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TYZYTABA’U: OBJETOS E LÍNGUA WAPICHANA COMO PATRIMÔNIO
IMATERIAL
ANANDA MACHADO
Tyzytaba’u na língua wapichana significa trançador. E como essa arte ainda se faz
presente na vida Wapichana, dedicamos este texto a identificar as relações entre a diversidade
do artesanato e a língua desse povo indígena. Não há palavra na língua wapichana que
signifique de forma genérica artesão ou arte, portanto escolhemos os trançadores e suas ações
para representarem este campo do conhecimento. A formação dessa palavra na língua
wapichana dá-se a partir do verbo tyzytan ‘trançar’, que perde suas terminações verbais e
recebe o sufixo nominalizador ba’u.
Atualmente, o território tradicional Wapichana é reconhecido geograficamente
aproximadamente de Leste a Oeste 1º a 4 ºN Lat. E 58º a 62ºW. Long. Do vale do Rio
Uraricoera ao do Rupununi na República Cooperativa da Guiana. Numa região chamada Serra
da Lua, que hoje está dentro dos municípios do Cantá e do Bonfim, no Estado de Roraima,
onde vivem cerca de 7.000 indígenas1, sendo a maior parte deles Wapichana.
Esse texto toma como base parte das leituras da etnografia dos objetos indígenas em
Roraima realizada por Dom Eggeratt nos anos 1924 e da entrevista, que faz parte da
metodologia com história oral trabalhada na tese que estamos redigindo no Programa de Pós
Graduação em História Social (PPGHIS/UFRJ). Alfredo de Souza, um de nossos
entrevistados, tem 98 anos e vive na comunidade indígena Malacacheta, município do Cantá,
RR.
Alfredo em muitos momentos disse que não sabia do assunto que perguntávamos, mas
sua neta nos contou muita coisa que ele conhece e histórias da vida dele que ela tinha ouvido
do avô no passado. Como a situação da entrevista, mesmo sendo na língua wapichana, que ele
domina, não é um momento de fala espontânea, pois direcionamos o assunto, talvez na
convivência, com mais tempo, possamos aprofundar a temática e ouvir suas histórias a seu
modo.
Doutoranda PPGHIS UFRJ, Dinter UFRR, professora do curso Gestão Territorial Indígena, Instituto Insikiran
de Formação Superior Indígena- UFRR. 1 As informações demográficas que utilizamos na tese são de fontes variadas e esta é uma questão complicada
porque muitas vezes os números de uma instituição são muito diferentes dos da outra.
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Esse “enquadramento da memória” tem relação direta com o contexto no qual
aconteceu a entrevista e a versão que Alfredo preferiu construir. “Eu não sei, mas eu já ouvi
falar em trocas com os brancos, que chegaram e trouxeram anzóis, arma, sal e todas as coisas
e em troca deram um pouco de comida pra eles” (entrevista com Alfredo em julho de 2014).
Durante a entrevista, mostramos a Alfredo algumas fotos dos objetos Wapichana que
fotografamos no setor etnográfico do Museu Nacional (RJ) em 2013. Ele não reconheceu
nenhum deles, mas contou que na Guiana uma vez cavaram e encontraram muitos objetos,
inclusive de miçanga, mas levaram tudo e ele não sabe para aonde.
Buscamos informações sobre essa técnica de entrevista centrada em materiais visuais
(fotografias), e vimos que no campo da metodologia se chama entrevista projetiva. Aplicamos
então, junto com a história oral para aprofundar informações sobre os objetos e chegar à
memória que Alfredo pudesse ter da relação com eles.
A questão de Alfredo ter visto levarem os objetos nos fez lembrar do que discute
Apadurai, quando trata que o “desvio de mercadorias de sua rota costumeira sempre carrega
uma aura arriscada e moralmente ambígua” (2008, p.44). Dessa maneira, na vida dos objetos
acontecem transferências, conversões, com espírito seja de empreendimento, ou de corrupção
moral (APADURAI, 2008). Em alguns casos pode haver aumento do valor do objeto pelo seu
desvio. E essas rotas, segundo o autor, podem ter sido históricas e dialéticas.
Alfredo nos contou como aprendeu a fazer artesanato:
O meu pai era artesão, eu vi como era trançar ai eu tentei fazer, ai eu comecei a
trançar também. Depois eu aprendi mais com os seringueiros, eles que sabem fazer
artesanatos, ai me ensinaram mais ainda assim peneira para fazer farinha, peneira
para fazer beiju, abanador de fogo, tipiti e tem diferentes formas de fazer também,
tem um trançado chamado reto e tem outro unurukanay, esses que eu sei, mas tem
outros tipos.
Ele disse saber fazer três tipos de traçado, sendo que utu, cascudo, que imita as formas
desse peixe, segundo ele, é o mais difícil. Em sua fala percebemos que conviveu também com
os seringueiros. Perguntamos se ele trocava ou vendia seu artesanato, para quem entregava e
ele respondeu que quando esteve no garimpo vendia e até hoje nas comunidades há quem
compre cestos, peneiras, tipiti, abanos e jamaxim. A entrevista naquele momento nos trouxe a
o tema dos seringais, o que enquanto assunto poderia gerar outra entrevista. O comércio no
garimpo também daria para explorar, enfim, surgiram muitas possibilidades de
desdobramento e de novas pesquisas.
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“Tinha muitos garimpeiros também lá que eles queriam muito jamaxim, os wapichana
também compram as cordas do jamaxim2, feitas de fibras de buriti, faziam tudo ai eles iam
comprar” (Alfredo, 2014). O aspecto comercial foi forte na relação com os garimpeiros e
Alfredo ressaltou também como hoje sobressai a relação de comércio nas comunidades. “Na
minha comunidade a gente compra tudo, caxiri a gente compra, a gente faz caxiri, mas mesmo
assim a gente compra” (Alafredo, 2014).
Como é difícil reconstituir os caminhos que os objetos por nós fotografados
percorreram até chegar ao Museu Nacional, podemos apenas supor e buscar informações
sobre as pessoas que os depositaram ali. As peças Wapichana que chegaram via Dom
Alcuino, por exemplo, averiguamos e constatamos que foram impedidas de sair do pais em
grande quantidade. Assim, parte da remessa que ele enviaria à Suiça, ficou confiscada no
Museu Nacional (RJ).
Começamos então a refletir acerca do estatuto do objeto além da função inicial dada
pelo seu dono e para qual foi criado ou associado ao destino do dono. Els Lagrou afirmou que
“assim como pessoas, objetos têm seu tempo certo de vida” (2007, p. 102) Além disso, a vida
de um objeto varia segundo as sociedades e o objeto em questão. Alguns não sobrevivem ao
ritual e outros são usados até o seu dono falecer, quando podem ser enterrados com ele ou
destruídos.
Alguns dos objetos aqui descritos foram classificados no Museu Nacional (RJ) como
dos “índios da Guiana Inglesa”, outros da “Guiana Brasileira” e ainda outros como dos
“Índios do Rio Branco”. Por isso fizemos o exercício de acompanhar a vida desses objetos lá
e cá. Com o detalhe de que as informações da Guiana foram obtidas no Brasil, com os
Wapichana de lá que vivem aqui atualmente e por livros como o de Roth (1924), por
exemplo.
Após a revolta do Rupununi os Wapichana na Guiana foram “abandonados” e
passaram a não ter acesso aos bens industrializados. Stephen Baines confirmou isso em seus
estudos de campo e nos afirmou em conversa informal que os objetos industrializados como
panelas de alumínio na atualidade vão do Brasil para Guiana.
2 Jamaxim é um cesto trançado de carregar nas costas.
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Coudreau (1887) de acordo com as observações que fez na época relatou que em
muitas comunidades afastadas não havia objetos de ferro, apenas algumas facas de péssima
qualidade. Quando queriam objetos como fuzil, chumbo, pólvora, munição, machados, sabres,
facas, baús, trabalhavam até consegui-los e assim que isso se dava voltavam para suas casas.
O fazendeiro Melville na Guiana trocava objetos manufaturados por redes e cestaria
indígena, depois casou com uma Atoraiu e tornou-se influente entre os indígenas. E a força de
trabalho em sua fazenda era fornecida pelos Wapichana e Atoraiu. Esse fazendeiro falava
fluentemente a língua indígena e começou a trabalhar com os indígenas na extração de balata.
Sabemos que o conhecimento e as técnicas, assim como os instrumentos e os objetos
que as comunidades reconhecem como fazendo parte integrante de seu patrimônio cultural
são considerados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como
patrimônio imaterial.
Esse patrimônio cultural imaterial- que se transmite de geração em geração- é
constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu entorno, de
sua interação com a natureza e sua história, e lhes fornecem um sentimento de
identidade e de continuidade, contribuindo assim a promover o respeito pela
diversidade cultural e a criatividade humana (GALLOIS, 2006, p. 10).
Um dos objetos Wapichana muito valorizados é a rede, zamak (ficha 8198 na
numeração do Museu Nacional), e pelo qual as mulheres Wapichana são conhecidas como
exímias tecelãs há tempos, por serem boas fornecedoras de rede. Segundo Thurn, os Waiwai
tinham fama de adestradores de cachorros e faziam canoas e os trocavam com os Wapichana
por redes de algodão (1883, p. 273). Para obter a cor marrom, as mulheres usam o algodão
que chamam de sybyrid ‘algodão guariba’ (marrom).
No dicionário Wapichana (2013) tayribei é peça usada para preparar o algodão para
ser fiado. Há bem poucas tecelãs nas comunidades que visitamos. Vimos uma vez fiarem
algodão para fazer cobertas, redes e bolsas, porém essa prática não faz parte do dia-a-dia das
comunidades. Há escolas indígenas que estão fazendo projetos para que as meninas
Wapichana e Macuxi reaprendam a fiar e a tecer. E há mulheres Wapichana que ainda fazem
e usam didime, ‘tipoia’ por exemplo.
“[...] Com seu fuso torce o fio de algodão ou de fibras vegetaes diversas
(sobresahindo a do Curauá que pode rivalisar com o nosso linho perfeitamente) e
com elle produz no tear fachas para carregar creanças, rêdes de dormir e o mais que
lhes seja preciso. Exactamentee por ser rudimentar o processo usado, é a fabricação
de fios e tecidos muito morosa; o producto, porem, nem por isso pode ser chamado
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de grosseiro, pois é bem feito, muito regular e apresenta até complicados desenhos
(EGGERATT, 1921, p.44).
Na comunidade Malacacheta fazem ainda redes de algodão fiado pelas artesãs
Wapichana. Para isso usam armação em forma de x que precisa ficar encostada num canto
sem mexerem até a conclusão do trabalho. E para fazer a saia da rede usam fibra de olho de
buriti (conversas informais em campo no ano de 2014).
Curt Nimuendaju em seu manuscrito Etnografia selvagem (s/d, p.1) afirmou que a
“tatuagem: não forma critério muito seguro: na região do Rio Uraricuéra, por ex, a tatuagem
feminina nos cantos da boca em forma de dois anzóes encontra-se nos Makusí (Karib),
Wapicána (Aruak) e Sirianá (tribo primitiva de língua isolada)” (CELIN/UFRJ). Portanto,
como acontece ainda hoje, há padrões gráficos com usos compartilhados pelos povos
indígenas em Roraima.
Em 1939 Dom Alcuino Meyer fez referência em sua carta a objetos etnográficos muito
bonitos. “Deixei-os em certos pontos para dahi serem remetidos a Bôa Vista, quando houver
portador e oportunidade” (carta de 14 de dezembro, arquivo do Mosteiro de São Bento). Em
outra carta mencionou ter coletado amostras minerais e “instrumentos de pedra polida dos
antigos índios” (1939, p.82). “Trouxe uma quantidade de artefatos indígenas: arcos, flechas,
zarabatanas, curare (e cuamaluá), cuidarús, tangas, cestos de toda qualidade”.
Um dos objetos etnográficos enviados por Dom Alcuino, que fotografamos no Museu
Nacional foi uma sandália. Quase todos os entrevistados já viram essa espécie de chinelo.
Hoje a sandália de palha ficou somente na memória, pois foi totalmente substituída. No
entanto, vimos fazerem dessa sandália para uma apresentação de parichara, dança tradicional
desses povos. O tipiti, mesmo com as máquinas e engenhocas inventadas, continua sendo
fundamental nos processamentos dos produtos da maniva.
Como contenha o producto deste processo_uma massa molhada_ ainda todo o
veneno, collocam-n’a depois no “tipity”, espécie de mangeuira, trançada pelos
hoemens de junco Ararua, fechada embaixo e aberta em cima para receber a massa.
Dependurado o tipity em uma das extremidades, dependuram-se na outra
paraespeichal-o o mais possível, do que resulta forte compressão sobre a massa, cujo
líquido, o veneno, começa a gottejar pelos interstícios do tecido até ficar enxuta
(EGGERATT, 1921, p.35).
O nizu, ‘tipiti’ é usado até hoje para escoar todo o líquido necessário da massa, mesmo
pelas famílias com barracões que tenham prensa. Durante dois períodos: de 1973 a 1976 e de
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1983 a 1984, Orlando Sampaio Silva visitou grupos Wapichana e falou de um “dualismo
tecnológico”. O antropólogo afirmou que ao lado do tipiti, da peneira e do ralo indígena, eram
empregadas a prensa de madeira e o “catitu”, máquina de ralar mandioca movida a motor ou
manual.
Como Dom Eggeratt fez etnografia dos objetos artesanais indígenas sem discriminar o
que era Macuxi ou Wapichana, por ele ter chamado os Wapichana de autóctones, e por
vermos em campo referência e uso de alguns objetos descritos pelo religioso entre os
Wapichana na atualidade, incluímos aqui algumas de suas descrições.
Como no início da pesquisa tivemos dificuldades em encontrar objetos Wapichana nos
Museus Etnográficos no Rio de Janeiro e em São Paulo, aproveitaremos os detalhes descritos
pelo religioso para identificar objetos que ainda não tinham origem definida classificada pelo
Museu e podem ser, após realizarem futuros estudos, considerados do artesanato Wapichana.
Na época Dom Eggeratt já tinha feito referência às habilidades indígenas no manuseio
de armas trazidas pelos invasores. Apesar das facilidades do uso da mukau ‘espingarda’, os
indígenas reconheceram para o religioso as vantagens de usar sua arma tradicional.
O uso da espingarda, pouco conhecido, mas então exercido com impressionante
habilidade, não conseguirá facilmente desthronar a sarabatana, poisque, conforme
me disse um índio intelligente, offerece ella vantagens insuperáveis, si bem que a
sua esphera de ação seja muitíssimo limitada em relação ao alcance da espingarda.
Um tiro desta, por exemplo, abaterá um animal apenas, espantando os demais, ao
passo que a flechinha de sarabatana parte silenciosamente, o que permite abater um
bando de macacos, ou de pombas, cujubins, emfim de animaes em convívio social,
muitos exemplares sem assustar os outros (EGGERATT, 1924, p. 39-40).
Outro aspecto interessante no texto de Dom Eggeratt é o que menciona sobre a
educação das crianças. Antes da escola as crianças aprendiam cedo a fazer e usar os objetos
indígenas. “Usar estas armas aprende o índio já na infância: é muito dovertido vel-os, os
pequenos, a experimentarem sua habilidade com os arcos, flecha, sarbatanas em miniatura,
espécie de brinquedos que lhes fazem pacientemente os Paes e avós” (1924, p.40).
Na atualidade os Wapichana usam espingarda para caçar e arco e flecha apenas
quando há competição nos eventos, ou como enfeite na hora das apresentações culturais. Mas
mesmo a habilidade de caçar com espingarda vem sendo pouco repassada nas famílias,
principalmente nas comunidades mais próximas às cidades. É visível a dificuldade no
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manuseio e é raro ver fazer esses objetos como brinquedo para as crianças ou sendo usados
pelos adultos. E os que fazem, é para venda como artesanato ou uso em competições.
Em 1985, a liderança indígena Quintino contou em encontro de catequistas sobre
como viviam antigamente os Wapichana, disse: “naquela época não tinha escola, não
escreviam. A escola era as tranças. Os velhos ensinavam bem” (CIRD, 1985, p. 2). Na época
de Quintino então, já não aprendiam a trançar na escola, lá aprendiam a ler e a escrever sobre
outras coisas e na língua portuguesa.
Durante toda a entrevista, uma das bisnetas de Alfredo, com mais ou menos 5 anos
ficou ora ao lado dele, ora brincando ali por perto. Essa estratégia familiar certamente é o que
vem garantindo o repasse de conhecimentos, dentre eles o falar a língua wapichana. No
passado, antes de começarem a ir com quatro anos para escola, as crianças ficavam muito
tempo com os avôs.
Na entrevista realizada com Alfredo, ele criticou a forma das famílias se organizarem
na atualidade, deixando de lado esses saberes: “eu não sei por que os pais deles fizeram filhos
desse jeito, não os ensinaram a falar língua, só falam português, isso eles gostam muito de
falar. Tem apenas alguns que sabem”. Reclamou por poucos saberem falar wapichana na
comunidade Malacacheta (em média apenas 30% dos moradores).
Na comunidade Jacamim alguns professores reconheceram o objeto de pesca que
mostramos como tandam. No entanto, afirmaram que cada vez mais deixam o jiqui de lado
para usar a tarrafa. No dicionário Wapichana (2012, p. 86) está escrito tarrafa como sairu.
Pontuamos aqui a diversidade linguística porque consideramos necessário averiguar se falam
outra língua, no caso atoraiu, ou se é apenas uma variação da língua wapichana.
Arapucas e armadilhas para toda espécie de animal, elles sabem faze-las mui
engenhosamente e dellas tiram muito resultado cercados, jiquis, etc. proporcionam
pescadas fáceis que, não obstante, muitas vezes não lhes bastam. Tocam então os
peixes para dentro de um baixio morto do rio ou das lagoas, constroem rapidamente
um dique improvisado e por meio de cabaças e outros utensílios atiram a água para
traz até que os peixes fiquem descobertos (EGGERATT, 1924, p.40).
Em 1976, Orlando Sampaio Silva, considerou que os indígenas ainda faziam um
artesanato elementar com produção de cestos, paneiros, redes de algodão para dormir, arcos e
flechas, segundo ele cada vez menos usados, “substituídos pelas espingardas ‘civilizadas’,
mais eficazes na caça” (1980, p.78). E apenas em algumas comunidades o estudioso viu
trabalhos em cerâmica.
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Como já foi afirmado que os dois povos, Macuxi e Wapichana, compartilham o
mesmo território, influências circulam em vias de mão dupla. No entanto, constatamos que, ao
contrário do que afirma o religioso sobre a cerâmica Aruak, nas comunidades Wapichana na
atualidade vemos mais a prática do trançado do que da cerâmica.
São mestres em artefactos de cerâmica e olaria e não menos perfeitos nos officios de
cesteiros, empalhadores e semelhantes. Trabalho exclusivo dos homens, fazem estes
de certos juncos (arumá e outros) e de material das palmeiras bacaba e Burity as
cestas de carregar, chamadas “panacús”, jacás, aljavas, mantas, esteiras, tipitys,
peneiras e outros utensílios mais, dos quaes alguns ficam tão bem feitos que a água
nelles não penetra. [...] entremeiam no seu trabalho desenhos de lindo aspecto, tanto
feitos de linhas regulares, como representando figuras phantasticas de homens e
animaes. Para isso colocam parte do seu material dentro d’água, misturada com
folhas de certas árvores, para retirarem-n’o algum tempo depois, como que curtido e
de brilhante cor preta (EGGERATT, 1924, p. 42).
Nas formas de trançado que o religioso fala, na atualidade, apenas alguns artesãos
sabem fazer. Mauricio Camilo, morador da comunidade Malacacheta, disse em aula
ensinando língua e cultura wapichana na Universidade Federal de Roraima que antigamente a
sumbara, ‘esteira’, era a mesa dos Wapichana. Ficavam envolta da esteira juntos, durante
horas, conversando e se alimentando. Ele disse também que usam vários tipos de manary,
‘peneira’, uma para cada função e com determinado tipo de trançado.
No Museu Nacional, não tivemos tempo de ver os objetos de cerâmica e nem os
trançados, no entanto, vimos grande quantidade de objetos feitos com miçanga. Acreditamos
que os Wapichana usaram bastante este material, porém, na atualidade usam kaxuru
‘miçanga’ de todas as cores não mais para as tangas e sim para fazer pulseiras, colares,
chaveiros zoomórficos e bonecos de miçanga.
O uso das missangas é necessariamente o resultado do intercambio com o civilizado,
mas adaptou-se aos costumes originaes com felicidade rara, tal a maestria, com que
as empregam as índias, tal o gosto artístico que elas revelam [...] as cores preferidas
são o branco, o vermelho e o azul (EGGERATT, 1924, p.43).
Na atualidade todos os Wapichana andam vestidos com o mesmo tipo de roupa dos
regionais. No período observado pelo religioso “A vestimenta é tanto mais simples, quanto
mais afastado o índio vive dos nucleos civilisados até desapparecer por completo. A tanga é
feita pela própria mulher e varia nos seus tamanhos” (EGGERATT, 1924, p.43). A forma de
se vestir foi de fato substituída e as “vestes antes tradicionais” são adaptadas e usadas apenas
para apresentações culturais.
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Coudreau observou mais de uma vez em seus relados de campo que sob as roupas, os
Wapichana guardavam suas tangas e colares de contas. Chamavam a roupa de kashoro
‘miçangas’, ‘contas’ dos brancos. Portanto na época a roupa poderia significar enfeite. E o
geografo observou “nada guardando da civilização a não ser a calça e a camisa” (1888, p.74-
75).
Em relação às tangas de miçangas, ouvimos de alguns artesãos trançadores Wapichana
que possuem a habilidade de fazer no trançado em arumã aqueles padrões gráficos que
aparecem nas tangas. Outros povos indígenas usam miçanga há tempos e no texto abaixo
usam a relação com este material para explicar o conceito de patrimônio imaterial.
Ai está a miçanga que nós chamamos de samura. Está certo que é o branco quem
fabrica, mas a miçanga só é material lá na loja ainda. Quando ela chega na mão do
índio, ela já vai se transformando. Ela vai se transformar em patrimônio material?
Não, em patrimônio imaterial também. Automaticamente vai se transformando. Pelo
conhecimento dele, que é invisível. O nosso pensar, o nosso conhecer, todo gravado
na nossa cabeça. As mulheres vão enfiando miçanga em metros e metros de linha,
todo dia [...] Então, na medida em que mulher vai trabalhando, enfiando a miçanga,
ela já está transformando a miçanga em imaterial, ela está enfiando o conhecimento
dela dentro da miçanga (TIRIYÓ in GALLOIS, 2006 p. 22).
Um saadkariwiei ‘desenho’ na tanga de miçanga pareceu réplica de pele de cobra,
para um Wapichana da comunidade Raimundão I que nos falou e mostrou na foto em seu
celular, comparando com a foto da tanga que projetamos em slaide para sua comunidade.
Outros desenhos podem ser metáforas de caminhos entre mundos. Ou mesmo caminhos
traçados como mapas de percurso para não se perderem durante as caçadas, conforme
interpretou Geraldo Douglas, de 56 anos, sobre os desenhos na cuia que mostramos a foto.
Além da cultura Wapichana, Geraldo viveu entre os Wai Wai e Macuxi, é músico, compositor
em língua wapichana, professor de língua wapichana e inglesa. Ele considera que o
“artesanato guarda o que aprendeu para o futuro”. E completou ainda: “sem fazer arte
indígena não fico satisfeito” (Entrevista realizada no encontro dos professores de língua
indígena da região Serra da Lua, na comunidade Malacacheta, em 26 de outubro de 2014).
É interessante pensar nas novas formas que foram surgindo em como calcular o valor
dos objetos. Nem sempre a medida considerava a força de trabalho empregada na sua
produção. A escassez ou a fartura do objeto e dos materiais para produzir, o valor cultural e
simbólico do objeto que antes circulava em sistema de troca. Inclusive, certos objetos, mesmo
depois da entrada do dinheiro, impõem o sistema de troca. Antigamente tinham que viajar,
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muitas vezes em território inimigo, para levar produtos melhores do que aquele povo poderia
fazer. Assim os processos de comunicação entre povos espalharam idéias e novidades de
interesse geral.
O chimery ‘ralo’ por exemplo, têm origem de áreas geográficas distantes em mais de
1.000 quilômetros entre elas. Primeiro circulavam dos Wai Wai para os Wapichana, depois
Macuxi, depois Arekuna. Em segundo periodo passou a circular dos Ye’kuana, para os
Arekuna, depois para os Macuxi e por último para os Wapichana. Os Taurepang e Akawaio
também trocavam ralos.
O ralo funcionou antes da entrada do dinheiro como objeto para identificar o valor da
troca. Por exemplo, uma rede valia 2 ralos. Quando o contato com o “branco” foi se
intensificando, os Wapichana trabalhavam, recebiam e acabavam trocando por facas, por
exemplo, com os Waiwai. Assim o objeto passava do povo que tinha mais contato para o que
ainda não conhecia o colonizador, e sofria uma refuncionalização, muitas vezes porque
faltava a quem recebia o conhecimento da função dada pelo produtor originário.
De acordo com a especialidade de cada povo produziam objetos bem definidos e
trocavam por produtos que lhes eram indispensáveis. Entravam nas trocas, sobretudo
alimentos, e Alfredo na entrevista fez menção a isso também, e quem recebia aproveitava o
que não produzia. Dessa forma a economia entre povos funcionava e os objetos e suas
significações circulavam entre culturas diferentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constatamos que esses conhecimentos vêm sendo repassados há anos pelas narrativas
orais, gestuais e, na maior parte das vezes, na língua wapichana. Em muitas comunidades
quase monolíngues na língua portuguesa, os conhecimentos e práticas mudaram, receberam
novos significados e alguns continuam a ser vividos.
Percebemos que há orgulho, principalmente dos mais velhos, por conhecer suas
tradições e também vivenciam ao mesmo tempo o medo de perdê-las. A cultura material e
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imaterial Wapichana atual é diversificada na forma de cestos, cuias, há produção variada de
trançados, cerâmica e tecelagem.
Percebemos que os objetos fruto do artesanato Wapichana e patrimônio imaterial
desse povo em muitas ocasiões, na atualidade, são emblemas de sua identidade étnica,
inclusive expõem os objetos artesanais para enfeitar as escolas indígenas e as festas, reuniões
e demais eventos que realizam. Percebemos também que muitos dos Wapichana que ainda
guardam o saber fazer artesanato são falantes da língua wapichana. Supomos então que o falar
wapichana e o saber fazer esses objetos têm estreita relação. De modo parecido como
acontece com os Uitoto, povo indígena que tem a hora de contar histórias sendo a mesma do
fazer artesanato (PEREIRA, 2012).
Muitos desses objetos etnográficos estão relacionados a rituais que acontecem desde o
tempo dos antigos. Alguns caíram em desuso também pela influência das religiões e de outras
instituições, mas os mais velhos continuam transmitindo esses conhecimentos, até, na medida
do possível, os proibidos por instituições como as igrejas que invadiram seus territórios, como
os rituais que envolvem encantações, por exemplo.
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12
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