Tropa DA elite

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  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    Tropa DA eliteou

    Matou na favela e foi ao cinemaAdriana Facina e Mardonio Barros

    Homem de preto,qual sua misso? invadir favela

    E deixar corpo no cho.

    Esse canto de guerra um dos muitos entoadospelo BOPE (Batalho de Operaes Especiais daPolcia Militar) nos seus treinamentos. Muitosignificativo e direto, j que mostra claramente onde

    se localizam os inimigos a serem abatidos. Trata-sede uma guerra contra os pobres, recrudescida emtempos neoliberais nos quais a contrapartida dacriao de uma sociedade do desemprego anecessidade das classes dominantes ampliarem nosomente os meios para obteno do consenso, mastambm os instrumentos coercitivos que mantenham

    os oprimidos sob controle.

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    Em meio s crescentes denncias contra a atuaodo BOPE nas favelas cariocas, que se pauta por umapoltica deliberada de extermnio ao arrepio do Estado

    de direito, surgem nas ruas da cidade cpias do filmeTropa de elite, antes mesmo de seu lanamento nocinema, previsto para o ms de outubro.Tropa de elite j um sucesso de pblico, est naboca do povo, fascina adolescentes e mesmocrianas de classe mdia, e rene no orkut uma

    comunidade com mais de 55 mil membros. Viroutambm assunto da imprensa, devido ao supostovazamento da cpia no autorizada, que acarretouprocessos e ameaas de priso dos envolvidos.

    Com produo no estilo hollywoodiano, o filme temcomo ponto de partida o livro Elite da tropa, escrito

    pelo socilogo e ex-subsecretrio de SeguranaPblica do Estado do Rio de Janeiro Luiz EduardoSoares, pelo capito do BOPE Andr Batista(negociador no seqestro do nibus 174) e porRodrigo Pimentel, ex-capito do BOPE.

    Mas no reproduz fielmente nas telas as histriasnele contadas. O personagem central nessaarticulao Rodrigo Pimentel, um dos roteiristas dofilme.

    Pimentel foi descoberto no documentrio Notciasde uma guerra particular, de 1997, dirigido por JooMoreira Salles e Ktia Lund e forneceu o mote dottulo do filme, enunciando uma tese que vem

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    ganhando flego e pautando as polticas desegurana pblica do Estado: vivemos num estado deguerra entre, de um lado, o Estado e os cidados de

    bem e, de outro, os bandidos/traficantes.

    E no se trata de qualquer guerra. Mas sim de umaguerra total que, nos moldes da guerra ao terrorempreendida por Bush, justifica a suspenso dosdireitos humanos e legitima prticas ilegais como

    torturas e execues sumrias com base na idia deque elas so necessrias para garantir a seguranapblica.

    preciso lembrar ainda que argumento semelhantefoi amplamente utilizado, na histria recente do pas,para justificar os arbtrios cometidos pelo Estado

    durante a ditadura militar. No caso do filme, onarrador, capito Nascimento, que afirma: se oBOPE no existisse, os traficantes j teriam tomado acidade h muito tempo. Nessa lgica de um tudo ounada distorcido, quem defende direitos humanos,defende os bandidos e cmplice da violncia

    urbana que assola a cidade.

    Cmplices so tambm os que consomem as drogasilcitas vendidas nas favelas. O trfico de armas (e aindstria blica que dele se beneficia), as ligaesextra-favela do trfico que, como todos sabem,atingem autoridades que organizam de fato as redesdo crime, cujo elo mais fraco so os vagabundos

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    assassinados cotidianamente pelo Estado, no solevados em conta nesse argumento.

    Numa das cenas mais chocantes do filme, capitoNascimento, aps comandar uma ao que resulta namorte de um traficante, esfrega o rosto de umestudante, que estava na favela consumindo drogas,em cima do sangue que sai do buraco aberto pelabala no peito do jovem morto e pergunta se ele sabia

    quem havia matado o rapaz. O estudante diz que foium dos policiais, ao que Nascimento responde: umde vocs o caralho! Quem matou esse cara aqui foivoc. Seu viado, seu maconheiro, voc quemfinancia essa merda. A gente sobe aqui pra desfazera merda que vocs fazem.

    Portanto, coero e consumo esto no centro dasteses que organizam o filme.

    Tropa de elite conta a histria do drama privado docapito Nascimento, significativo nome para um oficialpadro de uma polcia que tem como smbolo uma

    faca na caveira.

    Capito Nascimento vai ser pai e o nascimento deseu filho o impulsiona a buscar um substituto nocomando de uma guarnio do BOPE. Cansado daguerra cotidiana travada nas favelas cariocas, comsndrome do pnico e pressionado pela esposagrvida, Nascimento um heri humanizado, umpersonagem complexo, ao mesmo tempo forte,

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    incorruptvel, carismtico e tambm frgil, capaz desentir remorsos pela morte de um menino fogueteiro,denominado por ele sementinha do mal, que resulta

    de uma operao sob seu comando.

    Os candidatos a substituto de Nascimento so Neto eMatias, aspirantes a oficiais da polcia militar que senegam a participar dos esquemas de corrupo dacorporao e, por conta disso, acabam se

    incorporando ao curso preparatrio do BOPE.Neto descrito como tendo a polcia no corao.Destemido e impulsivo, exmio atirador, gostava doscombates nas favelas e era o favorito de Nascimento.Seu amigo Matias, negro e de origem pobre, era maisracional, gostava da lei e se dividia entre ser

    estudante de direito da PUC e pertencer polcia.Seguindo a classificao de Nascimento, os policiaiscariocas s tm trs alternativas: ou se corrompem,ou se omitem ou vo para guerra. Aprendizes deheris, Neto e Matias s poderiam seguir a terceiraopo.

    Por conta da faculdade, Matias se envolve com umamenina de classe mdia alta que dirige uma ONGpatrocinada por um poltico no Morro dos Prazeres efechada com o chefe do trfico na favela. Aprincpio, seus colegas da faculdade, ligados ONG,no sabem que Matias policial. Todos os estudantesso consumidores de drogas ilcitas. Um deles avio e vende drogas na universidade.

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    Baiano, o chefe do trfico na favela da ONG, assimcomo os colegas e a namorada de Matias descobrem

    que ele policial atravs de uma foto que saipublicada nas pginas de um jornal.Esse fato desencadeia uma srie de eventos queculminam na morte de Neto e na converso definitivade Matias em oficial do BOPE durante a caa aBaiano, motivada pela necessidade de vingar a morte

    do amigo. O policial que gostava da lei passa atorturar e executar, provando assim sua converso decorpo e alma. O homem preto se torna homem depreto, caveira, meu capito.

    Nossos mariners tupiniquins so apresentados comosoldados muito bem treinados, capazes de suportar

    um treinamento destinado a poucos, uma eliteexemplar com um papel fundamental no estado destio em que vivemos: conter os pobres. Tropa de eliterecolhendo corpos suprfluos daqueles que, emoutros tempos, eram exrcito de reserva de mo-de-obra e que hoje, em meio ao desemprego estrutural e

    ditadura do capital financeiro, so o lixo dasociedade.

    A necessidade de conter (e mesmo eliminar) ospobres o objetivo dessa guerra particular ou privadae, nesse contexto, uma tropa de elite se configuracomo uma tropa DA elite, necessria para garantir aordem e o respeito propriedade privada. Isso

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    explica porque 100% das operaes do BOPE sorealizadas em favelas.

    No filme, o discurso que legitima o BOPE e suasaes persuasivo e se articula em trs nveis.Num primeiro nvel, o BOPE aparece como umaresposta ineficincia e corrupo da polciaconvencional e aos polticos que a alimentam. Assim,essa elite de policiais apresentada como

    incorruptvel e como um padro a ser seguido, dereferncia internacional. O lema faca na caveira enada na carteira resume esse discurso moralista epragmtico que atende perfeitamente aos apelosmiditicos por ordem e moralidade.

    Um segundo nvel pode ser identificado na

    apresentao do BOPE como uma seita que, atravsde um rduo rito de passagem o curso detreinamento -, seleciona homens fortes, honestos eformados na base da porrada, preparados pararesistir s piores provaes.

    A seleo a base da consolidao de umacamaradagem entre essa elite, em oposio quelesque nunca sero, reatualizada nas prticascotidianas de transgresso da lei. Numa das cenas dofilme, um coronel e seus comandados, entre elesNascimento, esto organizando as turmas do cursopreparatrio.

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

    8/10

    Entre risadas e num clima descontrado, o coronel dizque no quer saber de tmpano perfurado em aulainaugural e de mo cortada. Mesma complacncia

    para com os excessos, que afinal sempre podemser merecidos, que ocorrem durante as operaesnas favelas.Em tempos de fragmentao, individualismo econsumismo, podemos imaginar o apelo dessediscurso que louva um corpo de homens unidos por

    um forte sentimento de pertencimento a uma elite epor um orgulho quase racial, seres superiores,elevados, em meio ao mundo de misria, fraqueza ecorrupo. Homens de carter em tempos decorroso do carter.[1]

    O terceiro nvel desse discurso persuasivo o do

    indivduo, de seus dramas pessoais, que humaniza oheri e o aproxima dos seres humanos comuns,capazes de se reconhecerem e se identificarem comele. Capito Nascimento o heri que sacrifica a vidapessoal e que no estende sua brutalizao vidaprivada.

    Como na cena em que ele, durante uma operao nafavela, logo depois de se emocionar ao ouvir aocelular o corao do filho batendo na barriga da me,manda seu subordinado atirar dizendo: senta o dedonessa porra!.

    Ou no momento em que, de farda, vindo da guerra,chora ao ver seu filho recm-nascido na maternidade.

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    Nascimento trata sua mulher de forma amorosa e sesensibiliza com as presses que ela faz para que elesaia do BOPE.

    Com exceo de uma cena, aps a morte de Neto, anica em que ele aparece fardado no ambientedomstico, na qual ele grita: quem manda nessaporra aqui sou eu e voc no vai mais abrir a bocapara falar do meu batalho nessa casa.

    Significativamente, aps impor seu comando emcasa, ele fica curado dos ataques de pnico e jogafora os medicamentos psiquitricos que estavausando.

    Todos esses nveis se articulam em torno danaturalizao da idia de que vivemos num estado de

    exceo, uma situao atpica que demandaria regrastambm atpicas para sua soluo.

    Essa naturalizao permite um relativismo de valorese prticas, de direitos e garantias no que dizemrespeito dignidade da vida humana.

    Falar em direitos humanos no faz nenhum sentidonum estado de coisas que institui valores desiguaispara as vidas humanas de acordo com critrios comocor da pele, origem social e mesmo idade, j que osjovens pobres e negros so hoje as principais vtimasde homicdios, bem como formam a maioria dapopulao carcerria do pas.

  • 8/14/2019 Tropa DA elite

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    No entanto, preciso afirmar que o estado deexceo na verdade a regra sob o capitalismo, queno pode prescindir, sobretudo em sociedades

    dramaticamente desiguais como a brasileira, do tratobrutal com os de baixo.No h como no lembrar aqui de um poema escritopor Bertolt Brecht num contexto de vitria dofascismo na Europa, no qual outros homens de preto,em defesa da ordem do capital, esvaziaram de

    significado a palavra humanidade:A exceo e a regra

    Estranhem o que no for estranho.Tomem por inexplicvel o habitual.Sintam-se perplexos ante o cotidiano.

    Tratem de achar um remdio para o abuso.Mas no se esqueam de que o abuso sempre aregra.