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1 Cultura e complexidade - 2011 Universidade Federal de Alagoas EDGARD DE ASSIS CARVALHO, professor titular de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais, coordenador do núcleo de estudos da complexidade e do comitê de ética em pesquisa da PUC de São Paulo. Coordenador brasileiro da cátedra itinerante UNESCO Edgar Morin. Cultura e complexidade: um trajeto antropológico O caráter de um homem é seu destino. Heráclito. O mundo é mais perfeito, porque eu mesmo sou imperfeito. René Descartes Complexificar é tentar ver não apenas o jogo múltiplo das interações, imbricações e retroações, mas também os aspectos opostos de um mesmo fenômeno. Edgar Morin. Conceito-armadilha, a cultura é composta por padrões, regras, instituições. Por isso, é fábrica da ordem, reprodução do instituído. É também identificada à superestrutura, bifurcada em cultura científica e cultura das humanidades, cultura erudita e cultura popular. Na perspectiva do pensamento complexo, a cultura é um circuito que envolve ordem-desordem- interação-organização composto por códigos, padrões-modelo, modalidades de existência, saberes.

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Complexificar é tentar ver não apenas o jogo múltiplo das interações, imbricações e retroações, mas também os aspectos opostos de um mesmo fenômeno. Edgar Morin.

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Cultura e complexidade - 2011

Universidade Federal de Alagoas

EDGARD DE ASSIS CARVALHO, professor titular de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais, coordenador do núcleo de estudos da complexidade e do comitê de ética em pesquisa da PUC de São Paulo. Coordenador brasileiro da cátedra itinerante UNESCO Edgar Morin.

Cultura e complexidade: um trajeto antropológico

O caráter de um homem é seu destino.

Heráclito.

O mundo é mais perfeito, porque eu mesmo sou imperfeito.

René Descartes

Complexificar é tentar ver não apenas o jogo múltiplo das interações, imbricações e retroações, mas também os aspectos opostos de um mesmo fenômeno.

Edgar Morin.

Conceito-armadilha, a cultura é composta por padrões, regras,

instituições. Por isso, é fábrica da ordem, reprodução do instituído. É também

identificada à superestrutura, bifurcada em cultura científica e cultura das

humanidades, cultura erudita e cultura popular. Na perspectiva do

pensamento complexo, a cultura é um circuito que envolve ordem-desordem-

interação-organização composto por códigos, padrões-modelo, modalidades

de existência, saberes.

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O sistema cultural não se resume, porém, à mera soma desses

componentes, pois as ações, retroações e trocas que se estabelecem entre

eles o dinamizam a todo tempo e o impulsionam para o indeterminado e o

aleatório. Trata-se de um sistema metabolizante que modeliza as trocas entre

o indivíduo e a sociedade, a sociedade e o cosmo. Além disso, é portador de

uma zona obscura cujo caráter antropocósmico jamais será desvendado e

sistematizado.

Patrimônio e expressão da práxis e das práticas culturais, a cultura é

sempre instrumento de cidadania democrática agenciado e, por vezes,

recalcado em todas as esferas da vida. As dualidades entre erudito e popular,

erudito e massificado, científico e literário não possuem qualquer caráter

ontológico. Cultura é o conjunto sócio-histórico universal dos saberes e

fazeres gerados pelo pensamento humano, é realidade econômica, social,

ideológica articulada ao sistema social global. O código constitutivo desse

conjunto de saberes, afirma Edgar Morin, “é de natureza simultaneamente

cognitiva e estética”.1 Cultura é memória, patrimônio, reserva universal de

saberes e práticas.

Na modernidade liquida do capitalismo globalizado, a cultura se

debate entre pressões locais e injunções universais. As primeiras dizem

respeito a um estilo próprio de sociedades históricas, as segundas obedecem

à pressão da uniformização estéril da imitação e da prescrição dos padrões

da acumulação e da reprodução. Caso ambas sejam relativizadas, o diálogo

intercultural não se efetivará.

François Jullien2 estabelece uma importante distinção entre dois níveis

da universalidade. Uma universalidade fraca e indolente limitada à

experiência concreta e outra forte e rigorosa, cuja legitimação se efetiva por

meio da dominação de determinadas culturas sobre outras. Uma

universalidade forte é fundada na necessidade de princípio de algo que

1 Edgar Morin. Da culturanálise a política cultural. Margem nº 16 (183-221). São Paulo: EDUC dez. 2002, p. 188.

2 François Jullien. O diálogo entre as culturas. Do universal ao multiculturalismo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

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possa ser aplicável a todos. Ela é importante para o estabelecimento da

princípios éticos comuns formulados a partir de Kant. A ação de qualquer ser

humano, independente de cor, sexo, idade, nação só adquire sentido se se

tornar lei universal. Todo sujeito humano, Julien afirma, “não se perguntará

senão isto: posso universalizar a máxima desse ato”?3

A Declaração dos direitos do homem de 1948, aliás como qualquer

outra, pode ser entendida nos dois sentidos. O sentido fraco é o da extensão

prescritiva, empírica, concreta, a todos os humanos da Terra; o forte decorre

de sua natureza lógica que justifica sua concepção e a converte em valor

universal. Por principio, esse universal transcenderá qualquer modalidade de

diversidade cultural, isso porque se estende a todos os seres racionais. Os

dois sentidos se complementam e se reconciliam, isso se não se deixarem

levar pelas seduções do uniforme.

O uniforme, afirma Jullien, “é o duplo pervertido do universal doravante

disseminado pela globalização”.4 Aqui é que se estabelecem as diferenças de

diferenças, as diversidades de diversidades, pois o uniforme é dependente

das situações históricas concretas. Por isso, as reivindicações identitárias

assumem valor de lei, regra e reivindicação. Sob o disfarce da extensão a

todos das benesses da uniformização, exercita-se uma ditadura disfarçada

de imposição e exportação de valores denominados planetários. Os reflexos

do uniforme podem ser identificados por toda parte. “Fechado finalmente

sobre si mesmo, o todo (planetário) só faz refletir-se: autorreflexo que

constitui doravante fantasisticamente o mundo sob a aparência da similitude

(e da superficialidade)”.5

Sem ser lógico como o universal ou derivado da produção como o

uniforme, o comum é, na essência, biopolítico, ou seja, aquilo que é

partilhado, compartilhado, coparticipado. Envolve planilhas de

reconhecimento mútuo, enraíza-se na experiência. O comum nos leva a

3 François Jullien, op.cit., p. 23.

4 François Jullien, op. cit., p. 14.

5 François Jullien, op. cit., p. 33.

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refletir sobre ações e decisões que assumimos no dia-a-dia que, apenas no

nível das aparências, parecem restritas à repetição monótona de padrões,

ritmos, códigos, números. Sempre estamos cercados de formatos: em casa,

no trabalho, na afetividade, na política. É preciso transcendê-los para que o

reconhecimento se estenda para alem dos limites das comunidades de

pertencimento.

Muitas vezes revoltas se fazem imperiosas. É verdade que podem

paralisar sujeitos e coletividades, mas também impulsioná-los para novas

reorganizações cognitivas, psíquicas, amorosas. Esse é o sentido comum

daquilo que Michel Serres6 denomina de a arborescência universal dos

acontecimentos. A física da Terra produziu extinções, mas também

emergências de novas espécies vivas, como se causas locais e efeitos

universais, causas físicas e efeitos biológicos, causas naturais e efeitos

culturais estivessem inextricavelmente ligados.

Daí decorre a dupla face do Comum: ele “é ao mesmo tempo

inlcusivo-exclusivo, pode abrir e fechar, opor-se ao próprio e identificar-se

com ele”7. O Comum exige que o reconhecimento se volte à construção de

sujeitos plenos imbuídos da necessidade cosmopolítica de um mundo sócio-

histórico comum; implica transcender o âmbito fechado e sacralizado da pólis

com seus mitos de fundação e consolidação. O pertencimento fechado

engendra intolerâncias. É preciso abri-lo, bifurcá-lo para que a comunidade

não se feche nela mesma. “A comunidade tem como vocação não se cerrar,

mas se descerrar. A própria história do comum, no seio da transformação

política da Grécia antiga, já ia nesse sentido”8.

Se a rede dos saberes humanos se defronta com as antinomias do

universal,do uniforme e do comum, sua transmissão torna-se prioritária para

que os circuitos sócio-históricos sejam preservados, transmitidos, renovados.

6 Michel Serres. Ramos. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

7 François Jullien, op. cit., p. 42.

8 François Jullien, op. cit., 43.

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Desde o século das Luzes, o dispositivo educativo foi marcado pela

disciplinaridade e pela fragmentação. Cada um com sua área, cada um com

seu poder. Mais tarde, em meados do século vinte, pensou-se em articular o

disciplinar por meio de uma assembléia de áreas que pudessem dialogar

entre si. Surgiu a interdisciplinaridade. A transformação esperada não

ocorreu e a fragmentação continuou a administrar saberes e cognições.

A transdisciplinaridade requerida pela complexidade vai além das

disciplinas sem contudo negá-las. O conhecimento disciplinar especializado é

relevante, mas precisa ser inserido em feixes interpretativos mais amplos.

Esse meta ponto de vista não diaboliza as especialidades e, muito menos,

abdica do lado analítico que envolve o processo do conhecimento. É preciso,

porém, ir além dele, e assumir que o todo não existe sem a parte e nem a

parte sem o todo. É preciso ter sempre em mente a recomendação de

Pascal. “Sendo as coisas causadas e causantes, ajudadas e ajudantes,

mediatas e imediatas, e todas se mantendo por um laço natural e insensível

que liga as mais afastadas e as mais diferentes, tenho como impossível

conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem

conhecer particularmente as partes.”9

A cultura é, portanto, um sistema aberto e bifurcado. As diferenças

culturais existem, e isso é claro, mas é preciso inseri-las no fluxo da

universalidade e não na uniformidade que o capitalismo globalizado pretende

impor às formações culturais em seu conjunto. A colaboração intercultural é

fundamental para a democracia de povos e nações, para uma política de

civilização comum a todos. A cultura deve impulsionar as comunidades para

o futuro sustentável, para a governança global pautada pela fraternização de

povos e culturas. A complexidade representa um meta ponto de vista que liga

o separado, contextualiza o descontextualizado, entrelaça o desentrelaçado,

tece o conjunto. Repensar a relação natureza/cultura torna-se algo inadiável,

prioritário, ético. Afinal, o mundo vivo está diante de nós e, ao mesmo tempo,

dentro de nós.

9 Blaise Pascal. Pensamentos. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo, Martins Fontes, 2005, seção XV, Papéis classificados, Transição, p. 84.

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O mundo vivo é sempre envolvido num circuito tetralógico composto

de ordens, desordens, interações e reorganizações que se retroalimentam a

todo tempo. A unidade complexa da natureza contém relações entre todo e

parte, emergências, complementaridades, antagonismos.

Os ecossistemas são sistemas vivos que integram a organização

biológica na ordem cósmica. Essa eco-organização entrelaça diversidades,

regulações, emergências, dissipações. Envolve adaptações, trocas, seleções

que retroalimentam um circuito recursivo dinâmico e aberto. Trata-se,

portanto, de uma espiral ecobioantropossocial que restaura e renova a

natureza viva. A natureza da integração e a integração da natureza

caminham juntas.

Nesse processo saturado de contradições, o sujeito assume destaque

especial na produção de eventos-verdade. Não se trata de um sujeito –

subjectum – que se submete às forças indômitas da natureza, mas um sujeito

autônomo simultaneamente endo e exo referente. Sempre impuro, o sujeito

inclui e exclui a ele mesmo e aos outros, computa sua existência pessoal, ao

mesmo tempo que estabelece suas relações com alteridades de todo tipo.

Altruísta e egoísta, feliz e infeliz, sua identidade complexa requer auto-

reflexão permanente para que a ética do conhecimento e as comunidades de

aprendizagem venham a ser construídas e consolidadas.

Imerso historicamente em redes policêntricas e abertas que se

reorganizam por toda parte, o sujeito passa a se perceber como solitário e

comunitário, depressivo e melancólico, local e global. Sua solidão entristecida

pode ser converter numa solitude criativa. Por isso, é necessário que entenda

o sentido da vida, da morte, do sonho, do delírio. Munido dessa força ideativa

e política torna-se capaz de resistir à barbárie, à agonia planetária, à

fragmentação dos saberes. Nossa hipercomplexidade pode e deve ser posta

em prática em nome da humanidade do amor e do amor da humanidade.

Essa abertura bioantropossociológica é a marca indelével do

inacabamento humano. Retornar à origem, ao primordial, ao arquetípico

implica reconhecê-lo, admiti-lo, restaurá-lo. Conhecer é, antes de mais nada,

computar e essa computação é efetivada por meio de imbricamentos dos

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itinerários racional-lógico-dedutivo e simbólico-mítico-imaginário, ambos

regidos por relações de complementaridade, antagonismo e concorrência. É

assim que a inteligência humana se organiza, a cognição se estrutura, a

consciência se forma.

O que marca o conhecimento são os circuitos entre sujeito e objeto,

espírito e mundo. Por isso, são as relações de incerteza e os buracos negros

que possibilitam a emergência de novas singularidades, que dão o tom do

conhecimento dos conhecimentos. Em decorrência disso, os saberes são

sempre provisórios, inacabados, incompletos. Quaisquer que sejam,

cognitivos inclusive, os ecossistemas comportam acontecimentos aleatórios,

desordenados e ambíguos para o observador. Os conhecimentos vivem

sempre no limite de sua própria destruição. Causalidades e determinismos

não foram e nem serão extintos, mas devem ser colocados em seu devido

lugar e, portanto, não serem tomados como um caminho de mão única,

responsável pela criação e deflagração dos processos cognitivos.

Há sempre uma brecha que organiza os limites e as fulgurações da

consciência. Mentes humanas encontram-se às voltas com o fantasma do

erro, com a pulsão da elucidação, com as fronteiras da razão e as seduções

da desrazão. Não somos os únicos detentores de conhecimentos simbólicos

sistematizados, isso porque primatas não humanos – chimpanzés, gorilas,

bonobos – elaboram classificações, explicitam sentimentos, compreendem o

sentido da morte, possuem cultura, ou sejam são capazes de construir e

reelaborar símbolos e transmiti-los a seus congêneres.

O que nos diferencia na qualidade de primatas humanos, é que somos

portadores de um polienraizamento antrropológico cerebral-espiritual-cultural-

social que, por sua vez, exige um polienraizamento físico-biológico-zoológico.

Submetidos ao espírito do tempo, é a partir deles que somos capazes de

diagnosticar, propor, teorizar, imaginar a complexidade do real e o real da

complexidade e colocá-los na contramão da idade de ferro planetária que

marca a hipermodernidade. A razão e a racionalidade são signos de nossa

animalidade, a corporalidade matéria de nosso ser intelectual.

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A hipertécnica redundou em muito esnobismo, mas também em muito

aborrecimento, sensaboria, tédio, fastio, amolação. A restauração do

indivíduo fraterno, amoroso é base da ação educativa e vai na contramão de

um certo ateísmo da indiferença instalado nos intramuros da pólis. Basta

lembrar o sentido do Emilio de Jean-Jacques Rousseau. Educar, afirma

Rousseau, é ensinar a viver.

São os circuitos de idéias – noosferas e noologias - que dão sentido

ao mundo. Ao desfazer as fronteiras entre cultura científica e cultura das

humanidades, a constante metamorfose da noosfera fornece a pedra angular

da construção de uma auto-trans-meta-sociologia. Criações humanas são

sempre bioantropossociais e o homem simultaneamente natureza e cultura.

Há quatro esferas articuladas da vida: a biosfera contém uma miríade de

seres diversos, a antroposfera articula as relações histórico-culturais, a

psicoesfera baliza as formações ocultas do inconsciente, a socioesfera

formata as socialidades e explicita o preço que se paga para viver junto..

Esses quatro níveis compõem uma totalidade aberta partes. É ela que

compõe o mundo real e o mundo ideal.

Quando as idéias se blindam, convertem-se em doutrinas que dão

admitem contestação e argumentos contrários. Os sistemas de idéias que

compõem as teorias são, portanto, biodegradáveis, abertos para o externo,

auto-exo-regenerados, jamais ideologias da promessa que mundo auto-

centrado que se pretende superior e exclusivo. São protocolos históricos que

selam o cotidiano, administram o conflito das interpretações, ativam circuitos

de memória individual e coletiva, impedem que o esquecimento se consolide.

As noologias atuam como o operador organizacional do acervo gerado

na noosfera. É nas comunidades de linguagem que a noologia encontra seu

fundamento por meio da emergência e consolidação de relações de sentido

entre significante, significado e referente. Por isso, as formações noológicas

são tecnologias sociais hologramáticas, pois a parte sempre está no todo e

todo sempre está na parte. As teorias, porém, sempre buscam coerências e

relações de verificabilidade e articulação com o mundo objetivo nem sempre

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objetiváveis. De longa data, sabe-se que sistemas teóricos são recheados de

brechas, indeterminações, incertezas.

A complexidade pensa com a contradição e, também, contra ela. Por

isso, a incerteza da contradição e a contradição da incerteza são vitais para a

criatividade e a invenção. O maior problema das noologias é o paradigma.

Caso se torne consensual, inquestionável e invulnerável, converte-se em

modelo ou regra geral que comanda um sistema fechado de representações

e crenças, de luzes que não admitem a existência das sombras. O paradigma

deve ser entendido como paisagem mental composta pelos campos racional

e emocional. Por isso, é, ao mesmo tempo, semântico, lógico e ideológico.

Mesmo históricos, os conceitos e teorias o circundam são impuros, trazem

restos de outros conceitos. São sobrevôos, linhas de fuga a serem

permanentemente reformadas e redefinidas nas e pelas comunidades de

aprendizagem. Por isso, o entendimento da filosofia, da ciência, da arte são

complementares e mutuamente imbricados.

Há dois paradigmas básicos: o da disjunção que separa homem e

natureza, razão e desrazão, e o da conjunção que prega a unidualidade,

religa cérebro e mente, psique e imaginação, desejo e recalque.

Hegemônica, a cultura ocidental cindiu sujeito e objeto, alma e corpo, espírito

e matéria, qualidade e quantidade, liberdade e determinismo, existência e

essência. O pensamento complexo prega uma revolução que questiona

essas dualidades e as coloca em circuito recursivo, em movimento fluente,

redirecionando, assim, o sentido das aprendizagens, das tecnologias sociais,

da preservação do patrimônio, das reservas simbólicas de memória, das

ações biopolíticas.

Os paradigmas não são camisas de força que enquadram pessoas,

relações, sistemas. Paradigmas são multidimensionais, impacientes, sempre

prontos a ampliar o entendimento da vida, essa é sua função e horizonte.

Móveis e nômades, requerem mobilização constante dos atores sociais para

que não se deixem contaminar pela lógica da convenção que submete,

paralisa e fragmenta e se reeduquem por intermédio da lógica da audácia

que enfrenta, afronta, diz a verdade ao poder.

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A audácia, a criatividade, a revolta devem reger o cotidiano das

sociedades cosmopolitas. Assumi-las como prática biopolítica implica

reconhecer a potencialidade dos enfrentamentos das contradições da idade

de ferro planetária, admitir que a colaboração e o diálogo culturais podem ser

um caminho para a construção da paz, da solidariedade, da política de

civilização. As desgastadas noções de identidade e diversidade devem ser

substituídas por espirais de reconhecimento pautadas por valores de

liberdade, autonomia, autodeterminação. As identidades complexas são

sempre híbridas, polifônicas, arlequinadas.

Essas espirais investem no sentido trinitário situado no mundo da vida

composto pelo indivíduo, pela sociedade, pela espécie. Relações de

antagonismo, concorrência e complementaridade movem a dinâmica desses

termos e, portanto, expandem a identidade para além de sua comunidade de

pertencimento, desterritorializam os saberes tecnossociais inserindo-os na

diáspora sapiental universal, exibem os dilemas da condição humana

objetivados nas dialogias e recursividades entre humano e inumano,

racionalidade e afetividade, razão e mito.

As concepções redutoras e privatizadas do homo sapiens, faber,

economicus, ludens, videns devem ruir um castelo de cartas. Em seu lugar,

surgirá uma visão de mundo ilustrada pelo caráter uno, múltiplo, provisório e

arlequinado de nossa identidade biológica, subjetiva, social.

Nossas sociedades precisam de novos mitos que dêem conta das

potencialidades do sapiens-demens e permitam contextualizar a emergência

das complexidades individuais, das qualidades de alma, das instabilidades

dos afetos. O conteúdo da identidade complexa é, portanto, hologramático. A

identidade não termina nas fronteiras da tribo, estende-se para além delas. O

inferno não são os outros, talvez o inferno esteja dentro de nós mesmos. O

reconhecimento desse fato recalcado requer implica entender a identidade

como algo vivencial, ramificado, flutuaente, pois espelha possibilidades,

limites e projeções de um destino histórico irreversível cujas rubricas são a

indeterminação, a incerteza, a singularidade, algo que jamais será dado ou

promulgado, mas que será construído por ações concretas. Como afirmou

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Ilya Prigogine, “na vida social, a memória do passado, a antecipação do

futuro, e o presente se entrecruzam do mesmo modo que determinismo e

acontecimentos cuja resolução é sempre aleatória”10.

É preciso retornar ao homem genérico. Construída por Marx, a noção

é desprovida de subjetividade, emoção, amor, loucura, poesia, pois o homo

faber fabricador das técnicas e inventor da dominação incontrolada da

natureza ainda permanece como um destemido desbravador dos

ecossistemas naturais, responsável pela construção racional de uma

segunda natureza. A natureza é sempre primeira, primordial, obra-prima da

evolução da vida. Não se trata, portanto, de destituir Marx, mas inseri-lo nos

circuitos da modernidade liquida. O pensamento complexo pensa com Marx e

não contra ele.

Reciclado e regenerado, o homem genérico encontra-se, agora,

saturado de emoções. Envolve-se sempre com os confortos da repetição, os

desafios da criatividade, os sentimentos de comunidade. Esse novo sentido

tornará possível pôr em exercício uma reforma interior, subjetiva, que

possibilite habitar poeticamente a Terra. Cedo ou tarde, teremos de assumir o

destino trágico do sapiens-demens e perseguir uma trajetória hominescente

que garanta a sustentabilidade e a biodiversidade planetárias.

Esse horizonte não será obtido por decreto em encontros

internacionais nos quais estados e nações exibem uma arrogância sem

precedentes que impede processos decisórios mais amplos, como se

constatou recentemente na conferência de Copenhagen nos estertores de

2009, nas recentes reuniões da biodiversidade. Ele requer uma reforma do

pensamento, implica um processo de construção que envolve um trajeto

antropológico que descentra o homem, reinserindo-o no mundo da natureza

plena. Sabemos desde Darwin, que a seleção natural é apenas um agente-

guia e não um piloto que sabe definir com precisão a trajetória a ser

percorrida. A evolução das espécies nos ensina que somos apenas uma

ramificação da árvore da vida. Ensina, também, que 130 mil anos de

10 Ilya Prigogine. Ciência, razão e paixão. Organização Edgard de Assis Carvalho, Maria da Conceição de Almeida. São Paulo, Editora da Física, 2009, p. 105.

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ontogênese e filogênese contam pouco na trajetória das espécies vivas do

planeta.

É preciso, também, retomar o pensamento da ética e a ética do

pensamento, recuperar o tempo perdido, reciclar os circuitos da memória

voluntária e involuntária, reativar os circuitos da memória voluntária e

involuntária, repensar os sentidos da eco-organização, da teoria, do cérebro,

do sujeito, da era planetária e, mais do que nunca, do corpo. Deixado de lado

pelos sujeitos, o corpo requer treinamento, repetição, treinamento,

movimento, pois seu aparelhamento sempre surpreende e inova. O corpo e a

mente constituem unidade indissolúvel.

Todo ato ético implica religação com os outros, com os seus, com a

comunidade, a humanidade e o cosmo. Como tudo que é humano, a ética

defronta-se com incertezas e contradições, isso pelo fato de a ecologia da

ação nos indicar que qualquer ato humano escapa cada vez mais da

intencionalidade de seus autores. Sempre há riscos e precauções, pois o que

está em jogo é a relação entre meios e fins.

A ética da responsabilidade aliada à ética da convicção é o protocolo

de um novo contrato simultaneamente natural e cultural. Por isso, a ética de

si (autoética), a ética do outro (socioética), a ética da espécie (antopoética)

são inseparáveis e entrelaçados. Essa plataforma de eticidade possibilita a

ativação do pensamento, a redefinição dos devires sociais, a instauração da

democracia do pensamento e da política de civilização.

No lugar de se reduzir a um código binário, a ética complexa concebe

que o mal contém o bem, o justo e o injusto, o contingente e o necessário.

Assumir a incerteza do destino humano implica, portanto, assumir a incerteza

ética. A racionalidade aberta e emergente concebe a autonomia da

individualidade, mas também reconhece as forças ilusórias, as deformações

da psique, a auto-justificação, a mentira para si mesmo.

Exercitar cotidianamente a resistência às barbáries interiores e

exteriores requer a prática da ética da religação e da tolerância, a ética da

amizade, da compreensão, do perdão. Regeneração é, portanto, a palavra-

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chave dos desafios éticos a serem enfrentados pelas comunidades de

aprendizagem. É preciso, e urgente, reformar a sociedade, a civilização, a

vida, a alma e o corpo. Essa é a missão ética diante da crise planetária. É ela

que tem a tarefa insana de regenerar o humanismo e restaurar a esperança.

Caminhos e descaminhos de processos éticos mostram que o homem

sábio e a chamada vida correta não são meras especulações de uma vã

filosofia, nem distrações típicas de poetas e romancistas. São, isso sim,

formas de resistência à racionalidade instrumental que circunda o mundo real

e ideal, modalidades de resiliência consigo mesmo, com os outros, com o

cosmo. No lugar de uma monocultura da mente, uma policultura da vida.

Podemos assumir o pressuposto de que nenhuma sociedade é capaz

de pensar a si mesma com sabedoria e autonomia sem a religação. Por um

estranho paradoxo, as instituições educacionais continuam a fortalecer o

modelo da fragmentação, da especialização e da disciplinarização, supondo

que apenas as competências tecnocientíficas são suficientes para resolver as

contradições de um mundo global transnacionalizado.

A prática da compreensão deve espraiar-se por todos os domínios da

vida, mesmo que praticada em pequenos ecossistemas, grupos, instituições.

Volta-se para o entendimento dos desdobramentos do mal-estar da cultura.

Compreensão é sempre meio e fim, necessidade planetária, consciência de

pertencimento, preservação da Terra-pátria. Se constatamos a

incompreensão por toda parte, podemos acionar nossas reservas simbólicas

de revolta em prol de uma identidade comum que religue parte e todo, texto e

contexto, local e global.

O trajeto antropológico, de resto como todo trajeto marcado pela

irreversibilidade, envolve sempre perdas, ganhos, opções, utopias, distopias.

Daí não haver um receituário de procedimentos e formatos que o definam.

Em construção permanente, o trajeto é um extenso processo sócio-historico

que nunca terminará enquanto o homem sobreviver como espécie e gênero.

Exige a prática da atenção permanente e processos graduais que viabilizem

sensações voltadas para modalidades de integração à totalidade.

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Se é forçoso reconhecer que as biotecnologias decifradoras de

genomas mudam nossas relações com a duração, bombas atômicas e

guerras alteram nossas relações com a morte. Nunca dispusemos de tantos

meios para melhorar o mundo, e mesmo assim não o fazemos. Nos poderes

mudaram de escala. Devemos agora pensar global e agir local.

Onipotentes e inconscientes de nossa fragilidade, devastamos os

ecossistemas de tal maneira que hoje, na primeira década do século 21,

vivemos sem garantias futuras de usufruir de águas e terras, a não ser que

uma política preservacionista e sustentável circunde as tecnologias sociais.

Trata-se de buscar uma hominescência, neologismo criado por Michel

Serres11 para designar um diferencial do processo de hominização, um

princípio-esperança diante da iminência da guerra total de todos contra todos.

Respostas para as questões tais como Para onde vamos? e Para onde

queremos ir? deixam de ser especulações filosóficas adjetivas e traduzem a

ansiedade substantiva de todos.

De qualquer forma, ainda sobram espaços e tempos ético-políticos

para o reequilíbrio planetário. Neles a ausência de guerras e a cultura de paz

ganham estatuto de universalidade e reacendem o sentido da comunidade de

destino. Ciências e técnicas colocam-se a serviço do bem-estar da

Humanidade. Se assistimos estupefatos ao fim de um ciclo cultural do

capitalismo tardio, novos sujeitos hominescentes podem tornar-se

responsáveis diretos pelo advento de uma sociedade-mundo solidária,

regeneradora do dignidade humana no planeta, nossa habitação comum,

nossa terra global.

Por isso, os pensadores imbuídos do sentido dessa utopia realizável –

artistas, cientistas, filósofos – continuam a imaginar, inventar, propor,

projetar. Nunca desistem, mesmo que, por vezes, a melancolia, o tédio, a

desesperança os invadam. Reais, imaginárias simbólicas, suas narrativas

atravessam a flecha do tempo, ampliam a cultura, formatam a biblioteca

11 Michel Serres. Hominescências, o começo de uma outra humanidade. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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universal da vida, instauram novas formas de sociabilidade, restauram a

esperança, reencantam o conhecimento, recuperam o tempo perdido que

não pode se perder mais.

Face aos fenômenos extremos que nos circundam, a única

imortalidade que conta, afirma Tzvetan Todorov12, é aquela que entende que

os outros vivem em nós, assim como nós vivemos nos outros. Somos seres

imperfeitos, frágeis, fazemos concessões, cometemos erros por vezes

irreparáveis. Precisamos extrair as conseqüências dessa constatação. De

nada adianta nos revoltarmos contra a condição humana. A passividade

resignada só atende aos donos do poder. Necessitamos defender a

dignidade humana a qualquer preço. Não é apenas nos campos totalitários

que a encarnação do mal se torna visível. Ela está aqui e agora no mundo

intersubjetivo, impregna a cultura, o poder, a política, a tecnociência.

Somos feitos de mortes e renascimentos sucessivos. Não há um

modelo prescritivo para nenhuma vida, apenas guias, operadores simbólicos

para a ecologia dos saberes, ações, amores. Paixão e compaixão, aceitação

e revolta, degeneração e regeneração encontram-se sempre entrelaçadas na

cultura humana. São a via possível que teremos de trilhar para acessar a

grande narrativa da vida. É ela que reconstrói o sujeito, repensa o futuro,

redefine os jogos de linguagem. Mesmo que tenhamos de reconhecer o papel

que as biotecnologias venham a desempenhar em um futuro próximo, não

podemos conferir-lhes papel determinante nas mutações contemporâneas

que, a cada dia, nos tomam de assalto.

Reservatório de matérias, conservatório de imagens, nossa Terra

requer um homem afinado com valores universais, simultaneamente local e

global, natural e cultural, prosaico e poético. Se as únicas armas de que

dispomos são a linguagem e o ensino, que as utilizemos na construção de

um sujeito incandescente, uno e múltiplo, biocultural, apto a exorcizar a

banalidade do mal e empenhar-se na banalidade do bem. Talvez assim

sejamos um pouco mais felizes na nossa curta passagem no planeta. Em um

12 Tzvetan Todorov. La signature humaine. Essais 1983-2008. Paris, Seuil, 2009.

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dos seus ensaios, Michel Serres definiu a vida de maneira luminosa e é com

ela que finalizo este texto: A vida, afirma Serres13, é “a associação entre um

banco universal de tempos e suas diversas reversibilidades que consomem a

a invisível moeda que ela representa”. A vida é breve e a eternidade frágil.

Culturas não são apenas feitas de padrões e nem se assemelham a fábricas

da ordem. Culturas são mosaicos de tempo-espaço empenhados na

preservação da memória cultural oriunda da Grande Narrativa. Somos seres

vivos portadores de valência zero e, simultaneamente, de infindáveis

potencialidades, sempre prontas a emergir quando menos se espera. Talvez

seja esse o sentido da felicidade, do amor, da sabedoria.

Em um de seus últimos livros14, ao ser perguntado sobre o sentido da

felicidade, aos 89 anos, Edgar Morin afirmou o seguinte: “Sim, sou feliz, mas

tenho um lado melancólico, como a face obscura da Lua.

13 Michel Serres. O incandescente. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p.299.

14 Edgar Morin. Meu caminho. Entrevistas com Djénane Kareh Tager. Tradução Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.