Brasil se divida “entre pessoas que pensam como nós (os bons, inteligentes e honestos) e as que pensam diferente de nós (os maus, burros e corruptos)”. O maniqueísmo é o novo ópio do povo, ou dos tolos, como diria o poeta Iacyr Freitas, dispensado em doses patrióticas aos consumidores de utopias fabricadas.

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X. batalha das Ideias

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Autores

Luís-Sérgio SantosJornalista, editor e autor, dentre outros, do livro Rui Facó – O homem e sua missão (Uma biografia).

Pablo SpinelliHistoriador graduado pela Universidade Federal Fluminense.

Sergio FaustoSuperintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, e membro do Gacint-USP.

Vagner Gomes de SouzaHistoriador graduado pela Universidade Federal Fluminense.

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Cuidado com a antipolítica

Sergio Fausto

Congresso, partidos organizados para disputar eleições e políticos profissionais eleitos: instituições com prestígio baixo e cadente no Brasil e, em graus variados, em todos

os países democráticos. É tarefa inglória defendê-las nos dias que correm. E, no entanto, por isso mesmo, é hora de fazê-lo, pois elas constituem um trio indispensável à democracia representativa. Para que não se a interprete como uma defesa indiscriminada do nosso sistema político, cabe ganhar uma certa perspectiva histó-rica para só depois chegar à cena brasileira atual.

Comecemos pela identificação dos principais inimigos históri-cos da democracia representativa: os movimentos e regimes nazi-fascistas e comunistas que marcaram o século 20 com um longo e largo rastro de sangue.

Com a vitória sobre o nazifascismo em 1945 e o colapso do socialismo real em 1991, a democracia representativa triunfou como valor, impondo-se sobre seus inimigos “externos” no plano das ideias e da política. Num paradoxo apenas aparente, passou então a ser assombrada por seus próprios fantasmas. Sem o contraste com os regimes totalitários, os seus defeitos e imperfei-ções se tornaram mais visíveis: as tendências à oligarquização dos partidos, à captura dos sistemas políticos por “interesses especiais”, ao descolamento entre os políticos profissionais e os cidadãos comuns.

Nos últimos anos, o desencanto com a democracia se espalhou pelo mundo (e não apenas nos países mais afetados pela crise

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152152 Sergio Fausto

financeira de 2007/2008, o que mostra não ser a economia o único fator a explicá-lo). Ele produziu dois efeitos de sinais opos-tos: de um lado, a rejeição à política, vista como uma atividade intrinsecamente nociva à sociedade; de outro, uma adesão à polí-tica de alta intensidade, em crítica frontal aos Parlamentos, parti-dos e políticos profissionais, em nome da participação direta dos cidadãos nas decisões de governo.

Na América Latina, onde já se enfraquecia a memória das ditaduras militares, deu-se o mesmo fenômeno. A partir do final da década de 1990, o desencanto com a democracia tomou o caminho da “política de alta intensidade” naqueles países em que o sistema partidário anterior colapsou sob o peso de crises agudas na economia e na representação política. Surfando a onda global de crítica à democracia representativa, movimentos e governos de orientação “bolivariana” adotaram mecanismos de representação direta e formas de mobilização popular que, sob o pretexto de torná-la mais autêntica, submeteram a democracia representa-tiva ao seu projeto hegemônico. Quem mais longe levou esse expe-rimento foi o chavismo, a tal ponto que a Venezuela é hoje uma autocracia com alguns disfarces formais.

O Brasil seguiu uma trajetória distinta. Ao chegar ao poder, o PT encontrou um sistema de partidos comparativamente mais estruturado, no qual ele próprio desempenhava um papel impor-tante, operando no âmbito de instituições políticas e jurídicas de melhor qualidade. A aprovação da cláusula de barreira em 1995, com previsão de entrada em vigor dez anos depois, parecia apontar para a evolução positiva do sistema partidário. Uma combinação de fatores, porém, levou-o à degeneração progressiva, entre eles a desafortunada decisão do STF de derrubar a cláusula de barreira.

Não se pode atribuir a degeneração do sistema político-partidá-rio inteiramente aos governos do PT, mas é inegável a sua respon-sabilidade nesse processo (anabolizando legendas de aluguel, orga-nizando em escala sem precedente a acoplagem do financiamento de campanha à corrupção nas estatais e em empresas privadas prestadoras de serviços às estatais etc.). Embora tenham cuidado de manter ativa e bem financiada a sua base militante organizada e buscado avançar na construção de conselhos dominados por “representantes da sociedade civil” ligados ao partido, os governos petistas não chegaram a ser “bolivarianos”. Mais do que adesão à política de alta intensidade, apostaram na expansão do consumo para ampliar e manter seu apoio na sociedade.

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153153Cuidado com a antipolítica

Hoje temos um sistema político-partidário em frangalhos e uma sociedade frustrada com a quebra das expectativas de mais consumo (e melhores serviços públicos). Majoritariamente, ela rejeita a polí-tica e os políticos. Rejeição que só faz crescer à medida que a Lava-Jato expõe as entranhas desse sistema político-partidário.

Sem dúvida, a sociedade deve estar atenta às tentativas de barrá-la ou limitar o seu alcance. Todavia, deve estar atenta também ao risco de que os fatos e versões decorrentes das inves-tigações sejam instrumentalizados para fazer afundar em descré-dito generalizado o Congresso, os partidos e os políticos profissio-nais, indiscriminadamente. Jogar tudo e todos na vala comum não fará o país avançar na construção de uma democracia melhor.

A ideia de que um sistema político regenerado nascerá da destruição completa do atual é ilusória e perigosa, quando não autoritária. Trata-se, isto sim, de reformá-lo com objetivo de aper-feiçoar a democracia representativa, processo que não se dará da noite para o dia. Seu aperfeiçoamento deverá incorporar formas inovadoras de participação dos cidadãos na política, para tornar mais transparentes, fidedignas e sensíveis à sociedade as formas clássicas da representação, não para substituí-las. Parte (a menor parte, é verdade) dos partidos e dos políticos existentes é funda-mental para que esse processo se dê com sucesso.

Com a Lava-Jato chegando à sua temperatura máxima e o prestígio do sistema político ao seu ponto mais baixo, a sociedade brasileira será exigida em sua capacidade crítica e senso de propor-ção. À justiça cabe julgar com base em provas. Aos cidadãos, defi-nir pelo voto e pela pressão sobre o sistema político quem merece cartão vermelho, cartão amarelo ou simples advertência verbal. A todos nós cabe nos empenhar para que o jogo democrático conti-nue a ser jogado, com melhores regras e maior qualidade.

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O que está acontecendo com a filósofa?

Luís-Sérgio Santos

Marilena Chauí é uma intelectual respeitável, dona de uma farta e rica produção acadêmica que inclui gran-des traduções, como Baruch de Espinosa. É autora de

um best-seller dos 1980, o livrinho de bolso da “Coleção Primei-ros Passos” da Editora Brasiliense, O que é Ideologia. Era uma “ídola” do pensamento acadêmico nacional, filósofa celebrada e com enorme trânsito na classe média.

Mas há muito Marilena – com seu salário médio mensal de R$ 23 mil, somente na Universidade de São Paulo (USP) – se afastou da classe média, na qual está muito bem inserida. Em 2013, buscou se diferenciar de sua classe quando disse, em um evento público do PT, que odeia a classe média brasileira: “uma classe fascista, violenta e ignorante”.

Agora, a filósofa, que fez a cabeça de várias gerações, causa nova polêmica ao defender uma fantástica teoria conspiratória, na qual poucos roteiristas do Netflix se aventuram.

Em um vídeo disponível no YouTube, Marilena diz, em uma fala pausada e convicta:

A Operação Lava-Jato não tem nada a ver com a moralização da Petrobras. A Operação Lava-Jato é pra tirar de nós o pré-sal. Por que isso ficou claro pra mim? Por que Sérgio Moro foi treinado, nos Estados Unidos, pelo FBI para realizar essa operação. E nós sabemos que as chamadas seis irmãs do petró-leo lutaram pelo pré-sal desde a descoberta dele e os governos petistas e, em particular, a presidente Dilma fizeram pé firme com relação ao pré-sal como soberania nacional. Ele [Sérgio Moro] recebeu um treinamento que é característico do que o FBI fez no maccarthismo, e fez depois do 11 de Setembro, que é a intimidação e a delação. Por que esse tipo de comportamento? Por que as chamadas seis irmãs não são brincadeira de criança. Nós sabemos que eles desestabilizaram o Oriente Médio por causa do petróleo, desestabilizaram os Bálcãs por causa do petróleo e dos minérios, desestabilizaram a Venezuela e eviden-temente o grande alvo era desestabilizar o Brasil por causa do pré-sal. Então, a Operação Lava-Jato é, vamos dizer, o prelúdio

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155155O que está acontecendo com a filósofa?

da grande sinfonia de destruição da soberania brasileira para o século XXI e XXII. Nós não podemos permitir que isso acon-teça e, no entanto, o que é admirável, extraordinário, é que com um mês de governo provisório, o Temer e o Serra vão passar o pré-sal privatizado para as empresas norte-americanas. Eles estão destruindo a economia brasileira, eles estão destruindo a soberania brasileira e eles estão comprometendo as gerações futuras de brasileiros. Não é uma operação comercial, é uma operação de geopolítica, é uma operação de destruição da cons-trução de uma República e de uma democracia, e é a tentativa de destruir o lugar que o Brasil construiu como líder dos Brics, portanto, como líder das economias emergentes.

Marilena continua sua peroração por mais 90 segundos, mas este trecho já é suficiente para mostrar a nova tese de nossa feste-jada filósofa dos anos 1980.

Quando vi a primeira referência a essa tese de Chauí, imaginei que fosse uma pegadinha das redes sociais. A mesma reação que tive quando vi a primeira foto de Nestor Cerveró, imaginando que fosse um photoshop inspirado em Salvador Dalí. Mas não, Mari-lena está falando sério e, me parece, está falando sem ser amea-çada, fala espontaneamente.

Se ela está coberta de razão, como ficam as personagens do maior escândalo de corrupção do mundo desde a invenção da escrita? Como fica o Ministério Público? E a Polícia Federal?

A corrupção que ganhou dimensão estelar na gestão petista criou as condições objetivas para o surgimento da Lava-Jato. Sem corrupção na escala implantada a partir do governo Lula não have-ria esta Operação. Portanto, as condições objetivas para o lança-mento do ministro Sérgio Moro como paladino da Justiça só podem ter sido criadas também pelo FBI. Ou, quem sabe, pela CIA, já que se trata de questão de inteligência e não de investigação.

A resposta é óbvia: é tudo invenção do FBI. Corruptos e corrup-tores são todos agentes do FBI no projeto de desestabilizar o Brasil e entregar o pré-sal para as onipresentes “seis irmãs”.

O meu esforço para concordar com Marilena Chauí, em nome da sua memória anterior, dos bons tempos da Editora Brasiliense e dos Encontros Radicais, em São Paulo, só pode me remeter para a construção do cenário da corrupção como uma obra também do FBI. Só assim podemos entender Sérgio Moro como a obra tardia do FBI. Em nome da razão e da lógica, também apregoadas por Marilena dos anos 1980.

Vivemos, pois, “a maior conspiração de todos os tempos”.

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historiadores por mais democracia

Pablo Spinelli Vagner Gomes de Souza

Acompanhamos surpresos a recente polêmica em relação ao posicionamento político de um grupo de intelectuais chamados "Historiadores pela Democracia". Defendem a

legalidade da continuidade do mandato da presidente da Repú-blica e ganharam notoriedade pela própria mídia acusada por eles de "golpista". Não devemos aqui tecer comentários se estariam antecipando uma sentença da História, uma vez que este é um debate político ao contrário de acadêmico. A imprensa hegemônica ganha na possibilidade de permitir a continuidade de uma falsa polarização entre aqueles grupos que estiveram por mais de uma década governando sustentados pela ressurreição do "Centrão".

Desde 1994, PSDB e PT estiveram no comando de governos sem conquistar a hegemonia no Parlamento. Nas margens de seus programas políticos, cederam espaço para grupos de um mosaico partidário conservador, porém que deu a estabilidade política e econômica para um tripé monetarista. Se a referência ao século XIX é permitida, nada como estabelecer uma comparação histó-rica com a alternância histórica entre Luzias e Saquaremas no Império brasileiro. Contudo, não compactuamos com a observa-ção de alguns politicólogos que enunciam PT e PSDB como Luzias e Saquaremas, respectivamente.

Ambos seriam segmentos do campo "Luzia" brasileiro, sob a roupagem de uma tênue social democracia, à medida que a susten-tabilidade, ora garantida pelo antigo PFL (no caso do PSDB) e ora pelo PMDB (no caso do PT), sempre estaria em mãos do campo "Saquarema" brasileiro. Desde 1994, melhor seria comparar com os tempos do "Gabinete da Conciliação" do Marquês do Paraná. Há um silêncio dos "Historiadores pela Democracia" em relação aos novos tempos de Saquarema na defesa da presidente da República.

Se, por um lado, no governo tucano, houve como priorização a estabilidade da moeda e a acessibilidade mais flexível à entrada dos capitais de origem financeira, por outro, sem discordar da linha adotada, o governo petista sem se dissociar dos grandes bancos e empresas acabou por priorizar o social. A agenda petista foi mudando de acordo com as desventuras do seu timoneiro.

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O discurso antiamericanista, por exemplo, que julgava o Brasil como subserviente ao "Grande Irmão" do Norte, acabou por ser substituído pela ênfase de Obama ao fato do nosso presidente ser “o cara", noves fora, após a boa convivência com George W. Bush. Tal discurso antiamericanista, hegemônico nas universidades, não só não deixou de fazer a sua autocrítica como reforçou práticas do americanismo em curso no Brasil. Basta olhar a agenda das cotas e das políticas de afirmação dos mais diversos matizes.

As universidades deveriam repensar de que forma está seu diálogo com a sociedade. Muitos dos jovens que ali estudam têm uma sobrecarga de trabalho com estudos em que a sua interven-ção na sociedade resume-se a um diploma para supostamente se qualificar melhor no competitivo mercado, uma forma de sair da "ralé brasileira" das gerações que os antecederam.

Por outro lado, uma boa parcela da juventude ainda está presa aos cânones ideológicos dos anos de 1960, nos quais 1968 real-mente é o ano que não termina, para inglória posição dos intelec-tuais que deveriam superar discursos anacrônicos com uma "esta-tolatria" que paradoxalmente se coaduna com a defesa dos direitos societais. Temos uma universidade bifronte, a reação dos historia-dores pela democracia não é pela democratização. Quando a maio-ria dos cursos determina o atrelamento do bacharelado à licencia-tura ou, ao contrário, determina um tempo maior dos jovens aos pilotis e gera um atraso da entrada de profissionais no mercado de trabalho e de cientistas nas universidades, logo, cria um déficit de professores nas escolas ou de pesquisadores nas universidades. Mais democracia também é necessária defendermos nas universi-dades públicas brasileiras nesses tempos sombrios.

Uma luta pela democracia com um discurso único não é demo-cracia. O clima de Fla x Flu não é bom para o debate acadêmico e cada vez mais os historiadores têm que fazer uma reflexão sobre o papel do historiador: ser um intelectual de gabinete da torre de marfim escrevendo artigos que serão lidos pelos seus pares na Scielo ou patrocinados pela Biblioteca Nacional ou irão entender e dialogar com o que houve em 2013?

Um balanço político da agonia de nossa sociedade que existe desde as jornadas de junho de 2013 se faz necessária. Abriu-se uma crise do velho modelo da política centralizadora em que os herdeiros do Visconde de Uruguai, seja à direita ou seja à esquerda, não compreendem que esse Estado não é democrático, mas centralizador.

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158158 Paulo Spinelli e Vagner Gomes de Souza

Compreendemos que há um outro caminho possível na radi-calização da democracia nos ganhos nascidos na Carta Constitu-cional de 1988 que foi fruto de um acordo político das forças polí-ticas brasileiras. Uma centro-esquerda renovada se faz necessária nessa crise política para além de alinhamentos doutrinários.

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XI. Mundo

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Autores

Paulo DelgadoSociólogo, ex-deputado federal.

Paulo Roberto de AlmeidaDiplomata de carreira e professor no Uniceub (Brasília).

Silvana SaraivaPresidente do Instituto Feira Internacional Afro-Étnica Negócios e Cultura (Feafro).

Silvio QueirozJornalista e comentarista responsável pela coluna Conexão Diplomática (CB).

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Epitáfio do lulopetismo diplomático

Paulo Roberto de Almeida

Dois elementos são essenciais a qualquer diplomacia: credi-bilidade e inserção internacional. Ao se aproximar o fim de 13 anos de bizarrices na política externa, cabe reme-

morar como a diplomacia lulopetista, partidária por definição, sacrificou ambos os elementos no altar de posturas sectárias e de iniciativas obscuras. A deformação das mais sensatas tradições da diplomacia profissional não só retirou credibilidade ao Brasil no contexto regional, como isolou o país da economia mundial, fazendo retroceder tanto a integração no Mercosul quanto nossa inserção nas cadeias globais.

Os lulopetistas retiraram credibilidade à política externa e à própria diplomacia profissional, em primeiro lugar, pelo alinha-mento canhestro a regimes de esquerda na região, numa demons-tração de anti-imperialismo anacrônico e de antiamericano infan-til (existiam motivos atrás disso, o Foro de São Paulo, uma organização de fachada que permite aos comunistas cubanos controlar correias de transmissão no Hemisfério). Houve um tempo em que o Brasil parecia dispor de vários ministros de Rela-ções Exteriores, sendo um ironicamente designado de “chanceler para a América do Sul”, um apparatchik do partido, amador em assuntos externos, mas dispondo de grande poder para impor posturas contrárias ao interesse nacional, contra as opiniões mais sensatas da diplomacia profissional.

Não faltou sequer certa dose de traição aos interesses do país, como revelado em episódios lastimáveis da diplomacia partidária,

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como a expropriação ilegal e indevida de ativos nacionais em países vizinhos, ou até a tentativa, felizmente frustrada, de fazer organismos externos interferirem em nossa política interna, todos a partir de atropelos dos lulopetistas aprendizes de feiticeiro na agenda internacional do Brasil, que teria ficado em melhores condições nas mãos dos diplomatas profissionais.

O desmantelamento dos objetivos comerciais e econômicos do Mercosul, e sua transformação em mera tribuna política, sem nenhum efeito sobre seu fortalecimento enquanto parceiro inter-nacional confiável, foi outra das lamentáveis “realizações” dos lulopetistas: o Mercosul se desqualificou, quando não abandonou por completo sua participação em negociações regionais ou pluri-laterais em prol da abertura econômica, liberalização comercial ou inserção em cadeias mundiais de valor. O apoio concreto a duvidosos regimes esquerdistas – quando não ditaduras abertas – constituiu o aspecto mais histriônico, e nefasto, dessa política externa bizarra, aliás, em total desrespeito a normas constitucio-nais e em contradição completa com nossas tradições diplomáti-cas (como a interferência nos assuntos internos de Honduras, por exemplo). Tudo isso minou a credibilidade da nossa política externa e da diplomacia profissional.

O isolamento econômico do Brasil não foi algo improvisado, mas, sim, resultou de concepções anacrônicas em matéria de políticas industriais ou comerciais, que recendem a um bolor desenvolvimentista de décadas passadas, o qual, todavia, os lulo-petistas sempre admiraram pelo seu lado estatista e dirigista, com raízes no protecionismo comercial e na proteção de uma “indústria infante” (a automobilística, por exemplo), que ainda não terminou de ser criança, mesmo passados 60 anos. Regras de conteúdo local e de discriminação tributária, como condição de acesso ao mercado interno, não estão apenas em contradição com regras do Gatt-Organização Mundial do Comércio (OMC), mas realimentam velhos sonhos soviéticos de “socialismo num só país”, no nosso caso transformado em perfeito exemplo de “stali-nismo industrial”, ou seja, uma indústria isolada do mundo.

O renascimento da política externa num novo governo terá de rever todas essas posturas anacrônicas do lulopetismo diplomá-tico, indignas de nossas melhores tradições profissionais nessa área. A restauração da credibilidade externa do Brasil começa pela dupla superação da doença infantil do esquerdismo terceiro-mun-dista, traduzido na míope “diplomacia Sul-Sul”, e da obsessão pela busca de “parceiros estratégicos”, um fantasmagórico grupo de

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“anti-hegemônicos” (na concepção dos lulopetistas), cada um, na verdade, cuidando de seu interesse próprio no cenário mundial.

O fim do autoisolamento econômico e comercial passa, por sua vez, pela reversão completa das medidas adotadas nos últimos anos, começando por colocar novamente na agenda os objetivos prioritários inscritos no art. 1º do Tratado do Mercosul, ou então a concessão de liberdade a cada membro para negociar acordos de liberalização comercial com os parceiros mais prometedores. A indústria brasileira não precisa tanto de proteção e subsídios quanto de abertura e competição, à condição que ela deixe de ser esmagada por uma carga tributária tão extorsiva quanto imoral.

A política externa lulopetista isolou o Brasil do mundo e retirou credibilidade à sua diplomacia profissional ao partir de pressupos-tos completamente equivocados, em alguns casos deliberadamente voltados para prestar serviço a obscuros clientes externos, que nada tinham que ver com os nossos interesses nacionais.

O Itamaraty precisa ser restaurado em seu papel fundamental de assessoria competente, essencialmente técnica, na formulação das diretrizes presidenciais em matéria de política externa, sem nenhum vezo partidário ou ideológico.

Afastados apparatchiks partidários – que, aliás, romperam com métodos de trabalho obrigatórios na diplomacia profissional, como o registro documental de cada ação empreendida –, o Brasil poderá recuperar sua credibilidade externa e reinserir-se produ-tivamente na economia mundial.

Não era sem tempo!

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Deus salve a rainha

Paulo Delgado

Não é democrata o governante que, inseguro ou demagogo, pergunta ao povo o que ele já sabe a resposta. David Came-ron, primeiro-ministro da Grã-Bretanha, transferiu para

os ingleses a tarefa de errar e dar um tapa na cara da Europa, ameaçando o mundo com mais instabilidade e egoísmo.

O dia 23 de junho de fortes chuvas, relâmpagos e trovoadas emoldurou o cenário, da Irlanda do Norte até Lincolnshire, banhada pelo Mar do Norte, e dali para o sul da Grã-Bretanha, até o Canal da Mancha. Foi apenas o terceiro plebiscito da história do Reino Unido. Para uns, um belo teatro armado por políticos oportunistas, de olho na suscetibilidade das pessoas, diante do uso do medo e da aversão às dificuldades. Para outros, exercício herdeiro legítimo e direto dos que impuseram a Magna Carta ao mau soberano.

Observando atenta, cheia de dedos, sem poder muito influir em algo que lhe impactaria visceralmente, a União Europeia, velha jovem senhora, agora desprezada oficialmente. Para a curta história dessa instituição estranha e bela, poliglota, sediada em Bruxelas, foi certamente não apenas um dos plebiscitos mais tensos, como também um dos mais lúgubres. Já o era desde antes do resultado. A concretização da ameaça de rompimento, pode, na melhor das hipóteses, fortalecer seu núcleo duro. Uma União Europeia (UE) que venha a sair do escrutínio, que pôs à prova a relação entre a ilha e o continente, mostrando, sem sofisma cons-ciente, que uma não depende da outra.

A percepção de que o Reino Unido reclama demais e não reco-nheceu os benefícios trazidos pela UE caminha para se descons-truir, pois fizeram o que sempre foram acusados de querer fazer. Sendo otimista, o discurso que pode agora nascer não só se pres-taria à propaganda do lado europeu, quanto à agenda britânica de redesenhar seu lugar no mundo. Todavia, a continuação da ausência de trégua com o avanço do extremismo, que insufla tais vagas para arrebentação não só da UE, mas de qualquer união entre os países, indica tempos sombrios para o mundo.

A ideologia britânica moldou caminhos, decisões e regras do que hoje é a principal experiência de cidadania ancorada em

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165165Deus salve a rainha

união política e econômica internacional do planeta. Ainda que inegável a influência de seus valores característicos na constru-ção ali alcançada, Londres queria menos convergência política e cidadania. Queria o mercado. E mesmo ele, sem a moeda. Os britânicos não queriam que a UE se transformasse num super Estado. O permanente e impregnado euroceticismo sempre fez do Reino Unido o causador habitual de importantes obstáculos ao avanço da união entre os países.

O Reino Unido sempre gostou de deixar subentendido que era a voz dos Estados Unidos da América dentro do grupo. Por tal, nunca escapou de desconfiança, por um lado, e zombaria, por outro. O então primeiro-ministro Tony Blair chegou a ser achin-calhado como sendo o poodle de Bush. Entretanto, de fato, a piada atribuída apocrifamente a Kissinger, de que não se sabia para quem ligar quando se queria conversar com o tomador de decisão na Europa, se sustentava apenas, até o momento, em que se ligava para o número 10 de Downing Street. O papel britânico era de ser único na UE e, agora, poderá tentar voltar a ser único no mundo.

Para o Reino Unido, a Europa é sempre vista como terceiros. O continente é uma coisa, a Europa. A ilha é outra, o Reino Unido. A Europa é lugar de férias, de descontração. Entretanto, o orgu-lho de maior colonizador do planeta, que fez a Inglaterra esnobar as futricas continentais e ganhar mundo, espalhando um capita-lismo industrial e financeiro de base filosófica britânica, hoje não deixa de enfrentar uma conjuntura que, esnobar o tumultuado continente, é algo muito perigoso. A Inglaterra fora da União Europeia caminhará para uma posição de influência marginal no mundo. Ricos, felizes e seguros. Todavia, sem dar um pio nos desígnios do planeta. Nova Suíça, nesse novo mundo de propor-ções chinesas. Pode ser isso que a maioria mandou dizer à rainha: o que queremos daqui para frente. Triste sina de um país que é o principal responsável institucional pelo mundo em que vivemos.

É sempre meio vulgar opinar com veemência sobre escolhas feitas em locais onde não se vive o dia a dia. Mas estamos falando da terra dos Beatles, Shakespeare, Jane Austen, Churchill, Dickens, Lady Di, que inundaram nossas vidas, algum dia. Se a política é a arte do possível, a democracia é, entre suas mais importantes manifestações, a que mais anda dissociando a ética da estética. A cara da democracia é fluida. Cada vez mais fluida.

A ferida na unificação europeia é um alerta para quem pres-sente que a dilaceração de um país pode bem ser o início da dilaceração de todos.

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Por que África e brasil precisam se manter unidos?

Silvana Saraiva

Recentemente, a posse de um novo governo no Brasil reacen-deu as discussões sobre algumas das relações comerciais entre o país e os demais blocos econômicos mundiais. Após

especulações sobre cortes em orçamentos, que incluíam o fecha-mento de embaixadas em países africanos e caribenhos, houve uma decisão acertada de recuar em tal estratégia e manter os diálogos já vigentes entre Brasil e África. Decidiu-se que “a polí-tica externa vai ser feita de modo a atender aos interesses do país e não de ideologias e conveniências".

Os negócios hoje entre Brasil e países africanos vão muito além da compaixão, já que os dois são parceiros reais. Se levar-mos em conta o intercâmbio comercial entre os players envolvidos nos últimos dez anos (de 2006 a 2015), assistimos a um incre-mento real de 9%, com crescimento de 10% nas exportações e de 8,1% nas importações, de acordo com dados do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Diante desses dados, entendeu-se, de forma realista, que compensa manter as embaixadas porque isso permite ao Brasil alavancar novas posições e expandir a influên-cia geopolítica nacional.

Além do mais, em um momento no qual o corte de gastos é primordial para o resgate da confiança e para o reaquecimento da economia, um eventual fechamento de embaixadas e realocação ou dispensa de colaboradores geraria custos extras. Na questão econômica, não há muito o que questionar: o Brasil é um país continental e necessita de relações com todo o planeta.

Grande parte da perda que ocorre hoje (-48,6% das importa-ções no primeiro trimestre de 2016) começou durante o primeiro governo Dilma Rousseff e só não foi maior por existir uma política junto ao Itamaraty e ao MRE, em conjunto com o Instituto Feafro. Agora, se esquecermos das políticas públicas voltadas à popula-ção negra, permanecendo da forma como estamos agora, corre-mos o risco de perdermos todo esse trabalho de conquista.

Em seu discurso de posse, o ministro das Relações Exteriores, José Serra, foi categórico: "Nós vamos levar adiante nossa relação

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com a África, não com base em culpas do passado ou em compai-xão, mas sabendo como podemos cooperar também beneficiando o Brasil". É evidente que o titular da pasta está a par da importância geopolítica do continente para a economia do país e vice-versa.

O Instituto Feafro atua desde 2007 como um interlocutor entre os países do bloco africano com o Brasil. Temos hoje o poder de reunir ministros de Relações Exteriores de várias nações africa-nas em prol de manter esse relacionamento vivo e para que os projetos que vêm se realizando nos últimos anos continuem a ser praticados. Nossa luta é para manter algumas das conquistas obtidas durante esse período, sob o risco de que nossos irmãos africanos, que já tinham se acostumado ao fato de estarmos nos relacionando de uma maneira geral, começarem a não encontrar mais esse canal.

Se isso se concretizar, nosso país, que tinha um patamar com potencial internacional enorme, sofrerá prejuízos. Apesar da forte participação brasileira, nações como a Rússia e a China estão presentes no território africano. Por outro lado, com ou sem o Brasil, os africanos continuarão a crescer, pois eles têm petróleo, minério, população e terra fértil para a agricultura.

Se não houver esforços para que essa relação continue, entra-remos em um patamar em que voltaremos a depender dos Esta-dos Unidos e da Europa, que está em um processo de perda de rentabilidade por não mais receber o aporte que recebia da África no passado. Quanto mais um banco africano se fortalece, como vem ocorrendo, mais a Europa sofre perdas. É preciso mudarmos nossa visão internamente ou, em cinco anos, poderemos lamen-tar. Afinal, o Brasil ganhou cadeira na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na Organização das Nações Unidas (ONU) porque os presidentes dos países da União Africana nos elegeram como seus representantes. Não queremos perder essas conquis-tas, mas, na realidade, corremos esse risco.

Para simplificarmos em dois vieses principais essa necessidade de intercâmbio, basta pensarmos que mais de 70% do cacau produ-zido no mundo é oriundo da Costa do Marfim e de Gana, mas quem cuida dessa distribuição é o Parlamento Europeu. Tal ação provo-cou uma disputa, na qual o voto do Brasil seria muito importante para essa conquista da África. Do mesmo modo, 82,5% do petróleo importado pelo Brasil em 2015 foi obtido na União Africana.

Em suma: muitas pessoas que se envolvem em negócios com a África acreditam que vão ficar milionárias, mas não é bem assim;

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pois o mundo hoje é o da sustentabilidade. O que buscamos é gerar recursos para nos sustentarmos. Quando trabalhamos para promover desenvolvimento econômico, criar intercâmbios e fazer com que haja um volume para estudo de relações internacionais e comércio com a África, isso cabe ao nosso instituto, que vem promovendo esse desenvolvimento há quase 12 anos.

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no intervalo de um século

Silvio Queiroz

A decisão dos eleitores britânicos de retirar o país da União Europeia coloca o continente no centro das preocupações de todos os parceiros – não apenas os do bloco em Bruxe-

las. A verdade é que, à parte os "... eventuais efeitos colaterais”, a saída britânica, chamada de Brexit, traduz um sentimento de mal-estar que não se resume ao Reino Unido.

Não apenas os holandeses já se perfilam para fazer o mesmo, sem falar nos franceses, capitaneados pela líder ultradireitista Marine Le Pen. A Escócia contempla repetir, nesse contexto, a consulta popular sobre a independência – agora, tendo como questão de fundo a permanência no bloco, que teve maioria clara na região. Ainda mais delicada é a situação da Irlanda do Norte, onde a maioria católica e pró-UE se vê não apenas constrangida ao status de parte integrante do reino (protestante) com sede em Londres. Na prática, o resultado significa que a divisa com a Irlanda, ao sul, republicana e europeia, passará a ser fronteira fechada separando uma só nação.

Em resumo, deixando de lado os fatores pontuais e imediatos, o resultado chocante do referendo do dia 23 de junho último coloca a Europa – numa compreensão que extrapola a da Europa comunitária em construção desde 1945 – de volta à condição do início do século 20. Com a ironia histórica de que, enquanto a porção ocidental do continente se fragmenta, o polo oposto tende a se consolidar como um século atrás. Em 1917, um século atrás, a revolução socialista liderada por Vladimir. Lênin recolocava a Rússia imperial no cenário europeu e global em novos termos, embora mantivesse, fundamentalmente, a base territorial legada pela monarquia czarista.

Passados 100 anos, enquanto Moscou recompõe, sob Vladi-mir Putin, o império reunido séculos antes por Ivan, o Terrível, os adversários históricos se veem novamente fragmentados. Como nas décadas que precederam a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), a Rússia legada pelos czares desmorona, na Europa Ocidental, ao contrário, o esforço de integração, empenha-se a consolidar-se e a ampliar-se. E, ao contrário de um século atrás,

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170170 Silvio Queiroz

o plano de Moscou segue sendo recompor, paulatinamente, a potência que os sovietes herdaram do czar, um Estado multina-cional que se estendia dos limites da atual Polônia e dos Bálcãs até os limites da Sibéria com o Alasca.

Em resumo, o mapa-múndi retorna aos contornos de um século atrás. Com a diferença de que as fronteiras se redesenham no contexto de um sistema de blocos e alianças que se desman-cha – movimento de sentido exatamente contrário ao observado na virada entre os séculos 19 e 20.

nem pensar

Relembre-se que, horas antes de a tempestade desabar sobre as ilhas britânicas, o Itamaraty promoveu um seminário interna-cional sobre a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, reivindicação antiga dos países que, como o Brasil, se veem como novos protagonistas no cenário global. Durante os debates, que reuniram diplomatas e scholars, a expectativa pelo resultado da consulta era indisfarçável. Mas a ideia de que a União Europeia sofreria a primeira baixa em sete décadas de processo de integração parecia inverossímil.

No marco das discussões sobre o papel do país no processo de construção de uma ordem global multipolar, o governo brasileiro se viu intimado, pelo embaixador da Ucrânia, Rostyglav Thonenko, que cobrou uma definição clara e pública sobre a posição do governo Temer a respeito do conflito entre Kiev e os separatistas do leste do país, apoiados por Moscou.

Falando aos palestrantes e à audiência reunida no Itamaraty, o embaixador Sérgio Moreira Lima, que presidiu o seminário em nome da Fundação Alexandre de Gusmão, o centro de estudos e publicações mantido pelo Ministério de Relações Exteriores, lembrou que a diplomacia brasileira defende a igualdade entre as nações, no concerto do sistema internacional, desde um século atrás. Foi esse, lembrou o diplomata, o tom da intervenção, na época, de personagens ímpares da história do Itamaraty, como o Barão do Rio Branco e Ruy Barbosa, que ganhou a alcunha de Águia de Haia pela defesa dos interesses do país no mais impor-tante foro internacional da época, os primeiros anos do século 20.

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XII. Memória

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Autores

Esther KupermanGraduada em História, mestre em História Social do Brasil, doutora em Ciências Sociais e professora do Mestrado em Práticas de Educação Básica do Colégio Pedro II.

Michel ZaidanHistoriador, professor da Universidade Federal de Pernambuco.

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Da cruz à estrela: a trajetória da Ação Popular Marxista-Leninista

Esther Kuperman

A un banquete se sientam los tiranos, Pero cuando la mano ensangrentada Hunden en el manjar, del mártir muerto Surge una luz que les aterra, flores Grandes como una cruz súbito surgen Y huyen, rojo el hocico, y pavoridos A sus negras entranãs los tiranos.

(Fragmento de “Banquete de Tiranos”,

in: Versos libres, de José Martí-1878-1882)

A organização clandestina denominada Ação Popular Marxista Leninista (APML) surgiu da transformação do grupo de orientação católica, a Ação Popular, em agremia-

ção de diretrizes marxistas. A matriz da APML, a antiga Ação Popular (AP), por sua vez, foi formada em Belo Horizonte (MG), em 1962, a partir de grupos de operários e estudantes ligados à Igreja Católica: a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Estu-dantil Católica (JEC). A existência destes grupos, segundo D. de Moraes, seria uma decorrência da pregação reformista e moder-nizadora do Papa João XXIII e das Encíclicas Mater e Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), que defendiam o ecumenismo e a independência das instituições religiosas em relação aos pode-res estabelecidos (MORAES, 1989, p. 39). Tal orientação esbarra-ria em sérias resistências por parte de alguns setores da própria instituição, que questionavam o envolvimento de seus membros na luta pela reforma agrária e sua aproximação com o que deno-

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minavam de “camadas subalternas” da sociedade brasileira. A hegemonia destes setores conservadores resultou num realinha-mento da Igreja com as classes dominantes que o autor deno-mina de “um olho no terço e outro no fantasma do comunismo” (MORAES, 1989, p. 41), e coincide com o momento em que a AP promoveria sua ruptura com o catolicismo.

Nos primeiros anos da década de 1960, ainda fortemente influenciada pelo ideário humanista cristão, vinculada às estru-turas formadas pela Igreja junto aos movimentos populares, a AP possuía penetração entre operários, camponeses e estudantes, principalmente entre os últimos. Foi da Juventude Estudantil Católica que partiram as primeiras discussões que operaram mudanças políticas e ideológicas e sua transformação em uma organização marxista-leninista.

Tais discussões buscavam definir para a recém surgida AP um perfil político próprio, distante ainda do marxismo, mas apon-tando para a formação de um movimento revolucionário que tivesse por objetivo promover a transformação das estruturas da sociedade brasileira tendo como referencial o socialismo.

Durante os anos 60 a AP era a organização que detinha o maior número de quadros no interior do movimento estudantil, elegendo grande parte dos membros das diretorias da UNE até o golpe de 1964:

Conseguimos unir a esquerda na UNE através de um negócio chamado conchavão. O que havia no movimento estudantil? A JUC, que depois virou AP: a Polop, que era um grupo pequeno, mais à esquerda; o Partido Comunista; e os independentes. O partido, às vezes erradamente, usava a fórmula de colocar simpa-tizantes como independentes e assim ter hegemonia na diretoria. Eram os chamados submarinos. (MORAES, 1989, p. 49)

Após o golpe, a AP, como as demais organizações de esquerda, foi alvo de intensa repressão, tendo muitos de seus quadros presos ou exilados. A necessidade de construir uma nova proposta polí-tica para a esquerda levou os militantes que ainda permaneciam em ação a iniciar um debate sobre a realidade brasileira em busca de novas formas de intervenção. Este novo processo de discussão teve como desdobramento o rompimento definitivo da Ação Popu-lar com a orientação ideológica cristã, e sua definição pelo marxismo-leninismo.

A adoção da orientação marxista-leninista pode ser identifi-cada não só pela nova denominação (APML), como também pela

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busca de definir uma nova estrutura partidária. Esta auto defini-ção como partido identificado com as lutas dos setores populares foi marco significativo na sua história, levando-a para o campo das organizações de esquerda que surgiram a partir do rompi-mento com as análises e as práticas políticas do Partido Comu-nista Brasileiro.

Nos primeiros momentos de seu rompimento com o catoli-cismo, a revolução chinesa e as idéias de Mao Tsé Tung influen-ciaram as análises e propostas de atuação da AP. Sob a ótica maoísta, o Brasil era considerado um país semifeudal, e em decor-rência desta concepção a mudança pretendida para a sociedade brasileira deveria ser iniciada por uma revolução democrática e popular. A aproximação com os trabalhadores do campo era fundamental para a esta estratégia revolucionária, visto que para esta concepção de revolução o campesinato era considerado a força motriz para a transformação da sociedade brasileira. Tais princípios levaram, inclusive, alguns de seus militantes, oriundos das classes médias, a se “proletarizarem”, ou seja, tornarem-se operários ou camponeses, trabalhando em fábricas ou no campo.

Neste momento, a APML se insere no conjunto de organiza-ções, surgidas na década de 1960, que se intitulavam Esquerda Revolucionária e que possuíam em comum a crítica ao reformismo e imobilismo do PCB, dentro desta concepção. Segundo suas análises, este imobilismo teria contribuído para a desarticulação e derrota do movimento popular em 1964. De acordo com Jacob Gorender, um dos fatores decisivos para a ruptura destes setores com o PCB teria sido de ordem teórica: a crítica produzida por Caio Prado Júnior em seu livro A Revolução Brasileira às teses do partido a respeito de uma burguesia nacional anti-imperialista. (GORENDER, 1990, p. 73) Com base nesta nova formulação, começaram a ser repensados por estes grupos de militantes, egressos do PCB, novas estratégias e táticas para revolução no Brasil, táticas estas não mais norteadas por uma aliança com setores da burguesia nacional.

Apesar de afiliada ao conjunto de agremiações que surge neste período em torno de novas concepções de luta política, a APML tinha uma especificidade que a diferenciava das demais organiza-ções: sua origem não era o PCB mas sim a Igreja Católica.

Nesta primeira fase, vão confrontar-se na APML duas propos-tas de ação política. Uma parte dos militantes, influenciada pelas ideias de Régis Debray, passou a defender as teorias foquistas de

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luta política, que apontavam para a mobilização do campo através da formação de focos de guerrilha. Esta forma de atuação passa a identificar setores da APML com os outros grupos de esquerda que propunham a montagem de núcleos de guerrilha como tática de enfrentamento ao regime instaurado após 1964. Segundo Emir. Sader, estes grupos seriam resultantes da crise de caminhos da esquerda no pós 64 e cuja origem seria, em grande parte a crítica ao bolchevismo e ao leninismo. Estes novos grupos sofreriam influência crescente da revolução cubana cujo paradigma de luta foram os focos guerrilheiros (SADER,1991, p. 181). A expressão desta linha política teve seu ponto culminante na participação de militantes da APML no atentado ao Aeroporto dos Guararapes, em Recife, no ano de 1968. Este episódio, ocorrido no dia 25 de julho, tinha por objetivo a eliminação do candidato á Presidência indicado pelos militares, o general Arthur da Costa e Silva, de passagem pelo aeroporto. A explosão não atingiu seu principal alvo, mas resultou na morte de duas pessoas que estavam no local, deixando várias outras feridas.

O episódio de Guararapes desencadeou entre os militantes da APML novos debates em torno das formas de enfrentamento do regime autoritário que se desdobraram no surgimento de uma primeira dissidência. Segundo Gorender, as divergências consistiam na priorização do enfrentamento armado imediato que se contrapu-nha à estratégia de guerra popular prolongada bem como à necessi-dade de construção partidária (GORENDER, 1990, p. 113). Para Antonio O. Silva, a divergência central estava na caracterização da revolução no Brasil. De acordo com este historiador, questionava-se o fato de ser este um país semifeudal. Mas a consequência deste questionamento seria, em última instância o próprio ideário maoísta, em todas as suas decorrências acima mencionadas. Mas, nos primei-ros momentos da discussão, as divergências sobre o caráter da revo-lução brasileira ficariam obscurecidas pela questão da proletariza-ção e da luta militar e as teses maoístas não seriam totalmente abandonadas pelos militantes da APML (SILVA, 1992, p. 132).

O afastamento da direção nacional da esfera de influência cubana e da visão foquista de luta política, bem como suas seve-ras críticas a esse tipo de intervenção, levou à marginalização e ao afastamento dos quadros que defendiam esta forma de luta. Este reduzido grupo de militantes que formou nova organização em 1969: o PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores), parti-dário da luta armada. Afastado da APML, o grupo aproximou-se de outras organizações que possuíam linhas políticas semelhan-

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tes como a Var Palmares e o POC (Partido Operário Comunista), formando com elas a Frente Armada. O PRT esteve organizado até 1971, ano da prisão de seus últimos dirigentes e de sua conse-quente extinção.

Os quadros que permaneceram na APML, mantendo-se dentro da direção política hegemônica buscaram consolidar sua estru-tura. Retomando a linha maoísta, reforçaram o trabalho junto ao campesinato e a opção por uma revolução em etapas. Os documen-tos produzidos neste período estabelecem que no primeiro momento ocorreria a etapa nacionalista, na qual deveria ser feita uma revo-lução democrática, capaz de promover a superação do caráter feudal de nossa sociedade. Apenas depois da realização desta mudança é que viria a segunda etapa: a revolução socialista.

É interessante notar que esta estratégia adotada pela APML possuía algumas semelhanças com a adotada pelo PCB, princi-palmente quanto à superação da estrutura feudal e da etapa democrático-burguesa da revolução. Portanto, apesar de colocar-se no campo das organizações que pautavam sua linha política pela crítica ao PCB, havia uma convergência de entre as duas agremiações, principalmente a respeito da necessidade de alian-ças táticas com setores da burguesia nacional.

A linha política adotada pela APML, nesta nova fase, levou a uma proletarização ainda maior de seus militantes. Esta proleta-rização levaria militantes originários das classes médias a se tornarem operários ou camponeses. Segundo D. A. Reis, esta prática, cuja ética se caracterizaria por uma ação revolucionária ‘a serviço do povo’ recuperaria um predomínio do cristianismo primitivo, principalmente quanto à valorização da humildade, da austeridade e do igualitarismo, reintroduzido na América Latina pela Teologia da Libertação (REIS, 1991, p. 131). Tal afirmação poderia nos levar a uma reflexão sobre os resquícios da influência católica na AP, mesmo depois de seu rompimento com o catoli-cismo. No entanto, a prática da proletarização foi algo recorrente em várias organizações de esquerda no Brasil, independente de sua origem, portanto não se trata de uma especificidade das agre-miações egressas dos quadros da Igreja Católica, o que não pode ser visto como herança ideológica do catolicismo

É deste período a tendência à aproximação da APML com o PCdoB (Partido Comunista do Brasil – dissidência do PCB) que também adotara a linha maoísta. Alguns de seus militantes defendiam, dada a identidade política, a fusão entre os dois parti-

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dos. No entanto, a maioria dos membros da Direção Nacional da APML não aceitou a proposta, optando pela manutenção de uma estrutura própria.

Nos primeiros anos da década de 1970 os militantes da APML estiveram envolvidos em uma intensa luta política interna: A fusão com o PCdoB, defendida por alguns, a incorporação ao MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro), reivindicada por outros, ou a manutenção da autonomia partidária e as primeiras formulações que levariam ao questionamento da influência maoísta e da estratégia de guerra popular. Estas eram algumas das questões apresentadas nos documentos produzidos naquele momento. Em 1972 ocorreria a segunda ruptura, na qual a orga-nização se dividiu em dois campos: aqueles que defendiam a manutenção da orientação maoísta e mais tarde se incorporaram definitivamente ao PCdoB e os militantes que buscavam novas definições programáticas, mantendo-se sob a denominação de APML. O ingresso de ex-militantes da APML no PCdoB, segundo D. A Reis, viria reforçar este último, abalado com a perda de grande número de quadros em decorrência da derrota da Guerri-lha do Araguaia (REIS, 1991, p. 131).

Esta nova dissensão seria bem mais profunda. Grande parte dos militantes saiu da APML e se integrou ao PCdoB. Outros ingressaram no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro). Apenas uma parte, isto é, os militantes que se mantiveram próxi-mos à linha política defendida pela Direção Nacional, manteve-se fiel ao partido. Esta cisão, interrompida apenas pela prisão de alguns militantes, decorreu de um processo de intensa crise interna gerada pelas divergências em torno das linhas políticas.

Ao mesmo tempo em que ocorriam as cisões, cresciam os problemas ligados à organização interna. Tornava-se cada vez mais premente a necessidade de arrecadação de finanças para a sustentação do trabalho político e dos militantes clandestinos ou profissionalizados. A democracia interna e a centralização das decisões eram alvo de intensos questionamentos, conforme apon-tam os documentos produzidos neste período. Mas o processo de proletarização imposto pela concepção de que este seria coerente com a linha política da organização – e portanto necessário – também foram alvo dos mais acalorados debates entre os militan-tes e fonte de inspiração para a maior parte dos documentos produzidos pela APML neste interregno.

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Entre os anos de 1972 e 1973, período de intensa atuação por parte das polícias políticas, a APML, como as demais organizações clandestinas, teve parte de seus militantes presos, sendo alguns, inclusive, assassinados nos porões do regime militar. Entre os desaparecidos encontra-se Paulo Wright, militante que participou intensamente dos debates que se desenvolviam a respeito da reno-vação da política da organização. As prisões despertaram novos debates entre os militantes que não haviam sido detidos, principal-mente a respeito da segurança da estrutura interna e dos dados obtidos pelos órgãos de segurança através dos militantes que haviam sido capturados. Datam deste período alguns documentos que resgatam discussões em torno do comportamento dos militan-tes submetidos a torturas pelas polícias políticas. Estes documen-tos também expressam a profunda crise ideológica pela qual passa-vam os quadros da APML. Também foram presos e assassinados Honestino Guimarães, último presidente da UNE, Humberto Câmara, membro da penúltima diretoria da UNE, Gildo Lacerda, Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier.

Neste período, dado o acirramento da ação dos órgãos de repressão, a APML optou por deslocar os membros da Direção Nacional para o exterior. Alguns dos membros da Direção Nacio-nal foram enviados para o Chile, durante o governo de Salvador Allende para garantir a sua segurança. Muitos dos documentos produzidos com o objetivo de traçar diretrizes para o trabalho político no Brasil foram produzidos naquele país. Com o golpe de 1973 e a derrubada da democracia chilena, alguns militantes retornaram clandestinamente ao Brasil, outros se dirigiram à Europa. A dispersão dos militantes, as dificuldades financeiras e o crescimento das divergências contribuíram para o agravamento dos problemas de organização constatados nos documentos consultados. Neste momento a APML encontrava-se na sua maior crise, e esta crise terá como desdobramentos novas mudanças na linha política e a saída de alguns militantes.

O contato com outros grupos de esquerda, tanto no Brasil quanto no Chile e Europa marcou a retomada do processo de discussão sobre o caráter da sociedade brasileira e a busca de novas formas de intervenção em direção a novas estratégias. Deste processo partiu a iniciativa da reconstrução do partido, tanto do ponto de vista orgânico como ideológico, e a revisão definitiva de sua linha política. Esta revisão teria como ponto de partida o ques-tionamento das diretrizes maoístas. Novas formulações adotadas pela APML após 1973 retomam a proposta de revolução socialista,

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negando a idéia anterior de que haveria uma etapa democrática que antecederia a luta pelo socialismo. Com este perfil, a APML passaria a fazer parte do campo das chamadas organizações de Esquerda Proletária, passando a ser conhecida por AP Socialista. Data deste período a publicação da Revista “Brasil Socialista”, em esforço conjunto com o MR-8 e a Polop (Política Operária), visando promover o debate sobre os problemas da revolução brasileira.

A prática política da APML, com esta mudança, passou a refle-tir as diretrizes do PSB (Programa Socialista para o Brasil), docu-mento formulado pelas organizações da Esquerda Proletária, que concebia o Brasil como país capitalista, no qual a revolução seria construída a partir da organização do proletariado urbano. É importante apontar que esta ruptura representa para a APML uma mudança substancial em suas premissas políticas pois, pela primeira vez, seus documentos criticam a idéia da revolução demo-crático-burguesa. Partindo destes novos pressupostos, a APML adotou como base de sua estratégia a formação de um partido operário – cujo ponto inicial seria a própria estrutura, bem como a luta pelo socialismo e a defesa da ditadura do proletariado.

Dentro desta nova política, os últimos anos da década de 1970 representam para a APML uma renovação no caráter de suas discussões internas, que passam a se realizar em torno das propos-tas para a intervenção do partido no movimento operário. A consulta aos documentos produzidos neste período identifica que a prioridade dos debates consistia em definir o papel das comissões de fábrica, conceber um programa para a formação destas comis-sões e demarcar as palavras de ordem a serem levadas para o movimento. Toda a documentação gerada pela APML neste momento era voltada para a análise da situação dos sindicatos e demonstra a busca de seus militantes por uma política sindical que condu-zisse à organização independente do proletariado. Por outro lado, também reconheciam a importância do movimento estudantil como força auxiliar na luta do proletariado. Neste sentido, entende-se o esforço para ampliar a atuação junto aos estudantes, secun-daristas e universitários, e encontrar propostas de ação de seus militantes junto às entidades estudantis (UNE, UEEs).

Nesta fase, a APML detectou o surgimento de outros tipos de movimentos e organizações: Movimento de Mulheres, Movimento de Bairros, Movimento contra a Carestia. Admitindo a importân-cia destas manifestações, e a necessidade de participar destas lutas, a Direção Nacional, iniciou o debate com a militância, atra-vés dos documentos de circulação interna, sobre as estratégias

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para a unificação destas novas formas de organização popular com o movimento operário e sindical.

É importante ressaltar que em todos os documentos produzi-dos desde o rompimento com o maoísmo até o final da década de 1970, encontramos sempre a afirmação da idéia de que a APML representava para os seus militantes a realização de um partido voltado para os interesses dos trabalhadores e dos setores popu-lares. Tais documentos também se caracterizam pela identifica-ção de seu compromisso com as lutas da classe trabalhadora.

Com o processo de redemocratização política, a retomada das greves operárias e das lutas populares do final dos anos 70 e início da década de 1980 a APML mobilizou seus militantes no sentido de garantir sua presença em cada um destes movimentos e, principalmente, a sua intervenção com o objetivo de assegurar a defesa seu programa de lutas e de suas palavras de ordem.

Através dos textos produzidos pelos militantes nos últimos anos da década de 1970 manifesta-se uma nova preocupação: a necessidade de construir um partido legalizado, que viesse a ser fator de aglutinação das forças políticas que possuíssem o mesmo referencial de lutas e uma identidade ideológica. A formação de uma frente de organizações de esquerda que pudesse atuar na legalidade, possibilitando a intervenção parlamentar passou, então, a se constituir uma questão recorrente nos documentos que informam acerca das discussões internas da APML no período da abertura política.

A anistia política concedida em 1979 proporcionou aos militan-tes que se encontravam no exílio a possibilidade de retorno ao país. Para os que se encontravam na clandestinidade este fato possibilitou o retorno à legalidade bem como a atuação aberta no movimento de massas. A perspectiva de participação na vida política nacional, possibilitada pela volta ao Estado de Direito, favorecia a concretiza-ção da ideia de uma frente unificadora de todas as tendências pertencentes ao campo da esquerda, permitindo visibilidade ao trabalho político que constituía a maior preocupação para todos os militantes da APML. No entendimento destes, a retirada do caráter clandestino e a consequente legalização da luta política ampliaria seu alcance e a sua eficácia. Ainda assim, a APML manteve a sua estrutura orgânica interna independente e clandestina até o início da década de 1980. Mas, durante todo este intervalo, a discussão sobre a importância da organização de uma estrutura legalizada foi

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o principal tema dos debates internos, sendo tema constante em todos os documentos produzidos neste período.

A emergência do Partido dos Trabalhadores contribui para que o projeto de implantação de uma frente de atuação política viesse a ser concretizado. O PT constituiria, assim, a estrutura partidá-ria dentro da legalidade que a maioria dos militantes defendia.

Considerando o PT como a realização deste projeto, os militan-tes da APML iniciaram o debate sobre a viabilidade da dissolução de sua estrutura clandestina, para posterior reunião às demais forças políticas que participavam da organização do Partido dos Trabalhadores. E, deste debate saiu a resolução de que a APML iria se auto dissolver para se incorporar ao novo Partido.

A participação da APML no processo de construção do PT e sua posterior decisão pela dispersão de seus quadros no interior deste partido estão expressos na documentação produzida neste período e representam o último processo de discussão implemen-tado pelos seus militantes, culminando com a extinção da APML.

Referências

Arquivo Ângela Borba – Acervo pertencente ao Serviço de Coleções Particulares do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

Coleção Jair Ferreira de Sá – Acervo pertencente ao Serviço de Coleções Particulares do Arquivo Público do Estado do Rio.

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1990.

KUPERMAN, Esther. Guia das Coleções Particulares. Rio de Janeiro: APERJ, 1994.

MORAES, Denis de. A Esquerda e o Golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

REIS FILHO, Daniel A. A revolução faltou ao encontro – Os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.

______. et all. História do Marxismo no Brasil – O impacto das Revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Unesp, 1993.

SILVA, Antonio Ozaí. História das tendências no Brasil (Origens, cisões e propostas). São Paulo: Proposta, 1987.

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A ruptura indolor – o conceito de crise na história do comunismo brasileiro1

Michel Zaidan

Ganhou corpo, na historiografia do Partido Comunista Brasileiro, a cristalização de um paradigma explicativo da natureza das crises no pensamento e na ação dos comu-

nistas brasileiros. Segundo essa maneira de ver, ao contrário da história dos PCs do resto do mundo, as rupturas ocorridas na linha teórico-política do PCB, posto que sobredeterminadas pelas mudanças havidas no Movimento Comunista Internacional (MCI), dar-se-iam de forma indolor ou incruenta, sem produzir traumas ou violentas comoções nas estruturas partidárias pecebistas. Prova disso seria, por exemplo, a continuidade do “núcleo diri-gente”, a despeito das bruscas mudanças (induzidas de fora) de orientação no partido.

Embora não se possa negar a existência de certas aproxima-ções entre os vários momentos de crise vividos pela história dos comunistas brasileiros, ao longo de seus mais de 80 anos de atua-ção política, é impossível deixar de reconhecer as especificidades de cada crise e o grave equívoco representado pela tese da “ruptura indolor”, cujo principal suposto parece ser o de que, em países como o Brasil, as crises político-ideológicas não passam de um mero epifenômeno, desprovido de raízes nacionais, das grandes crises que se deram no Movimento Comunista Internacional.

É nossa convicção que as rupturas teórico-políticas no Brasil podem não se revestir da grandeza e profundidade das crises no seio do comunismo internacional; contudo, possuem as suas raízes internas e, por isso, estão longe de serem resolvidas incruentamente, por mais “anestésico” que seja “o ato cirúrgico” empregado contra elas.

1 Este artigo foi apresentado originalmente numa das reuniões anuais da Socieda-de Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), na Universidade de São Paulo, em julho de 1984. Recebeu comentários de João Batista Natali, da Folha de S. Paulo, e de Maria Vitória Benevides, na revista Senhor. O ex-deputado Ricardo Zarattini, então filiado ao PCB, reagiu desfavoravelmente às teses aqui apresen-tadas. De todo jeito, quer o autor deixar consignado aqui o seu agradecimento ao professor Raimundo Santos, graças às informações e debates que ajudaram a escrever este texto.

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A propósito dessa discussão, vale lembrar três momentos exemplificativos de ruptura na elaboração teórico-política dos comunistas brasileiros: 1928-1929, 1956-1958 e 1979-83, para ilustrar as recorrências de uma certa política no tratamento da luta interna e o grande equívoco em que se incorre, ao se julgar – um pouco academicamente – como “indolor” a natureza dessas crises entre nós.

Em primeiro lugar, é possível reconhecer, desde logo, em todos esses casos, a presença de uma hermenêutica nacional (revolução democrática pequeno-burguesa, governo nacionalista e democrá-tico, revolução democrática e nacional etc.) no centro da crise.

Em segundo, em todos esses casos, “o grupo dirigente”, iden-tificado com essa hermenêutica (Otávio Brandão, Astrojildo Pereira, Leôncio Basbaum, Agildo Barata, Osvaldo Peralva, Lean-dro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Moisés Vinhas e outros), é marginalizado e aniquilado, politicamente, enquanto fração, dentro do partido.

Terceiro, muitas das teses dessa elaboração nacional são “absorvidas” numa síntese suficientemente ambígua, de modo a acomodar as várias tendências sobreviventes na organização partidária, produzindo-se um texto ininteligível e sem autoria definida, destinado a servir de base às discussões congressuais.

É preciso dizer que esse mecanismo de superação das crises, que nada tem de incruento ou indolor, é comandada por uma lógica de inegável fundo stalinista que privilegia a organização, a máquina partidária, em detrimento da política.

Tal concepção de “fazer política” tem resolvido os grandes impasses teóricos e políticos na trajetória dos comunistas brasi-leiros, transformada numa mesquinha administração da luta interna nos partidos, neutralizando uma tendência com as outras e distanciando-se do curso do desenvolvimento histórico da socie-dade brasileira. Isto foi feito nos anos 80, neutralizando o pres-tismo com o chamado “eurocomunismo”, e mantendo o controle da organização partidária pelos profissionais da máquina.

O pensamento e a política dos comunistas no Brasil não são e não podem ser infensos às crises, posto que estas se constituem muitas vezes a seiva viva da renovação teórica político-partidária da organização. Mas deveriam evitar, de uma vez por todas, o acanhado critério de resolver burocraticamente as dissensões

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internas de suas facções, sob pena de perder a contemporanei-dade da nossa história social e política.

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Já tivemos, mais de uma vez, a oportunidade de chamar a atenção sobre a especificidade da elaboração teórico-política dos comunistas brasileiros, na década de 1920 e para sua relativa subordinação às teses e resoluções oriundas dos diversos congres-sos da Internacional Comunista (IC). Especificidade que estará no epicentro da crise gerada pela grande “tournant” de 1929.

Como se sabe, o eixo dessa elaboração, assentado desde pelo menos 1925, era a teoria da revolução “democrática pequeno-bur-guesa”; cuja principal tarefa seria a conquista das liberdades democráticas para os trabalhadores. E sua principal força motriz era a pequena-burguesia “proletarizada” e “radicalizada”, repre-sentada pelos “tenentes”. Essa teoria se chocaria frontalmente com a orientação estratégica fixada para os PCs da América Latina, pelo Secretariado latino-americano da Internacional Comunista, no VI Congresso da IC, em Moscou.

No contexto dessa estratégia revolucionária, o caráter da revo-lução brasileira seria “democrático-burguês”, de feição anti-impe-rialista. Por consequência, as forças motrizes e suas tarefas sofrem uma mudança: o eixo da aliança dos trabalhadores passa da busca de contatos com a pequena-burguesia urbana e militar “revolucionária” para as massas camponesas, tendo-se em vista a formação de sovietes (de camponeses e operários) antes e depois da revolução. Isto, na perspectiva da criação de uma dualidade de poder. Suas tarefas seriam: a luta anti-imperialista, a reforma agrária, governo operário e camponês etc.

Em verdade, o grande princípio heurístico da teoria brasileira (democrática e pequeno-burguesa) da revolução era mesmo a conjuntura política dos anos 1920 no Brasil: as revoltas “tenentis-tas” do 5 de julho. É preciso esclarecer que, nesse período, o Bureau Sul-Americano da IC não havia ainda se formado ou instalado. A Revolução Chinesa não tinha sido, ainda, derrotada e o imperialismo americano também não era hegemônico. Assim, nesta situação de relativa autonomia político-organizativa, podia o PCB – voluntariamente ou não – produzir uma hermenêutica mais especificamente colada à conjuntura nacional.

Dessa forma, a mudança de linha, no interior do Movimento Comunista Internacional, teria de se dar forçosamente contra

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essa teoria e o núcleo dirigente a ela associado. As críticas à “teoria democrática e pequeno-burguesa da revolução” começa-ram a surgir já no informe apresentado por Jules Humbert-Droz, o responsável pela Seção Latina, “sobre os países da América Latina”. Depois, foram aprofundadas na 1ª Conferência dos Partidos Comunistas latino-americanos, ocorrida em Buenos Aires, com a presença do Humbert-Droz. E aparecem consubs-tanciadas no documento redigido pela Komintern, intitulado “A crise do PCB – Resolução da Internacional Comunista sobre a Questão Brasileira”.

Paralelamente, correm as “démarches” no Brasil para a margi-nalização do antigo “núcleo dirigente” (particularmente de Otávio Brandão e Astrojildo Pereira). Brandão comparece a uma reunião do Secretariado Sul-Americano, em Buenos Aires, e, nessa ocasião, é aniquilado politicamente por Guralski, sucessor de Humbert-Droz. Astrojildo Pereira, prestes a embarcar para o Brasil, pois estava em Moscou, é chamado às pressas a participar de uma reunião para discutir a posição do PCB em face da crise que se avizinhava no Brasil. Produz-se aí a resolução que sacra-menta, sectarizando-a, a brusca mudança de linha do PCB, e a condenação definitiva do antigo “núcleo dirigente”.

De volta ao Brasil, já no início dos anos 30, os membros da antiga direção, identificados como “menchevistas”, “reboquistas” e “pequeno-burgueses”, são destituídos e substituídos por “autên-ticos proletários” de dedicação comprovada à causa do internacio-nalismo proletário. É o PCB ajustado a uma nova teoria (“Revolu-ção burguesa anti-imperialista”) da revolução brasileira. O que o manterá à margem da Revolução de 1930.

As crises posteriores foram analisadas, com muita precisão, pelo historiador e cientista político Raimundo Santos, no livro O Pecebismo inconcluso, e outros artigos e ensaios publicados em revistas e antologia de textos sobre a história do PCB.

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XIII. Resenha

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Autores

Tiago Camarinha LopesEconomista formado pela Goethe Universitat, de Frankfurt, Alemanha, professor da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Goiás.

J. R. Guedes de OliveiraEnsaísta, biógrafo e historiador.

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Dívida: os primeiros 5000 anos

Tiago Camarinha Lopes

Dívida: os primeiros 5000 anos, do antropólogo e ativista social David Graeber, é uma obra de fôlego com identidade própria. Trata-se de um tratado que busca não só descre-

ver historicamente a trajetória das relações de dívidas entre as pessoas, em todas as suas variações e tipificações, mas também de encontrar uma regularidade na mudança dessas relações. Isso indica uma trilha bem demarcada pela tradição da antropologia de Marcel Mauss e Marshall Sahlins (temperada com a vertente em Economia Política chamada mutualismo) que não se apequena na hora de encarar os desafios de se contrapor ao predomínio do economicismo em suas diversas variações. A mensagem é ende-reçada especialmente para todos os leitores sob forte influência dos ensinamentos da área de economia que resistem em levar em consideração as múltiplas dimensões das relações humanas que escapam à lógica da relação social mercadoria. O livro deve também ser visto como um dos resultados intelectuais da Crise de 2008, momento em que as tensões de dívidas foram externaliza-das em uma série de acontecimentos, fazendo com que o questio-namento mais amplo sobre a viabilidade histórica do capitalismo voltasse ao debate.

Um dos principais ataques desenvolvidos por Graeber é dire-cionado contra a versão “oficial” sobre origem do dinheiro, que está intimamente ligada com o “mito do escambo”. O mito faz com que se pense que o dinheiro foi uma invenção deliberada e harmo-niosa, quando na verdade ele teria sido o resultado de uma séria de relações de violência que acabaram criando dois lados muito

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nítidos na relação social normal do mercado. Uma das forças centrais do livro está, assim, relacionada com um problema concreto enfrentado pela massa pobre do mundo atual que parece ser desprezada pela perspectiva economicista rígida: o endivida-mento. Aqui, estar em dívida é como estar preso, porém de uma maneira peculiar. A opressão dessa relação se ajusta às condições variadas de tal forma que ela sempre se volta contra o lado mais fraco da relação. É assim que se abre o livro com um provérbio norte-americano que captura com precisão esse raciocínio: “Se você deve ao banco 100 mil dólares, o banco controla você. Se você deve ao banco 100 milhões de dólares, você controla o banco”. A suposição de que dívidas precisam ser pagas é veementemente contestada por Graeber, que busca demolir pacientemente ao longo de 12 capítulos recheados com uma vastidão de informa-ções empíricas acumuladas pela antropologia a naturalização do contrato entre credor e devedor como o entendemos hoje.

O autor dedica-se inicialmente às confusões e incongruências da relação chamada dívida. Graeber destaca que esse tipo de rela-ção não pode ser pensada fora do tempo e do espaço. Ou seja, o conceito de dívida não pode ser entendido como algo de padrão único, mas como uma relação entre pessoas que varia muito de acordo com a época e a sociedade em questão. Para ele, a dívida referente àquela relação de mercado onde uma das partes é o credor e a outra o devedor de uma quantia exata de dinheiro, bem definida, quantificável até os centavos, em toda sua dinâmica temporal com juros exatos, é apenas uma forma desse tipo de relação entre pessoas.

Depois de ter dedicado o capítulo 1 a explorar essa amplitude da noção de dívida, Graeber se volta ao mito do escambo no capí-tulo 2. Aqui encontramos um estudo sistemático da visão smithiana sobre a origem do dinheiro. Em poucas palavras, Graeber golpeia com força a história popularizada por Adam Smith de que o dinheiro teria emergido a partir do escambo entre pessoas livres num ambiente de paz e cooperação: nada seria mais equivocado do ponto de vista histórico imaginar que existiu uma etapa em que os seres humanos trocavam objetos como se fossem mercadorias completas. Na verdade, a ilusão é tão gritante que Graeber faz questão de demonstrar a partir dos livros-texto de economia que tal etapa sempre é apresentada com o recurso do “suponha que…”. As autoridades em economia exigem que se imagine uma economia de escambo justamente porque não existe material empírico que dê respaldo a este tipo de situação social. Desse modo, o leitor é corre-

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tamente lembrado de que o dinheiro não emerge de um processo espontâneo apenas, mas da interação desse processo com o forta-lecimento do Estado, que acompanha toda a evolução e fortaleci-mento da entidade dinheiro. Com isso, quebra-se com o senso comum superficial de que o dinheiro nasceu em um contexto de ausência de violência. Além disso, percebe-se que o dinheiro também não deve ser conceituado a partir da objetificação dos elementos transacionadas, mas sim da interação entre os partici-pantes, que registram suas relações em distintos sistemas de contabilidade ou crédito, fazendo com que Graeber conclua que “nós não começamos com o escambo e depois passamos pela desco-berta do dinheiro, até chegarmos ao desenvolvimento dos sistemas de crédito, mas sim o contrário. O que hoje chamamos de moeda virtual veio primeiro.” (GRAEBER, 2016, p. 57).

Por que então o mito da origem idílica do dinheiro permanece? Para Graeber, a explicação está no fato de que ele é central para todo o discurso da economia. Os capítulos 3 e 4 contam, portanto, uma história diferente das dívidas, onde as relações humanas criam e destroem posições de obrigação e servidão a partir de diferentes justificativas extra-mundanas. A intenção, em contra-posição com o discurso tradicional da economia, é mostrar que o tipo de dívida predominante em nossa sociedade é específico: somente em certo contexto a relação de dívida adquire as caracte-rísticas normais da mercadoria (mercadoria na acepção de Marx). Ou seja, não é em todo e qualquer ambiente social que se pode medir com precisão o montante devido (determinação inambígua da quantidade) ou transacionar o próprio contrato, trocando de lugar as pessoas ligadas ao mesmo.

Graeber parte do princípio da dívida primordial, a noção de que todo indivíduo vem ao mundo com uma “dívida” com o universo, uma “dívida de vida” que jamais pode ser quitada. Essa é outra característica marcante do tipo de dívida não-comercial que é abordado nessa parte do livro. Somente na estrutura social de mercado pleno é que surge a possibilidade de as pessoas romperem com suas relações dadivosas que se reproduzem inde-finidamente numa teia infinita de obrigações: ali, os agentes podem quitar todas as relações, entrando assim em um status de completa isenção em relação a todos os outros. Há alguma dúvida de que esse é o agente econômico burguês em estado de equilíbrio entre as posições de credor e devedor e envolto na névoa do feti-chismo da mercadoria? Esse é um ponto de partida interessante

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para indagar porque a ilusão isolacionista é tão marcante na sociedade de mercado.

O capítulo 5 contém o que poderíamos chamar de núcleo duro do livro, onde Graeber busca organizar seu sistema teórico usado para dar sentido à vastidão dos dados empíricos sobre as relações de dívida. Para ele, toda formação social se baseia em três tipos fundamentais de relações econômicas de ordem moral: comu-nismo, hierarquia e troca.

Comunismo e troca seriam sistemas de relações econômicas em que rege o princípio da reciprocidade. Mas enquanto o primeiro é enquadrado na categoria de reciprocidade ampla (que remete à ideia de reciprocidade generalizada de Marcel Mauss e Marshall Sahlins (GRAEBER, 2016, p. 524), o segundo está circunscrito à categoria de reciprocidade estreita. O ponto em comum, portanto, entre comunismo e troca é que nos dois casos as pessoas são iguais no sentido de escala hierárquica. Onde reside, então, a diferença entre estes dois tipos fundamentais de relações econô-micas de ordem moral? Acredito que podemos pensar no sentido de ligação entre os pontos do sistema social: enquanto no comu-nismo as ligações são de um ponto com todo o conjunto, quer dizer, com a totalidade da sociedade, na troca as ligações são do tipo peer-to-peer, um tipo de conexão que identifica sem ambigui-dade o par em cada relação de transação. Assim, neste segundo tipo, temos o nexo de troca mais parecido com aquilo que os economistas chamam de mercado: troca entre duas partes que tende ao “equivalente” no sentido de “quitar” a relação crédito-débito, mas que também contempla a dádiva e as trocas “desequi-libradas”. O principal é que, neste caso, a relação entre os agentes pode ser virtualmente eliminada. Um agente “A” que não deve nada a um agente “B”, mas que também não é credor desse agente “B”, se imagina completamente livre de relações com esse agente “B”. Os nexos sociais se esvaziam nesse tipo de relações econômi-cas. Não é isso o que ocorre com o tipo de relações chamadas comunismo. Aqui, o princípio moral norteador das relações sociais é o certeiro enunciado “De cada um de acordo com sua capaci-dade, para cada um de acordo com sua necessidade”. O desequi-líbrio aqui nunca é imposto a uma das duas partes de um contrato, pois a relação do indivíduo é direta com a totalidade da sociedade. A reciprocidade existe tanto no tipo comunismo quanto no tipo troca, mas enquanto no primeiro a igualdade é real (no sentido de que os membros nunca entram na relação devedor-credor com outro membro em particular, mas com toda a coletividade) e

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nunca pode ser desfeita (a não ser que o indivíduo abandone de fato a comuna), no tipo troca a igualdade é formal. Neste segundo caso a assimetria de poder entre devedor e credor sempre recai sobre um par específico de agentes e não é distribuído por todo o organismo social.

Em oposição à reciprocidade, há ainda a hierarquia. Aqui as pessoas são de fato desiguais, estando em castas distintas. Neste caso, as relações de obrigação e prestação de serviços embutidas no conceito amplo de dívida, quando conectam pessoas de degraus distintos, não podem ser liquidadas. Além disso, Grae-ber destaca que essa modalidade indica um dos passos rumo à criação de um Estado dentro de uma lógica própria de financia-mento dessa estrutura.

Nos capítulos seguintes do livro (6, 7 e 8) Graeber busca tratar das transições entre estes três tipos de relações econômicas de ordem moral. O aspecto mais interessante da continuação dessa análise é que Graeber, apesar de mostrar curiosidade em um eventual padrão regular que explicite como e por que as forma-ções sociais alteram suas normas econômicas, não se perde na busca por uma resposta final fechada para isso que seria uma “teoria total da história”. Na realidade, o conceito de economia humana aparece como maneira de explicitar que a variedade de formações sociais é muito extensa, o que ajuda o leitor a captar a dinâmica fluída tão cara às tradições de investigação das ciências sociais que são altamente aversa às aproximações com as ciên-cias naturais enquadradas na filosofia iluminista como guia para o estudo do fenômeno humano.

Na reta final, o livro aborda cronologicamente a história da dívida, que também pode ser lida como a história daquilo que os economistas chamam de sistema financeiro. Nos momentos iniciais da Crise de 2008, difundiu-se a noção do abalo de alto a baixo do sistema econômico capitalista, como se o evento tivesse uma repercussão histórica gigantesca. Graeber buscou capturar esse sentido da crise ampliando sua análise histórica o máximo possível. É daí que vem a magnitude do livro e do recorte tempo-ral: cinco milênios de história econômica dividida em quatro etapas: a Idade Axial (800 a.C. – 600 d.C) (cap. 9), a Idade Média (600 d.C – 1450 d.C.) (cap. 10), a Idade dos Grandes Impérios Capitalistas (1450 d.C. – 1971 d.C.) (cap. 11) e a etapa atual do sistema econômico iniciado com o fim do padrão ouro-dólar em 1971 (cap. 12).

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Esse ciclo final do livro deve interessar mais aos historiadores e economistas. Tendo como pano de fundo a base metodológica e os dados empíricos expostos, Graeber identifica um padrão comum ao longo dessas quatro etapas: o processo de cunhagem é monopoli-zado pelo Estado a partir de ações de violência organizada em um ciclo de financiamento de guerreiros (exército) cujo propósito é a pilhagem e a conquista. O resultado do sucesso dessa empreitada é então distribuído em um processo de continuação da expansão, não só territorial, mas justamente do mercado. Tem-se assim uma demonstração rica em detalhes sobre como, historicamente, o mercado e o Estado se originam em uma espiral de determinação recíproca cujo avanço culmina nos Grandes Impérios Capitalistas que conhecemos do enfoque histórico eurocêntrico.

Por fim, ao analisar a etapa atual, quer dizer, o sistema finan-ceiro pós-Bretton Woods, percebem-se pontos de fraqueza que brotam da audácia do autor. Comparativamente, enquanto a parte estritamente histórica é de uma riqueza impressionante, as tenta-tivas de elaboração teórica são muito mais frágeis. A unidade entre o lógico e o histórico na compreensão do capitalismo como sistema econômico não é algo trivial de ser construído. Ainda assim, a conclusão de Graeber é altamente coerente tendo em vista sua posição filosófica e política. A antropologia, como ele mesmo explica, tem grandes receios com as tentativas de genera-lizações teóricas que abarquem um conjunto muito grande de sociedades humanas. Graeber não se intimida com isso, o que é altamente salutar, visto que tal manobra é justamente o que permite ele sair da esfera segura de sua área de formação e abrir um diálogo sincero com a teoria e a história econômica. Por outro lado, o impasse teórico não se expressa em uma saída robusta para a crise. Não se encontra nem uma proposta de reforma, nem uma indicação de revolução organizada. Graeber se refugia na rebelião moral contra a dívida que, aparentemente, deveria partir dos indivíduos afetados negativamente por essa relação social. O retorno ao enfoque moralista expressa os limites da abordagem, mas também é, de certa maneira, um de seus aspectos progressi-tas: diante do fato de que os seres humanos insistem em despen-der seus recursos na construção de relações sociais de afeto, amor, amizade, etc., não seria o capitalismo que estaria fora de lugar? Graeber põe a questão correta ao inverter o primado de determinação de nossas vidas: ao invés dela existir para servir uma lógica econômica tal, devemos impor ao sistema econômico os valores do humanismo que remontaria àquela ideia previa-mente desenvolvida de comunismo intrínseco.

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Existem muitos outros pontos relevantes na obra omitidos aqui. Qualquer síntese de uma obra tão extensa com densidade razoável seria limitada. Contudo, uma coisa é certa: o livro de Graeber aborda o momento atual de crise de uma maneira diver-sificada e aberta o suficiente para atrair interessados de variados matizes a questionarem a inevitabilidade e eternidade do capita-lismo. Talvez Graeber não goste da força de expressão, mas, nesse caso, não seria despropositado dizer que estes potenciais leitores estão em débito com ele.

Sobre a obra: Dívida: os primeiros 5000 anos, de David Grae-ber. São Paulo: Três Estrelas, 2016. 702 páginas.

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Escritos em guardanapos

J. R. Guedes de Oliveira

Detenho-me na leitura do feixe de poesias e algumas reflexões, com o título de Anônima intimidade, do tiete-ense Michel Temer. Aliás, político-poeta, poeta-político –

se aprofundarmos em suas lições de vida chegada do interior e conquistando o respeito e o interesse pela sua trajetória de luta e sacrifícios, constataremos que se na arte política ele se consagra mais ainda, na arte poética tem o seu completo êxito.

Recordo-me dos bons tempos da Faditu (Faculdade de Direito de Itu), onde ele foi ilustre professor de Direito Constitucional e, mais tarde, seu exemplar diretor. A mim coube entregar-lhe um mimo, em festividade dos 30 anos da instituição, fazendo-lhe uma breve saudação, pelo que ele representou e representa ao Direito.

Mas este livro, composto de poesias feitas em guardanapos (como ele mesmo descreve, entre voos de Brasília a São Paulo porque de São Paulo a Brasília via-se cheio de projetos políticos) só veio à lume pela insistência de amigos mais íntimos, tal foi a retidão do autor em saber se realmente a sua verve poética tinha algo de mensagem aos seus conhecidos, leitores e admiradores.

Pois bem, sua obra poética tem algo de retrospectiva de vida, de uma sensibilidade artística e reminiscentista. Não são argu-mentações de quem o cerca a todo instante. Pelo contrário, depois de termos deixado a Faditu, tanto ele como eu, não tive mais qualquer contato com o querido e respeitado professor dr. Michel Miguel Elias Temer Lulia.

Muitas passagens, em seus versos profundos, reportam-me, também, ao passado. Lembra muitas vidas-vividas, na garra do trabalho, no aconchego de imigrantes libaneses que aportaram e fizeram história nesta nossa terra.

O próprio autor, como que explicando o seu livro e o seu retorno ao passado que já se fazem presentes algo em torno de 50/60 anos, assim diz: “Tenho guardanapos de papel arquivados. Foi neles, nas viagens aéreas Brasília-São Paulo, que escrevi os poemas que estão neste livro. Deixava a arena árida da política legislativa e me entregava, durante o voo, a pensamentos. Eles se

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descolavam da minha mente e colavam no papel. Ao fazê-lo, sentia-me recuperado. Cada escrito representava o meu interior se exteriorizando. E me davam a sensação de retorno aos meus 15/16 anos, época em que sonhava ser escritor. A vida encami-nhou-me para outros destinos. A advocacia, o magistério univer-sitário e, a seguir, a vida pública, permitiram-me escrever apenas livros técnicos. Escrevi estes escritos para mim. Era um sonho meu que não se realizava para que terceiros soubessem dele. Sonhava comigo para mim mesmo”.

Surpreende-me sobremaneira o artista que fala sobre os seus, sobre sua vida, sobre um passado não muito distante, sobre o futuro, sobre o amor, sobre a pessoa comum. Detenho-me, entretanto, num poema que me toca, com o título de “Tamer”. Nele, Michel Temer apresenta o seu coração, a sua alma – o seu âmago, enfim.

No poema “A Caneta”, apresenta um gesto de recordação dos velhos tempos ginasianos. Esplêndido. Diz ele, a respeito da “Caneta Parker”. Recordo, também, possuir uma – a 21 (com enorme sacrifício). A 51, nem pensar, na época, em adquirir, pelo altíssimo preço. Usava tinta azul lavável.

Outro poema que diz muito da vida juvenil, leva o título ao livro. “Anônima intimidade” representa, na essência, o correio elegante das festas de quermesses: Santa Cruz, Santo Antônio, São João, São Pedro e outros do nosso interior. Versos, em forma de estrofes, que se mandava ou recebia de alguém. Anônima inti-midade, por certo, que circulava entre tantas pessoas. E não se sabia de quem vinha. Se o mandava, esperava um retorno, quem sabe um cartãozinho que, muitas vezes perfumados, nos embeve-cia. O autor, assim concretiza a pequena mensagem poética: “Era uma intimidade aquele anonimato./ Depois, você caminhava para a sua casa, para seu quarto./ E dormia inebriado pelas palavras e pelo perfume/ Que o correio elegante trazia.”

Na página 140 do livro, leio dois versos apenas do “Pensa-mento“, eternizado e sincopado: “Um homem sem causa/ Nada causa”. Encerra uma verdade. A causa e o efeito dos que não cruzaram os braços, mas se deram a fazer, mesmo com desacer-tos que são naturais em quem não “passou em brancas nuvens”. Michel Temer poetou e, mais ainda, filosofou.

Entrecortando os poemas, Anônima intimidade nos traz prosas que servem de reflexões. Entusiasmam-me estes recortes, pelo que nos remetem a um passado, projetando o futuro.

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O irretocável prefácio do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, de modo amplo, enaltece estas quali-dades indiscutíveis de Michel Temer. Não poderia ser diferente, pelo que um e outro representa no contexto do país. E, em forma de enaltecer dotes inegáveis, o prefaciador assim diz: “Bem dife-rentes, os escritos que se põem como objeto desta nossa vista d´olhos procedem do hemisfério direito do cérebro dele próprio, Michel Temer, que não é senão o dominante lado do sentimento. Sentimento que é fonte de uma outra espécie de energia vital: aquela que nos faz contemplativos e disponíveis para tudo que se manifeste em nossa interioridade e também do nosso lado de fora, de parelha com os estados d´alma que atendem pelos nomes de intuição, sensitividade, imaginação criativa, percepção (que não se confunde com reflexão), coragem para sermos nós mesmos e, portanto, originais”.

E segue, em conclusão, o prefaciador: “Mais ainda, é o político partidário que não deixou morrer o jurista que nele coabita, assim como esse mesmo jurista não deixou que sua inteligência racional embotasse a sua inteligência emocional e, por desdobramento, a sua inteligência espiritual (que prefiro chamar de consciencial). Que ele venha para tomar o merecido assento na irmandade dos que fazem da palavra escrita um hino de louvor à estética e a mais santa reverência ao humanismo”.

Na contracapa, as rápidas pinceladas do Gaudêncio Torquato que assim se expressa sobre a obra: “Autenticidade. Há uma profu-são de pensamentos que têm valor para aqueles que os pensam, como lembra Schopenhauer, mas apenas alguns possuem força para conquistar o interesse do leitor depois de escritos. São os mais verdadeiros, extraídos de percepções sobre pessoas, atos e coisas, e ganham vida pela forma como são apresentados. Seu valor reside essencialmente no estilo, que retrata a alma do escritor”.

E adianta, ainda, Torquato: “Tal a moldura que cerca os poemas de Anônima intimidade. Tive o privilégio de conhecer a obra quando ainda era um conjunto de rabiscos em guardanapos de avião. Michel, receoso de mostrá-los, pouco a pouco foi se acos-tumando a ideia de torná-los públicos. Autêntica, concisa, plena de agudas percepções, essa harmônica coletânea conduz o leitor a uma viagem profunda ao seu interior”.

Conta-nos o escritor Edgard Cavalheiro, em seu livro O Cântico do Calvário, que o grande poeta Fagundes Varela, como um eremita às garras com uma capa espanhola e no anonimato,

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esteve em Tietê, em verdadeiro cruzeiro pela província. Talvez colhendo, dessa sua peregrinação, subsídios/fluídos para os seus poemas. Por certo, espalho também estes seus fluídos. Penso, até que estes chegaram até ao nosso querido Michel Temer, entre outros tantos que honraram e honram a velha e histórica Tietê.

A obra é magnificamente ilustrada por Ciro Fernandes. Só se espera que o autor, político-poeta, poeta-político, tenha tantos outros guardanapos guardados ou para serem escritos – que servirão, sempre, para a leitura e deleite de todos.

Sobre a obra: Anônima intimidade, de Michel Temer. São Paulo: Topbooks, 2015, 3. ed., 164p.

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