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Complexificar é tentar ver não apenas o jogo múltiplo das interações, imbricações e retroações, mas também os aspectos opostos de um mesmo fenômeno. Edgar Morin.
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1
Cultura e complexidade - 2011
Universidade Federal de Alagoas
EDGARD DE ASSIS CARVALHO, professor titular de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais, coordenador do núcleo de estudos da complexidade e do comitê de ética em pesquisa da PUC de São Paulo. Coordenador brasileiro da cátedra itinerante UNESCO Edgar Morin.
Cultura e complexidade: um trajeto antropológico
O caráter de um homem é seu destino.
Heráclito.
O mundo é mais perfeito, porque eu mesmo sou imperfeito.
René Descartes
Complexificar é tentar ver não apenas o jogo múltiplo das interações, imbricações e retroações, mas também os aspectos opostos de um mesmo fenômeno.
Edgar Morin.
Conceito-armadilha, a cultura é composta por padrões, regras,
instituições. Por isso, é fábrica da ordem, reprodução do instituído. É também
identificada à superestrutura, bifurcada em cultura científica e cultura das
humanidades, cultura erudita e cultura popular. Na perspectiva do
pensamento complexo, a cultura é um circuito que envolve ordem-desordem-
interação-organização composto por códigos, padrões-modelo, modalidades
de existência, saberes.
2
O sistema cultural não se resume, porém, à mera soma desses
componentes, pois as ações, retroações e trocas que se estabelecem entre
eles o dinamizam a todo tempo e o impulsionam para o indeterminado e o
aleatório. Trata-se de um sistema metabolizante que modeliza as trocas entre
o indivíduo e a sociedade, a sociedade e o cosmo. Além disso, é portador de
uma zona obscura cujo caráter antropocósmico jamais será desvendado e
sistematizado.
Patrimônio e expressão da práxis e das práticas culturais, a cultura é
sempre instrumento de cidadania democrática agenciado e, por vezes,
recalcado em todas as esferas da vida. As dualidades entre erudito e popular,
erudito e massificado, científico e literário não possuem qualquer caráter
ontológico. Cultura é o conjunto sócio-histórico universal dos saberes e
fazeres gerados pelo pensamento humano, é realidade econômica, social,
ideológica articulada ao sistema social global. O código constitutivo desse
conjunto de saberes, afirma Edgar Morin, “é de natureza simultaneamente
cognitiva e estética”.1 Cultura é memória, patrimônio, reserva universal de
saberes e práticas.
Na modernidade liquida do capitalismo globalizado, a cultura se
debate entre pressões locais e injunções universais. As primeiras dizem
respeito a um estilo próprio de sociedades históricas, as segundas obedecem
à pressão da uniformização estéril da imitação e da prescrição dos padrões
da acumulação e da reprodução. Caso ambas sejam relativizadas, o diálogo
intercultural não se efetivará.
François Jullien2 estabelece uma importante distinção entre dois níveis
da universalidade. Uma universalidade fraca e indolente limitada à
experiência concreta e outra forte e rigorosa, cuja legitimação se efetiva por
meio da dominação de determinadas culturas sobre outras. Uma
universalidade forte é fundada na necessidade de princípio de algo que
1 Edgar Morin. Da culturanálise a política cultural. Margem nº 16 (183-221). São Paulo: EDUC dez. 2002, p. 188.
2 François Jullien. O diálogo entre as culturas. Do universal ao multiculturalismo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
3
possa ser aplicável a todos. Ela é importante para o estabelecimento da
princípios éticos comuns formulados a partir de Kant. A ação de qualquer ser
humano, independente de cor, sexo, idade, nação só adquire sentido se se
tornar lei universal. Todo sujeito humano, Julien afirma, “não se perguntará
senão isto: posso universalizar a máxima desse ato”?3
A Declaração dos direitos do homem de 1948, aliás como qualquer
outra, pode ser entendida nos dois sentidos. O sentido fraco é o da extensão
prescritiva, empírica, concreta, a todos os humanos da Terra; o forte decorre
de sua natureza lógica que justifica sua concepção e a converte em valor
universal. Por principio, esse universal transcenderá qualquer modalidade de
diversidade cultural, isso porque se estende a todos os seres racionais. Os
dois sentidos se complementam e se reconciliam, isso se não se deixarem
levar pelas seduções do uniforme.
O uniforme, afirma Jullien, “é o duplo pervertido do universal doravante
disseminado pela globalização”.4 Aqui é que se estabelecem as diferenças de
diferenças, as diversidades de diversidades, pois o uniforme é dependente
das situações históricas concretas. Por isso, as reivindicações identitárias
assumem valor de lei, regra e reivindicação. Sob o disfarce da extensão a
todos das benesses da uniformização, exercita-se uma ditadura disfarçada
de imposição e exportação de valores denominados planetários. Os reflexos
do uniforme podem ser identificados por toda parte. “Fechado finalmente
sobre si mesmo, o todo (planetário) só faz refletir-se: autorreflexo que
constitui doravante fantasisticamente o mundo sob a aparência da similitude
(e da superficialidade)”.5
Sem ser lógico como o universal ou derivado da produção como o
uniforme, o comum é, na essência, biopolítico, ou seja, aquilo que é
partilhado, compartilhado, coparticipado. Envolve planilhas de
reconhecimento mútuo, enraíza-se na experiência. O comum nos leva a
3 François Jullien, op.cit., p. 23.
4 François Jullien, op. cit., p. 14.
5 François Jullien, op. cit., p. 33.
4
refletir sobre ações e decisões que assumimos no dia-a-dia que, apenas no
nível das aparências, parecem restritas à repetição monótona de padrões,
ritmos, códigos, números. Sempre estamos cercados de formatos: em casa,
no trabalho, na afetividade, na política. É preciso transcendê-los para que o
reconhecimento se estenda para alem dos limites das comunidades de
pertencimento.
Muitas vezes revoltas se fazem imperiosas. É verdade que podem
paralisar sujeitos e coletividades, mas também impulsioná-los para novas
reorganizações cognitivas, psíquicas, amorosas. Esse é o sentido comum
daquilo que Michel Serres6 denomina de a arborescência universal dos
acontecimentos. A física da Terra produziu extinções, mas também
emergências de novas espécies vivas, como se causas locais e efeitos
universais, causas físicas e efeitos biológicos, causas naturais e efeitos
culturais estivessem inextricavelmente ligados.
Daí decorre a dupla face do Comum: ele “é ao mesmo tempo
inlcusivo-exclusivo, pode abrir e fechar, opor-se ao próprio e identificar-se
com ele”7. O Comum exige que o reconhecimento se volte à construção de
sujeitos plenos imbuídos da necessidade cosmopolítica de um mundo sócio-
histórico comum; implica transcender o âmbito fechado e sacralizado da pólis
com seus mitos de fundação e consolidação. O pertencimento fechado
engendra intolerâncias. É preciso abri-lo, bifurcá-lo para que a comunidade
não se feche nela mesma. “A comunidade tem como vocação não se cerrar,
mas se descerrar. A própria história do comum, no seio da transformação
política da Grécia antiga, já ia nesse sentido”8.
Se a rede dos saberes humanos se defronta com as antinomias do
universal,do uniforme e do comum, sua transmissão torna-se prioritária para
que os circuitos sócio-históricos sejam preservados, transmitidos, renovados.
6 Michel Serres. Ramos. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
7 François Jullien, op. cit., p. 42.
8 François Jullien, op. cit., 43.
5
Desde o século das Luzes, o dispositivo educativo foi marcado pela
disciplinaridade e pela fragmentação. Cada um com sua área, cada um com
seu poder. Mais tarde, em meados do século vinte, pensou-se em articular o
disciplinar por meio de uma assembléia de áreas que pudessem dialogar
entre si. Surgiu a interdisciplinaridade. A transformação esperada não
ocorreu e a fragmentação continuou a administrar saberes e cognições.
A transdisciplinaridade requerida pela complexidade vai além das
disciplinas sem contudo negá-las. O conhecimento disciplinar especializado é
relevante, mas precisa ser inserido em feixes interpretativos mais amplos.
Esse meta ponto de vista não diaboliza as especialidades e, muito menos,
abdica do lado analítico que envolve o processo do conhecimento. É preciso,
porém, ir além dele, e assumir que o todo não existe sem a parte e nem a
parte sem o todo. É preciso ter sempre em mente a recomendação de
Pascal. “Sendo as coisas causadas e causantes, ajudadas e ajudantes,
mediatas e imediatas, e todas se mantendo por um laço natural e insensível
que liga as mais afastadas e as mais diferentes, tenho como impossível
conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem
conhecer particularmente as partes.”9
A cultura é, portanto, um sistema aberto e bifurcado. As diferenças
culturais existem, e isso é claro, mas é preciso inseri-las no fluxo da
universalidade e não na uniformidade que o capitalismo globalizado pretende
impor às formações culturais em seu conjunto. A colaboração intercultural é
fundamental para a democracia de povos e nações, para uma política de
civilização comum a todos. A cultura deve impulsionar as comunidades para
o futuro sustentável, para a governança global pautada pela fraternização de
povos e culturas. A complexidade representa um meta ponto de vista que liga
o separado, contextualiza o descontextualizado, entrelaça o desentrelaçado,
tece o conjunto. Repensar a relação natureza/cultura torna-se algo inadiável,
prioritário, ético. Afinal, o mundo vivo está diante de nós e, ao mesmo tempo,
dentro de nós.
9 Blaise Pascal. Pensamentos. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo, Martins Fontes, 2005, seção XV, Papéis classificados, Transição, p. 84.
6
O mundo vivo é sempre envolvido num circuito tetralógico composto
de ordens, desordens, interações e reorganizações que se retroalimentam a
todo tempo. A unidade complexa da natureza contém relações entre todo e
parte, emergências, complementaridades, antagonismos.
Os ecossistemas são sistemas vivos que integram a organização
biológica na ordem cósmica. Essa eco-organização entrelaça diversidades,
regulações, emergências, dissipações. Envolve adaptações, trocas, seleções
que retroalimentam um circuito recursivo dinâmico e aberto. Trata-se,
portanto, de uma espiral ecobioantropossocial que restaura e renova a
natureza viva. A natureza da integração e a integração da natureza
caminham juntas.
Nesse processo saturado de contradições, o sujeito assume destaque
especial na produção de eventos-verdade. Não se trata de um sujeito –
subjectum – que se submete às forças indômitas da natureza, mas um sujeito
autônomo simultaneamente endo e exo referente. Sempre impuro, o sujeito
inclui e exclui a ele mesmo e aos outros, computa sua existência pessoal, ao
mesmo tempo que estabelece suas relações com alteridades de todo tipo.
Altruísta e egoísta, feliz e infeliz, sua identidade complexa requer auto-
reflexão permanente para que a ética do conhecimento e as comunidades de
aprendizagem venham a ser construídas e consolidadas.
Imerso historicamente em redes policêntricas e abertas que se
reorganizam por toda parte, o sujeito passa a se perceber como solitário e
comunitário, depressivo e melancólico, local e global. Sua solidão entristecida
pode ser converter numa solitude criativa. Por isso, é necessário que entenda
o sentido da vida, da morte, do sonho, do delírio. Munido dessa força ideativa
e política torna-se capaz de resistir à barbárie, à agonia planetária, à
fragmentação dos saberes. Nossa hipercomplexidade pode e deve ser posta
em prática em nome da humanidade do amor e do amor da humanidade.
Essa abertura bioantropossociológica é a marca indelével do
inacabamento humano. Retornar à origem, ao primordial, ao arquetípico
implica reconhecê-lo, admiti-lo, restaurá-lo. Conhecer é, antes de mais nada,
computar e essa computação é efetivada por meio de imbricamentos dos
7
itinerários racional-lógico-dedutivo e simbólico-mítico-imaginário, ambos
regidos por relações de complementaridade, antagonismo e concorrência. É
assim que a inteligência humana se organiza, a cognição se estrutura, a
consciência se forma.
O que marca o conhecimento são os circuitos entre sujeito e objeto,
espírito e mundo. Por isso, são as relações de incerteza e os buracos negros
que possibilitam a emergência de novas singularidades, que dão o tom do
conhecimento dos conhecimentos. Em decorrência disso, os saberes são
sempre provisórios, inacabados, incompletos. Quaisquer que sejam,
cognitivos inclusive, os ecossistemas comportam acontecimentos aleatórios,
desordenados e ambíguos para o observador. Os conhecimentos vivem
sempre no limite de sua própria destruição. Causalidades e determinismos
não foram e nem serão extintos, mas devem ser colocados em seu devido
lugar e, portanto, não serem tomados como um caminho de mão única,
responsável pela criação e deflagração dos processos cognitivos.
Há sempre uma brecha que organiza os limites e as fulgurações da
consciência. Mentes humanas encontram-se às voltas com o fantasma do
erro, com a pulsão da elucidação, com as fronteiras da razão e as seduções
da desrazão. Não somos os únicos detentores de conhecimentos simbólicos
sistematizados, isso porque primatas não humanos – chimpanzés, gorilas,
bonobos – elaboram classificações, explicitam sentimentos, compreendem o
sentido da morte, possuem cultura, ou sejam são capazes de construir e
reelaborar símbolos e transmiti-los a seus congêneres.
O que nos diferencia na qualidade de primatas humanos, é que somos
portadores de um polienraizamento antrropológico cerebral-espiritual-cultural-
social que, por sua vez, exige um polienraizamento físico-biológico-zoológico.
Submetidos ao espírito do tempo, é a partir deles que somos capazes de
diagnosticar, propor, teorizar, imaginar a complexidade do real e o real da
complexidade e colocá-los na contramão da idade de ferro planetária que
marca a hipermodernidade. A razão e a racionalidade são signos de nossa
animalidade, a corporalidade matéria de nosso ser intelectual.
8
A hipertécnica redundou em muito esnobismo, mas também em muito
aborrecimento, sensaboria, tédio, fastio, amolação. A restauração do
indivíduo fraterno, amoroso é base da ação educativa e vai na contramão de
um certo ateísmo da indiferença instalado nos intramuros da pólis. Basta
lembrar o sentido do Emilio de Jean-Jacques Rousseau. Educar, afirma
Rousseau, é ensinar a viver.
São os circuitos de idéias – noosferas e noologias - que dão sentido
ao mundo. Ao desfazer as fronteiras entre cultura científica e cultura das
humanidades, a constante metamorfose da noosfera fornece a pedra angular
da construção de uma auto-trans-meta-sociologia. Criações humanas são
sempre bioantropossociais e o homem simultaneamente natureza e cultura.
Há quatro esferas articuladas da vida: a biosfera contém uma miríade de
seres diversos, a antroposfera articula as relações histórico-culturais, a
psicoesfera baliza as formações ocultas do inconsciente, a socioesfera
formata as socialidades e explicita o preço que se paga para viver junto..
Esses quatro níveis compõem uma totalidade aberta partes. É ela que
compõe o mundo real e o mundo ideal.
Quando as idéias se blindam, convertem-se em doutrinas que dão
admitem contestação e argumentos contrários. Os sistemas de idéias que
compõem as teorias são, portanto, biodegradáveis, abertos para o externo,
auto-exo-regenerados, jamais ideologias da promessa que mundo auto-
centrado que se pretende superior e exclusivo. São protocolos históricos que
selam o cotidiano, administram o conflito das interpretações, ativam circuitos
de memória individual e coletiva, impedem que o esquecimento se consolide.
As noologias atuam como o operador organizacional do acervo gerado
na noosfera. É nas comunidades de linguagem que a noologia encontra seu
fundamento por meio da emergência e consolidação de relações de sentido
entre significante, significado e referente. Por isso, as formações noológicas
são tecnologias sociais hologramáticas, pois a parte sempre está no todo e
todo sempre está na parte. As teorias, porém, sempre buscam coerências e
relações de verificabilidade e articulação com o mundo objetivo nem sempre
9
objetiváveis. De longa data, sabe-se que sistemas teóricos são recheados de
brechas, indeterminações, incertezas.
A complexidade pensa com a contradição e, também, contra ela. Por
isso, a incerteza da contradição e a contradição da incerteza são vitais para a
criatividade e a invenção. O maior problema das noologias é o paradigma.
Caso se torne consensual, inquestionável e invulnerável, converte-se em
modelo ou regra geral que comanda um sistema fechado de representações
e crenças, de luzes que não admitem a existência das sombras. O paradigma
deve ser entendido como paisagem mental composta pelos campos racional
e emocional. Por isso, é, ao mesmo tempo, semântico, lógico e ideológico.
Mesmo históricos, os conceitos e teorias o circundam são impuros, trazem
restos de outros conceitos. São sobrevôos, linhas de fuga a serem
permanentemente reformadas e redefinidas nas e pelas comunidades de
aprendizagem. Por isso, o entendimento da filosofia, da ciência, da arte são
complementares e mutuamente imbricados.
Há dois paradigmas básicos: o da disjunção que separa homem e
natureza, razão e desrazão, e o da conjunção que prega a unidualidade,
religa cérebro e mente, psique e imaginação, desejo e recalque.
Hegemônica, a cultura ocidental cindiu sujeito e objeto, alma e corpo, espírito
e matéria, qualidade e quantidade, liberdade e determinismo, existência e
essência. O pensamento complexo prega uma revolução que questiona
essas dualidades e as coloca em circuito recursivo, em movimento fluente,
redirecionando, assim, o sentido das aprendizagens, das tecnologias sociais,
da preservação do patrimônio, das reservas simbólicas de memória, das
ações biopolíticas.
Os paradigmas não são camisas de força que enquadram pessoas,
relações, sistemas. Paradigmas são multidimensionais, impacientes, sempre
prontos a ampliar o entendimento da vida, essa é sua função e horizonte.
Móveis e nômades, requerem mobilização constante dos atores sociais para
que não se deixem contaminar pela lógica da convenção que submete,
paralisa e fragmenta e se reeduquem por intermédio da lógica da audácia
que enfrenta, afronta, diz a verdade ao poder.
10
A audácia, a criatividade, a revolta devem reger o cotidiano das
sociedades cosmopolitas. Assumi-las como prática biopolítica implica
reconhecer a potencialidade dos enfrentamentos das contradições da idade
de ferro planetária, admitir que a colaboração e o diálogo culturais podem ser
um caminho para a construção da paz, da solidariedade, da política de
civilização. As desgastadas noções de identidade e diversidade devem ser
substituídas por espirais de reconhecimento pautadas por valores de
liberdade, autonomia, autodeterminação. As identidades complexas são
sempre híbridas, polifônicas, arlequinadas.
Essas espirais investem no sentido trinitário situado no mundo da vida
composto pelo indivíduo, pela sociedade, pela espécie. Relações de
antagonismo, concorrência e complementaridade movem a dinâmica desses
termos e, portanto, expandem a identidade para além de sua comunidade de
pertencimento, desterritorializam os saberes tecnossociais inserindo-os na
diáspora sapiental universal, exibem os dilemas da condição humana
objetivados nas dialogias e recursividades entre humano e inumano,
racionalidade e afetividade, razão e mito.
As concepções redutoras e privatizadas do homo sapiens, faber,
economicus, ludens, videns devem ruir um castelo de cartas. Em seu lugar,
surgirá uma visão de mundo ilustrada pelo caráter uno, múltiplo, provisório e
arlequinado de nossa identidade biológica, subjetiva, social.
Nossas sociedades precisam de novos mitos que dêem conta das
potencialidades do sapiens-demens e permitam contextualizar a emergência
das complexidades individuais, das qualidades de alma, das instabilidades
dos afetos. O conteúdo da identidade complexa é, portanto, hologramático. A
identidade não termina nas fronteiras da tribo, estende-se para além delas. O
inferno não são os outros, talvez o inferno esteja dentro de nós mesmos. O
reconhecimento desse fato recalcado requer implica entender a identidade
como algo vivencial, ramificado, flutuaente, pois espelha possibilidades,
limites e projeções de um destino histórico irreversível cujas rubricas são a
indeterminação, a incerteza, a singularidade, algo que jamais será dado ou
promulgado, mas que será construído por ações concretas. Como afirmou
11
Ilya Prigogine, “na vida social, a memória do passado, a antecipação do
futuro, e o presente se entrecruzam do mesmo modo que determinismo e
acontecimentos cuja resolução é sempre aleatória”10.
É preciso retornar ao homem genérico. Construída por Marx, a noção
é desprovida de subjetividade, emoção, amor, loucura, poesia, pois o homo
faber fabricador das técnicas e inventor da dominação incontrolada da
natureza ainda permanece como um destemido desbravador dos
ecossistemas naturais, responsável pela construção racional de uma
segunda natureza. A natureza é sempre primeira, primordial, obra-prima da
evolução da vida. Não se trata, portanto, de destituir Marx, mas inseri-lo nos
circuitos da modernidade liquida. O pensamento complexo pensa com Marx e
não contra ele.
Reciclado e regenerado, o homem genérico encontra-se, agora,
saturado de emoções. Envolve-se sempre com os confortos da repetição, os
desafios da criatividade, os sentimentos de comunidade. Esse novo sentido
tornará possível pôr em exercício uma reforma interior, subjetiva, que
possibilite habitar poeticamente a Terra. Cedo ou tarde, teremos de assumir o
destino trágico do sapiens-demens e perseguir uma trajetória hominescente
que garanta a sustentabilidade e a biodiversidade planetárias.
Esse horizonte não será obtido por decreto em encontros
internacionais nos quais estados e nações exibem uma arrogância sem
precedentes que impede processos decisórios mais amplos, como se
constatou recentemente na conferência de Copenhagen nos estertores de
2009, nas recentes reuniões da biodiversidade. Ele requer uma reforma do
pensamento, implica um processo de construção que envolve um trajeto
antropológico que descentra o homem, reinserindo-o no mundo da natureza
plena. Sabemos desde Darwin, que a seleção natural é apenas um agente-
guia e não um piloto que sabe definir com precisão a trajetória a ser
percorrida. A evolução das espécies nos ensina que somos apenas uma
ramificação da árvore da vida. Ensina, também, que 130 mil anos de
10 Ilya Prigogine. Ciência, razão e paixão. Organização Edgard de Assis Carvalho, Maria da Conceição de Almeida. São Paulo, Editora da Física, 2009, p. 105.
12
ontogênese e filogênese contam pouco na trajetória das espécies vivas do
planeta.
É preciso, também, retomar o pensamento da ética e a ética do
pensamento, recuperar o tempo perdido, reciclar os circuitos da memória
voluntária e involuntária, reativar os circuitos da memória voluntária e
involuntária, repensar os sentidos da eco-organização, da teoria, do cérebro,
do sujeito, da era planetária e, mais do que nunca, do corpo. Deixado de lado
pelos sujeitos, o corpo requer treinamento, repetição, treinamento,
movimento, pois seu aparelhamento sempre surpreende e inova. O corpo e a
mente constituem unidade indissolúvel.
Todo ato ético implica religação com os outros, com os seus, com a
comunidade, a humanidade e o cosmo. Como tudo que é humano, a ética
defronta-se com incertezas e contradições, isso pelo fato de a ecologia da
ação nos indicar que qualquer ato humano escapa cada vez mais da
intencionalidade de seus autores. Sempre há riscos e precauções, pois o que
está em jogo é a relação entre meios e fins.
A ética da responsabilidade aliada à ética da convicção é o protocolo
de um novo contrato simultaneamente natural e cultural. Por isso, a ética de
si (autoética), a ética do outro (socioética), a ética da espécie (antopoética)
são inseparáveis e entrelaçados. Essa plataforma de eticidade possibilita a
ativação do pensamento, a redefinição dos devires sociais, a instauração da
democracia do pensamento e da política de civilização.
No lugar de se reduzir a um código binário, a ética complexa concebe
que o mal contém o bem, o justo e o injusto, o contingente e o necessário.
Assumir a incerteza do destino humano implica, portanto, assumir a incerteza
ética. A racionalidade aberta e emergente concebe a autonomia da
individualidade, mas também reconhece as forças ilusórias, as deformações
da psique, a auto-justificação, a mentira para si mesmo.
Exercitar cotidianamente a resistência às barbáries interiores e
exteriores requer a prática da ética da religação e da tolerância, a ética da
amizade, da compreensão, do perdão. Regeneração é, portanto, a palavra-
13
chave dos desafios éticos a serem enfrentados pelas comunidades de
aprendizagem. É preciso, e urgente, reformar a sociedade, a civilização, a
vida, a alma e o corpo. Essa é a missão ética diante da crise planetária. É ela
que tem a tarefa insana de regenerar o humanismo e restaurar a esperança.
Caminhos e descaminhos de processos éticos mostram que o homem
sábio e a chamada vida correta não são meras especulações de uma vã
filosofia, nem distrações típicas de poetas e romancistas. São, isso sim,
formas de resistência à racionalidade instrumental que circunda o mundo real
e ideal, modalidades de resiliência consigo mesmo, com os outros, com o
cosmo. No lugar de uma monocultura da mente, uma policultura da vida.
Podemos assumir o pressuposto de que nenhuma sociedade é capaz
de pensar a si mesma com sabedoria e autonomia sem a religação. Por um
estranho paradoxo, as instituições educacionais continuam a fortalecer o
modelo da fragmentação, da especialização e da disciplinarização, supondo
que apenas as competências tecnocientíficas são suficientes para resolver as
contradições de um mundo global transnacionalizado.
A prática da compreensão deve espraiar-se por todos os domínios da
vida, mesmo que praticada em pequenos ecossistemas, grupos, instituições.
Volta-se para o entendimento dos desdobramentos do mal-estar da cultura.
Compreensão é sempre meio e fim, necessidade planetária, consciência de
pertencimento, preservação da Terra-pátria. Se constatamos a
incompreensão por toda parte, podemos acionar nossas reservas simbólicas
de revolta em prol de uma identidade comum que religue parte e todo, texto e
contexto, local e global.
O trajeto antropológico, de resto como todo trajeto marcado pela
irreversibilidade, envolve sempre perdas, ganhos, opções, utopias, distopias.
Daí não haver um receituário de procedimentos e formatos que o definam.
Em construção permanente, o trajeto é um extenso processo sócio-historico
que nunca terminará enquanto o homem sobreviver como espécie e gênero.
Exige a prática da atenção permanente e processos graduais que viabilizem
sensações voltadas para modalidades de integração à totalidade.
14
Se é forçoso reconhecer que as biotecnologias decifradoras de
genomas mudam nossas relações com a duração, bombas atômicas e
guerras alteram nossas relações com a morte. Nunca dispusemos de tantos
meios para melhorar o mundo, e mesmo assim não o fazemos. Nos poderes
mudaram de escala. Devemos agora pensar global e agir local.
Onipotentes e inconscientes de nossa fragilidade, devastamos os
ecossistemas de tal maneira que hoje, na primeira década do século 21,
vivemos sem garantias futuras de usufruir de águas e terras, a não ser que
uma política preservacionista e sustentável circunde as tecnologias sociais.
Trata-se de buscar uma hominescência, neologismo criado por Michel
Serres11 para designar um diferencial do processo de hominização, um
princípio-esperança diante da iminência da guerra total de todos contra todos.
Respostas para as questões tais como Para onde vamos? e Para onde
queremos ir? deixam de ser especulações filosóficas adjetivas e traduzem a
ansiedade substantiva de todos.
De qualquer forma, ainda sobram espaços e tempos ético-políticos
para o reequilíbrio planetário. Neles a ausência de guerras e a cultura de paz
ganham estatuto de universalidade e reacendem o sentido da comunidade de
destino. Ciências e técnicas colocam-se a serviço do bem-estar da
Humanidade. Se assistimos estupefatos ao fim de um ciclo cultural do
capitalismo tardio, novos sujeitos hominescentes podem tornar-se
responsáveis diretos pelo advento de uma sociedade-mundo solidária,
regeneradora do dignidade humana no planeta, nossa habitação comum,
nossa terra global.
Por isso, os pensadores imbuídos do sentido dessa utopia realizável –
artistas, cientistas, filósofos – continuam a imaginar, inventar, propor,
projetar. Nunca desistem, mesmo que, por vezes, a melancolia, o tédio, a
desesperança os invadam. Reais, imaginárias simbólicas, suas narrativas
atravessam a flecha do tempo, ampliam a cultura, formatam a biblioteca
11 Michel Serres. Hominescências, o começo de uma outra humanidade. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
15
universal da vida, instauram novas formas de sociabilidade, restauram a
esperança, reencantam o conhecimento, recuperam o tempo perdido que
não pode se perder mais.
Face aos fenômenos extremos que nos circundam, a única
imortalidade que conta, afirma Tzvetan Todorov12, é aquela que entende que
os outros vivem em nós, assim como nós vivemos nos outros. Somos seres
imperfeitos, frágeis, fazemos concessões, cometemos erros por vezes
irreparáveis. Precisamos extrair as conseqüências dessa constatação. De
nada adianta nos revoltarmos contra a condição humana. A passividade
resignada só atende aos donos do poder. Necessitamos defender a
dignidade humana a qualquer preço. Não é apenas nos campos totalitários
que a encarnação do mal se torna visível. Ela está aqui e agora no mundo
intersubjetivo, impregna a cultura, o poder, a política, a tecnociência.
Somos feitos de mortes e renascimentos sucessivos. Não há um
modelo prescritivo para nenhuma vida, apenas guias, operadores simbólicos
para a ecologia dos saberes, ações, amores. Paixão e compaixão, aceitação
e revolta, degeneração e regeneração encontram-se sempre entrelaçadas na
cultura humana. São a via possível que teremos de trilhar para acessar a
grande narrativa da vida. É ela que reconstrói o sujeito, repensa o futuro,
redefine os jogos de linguagem. Mesmo que tenhamos de reconhecer o papel
que as biotecnologias venham a desempenhar em um futuro próximo, não
podemos conferir-lhes papel determinante nas mutações contemporâneas
que, a cada dia, nos tomam de assalto.
Reservatório de matérias, conservatório de imagens, nossa Terra
requer um homem afinado com valores universais, simultaneamente local e
global, natural e cultural, prosaico e poético. Se as únicas armas de que
dispomos são a linguagem e o ensino, que as utilizemos na construção de
um sujeito incandescente, uno e múltiplo, biocultural, apto a exorcizar a
banalidade do mal e empenhar-se na banalidade do bem. Talvez assim
sejamos um pouco mais felizes na nossa curta passagem no planeta. Em um
12 Tzvetan Todorov. La signature humaine. Essais 1983-2008. Paris, Seuil, 2009.
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dos seus ensaios, Michel Serres definiu a vida de maneira luminosa e é com
ela que finalizo este texto: A vida, afirma Serres13, é “a associação entre um
banco universal de tempos e suas diversas reversibilidades que consomem a
a invisível moeda que ela representa”. A vida é breve e a eternidade frágil.
Culturas não são apenas feitas de padrões e nem se assemelham a fábricas
da ordem. Culturas são mosaicos de tempo-espaço empenhados na
preservação da memória cultural oriunda da Grande Narrativa. Somos seres
vivos portadores de valência zero e, simultaneamente, de infindáveis
potencialidades, sempre prontas a emergir quando menos se espera. Talvez
seja esse o sentido da felicidade, do amor, da sabedoria.
Em um de seus últimos livros14, ao ser perguntado sobre o sentido da
felicidade, aos 89 anos, Edgar Morin afirmou o seguinte: “Sim, sou feliz, mas
tenho um lado melancólico, como a face obscura da Lua.
13 Michel Serres. O incandescente. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p.299.
14 Edgar Morin. Meu caminho. Entrevistas com Djénane Kareh Tager. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.