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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO ULISSES MACIEL NÃO-LUGARES: UM OLHAR SOBRE AS METRÓPOLES CONTEMPORÂNEAS São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

ULISSES MACIEL

NÃO-LUGARES: UM OLHAR SOBRE AS METRÓPOLES CONTEMPORÂNEAS

São Paulo

2015

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ULISSES MACIEL

NÃO-LUGARES: UM OLHAR SOBRE AS METRÓPOLES CONTEMPORÂNEAS

São Paulo

2015

Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota

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M152n Maciel, Ulisses.

Não-lugar : um olhar sobre as metrópoles contemporâneas / Ulisses Maciel. – 2015.

102 f. : il. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.

Referências bibliográficas: f. 93-102

1. Sociedade contemporânea. 2. Arquitetura. 3. Lugares. 4. Marc Augé. 5. Não-lugares. I. Título.

CDD 724

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ULISSES MACIEL

NÃO-LUGARES: UM OLHAR SOBRE AS METRÓPOLES CONTEMPORÂNEAS

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Abílio da Silva Guerra Neto

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Helena de Moraes Barros Flynn

Universidade Católica de Santos

Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota

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Aos meus pais.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Carlos Guilherme Mota pela orientação sempre precisa e pela postura

incentivadora durante todo o desenvolvimento dessa pesquisa.

Ao amigo Peres Rusky pela generosidade e competência em adensar meu repertório

e aguçar minha inquietação frente ao mundo.

À colega Mariana Rolim pela disponibilidade em ajudar a operacionalizar esse

trabalho.

Aos companheiros, professores e funcionários da instituição pelo apoio e

colaboração.

À CAPES/ PROSUP pela oportunidade em dar continuidade à esse estudo.

À minha família que, mesmo longe, esteve sempre perto.

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A arquitetura como construir portas,

de abrir; ou como construir o aberto;

construir, não como ilhar e prender,

nem construir como fechar secretos;

construir portas abertas, em portas;

casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

portas por-onde, jamais portas-contra;

por onde, livres: ar luz razão certa.

Até que, tantos livres o amedrontando,

renegou dar a viver no claro e aberto.

Onde vãos de abrir, ele foi amurando

opacos de fechar; onde vidro, concreto;

até fechar o homem: na capela útero,

com confortos de matriz, outra vez feto.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Fábula de um arquiteto, 1966

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RESUMO

A sociedade contemporânea pode ser caracterizada, dentre outros aspectos, pela

transmutação, pela velocidade e pelo excesso, descontruindo-se e reconstruindo-se a todo

instante. É, também, nesse cenário que muitos conceitos ou noções conceituais, das mais

diversas áreas, são postos em xeque. Na arquitetura – mas não apenas nela – têm sido

recorrentes as tentativas de teorização a respeito dos atributos próprios dos lugares, assim

como suas potenciais implicações sobre as relações humanas. Segundo o antropólogo

francês Marc Augé, os lugares podem se definir como identitários, relacionais e históricos:

sendo algum desses atributos enfraquecido, configuram-se os não-lugares. Buscando

abarcar a natureza de tal fenômeno e compreender como a polivalência do mundo

contemporâneo colabora na produção e reprodução dos não-lugares, lança-se mão, aqui, de

uma abordagem inter, trans e multidisciplinar: geografia, antropologia, história, psicologia,

arquitetura e cinema somam-se com o intuito de criar um panorama investigativo-científico

academicamente legítimo. Para isso, ao invés de se optar por uma mera análise projetual –

que seria mais previsível –, assume-se, em ressonância com a pluralidade da própria

metrópole contemporânea, um enfoque poliédrico e de cunho mais ensaístico.

Palavras-chave: Sociedade contemporânea. Arquitetura. Lugares. Marc Augé. Não-lugares.

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ABSTRACT

Contemporary society can be characterized, among other aspects, by its transmutation,

speed and excess, being deconstructed and reconstructed all the time. It is also in this

scenario that many concepts or conceptual notions from several areas are challenged. In

Architecture – but not limited to it – attempts to theorize about the attributes related to the

idea of places are recurrent as well as its potential implications for human relations.

According to the French anthropologist Marc Augé, places can be defined as identitarian,

relational and historical: if one of these attributes is weakened, non-places are configured. In

order to encompass the nature of this phenomenon and to understand how the versatility of

the contemporary world collaborates to the production and reproduction of non-places, is

resorted here, an inter, trans and multidisciplinary approach: Geography, Anthropology,

History, Psychology, Architecture and Cinema are summed up in order to create an

investigative and scientific panorama academically legitimate. For this purpose, instead of

opting for a simple architectural design analysis – what would be more expected – is

assumed, in conformity with the plurality of contemporary metropolis itself, a polyhedric

focus and a more essayistic feature.

Keywords: Contemporary society. Architecture. Places. Marc Augé. Non-places.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10

1. TRANSFORMAÇÕES E TRANSMUTAÇÕES .............................................................. 12

2. SUPERMODERNIDADE .......................................................................................... 28

3. LUGARES OU NÃO ................................................................................................ 38

4. IDENTIDADE FRAGMENTÁRIA ............................................................................... 55

5. MASSAS E DESERTOS ............................................................................................ 63

6. CRISTALIZAÇÃO NIILISTA ...................................................................................... 77

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 86

LISTA DE ILUSTRAÇÕES .................................................................................................... 90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 93

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INTRODUÇÃO

As ideias colocadas a seguir pretendem expor conceitos ou noções conceituais,

provocando discussões sobre como a sociedade contemporânea, notadamente nas

metrópoles, está submetida a uma lógica de mercado que traz consequências tanto para o

território, enquanto suporte físico, quanto para os próprios sujeitos, enquanto agentes dos

eventos. Materialidade e imaterialidade, portanto, influenciam-se mutuamente e de modo

bastante intrincado, com reflexos não apenas nas relações dos habitantes com a cidade,

mas, também, desses entre si.

Velocidade, produção e consumo fazem parte de uma complexa equação que

favorece, através de processos de homogeneização, o apagamento, a segregação e o

isolamento dos indivíduos, resultando no que Augé denomina de cocooning (2012, p. 109)

ou, em livre tradução, encapsulamento.

Figura 1. Echolilia, diálogo fotográfico entre um pai e seu filho autista, 2013 | Timothy Archibald.

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Se o individuo já não se confronta com o outro, defronta-se consigo mesmo. Torna-se seu anticorpo, por uma reviravolta ofensiva do processo imunitário, por um desajuste do seu próprio código, por uma destruição das próprias defesas. Ora, toda a nossa sociedade busca neutralizar a alteridade, destruir o outro como referência natural – na efusão asséptica da comunicação, na efusão interativa, na ilusão da troca e do contato. De tanta comunicação, a sociedade torna-se alérgica a si mesma. De tanta transparência a seu ser genético, biológico e cibernético, o corpo torna-se alérgico até a sua sombra. Todo o espectro de alteridade negada ressuscita como processo autodestruidor (BAUDRILLARD, 1996, p.129).

Embora as metáforas tenham uma grande capacidade de coerção, pretendendo

condensar e reduzir o universo em perspectiva, elas contribuem, de forma muito

esclarecedora, em diversos trabalhos de investigação científica. As metáforas não devem,

contudo, ser tomadas como ponto de chegada, mas como bússolas que norteiam o

desenvolvimento do argumento, apontando o rumo que a pesquisa irá trilhar.

Didaticamente, elas podem se revelar bastantes ricas e facilitadoras.

Para a argumentação subsequentemente desenvolvida, recorre-se, assim como Augé,

à metáfora do casulo, entendendo-a como a dimensão da vida-morte-vida, da morte-vida-

morte, da latência, do transe, do outro que se metamorfoseia para ser o mesmo, enfim, uma

relativização muito esquiva e, por isso mesmo, difícil de compreender na sua totalidade.

Esse invólucro é, também, o espaço da não-relação, da não-singularidade, do não-vínculo e,

portanto, da não-interação – características muito reconhecíveis nos habitantes da

metrópole contemporânea e muito pertinentes para o estudo em questão.

Nesse cenário, segundo Augé, multiplicam-se os não-lugares: espaços com caráter

predominantemente funcional, voltados para a rápida circulação e que permitem apenas

frágeis apropriações ou contatos superficiais entre os usuários. Por sua vez, os lugares são o

ambiente de trabalho, o lar, o espaço íntimo. Ambos os conceitos estão diretamente

vinculados à própria identidade dos sujeitos, funcionando como sustentáculos de diversos

processos, tanto de inclusão quanto de exclusão.

A constituição do ser e a formação da subjetividade passam pelas relações dialéticas

entre os sujeitos e seus grupos, propiciando o desenvolvimento de mecanismos através dos

quais os indivíduos internalizam os sistemas simbólicos, fazendo com que eles interpretem e

organizem sua realidade do mundo. Além de constituírem um quadro de referência

pragmática, os lugares são palco das paixões, ações e comunicações humanas, adquirindo,

por esse motivo, um viés existencialista.

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1. TRANSFORMAÇÕES E TRANSMUTAÇÕES

Desde as suas origens a cidade é investida por uma ordem dupla de desejos: desejamos a cidade como seio, como mãe e, em simultâneo, como máquina, como instrumento; queremo-la ethos, no sentido original de morada e residência e, ao mesmo tempo, queremo-la um meio complexo de funções; pedimos-lhe segurança e paz e, concomitantemente, pretendemos dela grande eficiência, eficácia e mobilidade. A cidade vive sujeita a questões contraditórias. Querer ultrapassar esta contraditoriedade é má utopia. É necessário, ao invés, dar-lhe forma. A cidade, na sua história, é a perene experiência de dar forma à contradição, ao conflito (RIZZI, In: CACCIARI, 2009, p. 7).

Além de designar um meio geográfico e uma instituição político-administrativa, a

cidade funciona como sustentáculo para encontros, interações e embates das mais variadas

ordens – uma entidade múltipla que ampara fenômenos complexos e multifacetados; uma

sobreposição de funções que concentra atividades, fluxos, demandas, interesses,

finalidades, problemas e sentidos.

Embora existam algumas interpretações sobre seu significado, é bastante difícil

definir com clareza o que é, precisamente, a urbe. Em termos gerais, pode-se dizer que ela é

uma trama entre estrutura física e ideologia: uma criação do espírito humano, resultado de

uma fermentação própria, um produto da aventura humana sobre esse planeta.

Apoiando-se em tais princípios, cada país ou órgão envolvido com a temática dos

assentamentos urbanos acabam por ter, de acordo com suas conveniências, uma definição

específica, não havendo, portanto, um consenso universal sobre o tema. Mesmo porque os

critérios para a elaboração do conceito de cidade seguem várias diretrizes, destacando-se os

de natureza demográfica, funcional, jurídica e mista.

Para que uma aglomeração seja considerada uma cidade, segundo critérios

demográficos, ela deve ter um determinado número de habitantes ou uma densidade

populacional mínima especificada. Por sua vez, os critérios funcionais assinalam que, nas

referidas áreas, devam predominar atividades dos setores secundário (indústria) e terciário

(serviços). Já conforme critérios jurídicos, a mera deliberação legal pode transformar um

território ou um povoamento em uma cidade. Critérios mistos, por fim, buscam uma

combinação entre duas ou mais diretrizes, com o intuito de abarcar mais componentes da

realidade urbana. Nenhum dos critérios, porém, engloba a totalidade das variantes, e talvez

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seja exatamente por esse motivo que não exista um acordo universal sobre o que venha a

ser uma cidade.

O Programa das Nações Unidas para Assentamentos Urbanos – UN-HABITAT,

publicou um relatório chamado Estado Mundial das Cidades 2012/ 2013: Prosperidade das

Cidades1, no qual faz uma conceituação bastante razoável sobre a ideia de cidade, sob uma

perspectiva psicológica. A certa altura do texto, é dito que as cidades são o lugar “onde

ambições, aspirações e outros aspectos imateriais da vida são realizados, proporcionando

contentamento e felicidade e aumentando a expectativa de bem-estar individual e coletivo”

(2012, p. 10). Explanação muito pertinente, mas, ainda assim, limitada e longe de arrematar

o debate.

Independentemente do significado, a evolução das cidades tem uma história que

sempre esteve ligada a questões de produção de bens de subsistência (alimentos),

manufaturados (artesãos) ou simbólicos (religiosos e artistas), trocas, transporte,

abastecimento e estocagem, além de exigências de controle (contabilidade e escrita) e

proteção (guerreiros). O crescimento delas, tanto horizontal como vertical, só foi possível

pela combinação de técnicas e invenções que propiciaram o funcionamento integrado de

alguns desses mecanismos, colocando-os sempre no núcleo das dinâmicas urbanas.

Na tentativa de montar um quadro teoricamente mais estruturado, é preciso que se

retroceda no tempo, buscando alinhavar uma série de acontecimentos que,

cronologicamente, culminaram na formação da cidade contemporânea, tal como ela é.

Embora existam algumas lacunas históricas, que nem mesmo os estudiosos da área

conseguem preencher, os eventos revelam um continuum, desenhando um panorama digno

de credibilidade sobre a odisseia da espécie que vem guiando a mais profunda e

contundente transformação no ambiente natural de que se tem registro.

Os seres humanos, segundo a maioria dos paleontólogos, surgiram na Terra há cerca

de 500.000 anos2 e, durante quase todo esse tempo, foram caçadores e coletores nômades,

tendo que se deslocar constantemente no território em busca de comida para poderem

sobreviver, sem se fixar de modo definitivo em lugar algum.

1

Disponível em: < http://www.onuhabitat.org/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=362& Itemid=18>. Acesso em: 24 set. 2014. 2 BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 9.

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No período que se estendeu até aproximadamente 10.000 a.C., denominado de

Paleolítico, o abrigo e o refúgio primitivos eram a própria natureza, que sofria muito pouca

ou nenhuma modificação. Quando alguma alteração ocorria naquele espaço, nunca era

profunda e tampouco permanente, limitando-se, no máximo, à construção de tendas feitas

de galhos, cobertas com folhas ou pele de animais.

Os instrumentos criados por aquele grupo de hominídeos eram muito rudimentares,

feitos de madeira, ossos ou pedra (lascada), não possibilitando grandes alterações no meio

ambiente e nem ganhos lucrativos pelos esforços despendidos na caça ou na colheita. Toda

a energia e todo o tempo eram consumidos em atividades direta e estritamente voltadas

para a sobrevivência – uma realidade pouco cômoda e sem regularidade alguma –, tornando

os homens paleolíticos nada mais do que seres errantes e semifamintos, arriscando suas

vidas por magras recompensas. Diante das adversas condições a que estavam submetidos,

não havia mesmo outra opção a não ser obedecer a seus instintos mais básicos: alimentação

e reprodução.

Quando se fala sobre instinto (Instinkt), não se pode escapar de falar, também, sobre

pulsão (Trieb), conceito apresentado, pela primeira vez em 1905, pelo médico austríaco

Sigmund Freud, ainda que de maneira seminal, na sua obra Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade. Embora, na obra de alguns outros autores, os dois termos tenham sido, em

diversas circunstâncias, confundidos e considerados equivalentes, nos textos freudianos,

eles aparecem, na maioria das vezes, com significados distintos, e cada qual trazendo seu

próprio conteúdo semântico.

Na psicanálise, o conceito de pulsão é uma abstração que procura romper com a

dicotomia, teoricamente, existente entre a mente e o corpo. Ainda que pareça uma

contenda de simples resolução, na verdade, é uma tarefa que se revela bastante árdua e

inglória. Para o psicanalista, “uma pulsão não tem qualidade, e no que concerne à vida

psíquica, deve ser considerada apenas como uma medida de exigência de trabalho feito à

mente” (FREUD, 1905, p. 171). A pulsão seria, portanto, o representante psíquico de uma

excitação endógena, um conceito limítrofe entre a psique e o soma, uma ponte entre o

anímico e o somático ou, ainda, uma fronteira entre o mental e o corporal.

Diferentemente dos instintos – impulsos característicos dos animais, que favorecem

sua sobrevivência e provocam neles reações automáticas, involuntárias e irrefreáveis –, as

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pulsões fazem parte de um processo mais plástico e mais complexo. Elas são cargas de

excitação que precisam ser aliviadas, com o intuito de fazer com que o organismo volte para

o estado anterior ao aumento de tal carga.

As pulsões são, segundo Freud, caracterizadas por quatro elementos constituintes:

uma [a] pressão (Drang), definida como o “fator motor, a quantidade de força ou a medida

da exigência que ela representa” (1915, p. 143); uma [b] fonte (Quelle), entendida como “o

processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado

na vida mental por uma pulsão” (1915, p. 143); uma [c] finalidade (Ziel), que é “sempre a

satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da

pulsão" (1915, p. 143); e um [d] objeto (Objekt), que "é a coisa em relação à qual ou através

da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade” (1915, p. 143).

No início das pesquisas freudianas, as pulsões tinham um caráter unicamente

construtivo; mas, a teoria foi sendo amadurecida, ampliada e acabou por abarcar outras

conformações. As pulsões passaram, então, a ser polarizadas, dicotômicas e conflitantes. O

primeiro dualismo pulsional proposto pelo psicanalista refere-se aos pares idealizados a

partir dos mitos de Eros e Ananke, determinantes, respectivamente, das pulsões sexuais –

sublimadas ou não –, e das pulsões do eu – referentes à auto-conservação dos indivíduos,

que têm a fome e a sede como exemplares mais representativos. Juntas, tais pulsões teriam

o poder de preservar a espécie, em face de uma realidade externa adversa, esmagadora e

impiedosa, dominada pelos infortúnios que se voltariam contra os homens, guiada pelas

inexoráveis leis do destino e que poderiam culminar na materialização da morte.

A partir de 1920, Freud reagrupa as pulsões sexuais (Eros) e as pulsões do eu

(Ananke) em um único grupo pulsional, representado pela figura de Eros (Pulsão de Vida). O

estudioso desenvolve, paralelamente, uma categoria de traço oposto, mas complementar,

representada pela figura de Thánatos (Pulsão de Morte). Essas pulsões, embora de natureza

contrárias, nunca atuam de maneira isolada; o caráter que as distingue também as une e é,

nesse jogo de consonância e antagonismo, que reside o cerne dos conflitos psíquicos

humanos.

Era uma tarde quente e abafada, e Eros, cansado de brincar e derrubado pelo calor, abrigou-se numa caverna fresca e escura. Era a caverna da própria Morte. Eros, querendo apenas descansar, jogou-se displicentemente ao chão, tão descuidadamente que todas as suas flechas caíram.

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Quando ele acordou percebeu que elas tinham se misturado com as flechas da Morte, que estavam espalhadas no solo da caverna. Eram tão parecidas que Eros não conseguia distingui-las. No entanto, ele sabia quantas flechas tinha consigo e ajuntou a quantia certa. Naturalmente, Eros levou algumas flechas que pertenciam à Morte e deixou algumas das suas. E é assim que vemos, frequentemente, os corações dos velhos e dos moribundos, atingidos pelas flechas do Amor, e às vezes, vemos os corações dos jovens capturados pela Morte (ESOPO [Grécia Antiga], In: KOVÁCS, 1992, p. 149).

Figura 2. Guernica, óleo sobre tela, Pablo Picasso, 1937 | Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

A Pulsão de Vida (Lebenstrieb) não tem o cunho regressivo típico das pulsões, mas

um caráter amplificador, expansivo e empreendedor, buscando congregar indivíduos,

famílias e povos em prol da preservação da vida. Tais expressões unificadoras e defensivas

se contrapõem à regra geral das pulsões, conduzindo a comportamentos que se desviam e

se distanciam do caminho assinalado por elas.

Já a Pulsão de Morte (Todestrieb) – hipótese bastante controversa e, até hoje, não

completamente aceita por muitos estudiosos da área – tende a reduzir a excitação interna

ao máximo, levando o organismo, inclusive, a um estado anterior ao surgimento da vida, ao

estado anorgânico. Para Freud, “o objetivo da vida é a morte, e remontando ao passado: o

inanimado já existia antes do vivo” (1920, p. 161). Essa pulsão seria, portanto, uma pulsão

por excelência.

Tal caráter disjuntivo volta-se, inicialmente, para o interior do indivíduo, inclinando-o

para a auto-destruição; em um segundo momento, dirige-se para o exterior, resultando em

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agressão – forças a priori devastadoras, mas, paradoxalmente, criativas, que estabelecem

desarranjos e rompimentos, mas que obrigam, por isso mesmo, os homens a se

reconstruírem, promovendo, por fim, evolução e crescimento.

A maneira como se dará a pretendida descarga das pulsões será determinada, em

nível inconsciente, pelas três instâncias basilares da personalidade: [a] o id, que seria o

repositório da energia psíquica básica, das paixões, da agressividade e da libido; [b] o ego,

tido como o elemento consciente e racional da mente humana; e por último, [c] o superego

onde estariam introjetadas as proibições, assim como os padrões morais e de conduta social.

Três categorias que, apesar de distintas, interagem em todos os instantes e em todas as

situações da vida cotidiana.

A utilização do instrumental psicanalítico para compreender questões históricas se

faz válido na medida em que expõe a conexão existente entre a psique individual e a psique

coletiva, já tratada por Freud em sua análise da gênese dos totens (símbolos sagrados e

respeitados) e dos tabus (proibições de práticas diversas), que teriam como papel cercear as

liberdades individuais e moldar o ethos das sociedades. “Tomei como base de toda minha

posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente

como acontece na mente de um indivíduo” (FREUD, 1913, p. 100). Psicanálise, Antropologia

Social e História convertem-se, portanto, em campos afins, que passam a se auxiliar

mutuamente, no entendimento das relações que se estabelecem entre o homem e a

sociedade à qual ele pertence.

O historiador americano Lewis Mumford aponta que, já no Paleolítico, surgiram as

primeiras evidências de vida cívica, o germe da cidade histórica. Antes mesmo da formação

das primeiras aldeias rurais, da reunião por ensejo do acasalamento ou pelo ajuntamento

circunstancial junto a uma fonte de água e alimentos que aplacasse a sede e a fome, o

homem paleolítico já demonstrava uma respeitosa – e também temerosa – atenção pelos

seus mortos. De modo que foram os primeiros a ter, de fato, uma morada fixa: uma caverna,

uma cova demarcada com pedras ou um sepulcro coletivo – centros cerimoniais para onde,

ocasionalmente, voltavam os vivos, com o objetivo de comungar com seus antepassados. A

cidade dos mortos seria, portanto, a predecessora da cidade dos vivos. Aliás, de todas as

cidades vivas.

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Nesses santuários paleolíticos – muitas vezes adornados com pinturas de notável

mestria estética e maturidade artística, que retratavam cenas observadas ou idealizadas do

cotidiano – já era possível identificar o embrião de uma vida mais profusa, que exaltava o

sentimento, voltando-se para “um aumento do prazer social, graças a uma utilização mais

completa da fantasia simbolizada e da arte” (MUMFORD, 1998, p. 14) e, também, para o

florescimento de “certas faculdades espirituais ou sobrenaturais, faculdades de potência

mais elevada e maior duração, de significado cósmico mais amplo do que os processos

ordinários da vida” (MUMFORD, 1998, p. 16).

Figura 3. Desenhos na caverna de Chauvet, França, entre 28.000 e 40.000 anos atrás | Veja.

Na fase seguinte, intitulada de Neolítico, período compreendido entre 10.000 a.C. e

5.000 a.C., os homens começaram a desenvolver habilidades de cultivo agrícola,

armazenamento de alimentos e domesticação de animais, essenciais ao desenvolvimento de

um esquema mais seguro e previsível de vida. Embora algo muito sutil e, de certo modo,

quase insignificante diante dos impactos provocados pelo homem sobre o território nos dias

de hoje, rigorosamente não deixa de ser uma artificialização do meio natural. Alterações no

habitat não são, contudo, atitudes exclusivas da espécie humana; inúmeros animais como

abelhas, cupins, formigas e castores, por exemplo, constroem abrigos, ninhos e até mesmo

colônias inteiras, com organizações socioespaciais bastante análogas às humanas.

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É possível compreender, no caso dos grupos de hominídeos, que, através de um

maior controle sobre as fontes de alimentação – antes sujeitas apenas aos caprichos da

natureza –, os deslocamentos para coleta e para caça passariam a ser menos frequentes e

também menos necessários, fazendo com que surgissem os primeiros assentamentos

permanentes: as aldeias rurais – fragmentos do ambiente modificados segundo um projeto,

um esquema, uma intenção.

O processo de sedentarização tornou-se, dessa forma, intrínseco ao novo modo de

vida daqueles indivíduos, e a cultura meramente predatória do Paleolítico começou a dar

espaço a uma existência mais simbiótica, e também, mais complexa em relação ao meio

ambiente. Paralelamente, começaram a surgir uma série de avanços tecnológicos ligados à

produção, armazenamento e conservação de víveres, estação após estação, garantindo uma

melhor nutrição e trazendo, como resultado, um acréscimo populacional. Tal ordenamento e

estabilidade proporcionados pela aldeia neolítica já forjaram, de certo modo, as bases para o

desenvolvimento das cidades.

Contudo, não foi o simples aumento demográfico que transformou as aldeias em

cidades. A geração de excedentes, permitida pelos progressos da agricultura e da pecuária,

impulsionou o surgimento de atividades mais especializadas. Além do caçador, do camponês

e do pastor, começaram a surgir muitos tipos de trabalhadores, como mercadores,

sacerdotes e soldados, além de artesãos, lenhadores, administradores e construtores. Dessa

maneira, “muitas funções, que haviam até ali sido dispersas e desorganizadas, ajuntaram-se

dentro de uma área limitada, e os componentes da comunidade foram mantidos num

estado de tensão e interação dinâmica” (MUMFORD, 1998, p. 39). Enfim, um universo

socialmente mais complexo, economicamente mais sólido e também simbolicamente mais

delineado.

Essa conjuntura deu origem às primeiras cidades e tomou vulto aproximadamente

em 3.500 a.C., nas planícies aluviais banhadas pelos rios Tigre e Eufrates, localizadas na área

delimitada pelo deserto do Saara e da Arábia, pelo Planalto da Anatólia e também pelo Mar

Mediterrâneo e o Golfo Pérsico – ponto de partida de todo o processo civilizatório da raça

humana. Em 1906, o arqueólogo e historiador americano James Henry Breasted cunhou,

para denominar a referida área, a expressão Crescente Fértil, em uma coerente referência à

forma de lua crescente – configurada no mapa pela contiguidade dos territórios – e em

Page 21: Ulisses Alves Maciel Ribeiro.pdf

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alusão à riqueza do solo da região – oriunda do depósito regular de material orgânico,

proveniente das inundações dos rios e responsável pelo êxito obtido na agricultura.

Figura 4. Mapa da área denominada Crescente Fértil | Autor não identificado.

Ao longo do tempo, o conceito de cidade, enquanto suporte espacial e simbólico,

sofreu consideráveis transformações. Concepções antes tidas como inabaláveis sobre a urbe

perderam destaque, ao passo que novas condições começaram a se projetar e outras

leituras foram ganhando protagonismo. Em uma dimensão histórico-terminológica, pode-se

começar a discorrer sobre a ideia de cidade, partindo-se da noção grega de pólis – a sede

onde uma determinada linhagem de pessoas, uma gente (gens/génos) se fixa e mora. Surge,

nesse sentido, a forte conotação de ancestralidade, enraizamento e apropriação vinculada

ao termo.

As metrópoles contemporâneas, entretanto, assumem traços mais condizentes com

a concepção romana de civitas, na qual os cidadãos é que dão base, robustez e vigor ao

conceito de cidade, não o oposto. O próprio mito fundador de Roma remete à ideia de

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concordância entre pessoas de distintas raças e origens, submetidas a uma mesma lei e

congregadas para atingir um mesmo objetivo. Fosse africano, asiático ou europeu, qualquer

homem livre que habitasse as terras do Império era um cidadão romano. Portanto, não é

uma raiz étnico-religiosa o que uniria tais pessoas.

Limites espaciais e temporais, associados à cidade tradicional, bem como sua

essência e seu ideário, têm-se tornado cada vez mais fluidos, mutáveis e reprogramáveis. As

organizações e os indivíduos têm se emancipado cada vez mais dessas amarras. Surgem

novas nuances, não somente em termos de configuração urbana e arquitetônica, mas,

também, de ordem idiossincrática.

É incontestável que, para expressar nossa realidade, não podemos mais recorrer ao conceito de cidade tal como entendida historicamente. Basta ver a enorme quantidade de neologismos utilizados pelos autores contemporâneos – Ecstacity, cidade nodal, cidade informacional, cidade dos bits, e-topia, metápole etc. – como tentativa de situar a cidade dentro das modificações vigentes (ARAUJO, 2011, p. 29).

Figura 5. Vista noturna da cidade de Nova Iorque, 2013 [foto editada pelo autor utilizando efeito neon] |

Ulisses Maciel.

A alteração na escala da economia mundial, potencializada pelo somatório de uma

gama de inovações, sobretudo no campo tecnológico – que tiveram seu pontapé inicial

ainda no século XVII com a invenção do primeiro motor a vapor, passando pelo

aproveitamento controlado da energia elétrica, a criação dos elevadores eletromecânicos, o

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desenvolvimento da indústria do aço, a invenção do concreto armado e o surgimento de

novos meios de transporte e comunicação – induziu ao surgimento de estruturas maiores,

mais altas e arrojadas, possibilitando deslocamentos mais velozes e permitindo trocas de

informações mais efetivas, levando a uma intensificação do fluxo de pessoas, bens e serviços

como nunca havia existido. Tal cenário trouxe à tona, como consequência, uma necessidade

pulsante de remodelação coletiva.

Nessa linha de raciocínio, não seria mais factível, nos dias de hoje, conceber

indivíduos ou territórios com fronteiras rigorosamente fixas, estanques e delimitadas.

Hibridismo e mestiçagem seriam os pressupostos do mundo contemporâneo, a regra

vigente. Diversidade que, ao mesmo tempo em que revela pluralidade, também se traduz

em achatamento dos papéis, homogeneização dos valores e destruição das singularidades,

propiciados, em alguma medida, pelo fortalecimento de uma proposta de integração

socioeconômica e cultural, a qual se costuma designar de globalização.

Nesse universo, o surgimento de uma série de descobertas e avanços tecnológicos

trouxe consigo significativas alterações no estilo de vida, nos hábitos e nos padrões de

comportamento das pessoas. É fato que, atualmente, o cotidiano dos habitantes das

metrópoles contemporâneas encontra-se invadido por um número enorme de

equipamentos eletrônicos que, ao permitirem novos modos de conexão, também afastariam

e isolariam os indivíduos, promovendo certa impermeabilização entre eles.

Soma-se ao quadro o poder de alienação proporcionado pela publicidade e pelas

estratégias de marketing, evocado a todo instante nos mais diversos suportes e ambientes,

levando as pessoas a se abstraírem, em alguma proporção, da existência dos seus

semelhantes, dificultando a construção de diálogos e mitigando as interações, como

entendidas tradicionalmente.

Já no ano de 2005, ao falar sobre walkmans, discmans e mp3 players, Bruno Cardoso,

aponta que eles deram a “oportunidade ao indivíduo de se alhear, através do prazer de ouvir

música, de uma realidade que se torna colateral” (2005, p. 15), e que os celulares, hoje

smartphones conectados à internet, “permitem estar em contato mais direto com alguém

que se encontra longe do que com indivíduos que estão por perto” (2005, p. 15).

Muitas das conexões estabelecidas, atualmente, acabam sendo mediadas por

gadgets portáteis. “Os meios de comunicação eletrônica modificam a estrutura perceptiva e

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cognitiva do sujeito; configuram uma nova consciência, estabelecem as normas de conduta

do novo humano e dissolvem o social e a política no reino do espetáculo” (SUBIRATS, 2010,

p. 17). Reuniões de família e encontro com amigos ou colegas – que deveriam ser, a

princípio e por definição, eventos de intimidade, troca e interação – ficam, muitas vezes,

truncados, mutilados e incompletos, pelo simples motivo de que os participantes estão

bastante entretidos e absortos em seus mundos virtuais e particulares, trazidos até eles pela

internet. O olho-no-olho e o cara-a-cara são subjugados a um segundo plano e as ligações

concretas perdem espaço para o virtual. Quem recebe e merece o touch, hoje em dia, são os

screens.

Ficção e propaganda, genocídio e consumo, patriotismo e entertainment fecham um ciclo contínuo e indiferenciado de imagens, ritmos e signos no qual os limites éticos e cognitivos entre o falso e o legítimo, o fragmento e a totalidade, entre o real e o delírio são vaporizados no panorama da super-realidade eletronicamente produzida (SUBIRATS, 2010, p. 23).

Figura 6. Usuários do metrô de Seul | Daniela Braun, G1.

Os vários meandros e camadas das relações humanas que vêm se desenvolvendo

contemporaneamente, com relevante destaque entre os habitantes dos centros urbanos

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mais populosos, permitidas e estimuladas, em grande parte, pelos artefatos tecnológicos

disponíveis à mão e ao bolso de quase todos, podem ser identificadas, por exemplo, no filme

Ela (Her), dirigido por Spike Jonze e lançado pela Sony Pictures em 2013.

Vivendo na Los Angeles de um futuro próximo, a personagem interpretada por

Joaquin Phoenix, Theodore Twombly, é um homem melancólico, de poucos amigos e não

muito entusiasmado pela vida, que, ironicamente, trabalha em uma empresa especializada

em traduzir sentimentos e emoções dos clientes através de cartas manuscritas.

Após adquirir um novo sistema operacional com inteligência artificial

autodenominado Samantha, Theodore vê sua vida mudar de sentido, seu vazio existencial,

potencializado pela recente separação da esposa, começa a ser preenchido e um novo brilho

começa a despontar no seu cotidiano.

Em um primeiro instante, Samantha é, basicamente, uma assistente eletrônica

pessoal, que organiza e-mails e compromissos. Eventualmente, ela também dá alguns

conselhos e umas injeções de ânimo em Theodore. Os diálogos entre eles vão se tornando

progressivamente mais líricos e intimistas, fazendo com que homem e máquina gastem cada

vez mais tempo conectados um ao outro e Samantha passe, em certo ponto, a ser uma

presença quase palpável. Logo, Samantha desenvolve (ou, pelo menos, simula) mais afeição,

mais cuidado e mais carinho com seu dono, e eles acabam por se apaixonar. Bem, pelo

menos Theodore se apaixona por ela.

Esse enredo exprime alguns aspectos do cotidiano nas metrópoles contemporâneas,

onde muitas pessoas conseguem se conectar mais facilmente com gadgets e através de

redes sociais do que propriamente com outras pessoas. Paixões e amizades virtuais podem

surgir com um simples click. Não são raras as ocasiões nas quais os indivíduos estão com

olhos vidrados e dedos inquietos passeando pelas telas dos seus tablets ou smartphones,

mas completamente alheios à existência do outro.

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Figura 7. Cena do filme Ela (Her), Spike Jonze, 2013.

É importante ficar claro, a partir do momento em que se reconhece a invasão de tais

aparatos eletrônicos no cotidiano das pessoas, que não se está afirmando, em absoluto, que

as pessoas não dialogam ou não interagem mais. Seria ingênuo afirmar tamanho

despropósito. As relações humanas não estão, de jeito algum, arruinadas! As formas de

conexão tradicionais ainda continuam sendo protagonistas e, portanto, ainda são a mola

propulsora da sociedade. O que se está chamando atenção aqui é para o surgimento de

uma nova maneira de comunicação e troca, com vínculos de outra natureza e baseada em

outros suportes, que tem tomado forma no mundo contemporâneo e das quais a

arquitetura se torna, sob certa ótica, conivente.

Quando os projetos arquitetônicos passam a ser subservientes unicamente à lógica

do capital, o que acontece na grande maioria dos casos – inclusive nos de investimento

público para uso coletivo –, a arquitetura também se torna cúmplice desse novo modo de

relacionamento entre as pessoas, na medida em que endossa mecanismos comprometidos,

prioritariamente, com a eficiência, o rendimento, a velocidade e o lucro. Parece a descrição

de um cenário moderno? Não exclusivamente. Hoje em dia, até ações sustentáveis – tão em

voga (ou em moda) em diversos meios e não apenas na arquitetura – são travestidas com

um quê de ética e responsabilidade social, mas no fundo evidenciam, via de regra, nada mais

que atitudes de obediência às lógicas do mercado.

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Figura 8. Certificações LEED, Green Building Council.

De tal maneira, os habitantes das grandes metrópoles são forçados a se tornar peças

de uma engrenagem, devendo produzir veloz e incansavelmente, sem parar. O objetivo é

fazer tudo mais rápido e com menos recursos, em busca de uma eficiência que, na realidade,

desgasta e pulveriza a socialização entre os indivíduos. Nessas cidades, os deslocamentos

frenéticos e efervescentes dos corpos, em muitas situações, permitem apenas que se

estabeleçam vínculos débeis e superficiais. “A cidade é, cada vez mais, o cenário de derivas e

fluxos, encontros e fugas produzidos no território que articula os sujeitos que a percorrem,

suas formas de vida, suas necessidades e ansiedades” (JARAUTA, 2013, p. 28).

Vivemos num tempo de mudança. Em muitos casos, a sucessão alucinante de eventos não deixa falar de mudanças apenas, mas de vertigem [...] Hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as ideias. Tudo voa (SANTOS, 2006, p. 222).

Alegoricamente, configura-se um pouco o que arquiteto holandês Rem Koolhaas

chama de Cidade Genérica, uma cidade “fundada por pessoas em trânsito, determinadas a

seguir adiante. Isto explica a insubstancialidade de suas fundações” (2010, p. 41). Esse

território torna-se “o novo laboratório de relacionamentos, olhares, tolerâncias e

reconhecimentos” (JARAUTA, 2013, p. 28), produzindo “um novo ser social, construído de

matéria híbrida das diferenças, das ausências forçadas pela distância do lugar de origem, da

voz suspensa, do olhar extraviado” (JARAUTA, 2013, p. 28).

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As pessoas têm urgência em chegar a seus destinos, têm pressa de continuar em

direção a seus empregos, suas escolas ou de voltar para suas casas, ao fim de cada

extenuante jornada, se possível de modo rápido, sem atrasos ou empecilhos. Em meio à

tamanha urgência, qualquer forma de socialização atrapalharia e desviaria os indivíduos de

seu objetivo final. É a lógica da metrópole capitalista contemporânea e dela não se tem

muito como escapar.

Nos deslocamentos há alta eficiência, entretanto são deslocamentos não para constituir encontros, mas para otimizar percursos entre pontos. Assim, deslocamento físico eficiente e segregação constituem-se como partes desdobradas de uma mesma condição (BOGÉA, 2009, p. 189).

Eclode uma realidade curto-circuitada, que põe em xeque o convívio e as relações

sociais como são conhecidas, desdobrando-se, no final das contas, em distanciamento e

isolamento entre as pessoas. Como não reconhecer, por exemplo, que alguém, dirigindo seu

carro com vidros escuros e ar-condicionado ligado, conectado ao seu iPhone™ enquanto

cruza a Avenida Paulista, está, na verdade, desconectado, isolado e falsamente protegido de

todos à sua volta? “Diferentemente das cidades medievais, com suas portas claras e suas

muralhas a definir o dentro e o fora, o habitante e o forasteiro, cidades contemporâneas

têm muros cada vez mais internos e ruas que se confundem com exterioridade” (BOGÉA,

2009, p. 191). Na sociedade da informação, em plena era da conectividade total, mesmo

com acesso, pretensamente, ilimitado e sem restrições quanto ao compartilhamento de

conteúdos de toda ordem por qualquer cidadão do mundo, encapsula-se o homem,

reerguem-se os muros.

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2. SUPERMODERNIDADE

Depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Auschwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressureição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já ocorreu, ou está em vias de ocorrer (ROUANET, 1987, p. 268-269).

Embora qualquer tentativa de definição seja reducionista e não faça jus à

multiplicidade da situação, a pós-modernidade pode ser vista, em termos gerais, como um

misto de condição filosófico-científica, manifestação sociocultural e expressão estética do

capitalismo pós-industrial, fase caracterizada, dentre outros aspectos, pela explosão das

inovações tecnológicas, ascensão do setor de serviços e amplificação das atividades

relacionadas à informação. O recurso-chave das sociedades passou, então, a ser o

conhecimento e não mais os tradicionais fatores de produção como a terra, a mão-de-obra e

o capital, embora não se possa ainda prescindir deles.

Altamente complexo por natureza, o termo que lhe dá nome busca evidenciar uma

mudança de orientação e revelar a fragilidade inerente às grandes utopias do modernismo.

Tal expressão, evidentemente, tem seu mérito, mas não basta por si só para traduzir o

cenário de descrédito e desencantamento frente aos projetos e planos que tomavam corpo

na sociedade, já que o sentido carregado por ela – e seu uso mais recorrente – não abarca

uma mera denúncia ou simples tentativa de superação da modernidade, mas uma sugestão

crítica para uma maior ramificação e multiplicação de conceitos.

A disputa pela primazia do uso do termo, pelo menos no campo da arquitetura,

instaura-se entre os críticos norte-americanos e ingleses. Ainda que o norte-americano

Charles Jencks, em 1977, tenha discutido mais claramente os possíveis fundamentos da nova

linguagem arquitetônica no seu livro The language of post-modern architecture, em 1966, o

inglês Nikolaus Pevsner já havia usado a expressão no seu artigo Architecture in our time: the

anti-pioneers. No mesmo ano de 1977, o também inglês Peter Blake, ironizando o axioma

Form follows function – enunciado pelo norte-americano Louis Sullivan e um dos mais

emblemáticos do modernismo –, publica o livro Form follows fiasco: why modern

architecture hasn’t worked.

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O próprio Jencks chegou a estabelecer, inclusive, como marco simbólico do término

do modernismo e passagem para o pós-modernismo, a implosão do premiado complexo

habitacional Pruitt-Igoe ocorrido em 15 de Julho de 1972, então localizado na cidade de

Saint Louis, Missouri, Estados Unidos, projetado pelo arquiteto americano Minoru Yamasaki,

e erguido em 1951 a partir dos postulados do Congrès Internationaux d'Architecture

Moderne – CIAM.

É claro que atribuir exclusivamente à arquitetura a falha do referido projeto em

promover qualidade de vida e bem-estar aos seus habitantes é um mito que não se sustenta.

Se assim fosse, estariam sendo minimizadas todas as questões políticas, econômicas e

culturais que levaram à ruína do complexo. Na conta da falência, devem ser computados,

ainda o descontrolado crescimento populacional de Saint Louis, causado pelo rápido

processo de industrialização após a Segunda Guerra; a periferização dos trabalhadores; o

acirramento das históricas tensões raciais, muito próprias da sociedade norte-americana; a

violência e a degradação não apenas do espaço físico, mas também o declínio social

daqueles indivíduos já marginalizados por tantas outras circunstâncias.

Figura 9. Implosão de um dos prédios do complexo habitacional Pruitt-Igoe, Saint Louis, 1972 |

Autor não identificado.

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A partir do final dos anos 70, a noção de pós-modernidade fez sua entrada no palco intelectual com o fim de qualificar o novo estado cultural das sociedades desenvolvidas. Tendo surgido inicialmente no discurso arquitetônico (em reação ao estilo internacional), ela bem depressa foi mobilizada para designar ora o abalo dos alicerces absolutos da racionalidade e o fracasso das grandes ideologias da história, ora a poderosa dinâmica de individualização e de pluralização de nossas sociedades. Para além das diversas interpretações propostas, impôs-se a ideia de que estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais facultativa, menos carregada de expectativas em relação ao futuro (LIPOVETSKY, 2004, p. 51).

Em um quadro mais amplo, constata-se que muitas transformações estavam se

desdobrando: a crença no futuro revolucionário, promulgada pelo ideário moderno, havia

sido profundamente abalada; as regras autoritárias, enfraquecidas; e as militâncias das mais

diversas ordens, abrandadas. Simultaneamente, o consumo, a comunicação em massa, a

fragmentação do tempo e do espaço, a individualização e o hedonismo ganhavam força e

importância.

Como se poderia pensar pelo simples uso do prefixo, a pós-modernidade, embora a

interponha, não surge exatamente para aniquilar a modernidade, chegando, até mesmo, em

alguns pontos, a maximizá-la. Muitos críticos e teóricos possuem suas próprias perspectivas

e seus próprios discursos sobre o que vem a ser a pós-modernidade. Teorizá-la, portanto,

não é uma empreitada das mais fáceis. Ainda que seja preciso, nesse momento, assumir

algum risco para avançar na exposição, é realmente um pouco complicado tratar de um

assunto, que presume refletir, contestar ou repaginar uma condição anterior sobre a qual

nem ao menos se tem pleno domínio e entendimento.

É difícil chegar ao caráter fundamental do fenômeno pós-moderno do modo como ele surgiu na arquitetura e em quase todos os outros campos culturais. Sob um ponto de vista, é preciso reconhecê-lo como uma reação compreensível às pressões da modernização social, e, portanto, como uma fuga à tendência da vida contemporânea a ser totalmente dominada pelos valores do complexo industrial-científico (FRAMPTON, 1997, p. 372).

Nesse debate, o filósofo francês Jean-François Lyotard estabelece, como

característica principal da condição pós-moderna, o fim das metanarrativas e dos grandes

esquemas totalizantes e explicativos do mundo. Diante de tal assertiva, pode-se apontar

também para a crise das certezas, das verdades e das garantias, além do esgotamento dos

devaneios, da arrogância e dos sonhos de uniformidade baseados em um homem-modelo,

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típicos do discurso moderno. Sem querer criar uma plataforma política, caberia, aqui,

parafrasear o refrão da música Ideologia, composta por Cazuza em 1988: “Meus heróis

morreram de overdose / Meus inimigos estão no poder / Ideologia / Eu quero uma pra

viver” (CAZUZA, Ideologia, 1988).

As controvérsias atuais sobre o que muitos rotularam de pós-modernidade talvez devessem ser vistas antes como as primeiras iniciativas reais da ambiciosa tarefa de mapear o universo cultural decorrente da desintegração completa e cabal do mundo tradicional. No mínimo, elas certamente exprimem o forte sentimento de que os modelos preestabelecidos de análise cultural deixavam radicalmente a desejar (GIDDENS, 1987, p. 28-29).

Segundo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, para quem os tempos atuais ainda são

modernos, ocorre, na realidade, o recrudescimento de algumas características já presentes

nas sociedades. “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo,

hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper? O que mais não

expõe uma modernidade elevada à potência superlativa?” (LIPOVETSKY, 2004, p. 53).

Como espelho de tal alegação, pode-se constatar, em diversos filmes, uma profusão

quase insana de tramas simultâneas ou fora de sequência, cortes abruptos, personagens com

histórias superficiais e narrativas focadas em acontecimentos banais, muitas vezes através de

episódios inverossímeis de ação, recheadas de efeitos visuais e sonoros, feitos por

computador, ou até mesmo através de cenas apelativas de sexo e violência, que pretendem

provocar algum grau de sensação impactante na plateia.

Nessa estética, ocorre também uma mistura de referências das ditas alta e baixa

culturas, congruente com esse mesmo excesso de informação, sem profundidade ou

superficialmente contextualizada que têm como objetivo final o gozo, a surpresa e a catarse

dos espectadores, em um esforço de constante busca pela satisfação hedonista e pelo prazer

imediato.

Se antes, a alienação se dava pela falta de acesso amplo à informação,

institucionalizada pela censura e imposta por outros mecanismos de cerceamento do

conhecimento e dos desejos, na pós-modernidade, paradoxalmente, a exclusão se dá pela

abundância de referências e de estímulos que mal conseguem ser processados, fazendo com

que os indivíduos passem, de modo geral, a ter atitudes acríticas e, portanto, muito oportunas

para uma sociedade voltada para o consumo.

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O declínio de perspectivas e narrativas históricas mais abrangentes e a neutralização de um complexo mais antigo de interesses e enfoques narrativos (ou formas de consciência temporal) nos liberam agora para um presente de intensidades não-codificadas, mais ou menos como o efeito químico de drogas serve para afrouxar nossas pró-tensões e re-tensões temporais na contemplação hipnótica do que agora nos é apresentado alucinogenamente (JAMESON, 1995, p. 153).

Figura 10. Propaganda do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, Associação Brasileira de Imprensa, 2008 |

Agência Africa.

Alguns desses artifícios, tais como a assincronia, a não-linearidade e o emaranhado

de tramas, podem ser identificados no filme Pulp Fiction: tempo de violência, dirigido por

Quentin Tarantino e lançado pela Miramax em 1994. Tal fórmula, contudo, não foi criada

pelo diretor, já estando presente em várias obras anteriores como as de Jean-Luc Godard.

Contudo, Tarantino consegue transformar uma obra originada fora do circuito comercial,

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inspirada em filmes exploitation, em um blockbuster que arrecadou muitas vezes mais o

valor investido, sendo hoje considerada um cult movie, ou por que não mesmo dizer,

mainstream.

A narrativa tem como pano de fundo o submundo das drogas e do crime, onde são

contadas três histórias diferentes que se interconectam e se interlaçam, como em uma

colagem. O filme, fora da ordem cronológica e com uma extensa gama de personagens –

dois assassinos profissionais, um gângster e sua esposa junkie, um pugilista e um casal de

assaltantes –, apresenta cenas e diálogos oblíquos com muitas referências à cultura pop e

estilização da violência, misturando ficção com a realidade das ruas – outro recurso típico do

cinema pós-moderno. Ao mesmo tempo, seus significados se revelam mais pela forma do

que, propriamente, por seu conteúdo, propondo uma organização discursiva na qual as

imagens tenham tanto ou mais força do que as palavras.

Causa pouca surpresa que a relação do artista com a história (o historicismo peculiar para o qual já chamamos a atenção) tenha mudado, que, na era da televisão de massa, tenha surgido um apego antes às superfícies do que as raízes, à colagem em vez do trabalho em profundidade, a imagens citadas superpostas e não às superfícies trabalhadas, a um sentido de tempo e de espaço decaído em lugar do artefato cultural solidamente realizado. E todos esses elementos são aspectos vitais da prática artística na condição pós-moderna (LIPOVETSKY, 2005, p. 51).

Figura 11. Cena do filme Pulp Fiction: tempo de violência, Quentin Tarantino, 1994.

O atual estado das coisas – supermodernidade, na leitura de Augé – pode ser

caracterizado e apreendido, sem que sejam ignoradas suas complexidades, por uma matriz

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muito evidente e bastante difícil de contrariar: o excesso, que pode ser traduzido através de

três figuras – a superabundância factual, a superabundância espacial e a individualização das

referências (2012, p. 41).

A superabundância factual seria condizente com a aceleração dos acontecimentos e

com a falsa sensação de abreviação da história, causadas, nos dias de hoje, por um volume

massivo de informações, geradas e propagadas quase que simultaneamente, nutridas por uma

quantidade sem precedentes de interdependências globais e ratificada pela necessidade de se

atribuir importância e valor ao presente, já que o passado perdeu força, como referência, e o

futuro é, mais do que nunca, incerto.

Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável (BAUMAN, 2001, p. 14-15).

Seguindo com a explicação de Augé, a superabundância espacial seria reflexo direto

de uma alteração de escala, que acabou por encolher o planeta. Os meios de transporte

rápidos, as imagens captadas e difundidas por satélites, as informações cabeadas à

velocidade da luz, a publicidade ostensiva e onipresente, entre outras coisas, conduziram,

contraditoriamente, a um considerável grau de achatamento e homogeneização do globo,

acarretando na produção e na reprodução de alguns lugares sem identidade, relação ou

história, especialmente quando comparada com a noção sociológica de lugar herdada do

sociólogo francês Marcel Mauss3 e de “toda uma tradição etnológica àquela de cultura

localizada no tempo e no espaço.” (AUGÉ, 2012, p. 36).

A lenta miniaturização das proporções do habitat terrestre, causada pela aceleração permanente de todos os trajetos é uma forma insidiosa da desertificação do mundo, uma forma geralmente percebida como um progresso tanto técnico quanto político que aproximaria os homens, as culturas remotas, reduzindo a nada, ou a quase nada, as distâncias, as demoras (VIRILIO, 2011, p. 103-104).

3 Marcel Mauss assinalou que as coisas não podem ser mais importantes que os vínculos estabelecidos entre as

pessoas e que os símbolos têm destacada relevância na vida social dos indivíduos.

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Figura 12. Times Square, Nova Iorque | Inside Student Blogs.

Por fim, a individualização das referências – excesso do ego – seria decorrência de

um atributo que, simultaneamente ao fortalecimento das articulações do rizoma-mundo,

considerando toda sua multirracialidade, plurissexualidade, interdisciplinaridade e

transcontextualidade, faz ressoar um clamor de particularização e distinção, através do qual

as coletividades necessitam repensar o valor e o simbolismo de sua identidade, já que, “na

medida em que a identidade deriva da substância física, do histórico, do contexto e do real,

de certo modo não conseguimos imaginar que algo contemporâneo – feito por nós –

contribua para ela” (KOOLHAAS, 2010, p. 31).

Até os comportamentos individuais são pegos na engrenagem do extremo, do que são prova o frenesi consumista, o doping, os esportes radicais, os assassinos em série, as bulimias e anorexias, a obesidade, as compulsões e vícios. Delineiam-se duas tendências contraditórias. De um lado, os indivíduos, mais do que nunca, cuidam do corpo, são fanáticos por higiene e saúde, obedecem às determinações médicas e sanitárias. De outro lado, proliferam as patologias individuais, o consumo anômico, a anarquia comportamental (LIPOVETSKY, 2004, p. 55).

As três figuras de excesso enunciadas por Augé – tempo, espaço e ego – são

componentes que se potencializam e, sem se destruir, ilustram, com um amplo grau de

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aproximação, uma das inúmeras facetas do cenário da contemporaneidade – um mundo

fractal, comprometido e legitimado pela fluidez, pela vertigem e pela multipossibilidade.

Figura 13. La desintegración de la persistencia de la memoria, óleo sobre tela, Salvador Dalí, 1952-54 |

The Dalí Museum.

Há muito a velocidade está enraizada – ponto pacífico. O que acontece agora é que o

giro (turnover) foi incrivelmente acelerado, fazendo com que tudo esteja programado para a

obsolescência, devendo ser jogado fora ou substituído em algum momento. Coisas e pessoas

tornaram-se igualmente consumíveis e descartáveis. Tal condição induz os indivíduos, com

notável destaque para os habitantes das metrópoles, a buscarem algum grau de completude

por meio do trabalho incessante ou pela busca frenética do prazer consumista.

O hiperconsumo se desenvolve à medida que se propagam as consciências infelizes e que o curso do mundo parece escapar ao controle dos homens. Quando os laços sociais se afrouxam, quando as capacidades de influir nas tendências fortes do mundo já não são dignas de crédito, o consumo representa um domínio escolhido e controlado pelos sujeitos, um universo seu em que se buscam incessantemente elementos de felicidade (LIPOVETSKY, 2007, p. 291).

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Grosso modo, essas válvulas de escape podem ter suas expressões ligadas a uma

materialidade arquitetônica. A alienação através do trabalho, por exemplo, pode ser

ratificada pelo aspecto predominantemente funcional de muitos edifícios, que são parte

integrante da paisagem e da identidade urbanística contemporânea, tais como estações de

trem, metrô, rodoviárias, aeroportos e high-rise buildings, dentre outros.

Já, a alienação pelo prazer pode ser traduzida pelas sensações imediatas de deleite

visual, presentes tanto nos atuais templos de consumo – os shopping centers – quanto nas

próprias cidades em si que, em alguns casos, através de processos de city marketing, fazem

brotar edifícios icônicos, com forte apelo estético, comumente vinculados a grandes marcas

ou conglomerados empresariais, buscando seduzir pela audácia formal e arrojo tecnológico.

Tais projetos são concebidos, indiscutivelmente, como mercadorias, atrelando toda uma

gama de símbolos e valores ao cliente – entendido, aqui, como seu patrocinador – e quase

nunca ao seu usuário final.

Figura 14. Skyline de Dubai durante o pôr-do-sol | Karim Nafatni.

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3. LUGARES OU NÃO

O conceito de lugar, considerado por muito tempo como um dos mais problemáticos da Geografia, tem se destacado, recentemente, como uma das chaves para a compreensão das tensões do mundo contemporâneo. Articulando, entre outras, as questões relativas a globalização versus individualismo, às visões de tendência marxista versus fenomenológica ou à homogeneização do ambiente versus sua capacidade de singularização, o lugar tem se apresentado como um conceito capaz de ampliar as possibilidades de entendimento de um mundo que se fragmenta e se unifica em velocidades cada vez maiores (FERREIRA, 2000, p. 65).

Para apreender a concepção de lugar que, em uma primeira leitura, pode parecer

uma expressão evidente por si só, faz-se apropriado também discorrer sobre o conceito de

espaço, esclarecendo, desde já, que essas noções ultrapassam em muito a esfera do

conhecimento apenas geográfico, permitindo interlocuções com uma multiplicidade de

disciplinas, tais como a história, a filosofia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a

literatura, o cinema e a arquitetura, dentre tantas outras.

Embora exista uma profusão de autores que já dissertaram sobre o assunto, muitas

vezes com interpretações divergentes e contestadas, para essa pesquisa é oportuno

esclarecer que tais noções não serão tomadas como categorias antagônicas e desarmônicas,

mas como modalidades análogas e congruentes, não havendo, stricto sensu, oposição entre

elas. As ideias de lugar e espaço são, portanto, espécies de camadas que se tocam embora

se diferenciem, mantendo uma constante relação dialética.

Para uma consolidação mais efetiva do argumento a ser desenvolvido, o ponto de

partida da análise subsequente será as pessoas, principais usuárias desses referidos

domínios. Enquanto criaturas biológicas, os seres humanos são dotados de órgãos

sensoriais, muito semelhantes aos de uma série de outros animais; contudo, seus princípios

de organização espacial são fundamentados, de modo particular, em uma estrutura corporal

bípede, uma postura ereta e uma orientação horizontal, frontal e linear. É com base nesse

esquema de base biológica que o ser humano interpreta toda a complexidade do mundo

físico e social em que vive.

O primeiro objeto autônomo que uma criança tem contato no espaço é, sem dúvida,

a figura de sua mãe. A coisa mais notável que um bebê humano consegue reconhecer,

inicialmente, é outro humano, outra pessoa, outro eu. “Um dos momentos mais memoráveis

da vida é quando uma criança fica de pé e começa a andar: a vida, agora, começa para valer”

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(GEHL, 2013, p. 33). Daí a importância de Eguimar Chaveiro4 – apoiado em autores do

gabarito de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty, ao discorrer sobre a interconexão

entre espaço e corporeidade – ao afirmar que “não é possível haver existência do corpo e da

vida sem o espaço e os seus componentes, como não é possível existir espaço, lugar,

paisagem ou outro atributo que permite a ação humana, sem a experiência do corpo”.

Os diferentes indivíduos que, por alguma circunstância ou por um instante qualquer,

tenham de partilhar um mesmo espaço, acabam por endossar muitos dos processos de

segregação e discriminação que definem a realidade conflitiva deles. O espaço, sempre alvo

de disputas entre os variados estratos sociais, é concebido, portanto, pelas distintas

corporeidades que o experienciam e pleiteiam sua apropriação, não apenas no âmbito físico,

mas também no campo subjetivo, imagético, simbólico.

Ainda que os sentidos de espaço e de lugar possam ser confundidos facilmente – e,

no cotidiano, isso aconteça com muita frequência – é importante pontuar algumas

tentativas de caracterização feitas por destacados autores, que podem ajudar a formar um

quadro teórico consistente a respeito de tais conceitos.

Para o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, “o que começa como espaço

indiferenciado, transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de

valor” (1983, p. 6). Para ele, o espaço “enquanto unidade geométrica *...+ é uma quantidade

mensurável e precisa” (1983, p. 58), um conceito vetorializável e munido de dimensões

finitas como altura, largura, profundidade, área e volume. Seus substratos são de caráter

físico, referenciados em coordenadas cartográficas e representados por uma extensão, uma

distância entre dois pontos ou até mesmo uma rede com limites e conexões. O espaço,

dessa maneira, tem uma natureza estacionária, onde os objetos se põem distintamente em

relação aos outros, implicando em uma delimitação própria a cada um deles e transmitindo,

como consequência, uma ideia de estabilidade. Sua base é de cunho essencialmente pétrea

e estacionária.

4 MARANDOLA JR, Eduardo; HOLZER, Werther; OLIVEIRA, Lívia de (Orgs.). Qual o espaço do lugar?: geografia,

epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 250.

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40

Figura 15. Espaço indiferenciado | ForWallpaper.

Por sua vez, o lugar é antropológico, impalpável e subjetivo, habitualmente ligado à

noção de tempo, onde as ações e competências humanas se sucedem e ganham significado,

conforme se pode inferir a partir das teorias enunciadas por geógrafos humanistas, tais

como o próprio Tuan e Edward Relph. Todas as vivências culturais, sociais e simbólicas do

cotidiano, sejam individuais ou coletivas, manifestam-se nesse palco. O lugar, desse modo,

tem uma condição cinética, onde os elementos, embora se ponham distintamente em

relação ao demais, estabelecem uma interação, transmitindo, como resultado, uma ideia de

movimento. Sua base é de cunho essencialmente dinâmica e transmutável.

A partir dessas premissas e da permeabilidade existente entre tais conceitos, o

historiador e erudito francês Michel de Certeau enuncia que “o espaço estaria para o lugar

como a palavra quando falada”, sendo, desse modo, “um lugar praticado”, “um cruzamento

de forças motrizes”5. Ambos os conceitos são construídos por componentes materiais e

imateriais; eles se entrelaçam e um ajuda, reciprocamente, a compor o outro. “É tarefa do

lugar envolver as tramas do modo de produção, das ações dos sujeitos e, então, do

5 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 202.

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41

envolvimento das diferentes corporeidades no uso e apropriação do espaço” (CHAVEIRO,

2012, p. 267).

O tempo é vivido como memória, e por isso memória e identidade adensam o lugar. A memória é a experiência vivida que o significa, definindo-o e quanto tal. Não é à toa que pensar em lugar é mais fácil recuando no tempo: lugar de nascimento, lugar de lembranças, lugar de saudade, lugar de memória, lugar de identidade. Ele parece mais conectado a uma tradição, a uma experiência profunda de entrelaçamento com a terra. Um ritmo lento onde o sentido da permanência prevalece. Mas não apenas isso (MARANDOLA JR, In: MARANDOLA JR; HOLZER; OLIVEIRA, 2012, p. 229).

Figura 16. Grande Bazar de Istambul, 2014 | Ulisses Maciel.

Segundo o geógrafo brasileiro Milton Santos, os conceitos se põem de modo um

pouco diferente do que já apresentados até aqui. Para ele, o espaço é “um conjunto de fixos

e fluxos” (1983, p. 38), onde “os elementos fixos, fixados em cada lugar permitem ações que

modificam o próprio lugar” (1983, p. 38), enquanto que “os fluxos são um resultado direto

ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e

o seu valor” (1983, p. 38). Sob essa perspectiva, “o espaço é formado por um conjunto

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42

indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações,

não considerados isoladamente, mas como um quadro único no qual a história se dá” (1983,

p. 39). Portanto, “o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima” (1983, p. 38), sendo

“um sistema de valores, que se transforma permanentemente” (1983, p. 67).

O lugar não é mais o mesmo que sempre foi. Ou mais, os lugares não são mais os mesmos que foram outrora. Um mesmo espaço pode mudar ao longo da história. Os espaços ocupados podem ser os mesmos, mas é certo que todas as mudanças nele promovidas são acompanhadas por uma ressignificação dos sentidos que lhes são atribuídos. São os mesmos espaços, mas diferentes lugares. Podemos dizer preliminarmente que um espaço pode conter diferentes lugares. Para além de um mero espaço geográfico, o que um lugar representa depende dos significados que lhe são atribuídos (MOCELLIM, 2009, p. 77-78).

Pensando nesse sentido, arquitetos, engenheiros, planejadores, políticos, gestores e

cientistas, de modo geral, não podem, através de seus desígnios, conceber lugares

propriamente. Tais tomadores de decisão conseguem, no máximo, através de

conhecimentos técnicos e analíticos, prover o suporte tectônico que facilita a produção e

reprodução deles. Os usuários, não os especialistas, é que são os verdadeiros fundadores

dos lugares.

O conceito de lugar, independente de qual venha a ser o interesse da área de estudo

que o analisa e, portanto, do objeto em foco, encerra em si um leque de interpretações e de

diferentes significados. Esses possíveis significados vêm sendo investigados há bastante

tempo, mas foi na segunda metade do século passado que ganharam muito destaque no

meio acadêmico, inclusive no campo da arquitetura, sendo amplamente discutidos e

analisados, resultando em diversas abordagens teóricas como vernaculismo, regionalismo e

modernidade apropriada, dentre outras.

A geografia, enquanto ciência, deu pouca atenção ao lugar no decorrer da história. Seu ganho de importância coincide com dois processos: o surgimento de abordagens teóricas que procuravam enfatizar valores humanistas orientados pelas filosofias do espírito, dando atenção à diversidade, à heterogeneidade e à diferença (geografia humanista primeiramente, depois a geografia cultural); e o movimento de mundialização que forjou uma oposição entre global-local/ mundo-lugar a partir da subjugação do segundo pelo primeiro (MARANDOLA JR, In: MARANDOLA JR; HOLZER; OLIVEIRA, 2012, p. XIV).

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43

Segundo Augé, os lugares possuem, fundamentalmente, três propriedades. Para o

antropólogo, eles se pretendem identitários, relacionais e históricos. Embora tais

características cubram com um certo verniz a real face dos lugares, também camuflam um

aspecto não tão poético e, até mesmo, repulsivo deles. Surge, sob essa perspectiva, a

manifestação do enraizamento e do apego ao lugar, com vieses bastante exclusivistas e

preconceituosos, onde, tudo e qualquer coisa que seja diferente ou não reconhecido como

parte integrante deles deve ser – e, muito provavelmente, será – deslocado de modo

compulsório, em uma atitude legitimada de proteção e de defesa. Renda, etnia, gênero e

crença (política ou religiosa) são plataformas que endossam uma equivocada e perigosa

busca pela pureza dos lugares.

Já os não-lugares, por oposição, seriam o oposto do ambiente de trabalho, do lar, do

espaço íntimo, vendo-se representados pelos meios de transporte em si, quanto pelas

instalações públicas de grande e rápida circulação, como autoestradas, rodoviárias, estações

de trem, metrô e aeroportos. Fazem ainda parte da lista, além dos nós de mobilidade

citados, hospitais, supermercados, shopping centers, quartos de hotéis, parques temáticos,

lanchonetes fast food, dentre uma infinidade de outros ambientes construídos de modo

padronizado. Nesse cenário, agrupa-se também uma realidade colateral não menos

considerável: a relação que os usuários estabelecem com esses espaços e entre si mesmos,

quando os permeiam.

Em sentido trivial, como localização, toda parte é um lugar, mas, em um nível mais complexo, lugar se refere às configurações diferenciadas do seu entorno, pois são focos que reúnem coisas, atividades e significados. Sempre que a capacidade do lugar de promover a reunião é fraca ou inexistente temos não-lugares ou lugares-sem-lugaridade. Essas ideias são importantes porque permitem entender lugar pela ausência, tanto quanto pela presença (RELPH, In: MARANDOLA JR; HOLZER; OLIVEIRA, 2012, p. 25).

As palavras de ordem para os atores dos não-lugares são ação, movimento e

inquietude, na acepção mais precisa dos termos. Muito embora todos os usuários desses

ambientes realizem atividades similares e tenham um mesmo propósito, o conversar ou o

socializar não é, exatamente, a temática de tais áreas. As relações que se instauram só dizem

respeito, estritamente, à atividade final, e qualquer interação entre as pessoas acaba por

afastá-las de seu objetivo principal, causando evidente prejuízo ao desfecho.

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44

Embora o termo não-lugar tenha sido cunhado pelo urbanista americano Melvin

Webber6 em 1964 e só amplamente difundido por Augé7 a partir de 1994, sua natureza

maquinal já havia sido identificada e apreendida por muitos pensadores, pintores,

fotógrafos, poetas e artistas. Em O homem da multidão (The man of the crowd), por

exemplo, conto de Edgard Allan Poe ambientado na Londres do século XIX, que naquele

momento era a cidade mais populosa do mundo, o literato, já apontava para a essência

marcial e automatizante dos não-lugares.

Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica. Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba (POE [1840], 2008, p. 259).

Da mesma forma, Charles Baudelaire já descrevia, em seu poema A uma passante (À

une passante), publicado em As flores do mal (Le fleurs du mal) a característica fugaz dos

encontros (e desencontros) na Paris de fins do século XIX, que se tornava cada vez mais

populosa, registrando, pela primeira vez na literatura, a possibilidade da rápida perda de

alguém em meio à multidão na metrópole que se agigantava.

Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté Dont le regard m'a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l'éternité? Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être! Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais! (BAUDELAIRE [1857], 1975, p. 93)

6 WEBBER, Melvin M. et al. Explorations into urban structure. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,

1964. 7 AUGÉ, Marc. Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2012.

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Figura 17. Estação de trem no horário do rush, Mumbai | Vivek Prakash, Reuters.

Figura 18. The Strip no horário do rush, Las Vegas | Rob Wiser.

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Segundo o arquiteto Abílio Guerra, na dimensão do bairro, cumprimentar o padeiro

ou trocar algumas palavras com o jornaleiro da esquina, enquanto se leva o cachorro para

passear, é factível e dá robustez ao universo vivido. Entretanto, na escala da metrópole,

essas mesmas atitudes não se sustentam nem encontram eco, pois vínculos não são

estabelecidos apenas através do simples contato ou da mera coabitação, e reconhecer a

fisionomia de uma pessoa tampouco significa conhecê-la de fato.

Embora habitualmente superlotados, nos não-lugares os indivíduos encontram-se, de

modo contraditório, solitários. Os encontros que se sucedem a todo instante nesses locais

são tão fortuitos e se encerram, assim como começam, de forma tão repentina que ousa-se

chamá-los de não-encontros. Distintamente das reuniões entre parentes, amigos e colegas

de trabalho, não existe um resgate do momento a partir do qual a última reunião acabou,

nenhuma memória a ser dividida sobre o que se passou nesse ínterim, nada que alicerce ou

mesmo que oriente o presente encontro, tornando tais acontecimentos sem passado e,

muito provavelmente, sem futuro, sem continuidade. Todos os usuários desses espaços

passam a ser “ninguéns” que se misturam monótona e silenciosamente em meio à multidão

e, similarmente aos demais, tornam-se entes seriados, massificados, sem identidade, relação

ou história.

Figura 19. Usuários do metrô de São Paulo | Autor não identificado.

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Vale esclarecer, que não se trata de promulgar o extermínio ou a extinção total do

lugar. Tal proposição seria, no mínimo, insensata. Na era das redes, o enorme fluxo de

mercadorias, serviços, capitais e informações faz com que as vias de circulação mais

tradicionais percam o protagonismo perante aeronaves, satélites e cabos de fibra ótica,

levando os processos de produção e troca, não apenas comerciais, a perderem suas bases

meramente territoriais. Instala-se um mito que não se sustenta, pois ainda que se proclame

uma suposta desterritorialização e até mesmo certa espiritualização, o lugar vem à desforra

e inverte, completamente, a lógica, imobilizando os corpos nas cidades através do

inescapável trânsito, sedimentando arquiteturas – cada vez mais monumentais, fixas e

pesadas. “Vivemos obcecados por imagens e mitos de velocidade e de ubiquidade, mas os

espaços que construímos insistem, obstinadamente em definir, delimitar, demarcar”

(CACCIARI, 2004, p. 59).

Os não-lugares, como se poderia acreditar desavisadamente, não são um território

exclusivo para o tédio ou com peculiaridades essencialmente negativas. Eles existem, são um

fato genuíno, uma nova classe de lugar. São espaços empíricos, do dia-a-dia, e que

correspondem a uma das múltiplas faces da supermodernidade – a medida da época.

Fundamentando-se em todas as alegações e tendo ciência de que eles têm invadido parcelas

cada vez mais substanciais do espaço, é plausível concordar com o sociólogo polonês

Zygmunt Bauman quando enuncia que “jamais na história do mundo os não-lugares

ocuparam tanto espaço” (2001, p. 120).

A definição de não-lugar, mostra-se, contudo, pouco significativa e sem valia para os

usuários habituais, rotineiros, e também para os funcionários desses referidos locais, pois

esses transportam consigo seus dilemas, problemas, seus enredos, suas narrativas de vida,

enfim, suas idiossincrasias. Apesar disso, independente de quais sejam as peculiaridades em

jogo, a artimanha é tentar apagá-las, fazendo com que todos sigam os mesmos padrões de

comportamento, reconheçam os mesmos signos, falem o mesmo idioma e convertam as

ações que deveriam ser, a priori, originais, em atos padronizados e predizíveis.

Sem questionamento, nós nos submetemos à roupa modelada genericamente, para um manequim ideal, sem considerar a peculiaridade de cada corpo, assim como nos submetemos a casas pensadas para uma multidão, e não, para um indivíduo ou um grupo singular (BOGÉA, 2009, p. 48).

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48

Uma apreensão mais exata das propriedades inerentes ao não-lugar é legível e

notória apenas para os usuários ocasionais e flutuantes de tais domínios, para aqueles que

estão de passagem rumo a algum destino e que permanecerão por poucos minutos, horas

ou dias nesses ambientes. Ainda assim, para a parcela mais expressiva deles.

Na medida em que o homem contemporâneo pode movimentar-se e deslocar-se

tanto e tão facilmente, ele não tem tempo para construir histórias, criar afeição, muito

menos raízes com essas instalações, tornando sua experiência social, essencialmente frágil,

débil e superficial.

Os residentes temporários dos não-lugares são possivelmente diferentes, cada variedade com seus próprios hábitos e expectativas; o truque é fazer com que isso seja irrelevante durante sua estadia. Quaisquer que sejam suas outras diferenças, deverão seguir os mesmos padrões de conduta: e as pistas que disparam o padrão uniforme de conduta devem ser legíveis por todos eles, independente das línguas que prefiram ou que costumem utilizar em seus afazeres diários (BAUMAN, 2001, p. 119).

Os seres humanos, por necessidade biológica, são programados para viver em

sociedade. Fato que, contudo, é bem mais complexo que um mero dispositivo orgânico de

subsistência, revelando-se, também, como uma necessidade de esfera psicológica. Para

fundamentar tal afirmação, tomam-se dois exemplos de agrupamentos humanos ilustrados

por Tuan: os índios Kaingang, da bacia amazônica, e os bosquímanos Kung, do deserto do

Kalahari. Os primeiros, sempre procuram intimidade física, não de cunho sexual, com os

demais integrantes da tribo – tocam-se, acariciam-se e dormem abraçados uns aos outros.

Os últimos, mesmo diante da vastidão de areia do deserto, optam por dispor suas cabanas

tão juntas quanto possível, pois gostam do máximo de contato entre si na realização das

várias atividades cotidianas, sem manifestar, no entanto, indícios de perturbações

ocasionadas por essa condição.

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Figura 20. Índios Kaingang da bacia amazônica | Autor não identificado.

Figura 21. Bosquímanos Kung do deserto do Kalahari | Autor não identificado.

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A proximidade física, que tanto pode trazer conforto, tranquilidade e segurança,

também pode trazer consigo, dependendo do período e das condições, angústia e irritação.

A presença de outros indivíduos afeta a escala de mundo dos sujeitos em jogo, por um lado

ampliando-lhes a perspectiva, mas, por outro, ameaçando-lhes o território, cerceando seus

desejos e restringindo sua liberdade. Liberdade essa que não deve ser entendida tão

somente como o direito de ir e vir, mas também como o direito de agir com independência e

autonomia, seguindo as próprias convicções, crenças e opiniões.

Ainda citando alguns dos quadros apresentados por Tuan e fazendo adaptações com

o objetivo de assimilar mais propriamente o panorama, imagine-se um festival de música: a

multidão, embalada pela bebida, pelo som alto, dançando freneticamente e suando sob um

sol escaldante, pareceria a princípio, uma mistura perfeita para o caos e a confusão. Embora

possa haver incidentes isolados, os presentes se comportam, em geral, de maneira bem

razoável, pois o objetivo comum a todos é a diversão. Por esse motivo, o espaço do outro

não é comprimido, mas expandido, ampliado. Quando os shows terminam e essas pessoas

têm de retornar para suas casas, a cena muda de tom. Embora a densidade tenha sido muito

maior no estádio, no caminho de volta é que as agruras da presença alheia passarão a ser

sentidas. A simples existência de estranhos – os mesmos que há pouco se confraternizavam

– passa a ser inoportuna e incômoda. Quando, por acaso, o carro do motorista adiante

estanca ou o cartão do outro passageiro não consegue ser imediatamente reconhecido pela

leitora da catraca, cria-se um angustiante desconforto e esses empecilhos, alheios aos seus

causadores, são tomados quase como uma afronta pessoal pelos demais.

Então, para que a vida urbana seja suportável, é mandatório lançar mão da complexa

e difícil arte da civilidade. Ela protege, reciprocamente, as pessoas do peso da existência das

outras, permitindo que possam compartilhar um mesmo local sem que espirrem suas

diferenças contra os demais, um exercício de constante negociação, onde o diálogo – na

esmagadora maioria das vezes não verbal – tem que ser montado com base na tolerância e

na concessão.

As categorias de usuários dos espaços físicos explicitadas anteriormente (habituais ou

ocasionais) podem deslocar-se, transformando-se uma na outra, e vice-versa. Um manifesto

exemplo desse mecanismo de transmutação dos papéis pode ser identificado no filme O

Terminal (The Terminal), dirigido por Steven Spielberg e lançado pela DreamWorks em 2004.

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A personagem interpretada por Tom Hanks, Viktor Navorski, é um turista de um

hipotético país do Leste Europeu, Krakozhia, que sofre um golpe de estado durante uma

viagem aos Estados Unidos. Por esse motivo, seu passaporte perde validade e ele é mantido

no terminal do Aeroporto Internacional John F. Kennedy – Nova Iorque, sem permissão de

entrar em solo americano e sem possibilidade de retornar à terra natal. Diante de tal

impasse, o protagonista passa a improvisar seus dias e noites nesse ambiente que lhe é

alheio, e com o qual não tem qualquer identificação, relação ou história.

Aos poucos, vínculos começam a ser estabelecidos e uma história começa a se

desenvolver entre Viktor e algumas personagens que cruzam seu caminho, como o chefe de

segurança, o zelador, uma comissária de bordo, dentre alguns outros. O protagonista vai,

progressivamente, corrompendo a impessoalidade daquele ambiente de passagem, criando

laços de amizade, aprendendo a língua do país, obtendo um trabalho e até mesmo vivendo

um romance, transformando-o, por fim, em um verdadeiro lar. No decorrer do processo,

características próprias dos lugares e dos não-lugares começam a se misturar e oscilar

hegemonicamente, fazendo com que um adquira peculiaridades do outro e, em muitos

momentos, acabem por se confundir.

Figura 22. Cena do filme O Terminal (The Terminal), Steven Spielberg, 2004.

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Na maior parte das circunstâncias, ambos se entrelaçam em um jogo, onde um

sempre acaba tendo primazia sobre o outro e onde, também, um sempre pode transmutar-

se no outro, demonstrando que nenhuma das duas categorias é absoluta, pura e definitiva.

“O lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente

apagado e o segundo nunca se realiza totalmente” (AUGÉ, 2012, p. 74).

Outro exemplo de transmutação, muito claro e talvez mais patente para os

habitantes das metrópoles, é a que toma palco nas zonas centrais das grandes cidades

brasileiras. Em muitos casos, os centros têm uma vida diurna extremamente dinâmica e

agitada, devido à existência de uma grande quantidade de escritórios, instituições,

restaurantes e lojas, que os tornam verdadeiros lugares, notadamente para os indivíduos

que trabalham neles. Todavia, os sentimentos de topofilia e topofobia para essas pessoas

modificam-se rapidamente com o passar das horas. Tão logo o expediente termine, as ruas

começam a ser apropriadas por boêmios, artistas, mendigos, bêbados, drogados, prostitutas

e michês. Essa nova população converte, o que até então lhes era um não-lugar, em um local

de refúgio, aconchego, felicidade e esperança, portanto em um lugar. Para os trabalhadores

diurnos, simultaneamente, a partir do momento em que a identificação, a relação e a

história se aparta, o centro passa a ser um não-lugar, tornando-se, inclusive, um território a

ser tratado com ressalvas, evitado, ignorado ou até mesmo esquecido.

Os espaços públicos de grande e rápida circulação já enumerados, construídos para

fins de transporte, trânsito, comércio ou lazer, utilizados para ilustrar o que se identifica

como não-lugares, têm em comum uma atmosfera, um caráter – um stimmung como

intitularia o arquiteto norueguês Christian Norberg-Schulz – formando “o pano de fundo dos

atos e acontecimentos” (2008, p. 446) que neles se sucedem. Relativizando-se o foco que se

dê à história, à cultura, à geografia ou à arquitetura, um não-lugar pode denotar todos, e

todos podem denotar um.

Em muitos casos, os não-lugares são territórios muito bem equipados em termos

tecnológicos, incrivelmente pré e sobrecodificados, onde a subjetividade, a criatividade e a

iniciativa dos usuários não são a tônica nem o intuito principal. Lança-se mão de uma sintaxe

muito peculiar, a fim de que a presença de tais sujeitos seja tão somente física e, o quanto

possível, socialmente indiferenciada, algo bastante análogo à ausência em si.

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Figura 23. Área de transferência entre a Estação Consolação e a Estação Paulista do metrô de São Paulo |

Ulisses Maciel.

Os usuários dos referidos locais, pelo exato fato de estarem tão inebriados e absortos

pela rapidez das passadas, pela urgência do trânsito e pela ânsia da chegada aos seus

destinos, encontram-se em um tipo de suspensão espaço-temporal, um casulo,

desterritorializados, como expressaria o filósofo francês Félix Guattari, em um espaço liso e

aplainado.

Por analogia, a cidade pode ser comparável ao sambódromo da Marquês de Sapucaí,

onde se desenrola um desfile com duração cronometrada, preestabelecido e dividido em

alas e alegorias, mas onde a essência do próprio carnaval, de certo modo, é corrompida. O

ápice da extravagância pagã – ou cristã – só aconteceria mesmo, como idealizado pelo

antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, no projeto original da Praça da Apoteose, quando as

pessoas teriam a real oportunidade de se misturar, a cadência se descompassaria e um

ambiente de verdadeira reciprocidade se desnudaria.

Na metrópole contemporânea, a coerção imposta pela velocidade basicamente

pulveriza o teor da interação social e revela um hiato entre as pessoas. “No universo da

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54

pressa, dizem, o vínculo humano é substituído pela rapidez; a qualidade de vida, pela

eficiência; a fruição livre de normas e de cobranças, pelo frenesi” (LIPOVETSKY, 2004, p. 80).

Dois pontos interligados. Um itinerário traçado. Uma marcha militar, ordinária e mecânica.

Nenhuma aventura. Raras surpresas. Pouco (des)contentamento.

Figura 24. Desfile das escolas de samba no sambódromo, Rio de Janeiro | Marcelo de Jesus, UOL.

.

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55

4. IDENTIDADE FRAGMENTÁRIA

Não é difícil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico, toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de que, por quem, e para que isso acontece. A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social (CASTELLS, 2008, p. 23).

Segundo uma das definições constantes no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,

identidade é a “qualidade de idêntico”, algo que faz com que coisas ou pessoas tenham

características em comum, sendo, portanto, semelhantes. No mesmo dicionário, o termo

também aparece significando o “conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma

pessoa”, o que as torna únicas em relação às demais, sendo, portanto, diferentes. Enfim,

duas acepções discordantes e completamente opostas.

As questões referentes à identidade são bastante polissêmicas e difíceis de serem

sintetizadas, até porque elas interessam a muitos ramos do conhecimento e foram sendo

elaboradas ao longo do tempo com base nos mais diversos entendimentos – sociais,

culturais, econômicos ou religiosos. Assim, uma série de desvios e rupturas se configurou no

decorrer do percurso, o que acabou por tornar o debate praticamente insolúvel e

interminável.

Desse modo, as subjetividades individuais e coletivas, com suas complexidades e

dinamicidades, também revelam um campo teórico bastante prolífico. Diversos teóricos

estudaram, elaboraram e defenderam suas próprias concepções, engrossando o rol de

discussões e controvérsias. Para o sociólogo jamaicano Stuart Hall, por exemplo, as noções

de sujeito podem ser simplificadas e resumidas em três concepções básicas: a do

Iluminismo, a sociológica e a pós-moderna.

Segundo ele, o sujeito do Iluminismo era um indivíduo centrado, uno, completo e

coerente – um ser soberano, dotado de razão, consciência e ação. A sua essência estava no

seu interior, que, embora se desenvolvesse no decorrer da vida, vinha à tona no momento

do seu nascimento e continuava fundamentalmente idêntica, durante toda a sua existência.

A narrativa do sujeito era individualista e, diga-se de passagem, masculina.

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56

Já o sujeito sociológico, embora ainda tivesse um núcleo interior, não era

autossuficiente, mas formado e modificado através do diálogo entre o indivíduo e as outras

pessoas, que mediavam para ele os símbolos e valores da cultura na qual se encontravam

inseridos. Nesse sentido, a identidade preenchia o interstício entre o mundo pessoal e o

mundo exterior, suturando o indivíduo a todo seu conjunto de ideias, crenças,

interpretações, manifestações e práticas sociais. É uma visão mais unificadora e mais

estruturada, pois estabiliza, reciprocamente, os sujeitos e seus mundos culturais.

Este modelo sociológico interativo, com sua reciprocidade estável entre interior e exterior, é, em grande parte, um produto da primeira metade do século XX [...] Entretanto, exatamente no mesmo período, um quadro mais perturbado e perturbador do sujeito e da identidade estava começando a emergir dos movimentos estéticos e intelectuais associado com o surgimento do Modernismo. Encontramos, aqui, a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano de fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal (HALL, 2011, p. 32-33).

Através da multiplicação dos sistemas de significação e representação da cultura, a

noção de identidade, antes imaginada como sendo essencial, plena, equilibrada e

permanente, mostra-se irreal. O indivíduo, na medida em que vai se tornando

progressivamente mais integrado à sua estrutura social, vai também se descontinuando e se

fragmentando, modificando os padrões de referência que antes lhe garantiam certa

segurança e estabilidade.

Forjada por várias identidades simultâneas que podem se apresentar, dependendo

do momento e da circunstância – não apenas diferentes, mas até mesmo discordantes – a

concepção de sujeito pós-moderno tem seu caráter de mobilidade e transitoriedade

afirmado a toda hora, através das sucessivas reformulações e deslocamentos a que é

exposto. Suas múltiplas personas travam uma luta constante entre si, na tentativa de afirmar

sua hegemonia e se consolidarem.

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2011, p. 13).

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57

A velha identidade, ligada aos fundamentos de um determinado código moral,

basilares para a estabilidade do ambiente social, entra em colapso e a nova identidade que

emerge nesse cenário apresenta uma plasticidade e uma abstração ímpares, não permitindo

identificações automáticas nem exclusivas com quaisquer modelos, estimulando, inclusive,

posicionamentos não apenas com base nas semelhanças, mas, sobretudo, fundamentados

nas diferenças.

Figura 25. Marilyn, serigrafia, Andy Warhol, 1967 | Wadsworth Atheneum Museum of Art.

Tal desconjuntura da identidade, que parece, em um primeiro instante, um

transtorno perturbador e difícil de remediar, também aponta para a possibilidade de novas

articulações, a criação de novos enredos e a multiplicação de perspectivas. Hoje, “as

identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa” (BAUMAN, p.

1998, 112). De tal modo, não parece mais pertinente recorrer a classificações deterministas

como adjetivações capazes de compor quadros homogêneos.

Características individualizantes passam a ter, simultaneamente, significados

agregadores e desagregadores. O que parece virtude, em uma análise mais superficial,

também revela a fraqueza e a vulnerabilidade das identidades. O direito à multiplicidade e à

diversidade pode propiciar, a partir do realce de diferenças amorfas e difusas, o não

reconhecimento das similaridades, levando a um certo grau de alheamento do outro e ao

encapsulamento dos indivíduos.

A identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, um objetivo; como uma coisa que ainda se precisa construir a

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58

partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (BAUMAN, 2005, p. 22).

Esse jogo que descentra os sujeitos também traz consigo importantes consequências

políticas. O fortalecimento das individualidades tem como efeito o afastamento entre as

pessoas, permitindo, notadamente nos não-lugares, maior controle das massas. Divide-se

para melhor comandar, fazendo com que iguais que acreditam ser diferentes possam

coabitar – muitas vezes comprimidos, oprimidos e apagados – recintos majoritariamente

utilitários, sem relevantes transgressões.

Embora se sintam desconfortáveis e, porventura, cheguem até mesmo a reclamar, a

frágil apropriação de tais espaços faz com que seus usuários não se revoltem ao enfrentar o

metrô superlotado, as filas quilométricas dos parques temáticos ou o inclemente

congestionamento dos carros nas ruas. Fragilidade essa também revelada no ambiente

estéril dos aeroportos e shopping centers, que expressam autoridade disfarçada de privilégio

e domínio mascarado de escolha.

Assim, a compreensão da noção conceitual de não-lugar, uma das múltiplas faces da

supermodernidade, não pode e não deve restringir-se, meramente, ao campo da

arquitetura, já que seu entendimento passa, inegavelmente, por questões psicanalíticas,

sociológicas, filosóficas e antropológicas. Os saberes de tais disciplinas, além de algumas

outras, ajudam a compor um quadro teórico poliédrico, mais robusto e de maior

credibilidade.

O atual estado das coisas, ao demonstrar a fluidez e a diluição das certezas, viabiliza o

controle externo, não sendo mais permitido ao sujeito, de forma consciente, alcaçar uma

real autonomia. Ele passa a se enganar e, muitas vezes, repete discursos que não são

exatamente seus, acreditando caminhar rumo a uma emancipação que, na verdade, molda-

lhe as vontades. Tal mecanismo de abnegação da própria essência é, analogamente,

apresentado no filme Persona, dirigido por Ingmar Bergman e lançado pela Svensk

Filmindustri em 1966.

A perturbadora abertura, que parece uma colagem de vários elementos soltos, onde

muitas referências são apresentadas freneticamente – uma crucificação de um cristo

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59

qualquer, um pênis ereto, uma aranha peçonhenta, uma antiga comédia de cinema mudo, o

abate de uma ovelha sendo sangrada e estripada – termina com um menino que acorda

entre cadáveres e acaricia uma face feminina, a imagem de um rosto, de uma máscara que

oculta um passado de histórias que constitui aquela mulher enquanto pessoa.

Com enredo aparentemente simples, o filme se desenvolve tomando como ponto de

partida o fatídico emudecimento de uma atriz, durante a encenação de uma peça teatral – a

tragédia grega Electra. A partir de então, inicia-se uma investigação para descobrir o que

haveria de errado com Elizabet, personagem interpretada por Liv Ullmann. No desenrolar

desse quebra-cabeça, e descartadas possíveis causas patológicas ou psicológicas, começa a

ser revelada a realidade: trata-se de uma opção voluntária pelo silêncio, dada a constatação

da impossibilidade do sonho de ser, e não apenas parecer; a comprovação da existência do

abismo entre o que se é e o que se representa para os outros; os desejos mais íntimos

apagados, a vontade de ser vista por dentro, ainda que cortada até às vísceras, ainda que

isso signifique o aniquilamento do ser.

A incapacidade de realizar esse mais íntimo desejo pode levar a um suicídio que,

senão consumado com a morte, passa a ser representado em vida com o silêncio e a

paralisia: eis aí uma solução intermediária que eliminaria toda a mentira, traduzida pelo

deliberado ato de se calar, bem como através da anulação de toda representação física

daquilo que não é genuíno e não a representa verdadeiramente, uma imobilidade que

elimina todas as expressões e gestos falsos. Sua ação é a apatia. Seu grito é o silêncio. Sua

reação, a letargia. Agora, seu principal papel enquanto atriz é o não-papel. Passa-se a ser

não sendo, ou recusando-se a ser o que não se é.

Em síntese, a opção pela abdicação da linguagem falada e dos movimentos corporais

motiva-se não somente pela conscientização da sua condição de mera intérprete – sendo

sintomático que a crise existencial da personagem seja desencadeada justamente durante a

encenação de uma peça –, mas, sobretudo, pelo grande desejo de expor, de por para fora

tudo o que está por debaixo de sua máscara, sendo a profissão de Elizabet o retrato perfeito

da vida em sociedade, onde tudo o que se resta fazer é atuar, repetindo e reinterpretando

discursos previamente escritos.

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Figura 26. Cena do filme Persona, Ingmar Bergman, 1966.

A referência a esse filme mostra-se oportuna ao ressaltar o aspecto mimético e

ressonante dos paradigmas estabelecidos pela sociedade. Os sujeitos passam, então, a

elaborar um autoconceito relativamente estável, acreditando serem indivíduos donos de

uma ideologia própria, com poder de decisão quanto às opções que lhe são apresentadas,

sendo, na verdade, apenas sujeitos obedientes às circunstâncias e artifícios que regem as

sociedades. A identidade contemporânea, capitalista especificamente, seus conteúdos

simbólicos e sua estrutura psiquíca, assim como a realização ou frustração do indivíduo

enquanto construto social, está calcada, fundamentalmente, na lógica do consumo que rege

as relações dos homens com seus semelhantes e consigo mesmo.

Quanto mais somos estimulados a comprar compulsivamente, mais aumenta a insatisfação. Desse modo, a partir do momento em que conseguimos preencher alguma necessidade, surge uma necessidade nova, gerando um ciclo em forma de bola de neve que não tem fim. Como o mercado sempre nos sugere algo mais requintado, aquilo que já possuímos acaba ficando invariavelmente com uma conotação decepcionante. Logo, a sociedade de consumo incita-nos a viver num estado de perpétua carência, levando-nos a ansiar por algo que nem sempre podemos comprar (LIPOVETSKY, 2007, p. 23).

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61

A busca do bem-estar por meio do prazer momentâneo em consumir – e, diga-se de

passagem, sempre insaciável – retroalimenta o gozo fetichista e a constante sensação de

incompletude que os indivíduos contemporâneos vivenciam em relação a um ideal utópico e

praticamente inatingível, projetado a todo instante pelas campanhas de propaganda e

marketing – inclusive no campo da arquitetura, haja vista a atuação dos starchitects com

seus projetos de grife mercadologicamente espalhados ao redor do globo –, transformando

imagens em ícones e objetos de desejo, provocando um estado de débito permanente em

relação aos egos.

Jamais na história da humanidade os homens tiveram tanta possibilidade de estar conectados uns com os outros pelas redes de comunicação e jamais tiveram um sentimento tão forte de isolamento. É esse estado de solidão e de miséria subjetiva que fundamenta, em parte, a escalada consumista, que permite à pessoa oferecer a si mesma pequenas felicidades como compensação pela falta de amor, de laços ou de reconhecimento (LIPOVETSKY; SERROY, 2011, p. 56).

“A vida organizada em torno do consumo *...+ deve bastar sem normas: ela é

orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis” (BAUMAN,

2001, p. 90). “O imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora

*...+ reduzir os ciclos de vida dos produtos pela rapidez das inovações” (LIPOVETSKY, 2007, p.

13). De tal modo, “em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase

todas as identidades, é a capacidade de ir às compras no supermercado das identidades [...]

que se torna o verdadeiro caminho para a realização das fantasias” (BAUMAN, 2001, p. 98).

“Eis um tipo de sociedade que substitui a coerção pela sedução, o dever pelo hedonismo, a

poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo humor, o recalque pela libertação, as promessas

do futuro pelo presente” (LIPOVETSKY, 2007, p. 35).

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de supermercado cultural (HALL, 2011, p. 75).

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62

Figura 27. Brand baby, digital art, Borjana Ventzislavova, Miroslav Nicic & Mladen Penev, 2004 | Tabula Rosa.

Tentar montar um quadro inteligível sobre as transformações sofridas pelo conceito

de identidade ao longo do tempo, bem como identificar os fatores que mais influenciaram

sua conformação até os dias de hoje, além de reconhecer os possíveis resultados de tais

interações é tarefa muito árdua. Obviamente existem algumas diretrizes e aspectos

recorrentes na discussão; em linhas gerais, o sistema se mantem aberto e o mosaico nunca

se completa; novas contribuições teóricas sempre despontam e novas interrogações se

revelam.

Depois de Teseu matar o Minotauro, seu navio foi conservado no porto de Atenas para que o povo se recordasse de seu feito heroico. Com o passar do tempo, quando uma peça de seu navio se deteriorava, esta era substituída por outra. Com tantas substituições, a certa altura, já não existia nenhuma peça original do navio. Supõe-se também que as peças originais, que foram substituídas foram montadas, em outro local, na configuração original do navio. Dentre estes dois navios, qual seria o navio de Teseu? O que teve suas partes substituídas ou o que foi remontado com as peças originais? (PLUTARCO [Grécia Antiga], In: HAWLEY, 2004).

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63

5. MASSAS E DESERTOS

Roma foi a maior cidade do mundo por mais de mil anos, teve seu ápice no final do século 1 a.C. com 1 milhão de habitantes e declinou para um tamanho irrisório de 20 mil habitantes na Idade Média. Estima-se que Bagdá, em seu auge entre 762 e 930 d.C., também teve 1 milhão de habitantes. Algumas cidades chinesas já foram imensas durante o auge do Império Chinês. Nova York, capital do século 20, era a única megacidade do mundo em 1950. A Grande Tóquio é a maior cidade do mundo hoje, com mais de 36 milhões de habitantes. Grandes cidades, portanto, não são um fenômeno novo (LEITE, 2012, p. 20).

Segundo Anna Tibaijuka, diretora executiva do Programa das Nações Unidas para

Assentamentos Urbanos – UN-HABITAT, desde 2007, existem mais pessoas no mundo

vivendo em áreas urbanas do que em áreas rurais. Especialistas projetam que, até 2030, dois

terços da população mundial viverá nas cidades, cerca de 5 bilhões de pessoas ou 60% de

todos os habitantes do planeta. Para 2050, os cálculos chegam a impressionantes 75%. De

fato, a maior parte de todo o crescimento populacional a partir de 2007, está acontecendo

nas cidades. Da maneira como o quadro está se delineando, ao que tudo indica o século XXI

será mesmo o século das cidades8.

No Brasil, de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística – IBGE, dos pouco mais de 190 milhões de habitantes aproximadamente 160

milhões residem em áreas urbanas9, quase 20 milhões na Região Metropolitana de São

Paulo – RMSP, mais de 11 milhões só no município de São de Paulo10, uma multidão que,

atraída por oportunidades de emprego, estudo ou moradia, é coagida a produzir, circular e

consumir freneticamente.

Esse encadeamento de ações pode soar um tanto quanto fordista e, por isso mesmo,

anacrônica ou retrógrada, mas não é. Embora tenham sido adicionados mais elementos à

equação, o trinômio – produção | circulação | consumo – se mostra bastante apropriado

para ilustrar o grau de estandardização e sistematização presente, não apenas no âmbito 8 “O século 19 foi o século dos impérios... o século 20 foi o século das nações... o século 21 será o século das

cidades” – Wellington Webb – ex-prefeito de Denver – Estados Unidos. Disponível em: <http://www.advbpe. org.br/ uploads/24-ocumentos/aa1ad645660698436b10604f3de02d78_ palestra-debora-linhares-ibm-evento-sinduscon.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2014. 9 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_

populacao/caracteristicas_da_populacao_tab_pdf.shtm>. Acesso em: 31 mai. 2014. 10

Disponível em: <http://infocidade.prefeitura.sp.gov.br/htmls/7_populacao_recenseada_1980_10566.html>. Acesso em: 31 mai. 2014.

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64

econômico, mas em muitos campos e relações que se desenvolvem na metrópole

contemporânea. A velocidade instaurada macula não apenas o homem, mas o próprio

tempo, fazendo com que o amanhã se pareça com o hoje e o ontem com o agora, em uma

enfadonha repetição que, muitas vezes, reduz a criatividade, a surpresa e a imaginação a pó

ou, contextualizando melhor, a fuligem.

Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens [...] A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica [...] Uma consequência imediata da alienação do homem a respeito do produto do seu trabalho, da sua vida genérica, é a alienação do homem relativamente ao homem. Quando o homem se contrapõe a si mesmo, entra igualmente em oposição com os outros homens [...] De modo geral, a afirmação de que o homem se encontra alienado da sua vida genérica significa que um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida humana (MARX [1844], 2006, p. 111-112, 166).

Figura 28. Linha de montagem fordista, início do século XX | Autor não identificado.

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65

O enorme número de pessoas que se comprimem e se oprimem no mesmo espaço,

lutando pelos mesmos objetivos, provoca sobre o território um impacto expressivo, como

pode ser comprovado pela enorme quantidade de relatórios, estatísticas e indicadores

socioeconômicos e ambientais, emitidos a todo instante por várias associações, órgãos e

entidades, sejam eles governamentais ou não. Como reação, esse mesmo território imprime

de volta uma marca nesses sujeitos, trazendo implicações que extrapolam a esfera da

simples materialidade, irrompendo em um debate mais abstrato e metafísico, reverberando

também no âmbito das relações sociais dos indivíduos em questão. Contudo, não é “possível

identificar causalidade linear ou hierarquias prévias nesse processo que acontece em

circularidade” (ARAÚJO, 2011, p. 130). A voracidade está instaurada e flui em ambos os

sentidos: homem-território | território-homem.

Ao se falar em movimento de mão dupla e reciprocidade, como forma de compor um

panorama teórico facetado e poliédrico, é válido retratar algumas dicotomias do mundo

contemporâneo, exploradas e traduzidas pela ótica da arte em diversas obras criadas ao

longo de todo o século XX.

Através da icônica obra latas de sopa Campbell™, de 1962, o artista americano Andy

Warhol traz à tona clichês quanto ao consumo em série, à coisificação, ao fetiche e à

massificação das sociedades, ao mesmo tempo em que discute aspectos formais e

conceituais da arte em si, bem como o papel do artista, a relevância dos temas abordados ou

a finalidade da obra para o público fruidor, questionando, inclusive, o significado da própria

(pós-) modernidade.

Cabe, aqui, traçar um paralelo entre certos significados dessa obra de Warhol e a

presente pesquisa, notadamente em um aspecto particular: as interações entre o individual

e o coletivo. 32 latas distintas, aparentemente, iguais, quando colocadas lado a lado. Únicas,

mas, ao mesmo tempo, previsíveis. Diferentes e, paradoxalmente, iguais. Seus rótulos

trazem informações individualizantes: sabor, mês e ano de fabricação, serial number, código

de barras, local de origem, quantidade e preço específico, mas todas são produzidas em

massa, para um mesmo fim: serem consumidas.

De modo curioso, tais latas são e não são ao mesmo tempo. Por mais disparatada

que possa parecer, essa não é uma afirmação incoerente. São conjunto e unidade,

simultaneamente. Enquanto unidade, não são exclusivas, pois existirão várias outras latas

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similares a ela, de mesma procedência ou sabor, por exemplo. Contudo, são sabores que

não se misturam, acondicionados em recipientes separados. Enquanto isso, também são

coisas inanimadas, apenas fazendo sentido quando deglutidas. O quadro faz, portanto, um

conjunto, um todo que é fragmentável em partes pretensamente autônomas. Ganham

significado tanto em lotes quanto isoladamente, mas também os perdem pelo mesmo

motivo. Embora destacadas, pertencem a um grupo e sua autonomia é questionável, nunca

plena. Suas diferenças são suas semelhanças e vice-versa.

Figura 29. Campell’s soup cans, serigrafia, Andy Warhol, 1962 | The Museum of Modern Art | Ulisses Maciel.

Nesse contexto, é pertinente examinar o que o sociólogo francês Gustave Le Bon

escreveu, ainda no final do século XIX, em sua obra Psicologia das massas sobre as

aglomerações humanas, suas características, categorias e comportamento. Embora

explorado com restrições por muitos – e considerado, no mínimo, controverso por suas

visões elitista, racista e um tanto preconceituosa em relação às crianças, mulheres e classes

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67

populares –, suas observações foram e continuam sendo, sob os mais diversos aspectos,

bastante relevantes.

De qualquer modo, Le Bon apresentou notórias considerações sobre as massas,

contribuindo com discussões que desnudaram parte da essência dos sentimentos que

formam e unem os grupos. Muitos estudiosos e tomadores de decisão se valeram e ainda se

valem, até os dias de hoje, das pesquisas desenvolvidas por Le Bon. Freud, por exemplo, ao

escrever Psicologia das massas e análise do eu, em 1921, embora não compactue,

completamente, com todas as ideias do francês, retoma, de forma explícita, as análises

feitas por ele.

Para Le Bon, o termo multidão aceita duas acepções distintas: uma em sentido

denotativo, e outra do ponto de vista psicológico. Na acepção mais corriqueira da palavra, a

multidão é “uma reunião de indivíduos quaisquer, independentemente de sua

nacionalidade, sua profissão ou sexo, independentemente também dos acasos que os

aproximam” (1855, p. 29). Sob essa ótica, o simples ajuntamento das pessoas em si já

constitui uma multidão. Psicologicamente falando, uma multidão é um conjunto de

indivíduos que, submetido a determinadas condições, "possui características novas muito

diferentes daquelas de cada indivíduo que a compõe" (1855, p. 29). O arranjo final não é o

resultado de uma equação matemática entre os atributos de cada um dos elementos

isolados, mas algo distinto, que possui outra qualidade. Assim, “forma-se uma alma coletiva,

sem dúvida transitória, mas que apresenta características muito nítidas” (1855, p. 29),

portanto passíveis de classificação.

As multidões, segundo o autor, podem ser divididas em duas grandes categorias:

heterogêneas e homogêneas. As primeiras, são compostas por quaisquer agrupamentos de

indivíduos, sejam quais forem suas raças, gêneros, credos ou profissões, vendo-se divididas

em duas subcategorias: anônimas (pessoas indo de metrô para o trabalho ou para a escola11,

manifestantes em uma passeata etc.) e não anônimas (assembleias deliberativas, câmaras

parlamentares, júris etc.).

11 Dado o intervalo de tempo transcorrido desde a publicação original, em 1855, de Psicologia das Multidões e

a redação desse texto, em uma clara tentativa de melhor apreensão didática, tomou-se a iniciativa de adaptar alguns dos exemplos apresentados pelo autor na referida obra.

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68

As homogêneas, por sua vez, são concebidas por agrupamentos de pessoas que

compartilham algo em comum e, por isso, estabelecem alguma conexão entre si,

encontrando-se divididas em três subcategorias: [a] seitas (reunião de indivíduos que

comungam das mesmas crenças políticas, religiosas ou ideológicas); [b] castas (agrupamento

de pessoas com profissões e, portanto, educação e meios semelhantes como militares,

sacerdotes e, por analogia, professores, médicos, engenheiros, advogados, arquitetos,

operários, dentre uma extensa lista de outros ofícios); e [c] classes (reunião de indivíduos

que compartilham certos interesses, hábitos de vida e de educação como é o exemplo das

classes A, B, C, D ou E12).

Ainda repercutindo as ideias do autor – embora existam alguns subgrupos de

multidões com suas particularidades específicas –, determinadas características se mostram

comuns e fundamentais a todas elas. Pelo fato de serem conduzidas quase apenas pelo

inconsciente, as multidões são impulsivas, instáveis e irritáveis, além de facilmente

sugestionáveis e ludibriáveis. Elas tendem à simplificação ou ao exagero dos sentimentos,

incorrendo em intolerância, autoritarismo e conservadorismo, com um viés moral pouco

equilibrado, pois, ao mesmo tempo em que são capazes dos atos criminosos mais selvagens,

cruéis e hediondos, é também em seu seio que surgem virtudes quase utópicas, chegando,

inclusive, a lesar seus mais íntimos interesses: a abnegação em favor do próximo, a

dedicação ao grupo, a resignação em relação de si mesmo em benefício da coletividade, o

sacrifício pessoal em prol do outro e a busca por igualdade e isenção para todos.

Diversas causas são determinantes para o surgimento de tais características, mas três

demonstram relevante importância e merecem destaque. Em primeiro lugar, destaca-se o

fato de que o indivíduo integrante de uma multidão assume determinado nível de poder e

autoridade, que não teria caso estivesse sozinho. Tal sensação de domínio faz com que seus

instintos, sejam de que natureza for, venham à tona com grande facilidade e sem muitos

obstáculos.

É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela, raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o

12

Disponível em: <http://cps.fgv.br/node/3999>. Acesso em: 07 jun. 2014.

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69

outro é via de regra considerado como modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado (FREUD [1921], 1997, p.10).

Em meio a uma multidão, qualquer indivíduo, faça ou não parte dela, por algum

motivo específico, pode tornar-se alvo do seu ódio ou do seu altruísmo, da sua repulsa ou da

sua solidariedade, da sua crueldade ou da sua benevolência. “A massa atropela tudo que é

diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo,

quem não pense como todo o mundo corre o risco de ser eliminado” (ORTEGA Y GASSET,

1930, p. 68), qualquer um pode vir, mais cedo ou mais tarde, a tornar-se uma Geni, maldita

ou bendita Geni13.

As outras duas causas relacionam-se de modo tão intrincado que se torna complexo

diferenciá-las – são elas: o contágio mental e a sugestionabilidade. Ambas se potencializam,

gerando um fenômeno hipnótico coletivo, onde a personalidade, o arbítrio e o juízo

individuais são apagados. A ação toma o lugar da razão, o inconsciente impera sobre o

consciente e a truculência suplanta a civilidade. Assim, “o indivíduo na multidão é um grão

de areia no meio de outros grãos que o vento agita a seu bel-prazer” (LE BON, 2008, p. 37).

De fato, não são a razão, a consciência e a civilidade as forças que impulsionam as

massas, escrevendo a história das civilizações. Caso fossem, os caminhos do homem seriam

diferentes do que efetivamente são. Não se pode saber – e nem se ousa especular – quais

seriam esses caminhos, mas, certamente, diferentes. As grandes molas propulsoras de todos

os grupamentos humanos em todas as eras são, paradoxal e diametralmente, o oposto de

tais forças: sonho, paixão e ousadia.

Era inverossímil que um ignorante carpinteiro da Galileia pudesse se tornar durante dois mil anos um Deus todo-poderoso, em nome do qual foram fundadas as mais importantes civilizações; também era inverossímil que uns bandos de árabes saídos de seus desertos pudessem conquistar a maior parte do velho mundo greco-romano e fundar um império maior que o de Alexandre; inverossímil também que, numa Europa muito velha e muito hierarquizada, um simples tenente de artilharia conseguisse reinar sobre uma multidão de povos e de reis (LE BON [1855], 2008, p. 109).

13

Alusão ao travesti pobre, excluído e prostituído da música Geni e o Zepelim de Chico Buarque, composta para o musical A Ópera do Malandro, 1977. Excetuando-se a conjuntura política da época, às questões de identidade de gênero e sexualidade, a heroína é, inicialmente, alvo de ofensas e escárnio social, para em seguida ser, hipocritamente, redimida e ovacionada pela cidade inteira. Como desfecho, os perversos instintos das massas tornam a mirar Geni e ela, mais uma vez, volta a ser apedrejada por todos.

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70

Figura 30. Multidão: som e fúria, charge, Angeli, 2008 | Folha de São Paulo.

Figura 31. Voluntários em projeto de ajuda humanitária, Manila | Romulo Godinez, PRC.

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71

O artifício de transmutação do caráter e o apagamento da individualidade do sujeito

quando em meio à multidão podem ser reconhecidos, ilustrativamente, no filme Zelig,

dirigido por Woody Allen e lançado pela Warner Bros. em 1983.

Leonard Zelig, personagem interpretada pelo próprio diretor, é um homem que

possuía a intrigante capacidade de absorver as características – até mesmo físicas – das

pessoas com quem convivia, e pelas quais estava rodeado. Entre aristocratas, fazia-se

aristocrata; entre proletários, convertia-se em proletário; entre gangsters, tornava-se

gangster; entre negros, confundia-se com outros negros; entre orientais, transformava-se

em oriental; entre gordos, engordava; entre nazistas, igualava-se a eles; e, assim,

indefinidamente.

A personagem Dra. Eudora Fletcher (Mia Farrow), através de sessões de psicanálise e

hipnose, consegue diagnosticar a curiosa condição de seu paciente, compreendendo que a

chave da personalidade camaleônica do protagonista é o seu desejo em ser aceito pela

sociedade, além de uma inconsciente vontade de ser amado e querido por todos. A história

é narrada na virada da década de 1920 para 1930, mas o retrato feito por Woody Allen da

sociedade da época continua muito oportuno para os dias de hoje, quando, apesar dos

incontáveis súplicas midiáticas em prol de uma individualização e personalização egoístas, os

sujeitos dos grandes centros urbanos acabam, na verdade, por se mimetizarem, apagando

muitas das suas peculiaridades em diversas ocasiões.

Figura 32. Cena do filme Zelig, Woody Allen, 1983.

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72

Vive-se em um mundo onde as leis de consumo, propaganda, entertainment e

marketing, ultrapassando os limites razoáveis da economia, ditam os costumes e o

comportamento das massas; ditam, inclusive, as leis morais da sociedade, criando hordas de

marionetes, guiadas por uma mídia que vende uma ilusória pluralidade de escolhas e de

possibilidades. No final das contas, tudo não passa de uma espécie de homogeneização, um

processo de hipnose coletiva que desarticula “qualquer forma de consciência e comunicação

reflexivas” (SUBIRATS, 2010, p. 51), resultando na “indução de uma consciência individual

suave, com níveis ínfimos de autonomia e graus máximos de maleabilidade” (SUBIRATS,

2010, p. 51). Embora os aspectos descritos descrevam características muito próprias da

primeira modernidade, atualmente elas ainda se fazem válidas e presentes na sociedade,

cada vez de forma mais intensa.

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo. O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. (DEBORD, 1997, p. 13-14).

Nos não-lugares lança-se mão de uma série de artifícios estratégicos para manter a

domesticação e o adestramento dos usuários, inclusive no que tange à materialidade

arquitetônica, o que os conduz a uma ilusória zona de conforto, segurança e tranquilidade,

ainda que artificial, a uma espécie de ventre materno, excluindo “tudo aquilo que poderia

estar evocando a morte, a finitude, a dor, o sofrimento” (GUATTARI, 1985, p. 118), criando

uma barreira entre o caos exterior e o aconchego interior, ajudando a diluir o medo e

preenchendo a psique das pessoas.

Nos shopping centers, por exemplo, vários recursos não só operacionais, mas

também arquitetônicos, em algum grau, anestesiam os usuários frente à realidade. A voz –

gravada – que soa quase musical na cancela automática do estacionamento, o aroma

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agradável que emana das roupas simetricamente ordenadas nos cabides das lojas, a

iluminação cenográfica das vitrines que incita sonhos e desejos ou o sorriso fácil dos

vendedores que soa sincero e familiar para os potenciais clientes: tudo está voltado para

estimular os sentidos. Todo o aparato cognitivo dos usuários é recrutado e, paradoxalmente,

desacelerado, levando-os a um estado de suspensão temporal, espacial e psicológica,

ficando encapsulados em um universo fictício, perfeito e seguro.

É interessante esse contraste entre essa infantilização, essa espécie de ambiente neurolético (os neuroléticos são os remédios receitados em psiquiatria para amortecer completamente) e a sensação de estar acontecendo um milhão de coisas, de que se tem uma vida incrível, luzes, ação, movimento (GUATTARI, 1985, p. 118).

Nesse contexto, no último mês de outubro, a Royal Dutch Airlines – KLM, instalou um

pavilhão de vidro no Aeroporto de Schiphol – Holanda, onde trabalham, diariamente, 250

funcionários especialistas em mídias sociais, rastreando informações em tempo real, a fim

de oferecer assistência, ajuda e solução aos passageiros – não apenas para os da própria

companhia aérea – que porventura tenham dúvidas ou estejam passando por problemas em

seus voos. A campanha publicitária, intitulada #HappytoHelp, somada à experiência

proporcionada aos usuários e até mesmo o próprio suporte material onde se desenrolam

tais eventos, parece uma representação bastante aproximada do que vem a ser um não-

lugar – um recinto voltado para a rápida circulação, com débeis contatos, fraca apropriação,

sem identidade, relação ou história com os usuários.

À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objetos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com os seus semelhantes quanto, no plano estatístico segundo uma curva ascendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens, desde a organização doméstica muito complexa e com dezenas de escravos técnicos até ao mobiliário urbano e toda a maquinaria material das comunicações e das atividades profissionais, até ao espetáculo permanente da celebração do objeto na publicidade e as centenas de mensagens diárias emitidas pelos mass media (BAUDRILLARD, 2007, p. 15).

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Figura 33. Pavilhão da KLM no Aeroporto de Schiphol, Amsterdam | Jessey de Graaf.

Muitas são as faces da sociedade contemporânea e elas eclodem de várias fontes;

uma delas é a incerteza. Ela não reside apenas no futuro, como seria habitual imaginar, mas

no presente, no agora. “Quanto menos o futuro é previsível, mais ele precisa ser mutável,

flexível, reativo, permanentemente pronto a mudar” (LIPOVETSKY, 2004, p. 57). A

flexibilidade dos laços de trabalho, a volatilidade dos compromissos afetivos, a difusão das

ameaças patológicas, a banalização da violência, a desorientação dos ritmos da vida, enfim,

toda fragilidade das condições sociais, políticas e econômicas criou um estado de

insegurança14 constante, levando os indivíduos a buscar “na intimidade doméstica, em

encontros confiáveis, formas seletivas de sociabilidade. Os grupos populares saem pouco

dos seus espaços, periféricos ou centrais; os setores médios e altos multiplicam as grades

nas janelas, fecham e privatizam ruas do bairro” (CANCLINI, 2006, p. 286). Esses guetos

voluntários, que têm se multiplicado em muitas cidades, sintetizam um isolamento de

caráter tanto espacial quanto social. “Tanto o confinamento quanto o fechamento teriam

pouca substância se não fossem complementados por um terceiro elemento: a

14

BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 73-74.

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homogeneidade dos de dentro, em contraste com a heterogeneidade dos de fora”

(BAUMAN, 2003, p. 105).

É nesse campo onde surgem impulsos excessivamente individualizadores,

compelindo as pessoas a estratégias egocêntricas e narcisistas, fazendo com que o indivíduo

volte sua libido para seu próprio ego, fixe seu desejo em si mesmo e crie um casulo ao seu

redor, ignorando não só os anseios, mas a própria existência do outro, reprimindo qualquer

contato, por mais débil que seja, com as pessoas do seu entorno. Configura-se, como diria

Augé, um cocooning (encapsulamento), algo que se assemelha com o “retorno à vida intra-

uterina, ou à relação simbiótica com a mãe, num período em que o outro e o mundo não

existiam para o indivíduo” (CHAUÍ-BERLINCK, 2008, p. 46).

É inquestionável que qualquer argumento totalizante sobre a cidade ou sobre a

arquitetura, como suportes dos eventos e das atividades humanas, perde força e

credibilidade perante todas as declarações apresentadas até aqui. É inquestionável também

que a insipidez dos vínculos sociais instaurados nos não-lugares e endossados pelo ritmo

fustigante ao qual os habitantes das metrópoles estão submetidos, seja uma das suas

inúmeras facetas. A urbe contemporânea é fértil, ruidosa e prolífica, mas, ao mesmo tempo,

também é árida, silenciosa e deserta. O caos na cidade não é, completamente, uma verdade.

Os caminhos estão todos militarmente traçados. Pontes, viadutos, trilhos, ruas e avenidas

não impõem uma disritmia, mas uma ordenada euritmia à metrópole. A monotonia surge

não como a antítese da velocidade, mas como o seu próprio complemento, uma mescla que

inviabiliza qualquer síntese.

No hay palabra o discurso sin silencio, dicen, tampouco hay viaje, recorrido, sin distancia. La distancia es el silencio del trayecto, de todos los trayectos... de aquí hacia allá, del uno al outro. En el desierto, el silencio es um assunto oído: silencio mineral del suelo o silencio del cielo, todo calla para siempre. A la tabla rasa de um horizonte que impone al viajero la privación más completa, se agrega aun la soledad, esse primer grado de la miniaturización del ser. En efecto, como no compreender hoy em día que lejos de hacer crecer al individuo, el progresso de las técnicas lo disminuye, lo reduce, y eso hasta provocar, mañana, su desertificación psicológica, outro nombre de su vacío, de su inutilidade. (VIRILIO, 2011, p. 112-113).

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Figura 34. Salar de Uyuni, Bolívia | Olywyer.

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6. CRISTALIZAÇÃO NIILISTA

Em algum momento do século XIX, ocorreu uma virada crucial no pensamento ocidental – que podemos definir como a virada do humanismo ao modernismo. Mas, na maior parte das vezes, em sua obstinada adesão aos princípios da função, a arquitetura não participou nem compreendeu os aspectos fundamentais dessa mudança. Ao que parece, a diferença latente entre a natureza das teorias humanista e modernista passou despercebida para esses que hoje falam em ecletismo, pós-modernismo ou neofuncionalismo. E a diferença não foi notada exatamente porque essas pessoas veem no modernismo uma mera expressão estilística do funcionalismo e entendem o funcionalismo como uma proposta teórica fundamental na arquitetura. Na verdade, a ideia de modernismo rasgou uma fenda nessas atitudes, ao mostrar que a dialética forma e função tem uma base cultural (EISENMAN [1976], 2008, p. 99).

Enquanto elemento ordenador de espaços modificados pelo trabalho e por outras

atividades humanas, a arquitetura assimila, além das demandas meramente tecnicistas, os

complexos processos que envolvem as relações sociais. O entendimento maior a prevalecer

é o de que, justamente, a partir do território, as pessoas se formam, individual e

coletivamente, através das interações que estabelecem. “Arquitetura e sociedade se

condicionam mutuamente; tanto mais quanto maior for o investimento material e simbólico

de uma cultura na configuração de seu espaço físico” (KAPP, 2005, p. 117). De tal maneira, é

fácil compreender que muitos dos processos de exclusão social podem derivar tanto da

configuração quanto, em uma escala maior, da própria lógica espacial.

Sendo um dos principais meios através do qual os eventos e as ações humanas se

desenvolvem, a arquitetura pode ser entendida, sob uma ótica instrumental, como forma de

expressão de uma sociedade, tendo, portanto, um aspecto qualitativo e um valor de uso; já

sob a perspectiva do sistema de produção – por estar intimamente ligada às dinâmicas do

capital –, também possui um caráter quantitativo e um valor de troca.

Alguns dos não-lugares, tais como rodoviárias, estações de trem, metrô, aeroportos,

e, porque não citar, até mesmo muitas das próprias ruas das metrópoles contemporâneas –

por serem locais de passagem e servirem como substrato para objetivos de ordem

predominantemente funcional – têm, proporcionalmente, mais valor de uso do que valor de

troca. Parece, contudo, inexato afirmar a priori que o mesmo ocorra com shopping centers e

high-rise buildings. Aqui, a relação parece se inverter, mas não criticamente. Nesses dois

casos específicos, não se pode negar a existência e robustez de um mercado de construção

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civil e imobiliário, que provoca impacto direto nas taxas de emprego, nos índices gerais de

preços e, portanto, na economia atrelando a edifícios de tal natureza enorme valor de troca.

Configura-se, portanto, em quaisquer dos casos, um complexo jogo de hegemonias

entre tais valores, que oscila conforme o enfoque dado à análise. Generalizando, todo

shopping center, por exemplo, tem sua própria praça de alimentação, onde estão reunidos

alguns restaurantes e lanchonetes que devem servir food de modo fast – essa é a premissa.

A propósito, quanto mais fast, melhor! É muito comum que esses locais sejam abarrotados

por mesas, minimamente espaçadas, e por usuários que, geralmente, não se conhecem,

pouco interagem e cujo principal intuito é consumir. Alcançado o objetivo final, surge até

mesmo uma pressão social para que se complete o giro (turnover): recolha sua bandeja e

levante-se! Outro ciclo precisa começar! O convívio entre os usuários, quase sempre, dura

apenas enquanto durarem as relações de consumo.

Aquí se da la renovación urbana con un giro siniestro, uma arquitectura del engaño que, con su familiaridad de cara sonriente, se distancia constantemente de las realidades fundamentales [...] Represente esta ciudad una historicidad genérica o una modernidad genérica, su arquitectura está basada em las mismas premisas que la publicidad, em la idea da la pura imagen, obviando las necesidades y tradiciones reales de aquellos que habitan en ella (SORKIN, 2001, p. 17).

Figura 35. Praça de alimentação do Shopping Center Lapa, Salvador | Luiz Fernando Lima.

Analisando os high-rise buildings, destacadamente os corporativos, não é difícil

compreender que eles têm uma dinâmica mais voltada para o uso, embora não se possa

diminuir a importância ou renunciar, de modo algum, ao seu valor de troca. É fato que a

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compra ou o aluguel de escritórios nesses edifícios podem custar verdadeiras fortunas, e que

sua construção está, estreitamente, vinculada a uma realidade mercadológica.

Tais prédios são concebidos segundo uma lógica de produção que acaba dissolvendo

as particularidades dos indivíduos, além de treinar suas ações mediante regras que

condicionam seus comportamentos. Em algum grau, esse discurso automatizante, típico dos

não-lugares, é assegurado por projetos de interiores com tendência clean e que, através da

utilização de mobiliário modulado, materiais frios e iluminação impessoal, resultam em

ambientes áridos e esterilizados.

Os edifícios dos não-lugares obedecem a uma estética indiferenciada, de padrão internacional: são construídos com as mesmas técnicas e materiais; são climatizados artificialmente; são de difícil legibilidade, resultando no que alguns chamam de placelessness ou de nowhere architecture (ANDRADE, 2007, p. 183).

Figura 36. Infográfico com os edifícios mais altos do mundo, 2014 | All Top Tens.

A pasteurização dos espaços internos desses recintos é tão notável que, em muitas

situações, praticamente não é possível distinguir em quais deles se está realmente. O nível

de semelhança, por exemplo, entre um quarto de uma cadeia de hotéis em Londres, São

Paulo ou Tel Aviv é tão notável que despersonaliza, homogeneiza e uniformiza não apenas

os espaços, mas os próprios usuários. Dormir ou acordar em qualquer um deles tem pouca

diferença! Em muitos aspectos, o Aeroporto de Guarulhos é comparável ao de Tóquio ou,

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porventura, até ao de Dubai. Decolar ou aterrissar em qualquer um deles tem pouca

diferença! A Estação Luz do Metrô tem muitas semelhanças com a Estação Consolação ou

com a Estação Butantã. Embarcar ou desembarcar em qualquer uma delas tem pouca

diferença! Basicamente, são os mesmos sistemas e equipamentos, a mesma espacialidade, a

mesma ambiência, o mesmo caráter, o mesmo do mesmo. Em termos linguísticos, uma

metanarrativa que cristaliza o indefinido, o vazio, o nada.

Born into this Walking and living through this Dying because of this Muted because of this Castrated Debauched Disinherited Because of this Fooled by this Used by this Pissed on by this Made crazy and sick by this Made violent Made inhuman By this (BUKOWSKI, 1992, p. 319)

Figura 37. Aeroporto de Guarulhos, São Paulo | Lauro Jardim.

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Figura 38. Aeroporto de Tóquio, Japão | Navi Abdasen.

Figura 39. Aeroporto de Dubai, Emirados Árabes Unidos | Marcello Borges.

Os não-lugares são, muitas vezes, ambientes inundados por palavras, textos e

imagens, que sugerem para os usuários a maneira correta de como eles devem agir e utilizar

aquele território. Augé explica que tal proposição se exprime de maneira prescritiva

(“mantenha-se a direita”), proibitiva (“não é permitido o uso de telefones celulares”) ou

informativa (“bem-vindo ao Shopping Ibirapuera”) (2012, p. 89). Na maioria das ocasiões,

essas mensagens são transmitidas por uma quantidade enorme de suportes, como alto-

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falantes, placas, telas, pictogramas, setas, dentre outros, e não exatamente por pessoas, na

acepção estrita da palavra. Porém, quando pessoas exercem essa função, não raras vezes,

estabelece-se uma relação de imposição de uma ordem, haja vista tal exercício ser

comumente atribuído a seguranças fardados. A pré e a sobrecodificação que faz parte

desses recintos acaba por otimizar o tempo gasto pelos usuários, reforçando, assim, seu

caráter de passagem.

Tais suportes já se tornaram, há muito, elementos constituintes da paisagem

metropolitana, ajudando a ordenar o comportamento das pessoas, sendo, quase sempre, o

único meio de comunicação existente. É evidente que esses recursos têm uma função

prática e facilitadora dos deslocamentos, mas fica claro que também diluem as interações

sociais, na medida em que criam rupturas entre os possíveis diálogos.

Em Ercília, para estabelecer as ligações que orientam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as arestas das casas, brancos, pretos ou cinza ou pretos e brancos, de acordo com a relação de parentesco, troca, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que não se pode mais atravessar, os habitantes vão embora: as casas desmontadas; restam apenas os fios e os sustentáculos dos fios [...] Desse modo, viajando-se no território de Ercília, depara-se com as ruínas de cidades abandonadas, sem muralhas que não duram, sem os ossos dos mortos que rolam com o vento: teias de aranha de relações intrincadas à procura de uma forma (CALVINO [1972], 1990, p. 72).

Figura 40. Placas informativas na Estação Paraíso do metrô de São Paulo, 2014 | Ulisses Maciel.

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Outra característica dos não-lugares apontada por Augé é que, neles, via de regra,

firma-se uma relação contratual, obrigando os indivíduos a fornecerem uma prova da sua

identidade – na verdade, da sua existência, ainda que seja apenas em ocasiões e

circunstâncias alegadamente necessárias. Por meio de um bilhete, de uma passagem ou de

um cartão, seja na catraca, na alfândega ou no pedágio, a priori ou a posteriori, assina-se um

contrato. No momento dessa assinatura, presumida por tais controles e sem instituir,

propriamente, uma relação com os demais usuários e nem com o próprio ambiente, os

indivíduos tornam-se objetos, voltando-se solitariamente para seu anonimato e similitude,

diluindo-se na massa.

Figura 41. Comprovante de identidade do usuário do não-lugar | Bruno Santos, Terra.

A solidão que envolve os usuários dos não-lugares pode ser identificada no filme

Medos privados em lugares públicos (Cœurs), dirigido por Alain Resnais e lançado pelo Studio

Canal em 2006.

O filme narra a história de seis personagens que buscam por calor humano e, nessa

trajetória, acabam expondo seus dramas e sentimentos mais profundos. O cenário, não por

acaso, é uma gélida Paris – não tão charmosa como a retratada na maioria dos filmes –, o

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que ajuda a revelar, metaforicamente, a frieza entranhada na alma das personagens. Os

ambientes neutros e assépticos reiteram o fato de que aqueles lugares não convidam ao

encontro. A carência do convívio mais íntimo nesses recintos despersonalizados pode ser

percebida em cada detalhe do set: janelas, cortinas, paredes e vidraças ilustram o

distanciamento entre as pessoas e evidenciam a melancolia que se precipita sobre todos –

igual a neve que cai incessantemente.

O enredo não evolui para um desfecho surpreendente nem arrebatador, não existe

um clímax ou uma catarse, apesar das histórias individuais se interceptarem e as emoções

das personagens serem o foco da trama. A narrativa mantém o mesmo tom do início ao fim.

Tal monotonia é comparável àquela existente nos não-lugares, onde a inflexão nunca

acontece e o expurgo não se realiza.

Figura 42. Cena do filme Medos privados em lugares públicos (Cœurs), Alain Resnais, 2006.

A crescente produção e reprodução dos não-lugares nas metrópoles

contemporâneas, sobretudo quando se diagnostica o alheamento entre as pessoas que

provocam e alimentam, demonstra que o planejamento urbano e arquitetônico não têm

conseguido modular parcimoniosamente as necessidades dos usuários de seus

empreendimentos, priorizando aspectos não comprometidos com as expectativas humanas

mais essenciais e mais transcendentes.

Uma arquitetura digna de seres humanos imagina os homens melhores do que realmente são; imagina-os como poderiam ser, de acordo com o estado de suas próprias forças produtivas, concretizadas na técnica. Quando a arquitetura entende

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a verdadeira necessidade ao invés de perpetuar ideologias, contradiz as necessidades do aqui e agora [...] Dado que a arquitetura não é apenas autônoma, mas também atada a funções, ela não pode simplesmente negar aos homens serem tais quais são [...] Quando a ideia de necessidade verdadeira e objetiva leva a ignorar a necessidade subjetiva, ela se transforma em opressão brutal (ADORNO, 1967, p. 120-121).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vista dos argumentos apresentados, é evidente que o estudo desenvolvido até

aqui não encerra verdades indeléveis e, por isso mesmo, não busca propor definições

rigorosas ou prescrições absolutas sobre a arquitetura. Solucionar problemas não é a

pretensão dessa pesquisa. O intuito, desde o começo, foi abrir um campo de discursão

provocativo que, de algum modo, revisitasse conceitos muito cristalizados ou, muitas vezes,

parcialmente discutidos.

A confluência de várias áreas do conhecimento teve a intenção de construir um

amplo quadro argumentativo que possibilitasse envolver muitas questões relativas às

cidades e às pessoas. Afinal de contas, cada disciplina recrutada tem muito a dizer sobre as

relações que se estabelecem entre os suportes e seus atores.

Em vários pontos, o texto se revela intencionalmente iconoclasta, objetivando expor

algumas lacunas da arquitetura contemporânea. O progresso surge da negação, da

insatisfação e da entropia. Assim sendo, o questionamento, que, em um primeiro momento,

pode parecer gratuitamente destrutivo, é, na verdade, propulsor para mudanças de

paradigmas. Juntar esforços na tentativa de desconstruir algo só tem uma razão principal:

trazer as potenciais fragilidades à consciência, evitando desperdício de energia em

questionamentos vazios ou enfraquecimento da postura questionadora, canalizando forças

para processos efetivamente construtivos.

Posto isso, algumas considerações precisam ser feitas. Primeiramente, verifica-se que

a noção de lugar ainda é pertinente e que o seu jogo com os não-lugares evidencia uma

tensão que depende tanto das atividades que se desenrolam nesses ambientes, quanto das

relações que os usuários estabelecem entre si e com tais locais. O surgimento de um deles

não implica, necessariamente, na destruição do outro: em maior ou menor grau, eles

coexistem.

O conceito de não-lugar, entendido como ambiente construído com a finalidade de

permanência temporária – e, portanto, ligado à ideia de velocidade – também pode ser

vinculado a um aspecto predominantemente consumista ou ideologicamente subordinada,

acarretando, em qualquer dos casos, no enfraquecimento das relações humanas, uma vez

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que comporta uma característica doutrinadora e não promotora de uma construção

identitária.

As conexões humanas que poderiam ser estabelecidas em tais locais são diluídas e

postas em segundo plano, em nome de um interesse maior. Ao mesmo tempo, o caráter

efêmero, transitório e hedonista das relações na contemporaneidade tem ressonância com a

atual fase do capitalismo, resultando em sujeitos cada vez mais reféns de circunstâncias

alheias às suas expectativas mais genuínas, sem que possam nem ao menos perceber tal

situação – um estado de coisas já identificado por sociólogos, antropólogos e muitos

estudiosos e que recebeu denominações diversas, tais como pós-modernidade,

supermodernidade, hipermodernidade, dentre outras.

Se de forma mais concreta os espaços têm sido moldados de maneira a direcionar os

seus usuários à estrita funcionalidade, de forma mais abstrata os indivíduos encontram-se

imersos em um caldo discursivo que os molda a todo instante. Reduzindo-se o tempo de giro

(turnover) e tornando o ritmo cada vez mais célere, amplifica-se drasticamente o volume de

informações descontextualizadas e desconexas.

O foco na eficiência, algo já visto no modernismo, parece ter sido maximizado,

gerando na arquitetura um novo tipo de cidade e na sociedade, um novo tipo de homem.

Dada essa constatação, “no processo de planejamento, em vez da sequência que prioriza

edifícios, depois os espaços e depois (talvez) um pouco a vida, o trabalho com a dimensão

humana requer que a vida e os espaços sejam considerados antes das edificações” (GEHL,

2013, p. 198).

Esse mal-estar contemporâneo é, em grande parte, resultado de propósitos

mercadológicos – o que pode ser constatado pela progressiva fragmentação dos indivíduos,

convertidos em meros consumidores e em atores obedientes a uma lógica econômica – ou

sistêmicos – reduzindo seres humanos a simples fatores de produção, que devem ser

transportados de um local para outro o mais rápido possível e de forma totalmente

despersonalizada.

Contudo, não existe arquitetura sem pessoas, nem sociedades sem arquitetura: o

conceito de não-lugar torna-se relevante na medida que evidencia a importância do

posicionamento do arquiteto, especificamente no que diz respeito ao aprofundamento de

sua visão crítica perante à sociedade, buscando ampliar seu papel para além de julgamentos

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meramente estéticos ou estritamente funcionais, estabelecendo, dessa forma, uma

necessária postura de modulação entre os interesses dos investidores e as necessidades dos

usuários finais.

O propósito desse ensaio é, por fim, ressaltar a influência da arquitetura como

agente transformador do cotidiano das pessoas: sendo o destino dos projetos

arquitetônicos. Os indivíduos, com suas fraquezas e virtudes, enfim, com toda a sua

complexidade, devem ser fonte permanente de inspiração, endossando o que enuncia

Juhani Pallasmaa, quando diz que “a arquitetura reforça a experiência existencial, nossa

sensação de pertencer ao mundo, e essa é essencialmente uma experiência de reforço da

identidade pessoal" (2011, p. 39).

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

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