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A trajetória de Lukács no marxismo É conhecida a influência do pensamento de Lukács sobre o marxismo brasileiro, e tal influência não é casual. De fato, o filósofo húngaro enfrentou alguns dos problemas teóricos mais importantes de sua época com grande lucidez, e se talvez não se tenha destacado especialmente pela originalidade, o fez sim pelo rigor teórico e a fidelidade a seus mestres no marxismo. Nesta breve nota político-biográfica 1 queremos repor algumas das contradições principais que obscurecem, aqui e ali, esse mesmo rigor, a fim de que possamos separar o joio do trigo, e desfrutar de seu pensamento alertas para suas contradições constitutivas. A primeira dessas contradições, e principal do ponto de vista do conjunto de sua vida e obra, é certamente a sua relação com o stalinismo. Para encará-la, é preciso que nos antecipemos à crítica fácil, proveniente dos defensores cegos de Lukács, que insistem em separá-lo completamente do stalinismo, e inclusive em opor a ambos frontalmente. Sobre isso, vale notar que, na maioria das vezes, tal intento reduz-se à confusão entre, de um lado, o papel de legitimação da burocracia frente às grandes decisões históricas do século (papel este desempenhado, sim, por Lukács) e, de outro lado, o que seria a vulgar defesa da escolástica stalinista, ao estilo do “cientista” Bogdanov e do “esteta” Zhdanov. No entanto, há uma grande distância entre uma e outra dessas atitudes. No caso de Lukács, o auxílio que ele prestou a Stalin, e mais tarde a seus continuadores, está precisamente no distanciamento de suas posições filosóficas com respeito à paupérrima doutrina oficial daqueles. Por isso, uma crítica a Lukács elaborada a partir de uma perspectiva de esquerda, militante e revolucionária, se faz necessária, até porque as críticas ao autor húngaro foram formuladas, até hoje, em sua maioria pela direita; quer seja de um ponto de vista diretamente liberal, quer seja a partir de um marxismo meramente acadêmico, sem vinculação prática. Desde Adorno e todas as suas refrações no marxismo acadêmico, e com novo fôlego a partir da crítica dos “renegados lukacsianos” da chamada Escola de Budapeste 2 , a crítica a Lukács não raro se ateve aos pontos onde este foi, ou tentou ser marxista. São críticas que desembocam invariavelmente na negação da política revolucionária, do papel histórico do proletariado, do marxismo como doutrina militante. Muito se falou dos “limites” e “prejuízos” causados à obra lukacsiana por sua “insistência” em atrelar-se à política e ao movimento operário, ao invés de se questionar sobre os seus alinhamentos no interior deste último. No entanto, apenas este questionamento é que pode apontar uma via fecunda para a crítica. Em nossas investigações, constatamos que sobretudo é preciso dar razão a Lukács quando afirma que “minha vida forma uma seqüência lógica. Acho que no meu desenvolvimento não há elementos inorgânicos” 3 . 1 A presente nota sintetiza vários argumentos presentes no artigo “Lukács e o stalinismo”, publicado na revista Iskra no. 1, novembro de 2008. 2 Círculo de seus discípulos mais próximos, encabeçados por Agnes Heller. Os membros da chamada Escola de Budapeste passaram a criticar Lukács após sua morte, alinhando-se com o bloco liberal ocidental liderado pelos EUA. 3 Cf. Pensamento Vivido. Autobiografia em diálogo. Estudos e Edições Ad Hominem/ Editora UFV. 1999.

Trayectoria de Lukacs en El Marxismo

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Trayectoria de Lukacs en El Marxismo

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  • A trajetria de Lukcs no marxismo

    conhecida a influncia do pensamento de Lukcs sobre o marxismo brasileiro, e tal influncia no casual. De fato, o filsofo hngaro enfrentou alguns dos problemas tericos mais importantes de sua poca com grande lucidez, e se talvez no se tenha destacado especialmente pela originalidade, o fez sim pelo rigor terico e a fidelidade a seus mestres no marxismo. Nesta breve nota poltico-biogrfica1 queremos repor algumas das contradies principais que obscurecem, aqui e ali, esse mesmo rigor, a fim de que possamos separar o joio do trigo, e desfrutar de seu pensamento alertas para suas contradies constitutivas.

    A primeira dessas contradies, e principal do ponto de vista do conjunto de sua vida e obra, certamente a sua relao com o stalinismo. Para encar-la, preciso que nos antecipemos crtica fcil, proveniente dos defensores cegos de Lukcs, que insistem em separ-lo completamente do stalinismo, e inclusive em opor a ambos frontalmente. Sobre isso, vale notar que, na maioria das vezes, tal intento reduz-se confuso entre, de um lado, o papel de legitimao da burocracia frente s grandes decises histricas do sculo (papel este desempenhado, sim, por Lukcs) e, de outro lado, o que seria a vulgar defesa da escolstica stalinista, ao estilo do cientista Bogdanov e do esteta Zhdanov. No entanto, h uma grande distncia entre uma e outra dessas atitudes. No caso de Lukcs, o auxlio que ele prestou a Stalin, e mais tarde a seus continuadores, est precisamente no distanciamento de suas posies filosficas com respeito pauprrima doutrina oficial daqueles.

    Por isso, uma crtica a Lukcs elaborada a partir de uma perspectiva de esquerda, militante e revolucionria, se faz necessria, at porque as crticas ao autor hngaro foram formuladas, at hoje, em sua maioria pela direita; quer seja de um ponto de vista diretamente liberal, quer seja a partir de um marxismo meramente acadmico, sem vinculao prtica. Desde Adorno e todas as suas refraes no marxismo acadmico, e com novo flego a partir da crtica dos renegados lukacsianos da chamada Escola de Budapeste2, a crtica a Lukcs no raro se ateve aos pontos onde este foi, ou tentou ser marxista. So crticas que desembocam invariavelmente na negao da poltica revolucionria, do papel histrico do proletariado, do marxismo como doutrina militante. Muito se falou dos limites e prejuzos causados obra lukacsiana por sua insistncia em atrelar-se poltica e ao movimento operrio, ao invs de se questionar sobre os seus alinhamentos no interior deste ltimo.

    No entanto, apenas este questionamento que pode apontar uma via fecunda para a crtica. Em nossas investigaes, constatamos que sobretudo preciso dar razo a Lukcs quando afirma que minha vida forma uma seqncia lgica. Acho que no meu desenvolvimento no h elementos inorgnicos3.

    1 A presente nota sintetiza vrios argumentos presentes no artigo Lukcs e o stalinismo, publicado na

    revista Iskra no. 1, novembro de 2008. 2 Crculo de seus discpulos mais prximos, encabeados por Agnes Heller. Os membros da chamada Escola

    de Budapeste passaram a criticar Lukcs aps sua morte, alinhando-se com o bloco liberal ocidental liderado pelos EUA. 3 Cf. Pensamento Vivido. Autobiografia em dilogo. Estudos e Edies Ad Hominem/ Editora UFV. 1999.

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    Por isso indispensvel tom-lo em suas contradies, porm de nenhum modo tratar a relao de Lukcs com o stalinismo como um tabu, ou ento como um mero apndice em sua obra e sua biografia, extirpvel sem maiores conseqncias.

    Para isso, ser preciso comear do incio.

    Da juventude adeso ao marxismo

    Lukcs nasceu em Budapeste no ano 1885. Seu pai era um prspero dirigente da principal instituio bancria da Hungria. Dedicando-se desde a juventude ao estudo das artes e da literatura, e pouco mais tarde da filosofia, Lukcs chega a ser um intelectual reconhecido internacionalmente antes de tornar-se marxista. Entre suas principais obras do perodo, destacam-se provavelmente A alma e as formas de 1910 e a Teoria do romance de 1916. Apenas tardiamente, passado dos trinta anos de idade, que Lukcs, sob o impacto da revoluo socialista na Rssia, adere ao marxismo, pouco antes da revoluo hngara de 19194.

    Em suas prprias palavras, tal era a concepo bsica de Lukcs at a revoluo russa de outubro de 1917, e mesmo algum tempo depois: considerava a filosofia materialista sem distinguir aqui o materialismo dialtico do mecanicista, completamente superada, enquanto teoria do conhecimento. Aceitava a tese neokantiana da imanncia da conscincia a qual se ajustava perfeitamente minha posio de classe na poca (isto , burguesa). Se ao mesmo tempo mantinha uma constante suspeita frente ao extremado idealismo subjetivo, isso no entanto no conduzia a concluses materialistas, levando-me muito mais a uma aproximao com aquelas escolas filosficas que queriam resolver este problema de forma irracionalista e relativista e, at muitas vezes, mstica (Wickelband-Rickert, Simmel, Dilthey). A filosofia do dinheiro de Simmel e os escritos sobre o protestantismo de Max Weber foram os meus modelos para uma sociologia da literatura, na qual os elementos derivados de Marx estavam mais uma vez presentes, mas to diludos e empalidecidos que eram quase irreconhecveis. Posteriormente este idealismo subjetivo me conduziu a uma crise filosfica cujo pano de fundo sem que de imediato eu o soubesse eram as contradies imperialistas e sua ecloso na guerra mundial uma crise que se manifestou primeiro apenas na minha passagem do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo, ou seja, da esfera de influncia da orientao neokantiana ento em voga para a da filosofia de Hegel e em particular sua Fenomenologia do Esprito.

    As revolues de 1917 e 1918 surpreenderam-me no bojo dessa efervescncia ideolgica. Em dezembro de 1918, depois de breve hesitao, entrei no Partido Comunista Hngaro. Detenhamo-nos aqui por um momento: o que fazia Lukcs, um intelectual que j havia condenado o desenvolvimento capitalista ocidental como via para o progresso da humanidade, a quem a guerra mundial havia lanado numa profunda crise existencial, hesitar em aceitar a revoluo russa como caminho alternativo? A resposta est em um texto elaborado exatamente em novembro de 1918, chamado O bolchevismo como problema moral. Nele, v no bolchevismo uma espcie de filosofia prtica maquiavlica, sob o lema de os fins justificam os meios. Para Lukcs, a vitria bolchevique colocava um grave dilema para toda a intelectualidade europia: possvel

    4 Lukcs no possua, portanto, experincia revolucionria anterior quando de sua nomeao para ministro da

    cultura na breve Repblica Sovitica Hngara. A sobrevalorizao dessa sua experincia prtica foi diversas vezes desmentida por ele mesmo.

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    (ou moralmente defensvel) buscar fins justos a partir de meios injustos?. A hesitao continha grande densidade moral. Frente a essa pergunta, posta assim em termos metafsicos, em novembro de 1918 ele ainda respondia simplesmente que no5.

    Um ms depois, quando resolve aderir, no porque tenha superado essa falsa colocao do problema. Logo veremos as implicaes deste fato.

    Voltando a seu primeiro esboo autobiogrfico 6 , segue o autor hngaro: As experincias da revoluo hngara mostraram-me claramente a fragilidade de todas as teorias sindicalistas (a funo do partido na Revoluo) mas persistiu em mim, ao longo dos anos, um subjetivismo ultra-esquerdista (por exemplo, minha posio nos debates em 1920, sobre a ao parlamentar, e a minha atitude em relao ao movimento de maro de 1921).... A famosa obra, Histria e Conscincia de Classe, coletnea de ensaios concluda em 1923, seria ento a sua grande obra de transio ao marxismo, ainda contendo problemas decisivos da dialtica resolvidos de maneira idealista.

    Bem de acordo com seu momento de transio terica, e com o grande mpeto que assumiu nele o combate em defesa dos bolcheviques dirigidos por Lnin, contra seus adversrios no movimento operrio, a obra, assim como outros trabalhos do perodo, apresentava uma espcie de marxismo hegelianizado, profundamente otimista com o desenvolvimento da revoluo mundial. Com essa viso Lukcs turbinou, durante esses importantes anos de transio (1919-1924), uma violenta crtica aos tericos social-democratas e mencheviques, e sua tendncia inefvel ao evolucionismo, ao positivismo, etc. Mas o certo que Lukcs ainda digeria a crtica leninista a seu ultra-esquerdismo, somada s derrotas da revoluo na Europa central, quando a morte de Lnin subitamente o priva de seu principal referencial terico e prtico.

    Porm enquanto Lnin morreu combatendo o aparelho central (tanto o burocratismo que, nutrindo-se do atraso, crescia por todos os poros, como a prpria figura do secretrio geral Stalin) e alertando contra os enormes perigos de direita gerados inevitavelmente pela NEP... Lukcs retm da ltima fase apenas o combate contra a ultra-esquerda (que lhe atingira diretamente). A combinao entre, de um lado, o no compreender a nova fase em que havia entrado a revoluo russa, agora isolada internacionalmente (aps o novo fracasso da revoluo alem em 1923) e tendo que arcar com o peso da reconstruo partindo de runas, e, de outro, o atribuir ao bolchevismo a falsa moral que apontamos acima, leva Lukcs a fazer de sua adeso ao movimento comunista um pacto faustiano com o demnio, que o deixa cego aos desvios da direo stalinista que logo se consolida.

    Sem poder aprofundar nesta questo aqui, deixemos apenas indicado que o falso dilema em que Lukcs se enredava em fins de 1918, e que em nossa opinio cobrou um preo to alto em suas tomadas de posio posteriores, obteve uma clara resposta marxista no ensaio de Trotsky A moral deles e a nossa7.

    5 Vejamos a argumentao de Lukcs: Repito: o bolchevismo baseia-se sobre a seguinte hiptese metafsica:

    o bem pode surgir do mal, e possvel (...) chegar verdade mentindo. O autor destas linhas incapaz de partilhar essa f, e isto porque v um dilema moral insolvel na raiz mesma da atitude bolchevique. Cf. O bolchevismo como problema moral, includo no apndice de A evoluo poltica de Lukcs, 1909-1929, de Michael Lwy, Cortez Editora, 1998. 6 Todas as citaes deste trecho, a menos de indicao em contrrio, so tiradas de Meu caminho para Marx,

    de 1933. O texto foi includo na coletnea Marx Hoje, organizada por Jos Chasin, Editora Ensaio, 1983. 7 Edies brasileiras: Moral e Revoluo, Paz e Terra; Questes do modo de vida/A moral deles e a nossa, Ed.

    Sundermann.

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    O refluxo da mar revolucionria e a virada para o stalinismo

    Com a derrota da onda revolucionria que se seguiu ao Outubro russo, a vitria do fascismo na Itlia, a ditadura contra-revolucionria de Horthy na Hungria, a estabilizao do capitalismo mundial e a consolidao no poder da frao de Stalin na URSS, em meados dos anos 1920 o panorama objetivo frustra completamente as grandes vises elaboradas por Lukcs at 1924.

    O ano 1926 marca um momento decisivo nesse processo. No apenas a burocracia stalinista ento j se consolidou, mas neste ano Stalin-Bukharin formulam pela primeira vez a nova teoria do socialismo num s pas. No por acaso, Lukcs ir recuperar neste ano a categoria da reconciliao hegeliana com a realidade como chave para a compreenso do momento histrico. A partir dessa categoria, Lukcs ir formular uma atitude fundamentalmente nova, de resignao frente derrota da revoluo mundial e perspectiva de construir o socialismo em um s pas8.

    O perodo em questo de graves mudanas, tanto na URSS como na Internacional Comunista e, portanto, nos diversos PCs. Na produo de Lukcs, inflexo mais importante pode ser encontrada no documento redigido por Lukcs em 1928 para discusso no Congresso do PC hngaro, que ficou conhecido como as Teses de Blum (pseudnimo usado por ele poca).

    Na verdade, nestas teses o que Lukcs defende a idia de que o PC deveria desistir da tarefa de restabelecer uma Repblica de Conselhos Operrios (como a que tinha se lanado a construir em 1919), substituindo tal programa pelo linha de derrubar a ditadura semifascista de Horthy para estabelecer um regime onde a burguesia embora mantendo a explorao econmica deixe pelo menos uma parte do poder para as grandes massas de trabalhadores 9 . Lukcs chega a aconselhar ao PC o combate ao niilismo dos operrios com relao democracia burguesa.

    No entanto, estas teses, que vistas de hoje se combinam to bem com o conjunto da ideologia das alianas progressistas desenvolvidas pelos velhos PCs stalinistas, naquele momento entravam em choque com a linha oficial. Lanadas justamente no perodo em que o stalinismo girava para o ultra-esquerdismo do terceiro perodo, foram execradas publicamente, e o prprio Lukcs teve de fazer uma falsa auto-crtica para continuar sendo aceito no movimento comunista oficial. A tese lukacsiana s voltaria a se afinar plenamente linha oficial aps a virada de 1935 para a poltica de Frente Popular.

    Os anos 1930 e o segundo ps-guerra

    Aps a enorme derrota a que levou a linha ultra-esquerdista do terceiro perodo, com a ascenso de Hitler na Alemanha em 1933, a Internacional stalinizada ir responder com uma guinada de 180 graus direita, para a linha de colaborao de classes com a burguesia democrtica. Essa virada se consolida em 1935, com a linha das Frentes Populares, formulada por Dimitrov, e com ela Lukcs passa a sentir-se novamente em casa sob a direo stalinista. A partir de ento, satisfeito com o abandono do terceiro perodo,

    8 Conforme apontado por Michael Lwy, que identifica o artigo de Lukcs sobre Moses Hess como uma

    inflexo nesse sentido. Cf. Lwy, op. cit. 9 Idem.

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    Lukcs tomar a defesa ativa da linha geral ditada pelo Kremlin durante todo um perodo, que s se encerraria bem aps a morte de Stalin.

    Isso se mostrar de maneira particularmente aguda por sua atitude na ocasio dos Processos de Moscou as enormes farsas jurdicas montadas por Stalin para justificar a eliminao de seus opositores. Mesmo um intelectual to devotado causa de salvar Lukcs da sua relao com o stalinismo, como Nicolai Tertulian, obrigado a afirmar: O estenograma de uma reunio dos escritores anti-facistas alemes, (...) mostra que Lukcs se curvava, como os outros, ao ritual stalinista das grandes confisses ideolgicas seguidas de aes repressivas do regime. Sua interveno pontuada por apelos vigilncia revolucionria (...) e liquidao dos nocivos (...) o que mostra que no clima de medo que reinava aps o veredicto, se sabia comportar como stalinista ortodoxo10.

    Em seu ltimo balano autobiogrfico, no fim da vida, Lukcs dir: Hoje vejo a situao de modo diferente, na medida em que Stalin no tinha necessidade nenhuma daqueles processos. (...) Depois do processo Bukharin, excluiu-se totalmente a possibilidade de que algum ousasse agir contra Stalin. Stalin, entretanto, manteve sua linha ttica, de intimidao das pessoas. Neste sentido, considero os processos suprfluos.11 Sem compreender que na poca dos Processos de Moscou j havia uma dcada da consolidao de Stalin como inimigo interno da revoluo, e defensor dos interesses de uma camada social parasitria, escapa completamente a Lukcs o quanto era necessria a irracionalidade brbara de seus mtodos. Mope para esse problema, Lukcs ir passar os anos seguintes tentando restabelecer a riqueza filosfica do marxismo, de costas para as violaes prticas que o stalinismo perpetrava. nessa condio que atravessa os anos da nova guerra, alis satisfeito com a possibilidade de colaborao entre a URSS e os pases capitalistas democrticos que a conflagrao forneceu. Sobre o perodo que se abre com o fim desta, dir Lukcs, retrospectivamente: parecia-me que estvamos entrando num novo perodo, no qual havia se tornado possvel, como durante a guerra, uma aliana de todas as foras democrticas, socialistas e burguesas, contra a reao. Assim, aps a volta Hungria em 1945, esforcei-me continuamente em extrair conseqncias da nova situao, em buscar a passagem ao socialismo de um novo modo, gradual e na base da convico12.

    No entanto, para sua decepo, o imperialismo estadunidense passa rapidamente para a linha de Guerra Fria, o que impe a nosso filsofo combinar o gradualismo pacifista, citado acima, com aqueles seus exerccios de contorcionismo terico a fim de adequar a velha ideologia antifascista s necessidades da crtica ao ex-aliado democrtico.

    A revoluo de 1956 na Hungria e a atitude frente aos regimes do Leste

    10 Cf. Lukcs e o stalinismo, de Nicolai Tertulian. Uma verso eletrnica est disponvel em

    www.verinotio.org.br. 11

    Trotsky d uma viso esclarecedora dos significado dos processos e do combate da oposio contra eles no texto Stalinismo e bolchevismo: sobre as razes tericas e histricas da IV Internacional, na compilao Escritos 1929-1940, verso digitalizada disponvel em www.ceip.org.ar 12

    Lukcs, El Asalto a la Razn. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Mxico. Ed. Grijalbo, 1972

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    No perodo ps-guerra, um novo acontecimento histrico ir impactar a vida de Lukcs: o controle militar pela URSS de todo o Leste Europeu, e a criao pelo alto da zona do glacis, em que a burguesia foi expropriada com mtodos burocrtico-militares. A Hungria ir passar nestes anos pela experincia da transio entre a (mal) chamada democracia popular (em que a propriedade capitalista ainda foi respeitada, apesar do domnio poltico-militar da URSS) e a posterior expropriao e ditadura de partido nico do PC Hngaro, como satlite de Moscou, o qual absorveu para tanto o velho partido social-democrata.

    Lukcs ir ento assumir, na segunda metade dos anos 1940, um papel ativo na construo de uma base de apoio para o PC hngaro, desfrutando do espao democrtico que se forma entre a coalizo do PCH e da social-democracia local. No entanto, aps a implantao da ditadura de partido nico do PC, que sob Rkosi se tornou especialmente sangrenta para os opositores, Lukcs se adapta: Nos anos 50, quando comeou o movimento contra Rkosi, eu tambm no participei, no por razes muito sublimes, mas por uma preocupao ttica, pois conhecia o partido melhor do que os outros e sabia que seria considerado formao de faco se os escritores protestassem coletivamente em determinada direo (...) Assim portanto, minha presena nas sublevaes literrias que precederam 1956 foi nula.

    Ainda assim, dada sua celebridade, quando a revoluo poltica explodiu13, Lukcs novamente alado a posies de direo, inclusive entrando agora para um novo Comit Central de apenas sete membros. Sem qualquer quebra de continuidade, Lukcs passar ento da postura de no-oposio no perodo anterior, de ala mais conservadora deste novo CC. Como narrado por ele: Quando Imre Nagy saiu do Pacto de Varsvia, Zoltn Sznt e eu votamos contra. [...] Essa foi a divergncia decisiva, que determinou todos os outros conflitos. Mas em tudo se perguntava se devia ocorrer um rompimento definitivo com o velho sistema ou uma reforma dele. E digo com sinceridade que eu era partidrio da reforma.

    Aps a derrota da revoluo, apesar de ter sido preso e deportado aps a segunda invaso dos tanques soviticos, Lukcs comunicou formalmente ao PC que insistia em continuar sendo membro dele.

    fato que os textos de Lukcs sobre a democracia socialista no fim da vida, especialmente aps a crise mundial que se abre em 1968, revelam uma crtica bem mais profunda do que as tmidas reformas advogadas em 1956. O massacre da Primavera de Praga pelos tanques da URSS, somado ascenso do movimento de massas em todo o mundo, desdobra-se numa acentuao da crtica de Lukcs aos regimes do Leste, crtica que soube combinar uma enftica defesa da de democracia em todos os nveis nas sociedades de transio, com uma rgida demarcao com respeito democracia burguesa. No entanto, mesmo nestes ltimos textos no compreende que a retomada do caminho socialista passava inevitavelmente por uma nova revoluo contra a burocracia governante.

    Concluso

    13 Para um conhecimento mais aprofundado da revoluo hngara de 1956, cf. Hungra del 56, Ediciones

    IPS-CEIP, Argentina, 2006.

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    A que resultado chegamos, ento? Foi visto, nestas brevssimas notas, que Lukcs, apesar de ter descrito uma trajetria sinuosa e peculiar, manteve-se em linhas gerais coerente dentro do campo stalinista, buscando um espao para a elaborao terica pura sem confrontar o poder estabelecido que negava a doutrina marxista a cada passo.

    Da surgir aquilo que Lukcs anos mais tarde chamar de sua guerra de guerrilhas contra o esprito de enrijecimento. Assume ento, sem sequer sonhar com a queda da burocracia, a tarefa de ser uma espcie de crtico oficial dela.

    Mas o que dizer do contedo velado que sua elaborao carrega: em que medida traz uma contribuio real ao marxismo, e que problemas carrega consigo?

    J dissemos que o texto aqui publicado oferece uma viso da qualidade da exposio lukacsiana de intrincados problemas tericos. Limitando-nos a breves notas, falemos algo acerca da sua crtica literria, pelo menos ali onde essa crtica est diretamente ligada sua posio filosfico-poltica mais geral.

    Com efeito, a valorizao do perodo de ascenso histrica da burguesia, e seu contraste com a produo espiritual do seu perodo de decadncia constituem um leitmotiv de Lukcs.

    Lukcs oferece, apoiando-se no perodo humanista da burguesia, uma crtica esttica e filosfica contundente dissoluo do homem, consequncia do declnio histrico do capitalismo. Porm em Lukcs essa recuperao da herana, ao contrrio de Lnin ou de Trotsky, se desdobra na busca pela conciliao de classes, em poltica, e na busca de terrenos comuns na esfera dos valores e da ideologia (como no caso do antifascismo, antes da Segunda Guerra, ou do pacifismo, aps a conflagrao).

    Cabe reservar uma ateno especial categoria lukacsiana de realismo crtico14. Lukcs utiliza esse conceito para estabelecer uma ligao entre, de um lado, realismo e progressismo social (agrupando aqui as correntes herdeiras do renascimento e do iluminismo, as correntes sadias da burguesia, e os escritores a servio da URSS) e, do outro lado, abstracionismo, irracionalismo e reacionarismo social. O maniquesmo de tal ponto de vista levar a diversos julgamentos estticos lamentveis, desde a crtica a Kafka at seus violentos ataques contra todos os tipos de arte de vanguarda, em particular ao expressionismo e aos surrealistas igualados como produtos decadentes da poca imperialista.

    A nota amarga que, no pensador hngaro, uma certa viso de mundo coerente e abarcativa parece conferir linha oficial uma inslita legitimao.

    Da crtica ao stalinismo ao programa de volta a Marx

    Como vimos, a fase final da obra de Lukcs est marcada por uma tentativa genuna, ainda que insuficiente, de encontrar uma via de ruptura com o stalinismo. Especialmente aps 1968, nosso filsofo recalcitrante enfim reconhece a decadncia do sistema nucleado pelo Kremlin. Citaes nesse sentido so relativamente abundantes em seus ltimos escritos.

    Duas ou trs questes fundamentais bastam, contudo, para demonstrar a insuficincia deste seu derradeiro movimento crtico.

    14 Cf. Realismo Crtico Hoje, Ed. Thesaurus, 2 edio, 1991.

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    Em sua tentativa de combate s deformaes social-democrata e stalinista do marxismo, Lukcs formula de maneira cada vez mais programtica a necessidade de retornar aos escritos de Marx, considerados nica fonte possvel para a renovao da perspectiva revolucionria. No interior desse projeto, confere um espao no pequeno reapropriao de Hegel, e a separao neste entre o que h de progressista e o que deve ser descartado.

    No entanto, no interior mesmo de sua defesa de Marx que aparece, para enorme surpresa do leitor desavisado, sua reivindicao mais acabada do papel histrico de Stalin. Mais ainda, como veremos a seguir, tal reivindicao est ligada nada menos do que ao balano que Lukcs faz de toda a trajetria da dialtica (ou da verdadeira ontologia) desde Hegel em diante. Ou seja, est longe de ser uma frase solta que se possa remover arbitrariamente. Eis o trecho (teremos que citar um tanto extensamente, para compreender a lgica interna de sua argumentao):

    Essa concepo geral [alcanada por Marx em torno de 1848] (...) era de tal modo estranha s tendncias dominantes da poca que no foi compreendida como mtodo nem pelos adversrios, nem pelos seguidores. (...) Engels busca inutilmente, atravs sobretudo de crticas e conselhos epistolares, quebrar com essa rigidez e conduzir as pessoas dialtica autntica. (...) A obra de Lnin , aps a morte de Engels, a nica tentativa de amplo alcance no sentido de restaurar o marxismo em sua totalidade, de aplic-lo aos problemas do presente e, portanto, de desenvolv-lo. As circunstncias histricas desfavorveis impediram que a obra terica e metodolgica de Lnin agisse em extenso e profundidade. (...) A marginalizao de Marx e de Lnin pela poltica de Stalin tambm um movimento gradual, do qual falta at nossos dias uma exposio histrico-crtica. Sem dvida, nos incios, sobretudo na luta contra Trotski, Stalin se apresenta como defensor da teoria leniniana; e algumas publicaes desse perodo, at o princpio dos anos trinta, revelam a tendncia a afirmar a renovao leniniana do marxismo contra a ideologia da Segunda Internacional. Por mais correta que fosse a acentuao das novidades trazidas por Lnin, tal acentuao no perodo de Stalin teve cada vez mais o efeito de colocar lentamente o estudo de Marx em segundo plano e de trazer para o primeiro o estudo de Lnin. Posteriormente, essa orientao em particular aps a publicao da Histria do PCUS (com o captulo sobre a filosofia) converteu-se na remoo de Lnin em favor de Stalin. A partir de ento, a filosofia oficial se reduziu ao comentrio das publicaes de Stalin. (...) Devemos nos limitar aqui a registrar a situao. Mas, se o marxismo quer hoje voltar a ser uma fora viva do desenvolvimento filosfico, deve em todas as questes retornar ao prprio Marx15.

    Neste trecho, alm de seguir reivindicando (em sua ltima grande obra) o combate de Stalin contra Trotsky, e inclusive no apenas no plano ttico, mas tambm no terreno terico, Lukcs estabelece aquele que ser o programa de quase todas as vertentes lukacsianas posteriores: o salto mortal em direo a uma volta a Marx, ignorando a resistncia revolucionria efetiva que o movimento operrio apresentou contra a contra-revoluo stalinista na URSS e na Internacional Comunista (a qual s aps muitos anos de luta terminou identificada com o trotskismo). Incomparavelmente mais prxima da realidade nos parece a observao de Trotsky, segundo a qual Stalin, ao contrrio de Bernstein, faz a reviso de Marx e Engels no com a pena do terico, mas com a bota da GPU.

    15 Ontologia do Ser Social, LECH, 1979.

  • 9

    Nos seguidores de Lukcs, a srie de problemas que decorrem do que foi apontado acima levar a impasses tericos e prticos de diversas ordens. Como trao geral, parece haver neles sempre um excedente de abstratividade no trato com o real; o que se torna ainda mais claro quando notamos que, entre eles, e com demasiada freqncia, fala-se da ontologia para no falar do ser. O movimento empreendido por Marx em direo a agarrar a realidade viva, transforma-se ento num movimento de categorias tanto mais complexo e dialtico quanto mais destinado a substituir no pensamento o movimento real que por meio destas deveria ser apreendido. Este problema, que est muito longe de reduzir-se a um problema de linguagem, constitui provavelmente um dos melhores pontos de partida para a crtica imanente, interna, de sua obra terica; extrapola, evidentemente, os objetivos bem mais modestos destas linhas.

    Em seus melhores momentos, inegvel o mrito de Lukcs como, por assim dizer, um professor de histria da filosofia. Ainda com tudo o que tem de problemtico, tambm temos que reconhecer seu mrito como divulgador da obra terica de Marx.

    Por outro lado, e a despeito dos problemas aqui levantados, a presena atual de Lukcs se explica tambm pelo contraponto que fornece constelao intelectual que se firmou com a reao ideolgica do fim do sculo estruturalismo e ps-estruturalismo, ps-modernismo em geral, vertentes da apologtica neoliberal, etc e o instrumental terico dado por Lukcs para derrot-los do ponto de vista puramente intelectual. Em suma, no momento de maior defensiva histrica do marxismo, Lukcs aparece como uma trincheira para combater os tericos da burguesia decadente que se viram, por uma inusitada virada da histria, em posio de ofensiva.

    Uma vez que, liquidada a gerao que representou o auge das Internacionais II e III, coube quase exclusivamente a Trotsky a tarefa de levar adiante os contedos fundamentais do marxismo tanto no aspecto terico quanto no prtico, evidente que uma srie enorme de problemas no puderam ser abordados por ele e particularmente a questo dos desenvolvimentos (negativos) ideolgicos e filosficos do mundo burgus em declnio. Como exemplo disso, podemos dizer que ele no pde tratar dos importantssimos desenvolvimentos cientficos, especialmente de Einstein a Bohr, com a dedicao que caracterizou o ltimo Engels. Lukcs tentou encarregar-se daquela outra tarefa, porm suas conquistas aqui se movem num pntano de contradies. Afinal de contas, no foi esse o esforo, certamente trgico, empreendido por Lukcs na maior parte da sua vida: fornecer uma razo marxista desrazo da dominao burocrtica?

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    Finalizando, retomamos nossa ideia inicial: Em Lukcs, a vida militante, a ligao com o movimento operrio, se fazia pela

    mediao do movimento stalinista, isto , pela via dos diversos PCs. Com a decadncia ltima do stalinismo, e com mais razo aps a imploso do Leste Europeu e da URSS, j no foi mais possvel a qualquer dos discpulos manter-se ligado a esses partidos. Porm essa ruptura, desgraadamente, no se deu em benefcio da busca de novas formas de ligao com a classe operria, da construo de novas organizaes revolucionrias no seio do movimento operrio. A relao com o proletariado, que para Lukcs se dava pela via do aparato contra-revolucionrio stalinista, para seus discpulos se perdeu para sempre.

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    Superar esse problema tambm faz parte das tarefas de todo aquele que se proponha a recuperar o marxismo em seu contedo integral.

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