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26/08/14 14:48 ltimo telefonema para o cronópio | piauí_95 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais Página 1 de 21 http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-95/memorias-literarias/ultimo-telefonemapara-o-cronopio Último telefonema para o cronópio por REINALDO MORAES Edição 95 > _memórias literárias > Agosto de 2014 Como Julio Cortázar mudou minha vida É o seguinte: o Cortázar faria 100 anos por esses dias, não fosse a suprema gafe de ter morrido. Isso não é coisa que se faça, sobretudo se o cara é um cronópio certificado por despeitabilíssimos institutos interplanetários de Patafísica Aplicada, Surrealismo Off-Road, Transumância à la Mode e Línguas Glíglicas, Esperânticas e Transgalácticas. E sendo que o Cortázar, inda por cima, foi egrégio diretor- presidente-em-exercício-moderado de todas essas entidades da mais ilibada e desequilibrada inexistência. Fico imaginando as deliciosas autoironias com que Julio Cortázar haveria de brindar seus 100 anos, iniciados cartorialmente no dia 26 de agosto de 1914, mas com toda certeza tramado nove meses antes, como é praxe na espécie h umana, cronópios, famas e esperanças incluídos. Pra começar, aos milhares de  jornalistas do mundo todo ávidos por uma declaração sua, ele anunciaria ter baixado a categórica proibição de bolo com 100 velinhas na sua festa, em vista da alarmante quantidade de perdigotos que um ancião centenário é capaz de borrifar em cima de um bolo ao tentar soprar 100 velinhas, junto com alguma eventual prótese dentária que lhe possa escapar da boca. Sem falar no risco de um AVC por excesso de esforço expiratório lá pela sexagésima velinha, com o pobre macróbio emborcando de cara no alv o e cremoso chantilly, que lástima, tão cobiçado pelos convivas. Um trespasse do aniversariante, nessas

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Último telefonema para o cronópio

por REINALDO MORAES

Edição 95 > _memórias literárias > Agosto de 2014

Como Julio Cortázar mudou minha vida

É o seguinte: o Cortázar faria 100 anos por esses dias, não fosse a suprema gafe de ter morrido. Isso não é

coisa que se faça, sobretudo se o cara é um cronópio certificado por despeitabilíssimos institutos

interplanetários de Patafísica Aplicada, Surrealismo Off-Road, Transumância à la Mode e Línguas

Glíglicas, Esperânticas e Transgalácticas. E sendo que o Cortázar, inda por cima, foi egrégio diretor-

presidente-em-exercício-moderado de todas essas entidades da mais ilibada e desequilibrada inexistência.

Fico imaginando as deliciosas autoironias com que Julio Cortázar haveria de brindar seus 100 anos,

iniciados cartorialmente no dia 26 de agosto de 1914, mas com toda certeza tramado nove meses antes,

como é praxe na espécie humana, cronópios, famas e esperanças incluídos. Pra começar, aos milhares de

 jornalistas do mundo todo ávidos por uma declaração sua, ele anunciaria ter baixado a categórica

proibição de bolo com 100 velinhas na sua festa, em vista da alarmante quantidade de perdigotos que um

ancião centenário é capaz de borrifar em cima de um bolo ao tentar soprar 100 velinhas, junto com alguma

eventual prótese dentária que lhe possa escapar da boca. Sem falar no risco de um AVC por excesso de

esforço expiratório lá pela sexagésima velinha, com o pobre macróbio emborcando de cara no alvo ecremoso chantilly, que lástima, tão cobiçado pelos convivas. Um trespasse do aniversariante, nessas

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condições, seria um duro golpe pros seus amigos, em especial suas amigas e fanzocas de época, já bem

 velhinhas elas também, que teriam ido à festa com alguma dificuldade locomotora para vê-lo apagar as

 velinhas e pra comer o bolo e se refestelar com o chantilly da cobertura, visto que depois de um certo

número de décadas vividas já não há muitos prazeres na vida maiores do que bolo com cobertura de

chantilly, e de graça.

Isto posto, e mesmo correndo o risco de parecer um deslumbrado querendo tirar uma lasquinha da famado grande escritor argentino, devo dizer que conheci o Cortázar em 1979, falei com o Cortázar, me despedi

do Cortázar e nunca mais vi o Cortázar. Esse encontro com o Cortázar se deu por um desses acasos

tramados por caprichosas entidades transumanas que habitam as acomodações de mármore e suspiro dos

mitos e dos sonhos, ou poronga que o valha. Podia já ir contando de cara como se deu esse encontro, mas

 vejo que tenho aqui um precioso gancho narrativo e não pretendo desperdiçá-lo. Então, digo apenas que

eu vou contar, prometo que vou, só que daqui a pouco. Me deu na santa veneta de contar outras coisas

antes à sombra desse gancho em flor. Ganchos, em geral, ficam na ponta de um fio ou cabo, menos o do

Capitão Gancho, que está na ponta de um braço. E, claro, há ganchos de pendurar rede, presos em paredes

ou colunas, e outros, presos ao teto, de pendurar coisas, como vasos de planta, mas o gancho que meinteressa aqui é mesmo o atado na ponta de um fio. Te convido, pois, a percorrer esse fio desde o começo

até o famoso gancho.

 

Era 1972. Tinha uma ditadura escrota lá fora, num lugar chamado Ame-o ou Deixe-o, pelo que se lia nos

stickers em carros e vidraças, além das propagandas oficiais na imprensa. Mas dentro do meu quarto

havia a 2ª edição em português de O Jogo da Amarelinha ( Rayuela, que se pronuncia rajuêla, em

argentinês), o livro individual mais maçudo que eu tinha enfrentado até então, com 635 páginas. Meu

recorde anterior era o Grande Sertão: Veredas, e suas 568 páginas. Os sete volumes de O Tempo e oVento, lidos ainda na adolescência, também passavam, cada um, de 400, mas ali era o Verissimo, a prosa

fluida dando corpo ágil à vigorosa narrativa realista com forte base histórica, que te fazia esquecer de que

aquilo era um livro e de que havia um tempo universal, cronológico, burocrático, só esperando você largar

a leitura pra te atacar a golpes de relógios e compromissos.

Mas tanto no Guimarães Rosa quanto no Erico Verissimo, o leitor se vê engolfado pelo universo humano

tramado pela linguagem, seja a exuberantemente garimpada e recriada, pelo Rosa, quanto a eficiente,

musculosa, e nada autorreflexiva do Verissimo, que tá ali pra servir à história, e faz isso com a maior

competência.

 Rayuela, que depois daquela tradução em português eu reli umas 200 vezes em espanhol, donde eu me

permitir doravante nomear o romance apenas em argentinês, Rayuela, também te jogava pra dentro de

um denso universo humano, es lórrico, mas a narrativa te convidava a toda hora a sair fora dela e olhar

pros andaimes, pra oficina, pra carpintaria do livro, forçando seu intelecto a afrouxar os suspensórios do

descrédito e tomar consciência de que estás diante de uma obra de arte, e não dessa dama tangível e

tangedora chamada realidade. E também a se interessar por outras coisas que não apenas a grande

história de amor ali tramada, em pura prosa ludopoética, entre Oliveira e Maga.

 A cada página uma porta se abria pra algum tipo de transcendência artística, existencial, erótica. Só

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religiosa é que não, graças a Deus. E era bastante previsível que um garoto universitário de classe média

como eu, filho único incurável, meio perdido em si mesmo na solidão do Butantã, bairro que ficava nas

pré-cucuias da cidade, às margens do rio Pinheiros, esgoto a céu aberto que atravessa o sudoeste de São

Paulo, tivesse, em geral, grande fome de transcendências. E de otras cositas más, tão ou mais peludas que

transcendências, por supuesto, mas esse é outro assunto.

 Rayuela já começava causando, pois entre o frontispício e as três epígrafes o autor avisava que “este livro émuitos livros, mas sobretudo é dois livros. O leitor está convidado a escolher uma das duas possibilidades

seguintes...”.

 As duas possibilidades eram: 1) ler os capítulos, um a um, em ordem direta, até o capítulo 56, desprezando

“sem remorsos” os demais 99 capítulos, que apesar de mais numerosos eram, no geral, mais curtos, e

ocupavam cerca de um terço do livro; ou 2) ler o cartapácio aos saltos, como no jogo da amarelinha, com

avanços e recuos entre os capítulos, seguindo uma ordem indicada ao pé de cada capítulo. Qual dessas

opções você escolheria aos 22 anos, sendo um universitário barbudo, leitor voraz de literatura, da canônica

a qualquer birutice que lhe caísse nas mãos, fiel devoto de São Guevara, São Lennon, São Caetano (o doNordeste, não o do Sul), Santo Gil, Santo Chico e São Jagger, cheio de desprezo pela tríade tradição,

família & propriedade (exceto o fusca 0 km que eu havia ganho do papai, minha vitrola, meus livros, meus

discos e minha máquina fotográfica), e repleto de ódio pelas autoridades usurpadoras e torcionárias da

nação? – é o que eu pergunto.

 

 A  resposta a essa pergunta retórica é arquióbvia, e lá fui eu saltitando pelo livro-jogo afora e adentro, feliz

de me sentir do time dos raros & loucos que não se negavam à aventura lúdica proposta pelo autor. Esse

esquema labiríntico dava margem a uma vertiginosa labirintite intelectual, rompendo com a linearidadeda leitura, apesar do fio de Ariadne que o autor fornecia ao leitor pra se guiar por aquele mar de

fragmentos de narrativa, de personagens românticos, boêmios, burlescos, trágicos, e de inúmeras citações

de outros autores, de transcrições de notícias de jornal, e sei lá mais o quê.

 A certa altura do capítulo 155 você se via, com certo espanto, na gloriosa última página do livro físico,

aquela que tanto alívio traz ao leitor disciplinado – o “leitor-fêmea”, como o chamava Cortázar –, só para

se dar conta de que ainda estava longe do fim do “material”, digamos assim, pois o numerinho no pé do

capítulo te remetia ao capítulo 123, que, por sua vez, te chutava pro 100, que também te direcionava pra

outro capítulo, até você se dar conta de que já estava relendo o bagulho, como aconteceu comigo daprimeira investida.

 Ainda me lembro do coquetel de emoções desencontradas que senti ao me ver preso na circularidade de

uma narrativa assombrosa de louca, de radical, na suicidária disposição de botar a linguagem numa sinuca

de bico, pondo em risco a todo momento o efeito-romance, e de lúdica, dramática, absurda, erudita até o

cu fazer bico, lírica até as lágrimas e ao gozo, e de novo, louca, radical, lúdica etc., etc., etc. Era um jogo,

aquilo, no qual entrei de cabeça, percebendo que aceitar suas regras me dava acesso a um mundo de ideias

e sensações – e, por que não dizer, de emoções – que nenhuma literatura “normal” me franqueara até

então. Me considero um cara avisado o bastante pra não incorrer no pegajoso clichê de afirmar que O Jogoda Amarelinha mudou minha vida, mas, quando não tem ninguém olhando, é isso mesmo que digo pra

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mim mesmo cada vez que penso no livro e em Julio Cortázar: mudou minha vida.

Fora do livro, como disse, era o meu quarto de sobrado geminado, e fora dele era o Brasil dos generais

torturadores, o Brasil da minha família católica, apostólica e careta no úrtimo, cheia dos interditos que

tinham de ser burlados com astúcia, nos melhores dos casos, e gritarias biliosas, nos piores, o Brasil da

Faculdade de Ciências Sociais na USP, que também podia se chamar de ciências melancólicas (vários dos

melhores professores tinham sido aposentados compulsoriamente ou seguido pro exílio), naquele desertomeio esquálido que era a Cidade Universitária de então, locação ideal pruma ficção científica distópica de

 baixo orçamento, inda mais à noite, período em que eu a frequentava, e também o Brasil da “Gê-Vê”, o

hiper-mega-super-coxinha curso de administração de empresas que eu tocava em paralelo, numa tentativa

canhestra de mostrar aos velhos e ao mundo que eu ainda haveria de ser um cidadão prestante e

integrado, e não o comunistinha hippie chegado em garotas, copos, bares com amigos tagarelas,

cigarrinhos fedorentos e as mesas de snooker da avenida São João que eu frequentava de madrugada com

o saudoso Beto, meu colega da USP.

 

Foi então que eu conheci um amigo com nome de partícula atômica, durante um workshop de fotografia

no MASP, ministrado pela Claudia Andujar e seu então marido, George Love, que tinham se notabilizado

pelas fotorreportagens em revistas, como a excepcional Realidade de 1968, e livros, como os muitos e

impactantes volumes publicados por Claudia com fotos dos índios do Brasil. Esse amigo fazia filosofia na

PUC, tinha uma namorada de uma lindeza estranha (era manequim de família lituana) e uma câmera

 japonesa reflex Olympus, o fino da bossa em matéria de câmeras de 35 milímetros, bem melhor que a

porquera da minha Praktica alemã-oriental, que custava metade do preço da Olympus e cuja mera posse já

tornava seu dono um aspirante à condição de cronópio honorário, de qualquer lado da ideológica Cortina

de Ferro (de concreto, na real) que dividia as duas Alemanhas.

Cronópio, se você não sabe, é o principal grupo da antropotaxonomia patafísica inventada pelo Cortázar,

ao lado dos famas e das esperanças. Considerando que um cronópio jamais te daria uma definição

minimamente racional do termo que o define (até poderia tentar, mas acabaria se lembrando de que está

na hora de passar o Chaves na tevê e se esquecendo do assunto), valho-me das pistas que o próprio

Cortázar deu sobre a matéria em seu Histórias de Cronópios e de Famas (de 1962, um ano antes da

aparição de Rayuela no mundo hispanofônico), livro que lançou aquela taxonomia com enorme sucesso

entre cronópios do mundo todo e que um fama por certo classificaria de “inclassificável”. Dá uma olhada:

“Não sem trabalho, um cronópio chegou a estabelecer um termômetro de vidas. Algo entre termômetro e

topômetro, entre arquivo e curriculum vitae. Por exemplo, o cronópio recebia em sua casa um fama, uma

esperança e um professor de línguas. Aplicando seus descobrimentos, estabeleceu que o fama era

infravida, a esperança paravida e o professor de línguas intervida. Quanto ao cronópio mesmo,

considerava-se ligeiramente supervida, mais por poesia do que por verdade.”

Deu pra entender? Se não, aí vai mais um pitaco:

“Quando os cronópios cantam suas canções preferidas, se entusiasmam de tal maneira que com frequênciase deixam atropelar por caminhões e ciclistas, caem da janela e perdem o que tinham nos bolsos e até a

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conta dos dias. Quando um cronópio canta, as esperanças e os famas acodem a escutá-lo, embora não

compreendam muito seu arrebatamento e, em geral, se mostrem algo escandalizados.”

Bueno, voltando à minha Praktica e ao meu amigo com nome de partícula atômica, o fato é que, à parte o

grande interesse pela arte da fotografia, eu e ele, ambos da mesma idade, descobrimos outra crucial

afinidade que nos aproximou naqueles sombrios primórdios setentistas: os dois éramos leitores devotos

do Cortázar, em especial de Rayuela, nossa bíblia existencial e antídoto comprovado contra a solenidade ea chatice. Um de nossos números preferidos nas mesas

de bares e restaurantes era citar este ou aquele trecho do livro e, ato contínuo, sacar o dito-cujo da bolsa

(andávamos com enormes bolsas de couro ou lona), localizar com espantosa rapidez a página em questão,

invariável e impiedosamente sublinhada e comentada à lapiseira ou esferográfica, e declamar, alto e bom

som, este ou aquele texto do Cortázar mais adequado à circunstância, para grande alegria e admiração de

nossas namoradas, amigas e amigos. Não todos, claro, mas na certa as e os mais legais.

 

Pois então, Rayuela mudou minha... Ops, já falei isso? Não faz mal, falo de novo: mudou minha vida. Não

exatamente pra melhor, nem pra pior. Mudou para o lado de lá, mais além da dura e intranscendente

realidade, que, não obstante, segundo o Woody Allen, ainda é o único lugar onde é possível comer um bom

 bife. Mas eu já estava de saco cheio de bons bifes. Eu queria outra coisa. Que coisa nunca soube direito,

mas tinha certeza que era o mesmo que queria Oliveira, o personagem de Rayuela, naquelas 635 páginas

que já começavam a se destacar da encadernação e que eu tomava direto na veia em bases diárias.

De tanto ler e reler os fragmentos daquela narrativa constelar, agora numa ordem aleatória, como se o

 jogo da amarelinha tivesse virado o jogo da mãe joana, acabei me sentindo coautor da bagaça e enfiando

na cabeça que, de algum jeito, em algum dia daqueles que estavam por vir – aos 22 anos, você pode contarcom muitos dias-por-vir à sua disposição, se for vacinado e não pegar algum voo micado da Malaysian

 Airlines –, eu ia virar escritor, pois já tinha virado aquele cara do livro, o Oliveira, a vagabundear por uma

Paris de sonho e pesadelo, e o fétido rio Pinheiros atrás do sobrado da minha família no Butantã já se

transformara no romântico Sena, e eu saía todos os dias a perambular pelo Centro da minha Paris

paulistana em busca da Maga – ¿Encontraría a la Maga? , é a primeira frase de Rayuela –, amante

aleatória desfrutável apenas por quem se dispõe a seguir à risca os mais patafísicos protocolos do grande

acaso pelas ruas, pontes, cais e galerias da grande cidade onírica.

O processo de transmutação identitária, que propiciou à minha consciência deslizar de mansinho pradentro de um ser ficcional, é descrito em detalhes igualmente ficcionais pelo próprio Cortázar no conto

“Axolotl”, do livro Final do Jogo (1956): “Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotl. Ia vê-los

no aquário do Jardin des Plantes e ficava horas a mirá-los, observando sua imobilidade, seus obscuros

movimentos. Agora sou um axolotl.”

 Agora sou o Oliveira. Foi o que acabou me acontecendo de tanto que eu li Rayuela. E, claro, fiquei

inelutavelmente impregnado até os ossos pelo estilão cortazariano, “Um estilo que maravilhosamente

finge a oralidade, a soltura fluente da fala cotidiana, o expressar-se espontâneo, sem enfeites nem

petulâncias, do homem comum”, como escreveu Vargas Llosa, que ainda acrescenta: “Trata-se de umailusão, certamente, porque, na verdade, o homem comum se expressa com complicações, repetições e

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confusões que não resistiriam quando trasladadas à escritura.”

 Aquele amigo atômico e eu acabamos virando sócios numa espécie de pequeno empreendimento

fotográfico cujo equipamento se resumia basicamente ao poderoso ampliador Durst que ele ganhara do

pai e às nossas câmeras reflex de tão desiguais qualidade e capacidade – minha lente alemã-oriental, de 50

milímetros, bundeira pros padrões de uma Zeiss ocidental, tinha 2:8 de luminosidade, enquanto a lente

que equipava a Olympus dele tinha 1:2, próxima da marca do olho humano, que é de 1:1, ao que parece.

Não demorou muito, meu novo amigo me apresentou a um antigo colega seu de colegial, recém-saído da

Faculdade de Direito do Largo São Francisco e que depois virou professor de literatura francesa na USP.

Esse amigo do amigo me dava a impressão de ter lido toda a literatura e todo o ensaísmo literário que era

possível alguém ler aos 22 anos. Ficamos muito amigos também. E foi esse cara quem me apresentou,

primeiro, uma ex-colega da faculdade de direito, inteligentíssima e ultramordaz, que já era advogada e

alguns anos depois usaria uma toga de juíza federal, depois outra colega, esta da faculdade de letras na

USP, que ele cursaria a seguir. Essa uma aí, cinco anos mais jovem que a gente, era uma gracinha e falava

o português mais castiço e natural do mundo, numa dicção claríssima pontuada de risadas sonoras, e com boa parte da melhor literatura brasileira armazenada na cabeça, um azougue, essa menina. Todo mundo

se apaixonava por ela, e eu não fui exceção.

 

Esse grupinho básico se autodenominava A Malta, mas se inspirava no “Clube da Serpente”, a patota de

intelectuais e artistas vagaus e sem muita grana no bolso, autoexilados em Paris, ao qual pertenciam

Oliveira e a Maga em Rayuela, gente muito díspare mas transbordante de cultura geral – à exceção da

Maga, a intuitiva oficial do Club de la Serpiente rayuelano. Numa algo patética tentativa de clonar os

hábitos da corriola parisiense do Oliveira, fazíamos o possível para pautar nossos papos por um menu deassuntos que giravam em torno de artes em geral, filosofia, música, política, ciência e, principalmente,

literatura, muita literatura, prosa e poesia, e vice-versa, aos tragos de vinho ou cerveja – eu era viciado na

Hércules, uma cerveja Stout deliciosa encontrada em poucos lugares.

É lógico que não chegávamos aos pés da voltagem intelectual do autêntico Clube da Serpente parisiense,

sempre envolto numa permanente nuvem de tabaco no apartamento de alguém, com todos disparando

mais ou menos ao mesmo tempo citações de uma infinidade de autores e artistas, de Octavio Paz a

Gombrowicz, de Rimbaud ao tangueiro Aníbal Troilo, ou apenas comentando notícias estapafúrdias ou

frívolas de jornal, como uma lá dando conta de que uma certa duquesa tinha quebrado a perna no condadode York, mas passava bem, e uma outra alertando para os perigos que o prepúcio corre com as modernas

 braguilhas de zíper, notícias essas que, aliás, eram reproduzidas na íntegra nas páginas do romance, o que

lhe dava um divertido ar de almanaque amalucado, algo absolutamente novo pra mim, sempre ávido de

novidades do tipo fora da casinha.

Eu não sabia ainda, mas aquele jeito saltitante de se ler Rayuela proposto pelo autor mimetizava seu

próprio “processo criativo”, como ele revelou ao jornalista e escritor peruano Alfredo Barnechea:

“ Rayuela foi escrito aos saltos, pois começou no que logo virou a segunda parte, a qual ficou em suspenso

até que terminei a primeira; paralelamente, foram se agregando os capítulos ‘teóricos’, os recortes deimprensa e as citações de sábios e loucos.”

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De fato, essa barafunda lúdica que rege a poética do livro trazia um tremendo frescor à leitura, incluindo o

despudorado desnudamento de seus procedimentos construtivos, mas sem comprometer a tal suspensão

do descrédito de que falava Coleridge, conforme Cortázar comenta no livro, condição indispensável para se

curtir devidamente uma obra de ficção. Ou seja, embora entrando e saindo da história, pra vê-la de fora, a

história, ou melhor, as histórias do livro eram tão pra-valer quanto as desventuras de Raskolnikoff em

Crime e Castigo e Bentinho no Dom Casmurro. O leitor entra de cabeça naquela realidade paralela,

também chamada de jogo ficcional.

O conceito de jogo, por sinal, é a ma-téria-prima de Rayuela e de toda a obra cortazariana, como o

ensaísta Davi Arrigucci Jr. não se cansa de salientar na sua análise canônica, O Escorpião Encalacrado,

tese de doutorado que virou livro e que tem tudo a ver com o meu amado gancho aqui – o dia em que eu

conheci Cortázar em Paris –, como poderá constatar quem sobreviver até o final deste texto. Escreve

 Arrigucci: “Tanto em Borges como em Cortázar, a literatura se explicita, de fato, como um jogo lúcido.

 Aparentemente, esse fato, que implica a quebra do efeito realista da literatura tradicional e o consequente

distanciamento crítico, torna incompreensível nosso interesse por esse tipo de literatura. E, no entanto,

essa visão dos bastidores da literatura acaba nos arrastando ainda mais depressa para o interior da ficção.”Voilà!

 

Se você me permite usar e abusar das citações, coisa que o Cortázar faz a três por quatro em toda a sua

obra – citar é citar-se, como ele gostava de lembrar, citando justamente sei lá quem –, olha só o que o

sobejamente conhecido romancista peruano Mario Vargas Llosa diz sobre a dimensão lúdica da escrita

cortazariana, no prefácio aos contos completos do então já falecido autor, em 1994:

“Provavelmente nenhum outro escritor deu ao jogo a dignidade literária atribuída por Cortázar nem fez do jogo um instrumento de criação e exploração artística tão dúctil e proveitoso. Mas ao dizer isso de modo

tão sério altero a verdade: porque Julio não jogava para fazer literatura. Para ele, escrever era jogar,

divertir-se, organizar a vida – as palavras, as ideias – com a arbitrariedade, a liberdade, a fantasia e a

irresponsabilidade com que o fazem as crianças ou os loucos. Mas, jogando desse modo, a obra de

Cortázar abriu portas inéditas, chegou a mostrar uns fundos desconhecidos da condição humana e a roçar

o transcendente, algo a que certamente nunca se propôs. Não é casual que o mais ambicioso de seus

romances tivesse como título um jogo de criança.”

Literatura enquanto jogo, linguagem que se inflete sobre si mesma, alternância de pontos de vistanarrativos, problematizando a fatura da escrita, e mesmo assim ficção das boas, como destaca o Arrigucci,

das que você pode ler na rede, numa viagem, na sala de aula, escondido, como eu fazia. No meio de uma

aula de sociologia, economia ou mercadologia, numa das duas facs que eu fazia simultaneamente,

logrando a façanha de ser um péssimo aluno nas duas. (Acabei largando as ciências sociais melancólicas e

inacreditavelmente arrancando o canudo do curso de administração de empresas imaginárias.)

O segredo, a meu ver, além da disposição entranhadamente lúdica do escritor, como enfatiza Llosa, é o

perfeito domínio que o Cortázar tinha das formas clássicas da narrativa literária, em especial da

oitocentista. Numa carta à sua amiga Victoria Ocampo, escritora argentina que, ao lado de Jorge LuisBorges, a partir dos anos 30 editou a mítica revista Sur, na qual publicou vários contos e artigos

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ensaísticos, Cortázar revela: “É curioso que eu, quando estou doente, me volto decididamente pros

novelões do século XIX. Num hospital, dez anos atrás, reli quase todo Dickens; numa clínica, de outra

feita, preenchi um montão de lacunas balzaquianas.”

Não é de admirar, pois, que o Cortázar tenha ido fundo na descabelada narrativa romântica centrada em

Oliveira e la Maga que permeia todo o romance, algo que, em princípio, não ornaria muito com a radical

modernidade estrutural e conceitual de Rayuela, dotada inclusive de um personagem teórico que está lápara discutir as bases construtivas do próprio livro. É um pouco como se, no Memórias Póstumas de Brás

Cubas ou em Dom Casmurro, Machado de Assis tivesse instalado um personagem como o crítico Roberto

Schwarz formulando a teoria das “ideias fora do lugar”.

No entanto, a despeito de tamanha lucidez autorreflexiva, a conturbada história de amor entre a Maga e

Oliveira é a principal linha de força do romanção, sobretudo aos olhos dum cabeludo-barbudo de fitinha

na cabeça e calça boca de sino, como eu, tipinho em rebeldia permanente contra o “sistema” e sua legião

de professores, patrões, policiais, pais, vizinhos, políticos, advogados e seja lá quem mais pudesse emitir

ordens e brandir leis no meu nariz, e de coração e sexo ávidos por açambarcar todas as mulheres domundo e mais outras tantas que porventura despencassem dos confins do universo inumerável. Sim, sim,

o amor louco, sem futuro, imperfeito, cabia perfeitamente nesse “romance total”, como o chamou Vargas

Llosa, amigo e apaixonado leitor do Cortázar, 22 anos mais velho que o peruano.

 

La Maga, a heroína romântica, é descrita como uma uruguaia duranga que vive em Paris da mão pra boca

com seu filho bebê de pai nunca mencionado. Ignorante, de uma “inocência deliciosa”, era a própria

 femme-enfant celebrada pelos surrealistas, ao modo de uma Nadja, do Breton, mas dona de uma

surpreendente inteligência intuitiva. A Maga baba de admiração pela erudição do novo amante e seu grupode amigos do Clube da Serpente, todos mais ou menos enredados numa vistosa crise existencial. Ela e

Oliveira, o intelectual também sem mucha plata no bolso e em profunda disponibilidade na capital

mundial da flânerie, os dois se divertem marcando aqueles encontros cegos pelas ruas e logradouros da

cidade, como já mencionei.

“Encontraria a Maga?” Não me canso de repetir mentalmente a primeira frase do romance que desde logo

precipita o leitor num plano de dúvidas lúdicas e amorosas que só vão se aprofundar ao longo do texto.

“Preferíamos nos encontrar na ponte, no terraço de um café, no cineclube ou agachados junto a um gato

em qualquer pátio do bairro latino”, esclarece Oliveira, num dos trechos em que assume a narrativa doromance, que divide com um clássico narrador onisciente que dá as caras quando bem lhe dá na veneta.

“Andávamos sem nos buscar, mas sabendo que andávamos para nos encontrar.”

Quer arranjo de amantes mais romântico que esse? Não é para o bico de “gente que marca encontros

precisos” ou que “necessita papel pautado para escrever ou que aperta desde baixo o tubo da pasta de

dente.”

Melhor parar de escarafunchar analiticamente a obra del hombre, sendo que eu mal falei do Morelli,

personagem teorizante de Rayuela, incidental na trama, mas que abre as portas do romance paradiscussões cabeludas e no geral divertidas sobre os pressupostos estéticos da própria obra que temos em

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mãos. “Os surrealistas”, diz Morelli, que cito aqui pra se ter uma pequena ideia do tom essencialmente

reflexivo desse personagem, “acreditaram que a verdadeira linguagem e a verdadeira realidade estavam

censuradas e relegadas pela estrutura racionalista e burguesa do Ocidente. Tinham razão, como sabe

qualquer poeta, mas isso não era mais que um momento na complicada operação de descascar a banana.

Resultado, mais de um comeu a banana com casca e tudo.”

Morelli, cultuado pela turma do Clube da Serpente, é também escritor de romances, não romances,antirromances ou contrarromances. Depois de ler trechos do novo romance ultraexperimental de Morelli,

o narrador de plantão em Rayuela comenta: “Lendo o livro, por momentos se tinha a impressão de que

Morelli havia esperado que a acumulação de fragmentos se cristalizasse bruscamente numa realidade

total.”

 Veja você, até que acabei falando um pouquinho do famoso Morelli do Rayuela. Mas e os contos? Não vou

falar dos contos, que eu passei a devorar depois de Rayuela saboreando a busca incessante do insólito no

cotidiano, essa porta para o fantástico que está bem ao alcance da nossa mão, mas cuja maçaneta não

 vemos, com a visão toldada pela falsa realidade que nos rodeia e aprisiona. Falsa, mas massiva emassacrante. No máximo, conseguimos dar uma espiadinha pelo buraco da fechadura em alguns desses

súbitos momentos que gostamos de chamar de epifânicos.

Cedo aqui outra vez a palavra ao Vargas Llosa, a respeito dos contos del gran cronópio: “A verdadeira

revolução de Cortázar está em seus contos. Mais discreta porém mais profunda e permanente, porque

sublevou a natureza mesma da ficção, o amálgama indissociável de forma-fundo, meio-fim, arte-técnica

que ela logra alcançar nos criadores mais bem realizados. Em seus contos, Cortázar não experimentou:

encontrou, descobriu, criou algo imperecível.”

 

E o meu famoso gancho, el glorioso día en que yo conocí a Julio Cortázar en París? Pois é, pibe, bem

lembrado. Já-já vou contar, mas antes, pra não torturar demais a sua paciência, conto como foi o meu

quase encontro com o Cortázar na mesma Paris, pra onde eu tinha viajado pela primeira vez em 1975. Fui

o primeiro membro do nosso derrisório Clube da Serpente paulistano a viajar à cidade mítica, “sonho,

mito, metáfora e refúgio”, como já disse alguém, que abrigava o verdadeiro Clube da Serpente

cortazariano, ao menos nas páginas de Rayuela, disposto, por sinal, a percorrer os itinerários errantes do

Oliveira por lá.

Essa tarefa, clássica entre leitores apaixonados de obras muito referenciadas a uma determinada cidade,

não era estranha, aliás, ao próprio Cortázar, que fez o mesmo, só que não em Paris, mas na Buenos Aires

da sua juventude, tendo por guia as obras do portenho Roberto Arlt, como os romances El Amor Brujo e

Los Siete Locos, que muito o haviam impressionado. Na introdução às obras completas do Arlt, três

décadas depois, Cortázar confessa: “Cada vez que algum leitor me conta de seus itinerários por Paris atrás

das pegadas de algum personagem dos meus livros, me vejo de novo nas ruas portenhas dizendo-me que

por ali passaram o Rufião Melancólico, que nessa quadra estava uma das imundas pensões onde sentaram

praça a Hipólita, a Bizco ou Erdosain.”

E foi o que eu fiz com meu esfacelado exemplar de Rayuela no bolso do casaco, percorrendo a rue

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Dauphine, o quai de Conti, a rue de Seine, a Pont des Arts, as quebradas encardidas e ainda não

gentrificadas do Marais, e toda a imensa teia de bulevares, passagens, becos, cais e galerias, pontes,

estações de metrô, bares e restaurantes mais ou menos fuleiros debaixo da calota cinzenta do céu de Paris

a ver se não topava com Oliveira, Etienne, Wong, Gregorovius, Pola, Ronald, Babs, Morelli ou a santa

Maga da-pá-virada disponíveis para um dedo de prosa e uns copos de Beaujolais no café mais próximo.

Para o cortazariano que tem preguiça de garimpar tais itinerários diretamente no livro, recomenda-se umtal de Diccionario Cortázar-París-Rayuela, de Juan Manuel Bonet, que, parece, pode ser baixado pela

internet. (E o que não pode ser baixado por essa colossal mesa branca, ponto de confluência de todos os

espíritos do universo?) Claro que a minha imorredoura esperança era topar com o Cortázar, ele mesmo, e

me tornar seu amigo para sempre, com a mesma homoternurinha com que Robin ficou amigo do Batman,

o Tonto do Zorro, o Sexta-Feira de Robinson Cruso é e o Lothar do Mandrake, entre outros exemplos de

fiel e canina amizade masculina da minha infância.

Um dia, isso quase aconteceu, naquele gélido janeiro de 75 em Paris. Eu saía de uma reunião esfumaçada

no minúsculo apartamento da prima de um amigo brasileiro junto com um animado grupinho que, aopisar na calçada, resolveu se dividir entre os que queriam pegar um cinema e outra facção que advogava a

causa imediata de um restaurante bom e barato nas proximidades. Segui com a turma do restaurante, pois

comida e bebida sempre me atraíram bem mais que luzes e sombras projetadas numa tela branca dentro

de uma sala escura.

No dia seguinte, encontrei aquele amigo, que tinha se unido ao grupo do cinema, e fiquei sabendo que eles

toparam de frente com ninguém menos do que o meu endeusado cronópio, o Julio Cortázar. “Ele é alto pra

caralho”, resumiu meu amigo, que não ousou abordar o meu ídolo. Puta que pariu, pensei, me pelando de

ciúme do amigo que estivera frente a frente com o Cortázar, ainda que por breves segundos. Eu é quem

devia estar lá no lugar dele, cacete. Desde esse dia tenho procurado não abdicar da sétima arte em favor deum prato de comida fumegante e uma taça de vinho tinto ou branco. Vai que o fantasma do homem me

aparece no caminho do cinema.

 

Quatro anos mais tarde, porém, o sonhado encontro se efetivaria por fim, naquela mesma cidade tão

 burguesa quanto poética, tão estrangeira quanto íntima da minha rêverie literária, conforme pretendo

contar a seguir, depois de mais umas breves considerações biográficas acerca do homem que, vivo ou

morto, está fazendo 100 anos agora. O fato é que não consigo imaginar o Cortázar morto. Não me refiro,claro, ao seu cadáver, e menos ainda ao seu esqueleto lá no Cemitério de Montparnasse onde o

enterraram. O que me é difícil aceitar é um mundo sem a presença do cronópio-em-chefe. Cortázar pra

mim é uma entidade eterna, infinita, inesgotável, imperecível. Tenho certeza de que, não fosse por aquela

megacagada que o levou deste mundo, ele ainda seria “alguém que anda por aí”, nome de uma de suas

coleções de contos, publicada ainda em vida do autor. Mas a dolorosa verdade é que “cuando alguien está

muerto, muerto está por más que sonría”, como escreveu sua grande amiga, a poeta Alejandra Pizarnik,

ela mesma morta por suicídio aos 36 anos de idade.

Como diria eleaticamente Parmênides, sempre cheio de razão, pra alguém morrer é preciso primeiro ternascido, o que Julio Cortázar fez, ou fizeram por ele, no dia 26 de agosto de 1914, em Bruxelas, Bélgica, em

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meio aos morticínios inaugurais da Primeira Guerra Mundial. Seu pai era um encarregado comercial da

embaixada argentina e trazia com ele a mulher grávida quando o kaiser lançou as tropas alemãs sobre o

país. Sua mãe, dando à luz, ouvia obuses explodindo nas proximidades. “Meu nascimento foi sumamente

 bélico”, conta o escritor, não sem uma ponta de orgulho pela bravura de María Herminia.

O exército do kaiser deixou a família Cortázar se mandar para um país neutro, a Suíça, primeiro, a

Espanha (Barcelona) logo depois. Quando a guerra acabou, com aquele saldinho de dezenas de milhões demortos, feridos e inválidos, os Cortázar puderam voltar pra casa, Julito já com seus 4 anos. Uma vez

instalados em Buenos Aires, no subúrbio de Banfield, Julio e sua irmã mais nova se viram órfãos de pai,

que se mandou de casa sem dar um pio e nunca mais foi visto, vivo ou morto, deixando a mãe numa

soleníssima mierda.

 A penúria da família o fez renunciar à universidade e o levou a cursar uma escola normal e, depois, uma

licenciatura, de onde saiu professor de escola secundária em cidadecas do interior argentino. Mas, mesmo

sem diploma superior, acabou dando aulas também numa universidade periférica, a de Cuyo, pois, leitor

compulsivo desde a infância, tinha uma cultura geral que o situava num nível bem superior à média dosprofessores universitários da área de humanas.

Daí, num belo dia de 1948, pra encurtar a história, conheceu Aurora Bernárdez, nascida em 1920 e ainda

 viva e forte em seus atuais 94 anos. E começou a namorar a moça, que viria a ser a sua grande parceira

intelectual de todos os tempos. Excelente e premiada tradutora das mais finas iguarias literárias, Aurora é

sempre descrita por seus contemporâneos como uma mulher mignon, energética e dona de um brilho

intelectual que a todos encantava. O romancista mexicano Carlos Fuentes, que a conheceu em sua casa em

Paris, a descreve como “uma mulher brilhante, miúda, solícita, feiticeira e enfeitiçante, atenta a tudo que

acontecia na casa”. O Vargas Llosa, que esteve com ela faz alguns anos, corrobora e atualiza essa imagem:

“Pequena, miúda, com esses grandes olhos azuis cheios de inteligência e a mesma acachapante vitalidadede outrora.”

Cortázar se mandou de mala e cuia pra Paris em 1951, Aurora foi no ano seguinte. O escritor queria se ver

o mais distante possível do peronismo triunfante na Argentina. O ambiente de Buenos Aires, em especial,

lhe parecia “asfixiante”, como o descreve, com seus círculos culturais academicistas ultracaretas, da

gomalina nos cabelos dos caballeros aos botões do jaquetão de Jorge Luis Borges – que, no entanto, se

tornou seu amigo. Cortázar sentiu que não acharia ali seu lugar enquanto o general Juan Domingo Perón

imperasse sobre a vida política da nação e sua mulher Evita sobre o imaginário popular, tão carente de

uma mãezona provedora, ainda que apenas no plano simbólico, percepção essa que ele viria a reavaliaranos depois.

 

 V ejo com alguma reserva essa narrativa do autoexílio antiperonista do Cortázar. Tudo bem que a ascensão

das massas organizadas por um líder manipulador, de corte populista e militar, ainda por cima, inspirou

receios genuínos nas elites bem pensantes de todos os matizes ideológicos na Argentina. Embora longe de

integrar algum tipo de “elite bem pensante”, Cortázar somava-se aos que julgavam presenciar o

nascimento de uma ditadura fascistoide, dada a fascinação que Perón sempre teve por Mussolini, a quemchegou a conhecer na Itália, em 1941, quando esteve por lá como adido militar junto à embaixada de seu

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país.

O historiador argentino Federico Finchelstein, autor de Fascismo Trasatlántico, explica a ideia totalitária

da política que está na origem do peronismo, segundo a qual todo mundo tem que ser peronista, seja de

esquerda ou direita. Nesse sentido, diz Finchelstein, “o peronismo é inclusivo mas apresenta esta inclusão

como uma obrigação: ou se é peronista ou não se é argentino”. Claro que a perspectiva de viver num tal

ambiente político deve ter provocado arrepios em mentes livres como a de Cortázar e de um de seuspadrinhos literários, Jorge Luís Borges. Mas acho que o nosso cronópio estava era profundamente

seduzido pela ideia de viver na cidade mais literária do mundo, no auge do existencialismo, com muita

filosofia, garotas liberadas e espessas nuvens de fumaça de Gitanes nos cafés e nas caves de jazz.

Corroborando meu achismo, vi numa famosa entrevista à tevê espanhola, de meados dos anos 70,

facilmente localizável no YouTube, o bicho declarando que se mandou pra Europa simplesmente porque

lhe deu “la santa gana”, o que ele na certa faria com ou sem Perón no poder. Além disso, como podemos

ler num texto biográfico seu de Los Pescadores de Esponjas, ainda adolescente caiu-lhe nas mãos um

exemplar de Ópio, do Jean Cocteau (traduzido no Brasil por este que vos fala para a Editora Brasilienseem meados dos 80), que lhe produziu um sério estalo na moringa. Diz ele: “Num café, comecei a leitura de

Ópio, e o caminho de Damasco foi fulgurantemente para mim o caminho de Paris...”

E fez muito bem ele em tomar o caminho de Paris, onde pôde construir as condições ideais para escrever

um dos romances mais porretas da prosa latino-americana de todo o século XX – e, cá entre nós, do XXI

também, até agora. Em outro lugar ele diria que “Paris – ou melhor, a Europa – me abriu um horizonte

total, planetário, que eu não tinha em Buenos Aires. Não estou dando uma receita, falo apenas por mim,

mas sei que sem Paris não teria escrito o que escrevi”.

O casório com Aurora, de papel passado, durou até 1967, mas sua ex se manteve uma fiel e dedicada amigaaté o trágico fim da vida do escritor. Quando está em Paris, ela ainda fica no mesmo antigo galpão

adaptado para residência por um arquiteto amigo do casal, no fim dos anos 50. Foi ali, por sinal, que Julio

terminou de faturar Rayuela, em 1962. (O romance saiu no ano seguinte.) Cortázar tinha comprado e

reformado o decrépito galpão, uma antiga estrebaria, com os 15 mil dólares recebidos da Universidade de

Porto Rico pela tradução da prosa completa do Edgar Alan Poe, uma senhora bolada nos anos 50, quando

os preços dos imóveis também não atingiam os níveis delirantes de agora. Carlos Fuentes lembrava-se que

o galpão-residência tinha três andares “e escadas que nos obrigavam a descer subindo, segundo uma

fórmula secreta de Cortázar”.

 

Não vou ficar aqui enumerando las mujeres de Cortázar, que foram sem dúvida bem mais que as três

oficiais – Aurora, Ugné (que nome!) Karvelis e a derradeira paixão de sua vida, a americana Carol Dunlop

–, mas não resisto a mencionar a uruguaia Cristina Peri Rossi, escritora, poeta, ensaísta, feminista e sei lá

que outros atributos – ah, sim, radialista militante ainda em atividade em Barcelona, onde mora há mais

de quarenta anos. Cris, como a chamavam, era a típica intelectual de esquerda quando conheceu Cortázar

em Paris, no inverno de 1974.

Cá entre nós, uma gata. Basta pescar uma foto dela na internet pra ver: cabelo escorrido, carinha de

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 boneca pop, sem maquiagem, lábios carnudos a inspirar torpes fantasias ósculo-felacianas. Era uma jovem

exilada política e existencial, só que na Espanha, onde já morava. Cris aparentava ter menos que seus 33

anos, da mesma forma que o Cortázar, aos 60, parecia ter apenas alguns aninhos a mais que ela. (Quando

conheci o Cortázar em 79, eu com 29, ele em seus 65, sem uma ruga no rosto e nenhum fio branco na basta

e comprida cabeleira, pude constatar o prodígio que sempre intrigou seus amigos, vários dos quais diziam

que ele tinha a síndrome de Dorian Gray.)

Cris Rossi dava um tempo na França, fugindo do alto risco de uma prisão ou coisa pior na Espanha, por ter

se envolvido com a militância antifranquista. Cortázar já era separado de Aurora e vivia um

relacionamento conturbado com sua agente literária, a lituana Ugné Karvelis, já falecida, mulher culta,

cheia dos canudos universitários, tradutora, diplomata, 20 anos mais jovem que ele, mas, ao que parece,

dona de uma personalidade algo pontiaguda. Cortázar pranchou de amores pela bela uruguaia, que, depois

de um breve namoro com seu colega de letras, saltou fora do leito cronopial. O problema ali era

incontornável: ambos gostavam de mulher.

 

Cortázar não chegou a cortar os pulsos por ter sido preterido por sua amada lésbica – nem os dele, nem os

dela –, contentando-se em dar vazão poética à sua dor de corno em quinze poemas de amor que não

hesitou em postar pra sua safossafada musa. Num deles, o bardo tenta se resignar dizendo que

 

Tudo acontece num reflexo de crepúsculo

teu cabelo teu perfume tua saliva.

 E ali do outro lado te possuo

enquanto jogas com tua amiga

os jogos da noite.

 

Noutro poema, também em minha canhestra tradução, o eu lírico tenta simular um dar de ombros:

 

 Na realidade pouco me importa

que teus seios durmam

na azul simetria de outros seios.

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 Eu os teria pisoteado

com a cosquinha do meu toque

e tu terias rido justamente

quando o necessário e esperável 

era que soluçaras.

 

Confesso que essa ideia de seios que dormem na azul simetria de outros seios me deixam de pau duro,

lírico incorrigível que esse bastardo sempre foi. O fato é que a sua Cris-que-não-lhe-quis tornou-se grande

amiga dele até o fim, a exemplo de Aurora. Ela gostava de lembrar ao amigão mais velho: “Da mesma

maneira que eu devo ser das poucas uruguaias que não conhecem Buenos Aires, você é o único argentinoque não fez psicanálise.”

Em 2000, Cris publicou uma biografia sobre seu ex-quase-amante na qual revelava que ele tinha morrido

de Aids – essa é a tragédia a que eu me referia –, e não de leucemia, como se divulgou na época. Cristina

explica que Cortázar tinha sofrido uma severa hemorragia estomacal em 1981, da qual se salvara graças a

uma transfusão de sangue – sangue esse adquirido ilegalmente de imigrantes contaminados pelo vírus da

 Aids, doença misteriosa que logo se tornaria endêmica no planeta. Muita gente também se contaminou

daquela maneira na França, gerando um grande escândalo que culminou com a queda do ministro da

Saúde do país.

O pior da história é que ele acabou contaminando sua última companheira, a Carol Dunlop, nascida em

Massachusetts, Estados Unidos, e não no Canadá como muitos creem. Tanto ela quanto ele receberam o

mesmo equivocado diagnóstico oficial de “leucemia”. Carol, que tinha perdido um rim numa cirurgia, anos

antes, mostrou-se menos resistente que seu companheiro e morreu antes dele, em 1982. “Estou num poço

negro e sem fundo”, escreveu Cortázar à sua amiga e tradutora Silvia Monrós-Stojakovic, depois da morte

da querida companheira. “Estou tão só e tão desabitado.”

Neste ano da graça de 2014, quando se lamentam os trinta anos da morte do escritor (fevereiro de 1984) e

se comemoram os 100 de seu nascimento, Cristina voltou a reiterar numa entrevista ao jornal espanhol El  País esse fato já revelado por ela em 2000 na biografia, mas que a mídia botou pra escanteio. A razão

desse silêncio talvez resida na tendência a negar que o cronópio-mor teria sucumbido ao “câncer gay” ou

“peste junky”, como a Aids era chamada nos primórdios da epidemia.

 

Bueno, acabo de matar meu personagem de Aids e nem sequer mencionei um fato de grande importância

na vida do meu herói literário, embora, não em sua obra, ou pelos menos não na melhor parte dela. Falo

da virada esquerdista do escritor depois de sua primeira visita a Cuba, em 1963, quando caiu de amorespor El Comandante, e de sua radical revisão da postura antiperonista que havia contribuído para o seu

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autoexílio francês a partir de 1951. Numa entrevista de 1972 a Barnechea, Cortázar faz seu mea-culpa

ideológico: “Naquele momento, de fato, fui incapaz de distinguir entre Perón e o peronismo, entre o

governante ambíguo e a formidável tomada de consciência que havia desencadeado sem ser capaz de levá-

la às últimas consequências, ou seja, à revolução.”

Um Cortázar convertido ao socialismo revolucionário latino-americano, com seus dogmas, violências e

imensos equívocos históricos, não parece caber muito bem na valise do cronópio, mas não é de se espantarque algo assim tenha acontecido, já que ser de esquerda e intelectual era quase obrigatório numa época em

que toda a América do Sul, e boa parte da Central, se achava sob o jugo de ditaduras de direita pró-

americanas com especial predileção por pendurar seus oponentes em paus de arara para lhes aplicar fartas

doses de choques elétricos, entre outros tipos de choque, além do extermínio puro e simples.

No entanto, o cara que chegou a dizer que Cuba era um país de cronópios, e também, segundo Vargas

Llosa, que os crimes da era stalinista tinham sido meros acidentes de percurso do comunismo, foi

excomungado por Fidel Castro, em 1971, por pedir informações sobre o desaparecimento do poeta Heberto

Padilla, numa carta pública endereçada a El Comandante, assinada, além dele, por nomes como Simonede Beauvoir, Sartre, Italo Calvino, Marguerite Duras, Pasolini, Susan Sontag, Vargas Llosa, entre outros. A 

carta começava assim: “Cremos ser nosso dever comunicar-lhe nossa vergonha e nossa cólera. O

lastimável texto da confissão que Heberto Padilla assinou só pode ter sido obtido por meio de métodos que

são a negação da legalidade e da justiça revolucionárias.”

Fidel, a cavalo de sua espetaculosa e infatigável retórica revolucionária, retrucou chamando os intelectuais

cubanos e estrangeiros que tinham apoiado Padilla de “escritores de lixo e ratos que pretendem converter

em coisa transcendental seu mísero papel de tripulantes de embarcações que naufragam nos mares

tempestuosos da história”. Mesmo tendo sua obra rotulada de lixo e seu caráter equiparado ao de um

roedor que transmite doenças e devora a seara alheia, Cortázar, até onde eu sei, nunca deixou de ser umapologista do socialismo cubano, com ditadura e tudo, nem de se engajar na causa revolucionária na

Nicarágua, da qual se tornou arauto internacional, antes e depois da tomada de poder pelos sandinistas.

Nos hiperpolarizados anos 70, bem como agora, sempre dei preferência ao Cortázar desideologizado de

 Rayuela, que bota a consciência histórica de Oliveira, seu personagem principal, no balaio de uma

estupenda crise existencial por incompatibilidade absoluta com o mundo administrado. Lembro de uma

cena em Rayulana qual um amigo vai visitar Oliveira para lhe propor participar de “umas confusas

atividades políticas”. Um dos tópicos da discussão é “a parte de chantagem de toda ação com um fim

social, na medida em que o risco corrido serve ao menos de paliativo para a má consciência individual”. Nomesmo trecho, ele dá a seu alter ego literário a tarefa de dizer: “Conhecia de sobra alguns comunistas de

Buenos Aires e de Paris capazes das piores vilezas, mas resgatados, em sua própria opinião, pela luta, por

ter que se levantar no meio do jantar para correr a uma reunião ou completar uma tarefa.” Mas essa ainda

era a época em que Cortázar preferia Charlie Parker e Louis Armstrong a Che Guevara e Fidel Castro.

 

E aqui, ladies and gentlemen, apocalíticos e integrados, alienados e revolucionários, burgueses e

proletários, prestamistas em dia com o Baú da Felicidade e inadimplentes do BNH, chego por fim, enfim efinalmente à ponta do fio condutor que se liga ao meu gancho narrativo: o meu encontro pessoal com Julio

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Cortázar em Paris.

Eba!

Mas antes (Hahaha! Te peguei!) preciso falar mais um pouco do crítico Davi Arrigucci Jr., professor

aposentado das Letras na USP já citado aqui, que era amigo de um amigão meu, o sociólogo Gilberto

Felisberto Vasconcellos, o Giba, guru da gurizada ilustrada de esquerda que comia macarrão noMontechiaro, no Bexiga, e nadava em cerveja no Riviera e no Ponto 4, sempre desconfiando que na mesa

ao lado tinha um agente do Dops, do DOI-Codi, do SNI, senão mesmo da cia.

Davi é o pivô desta história e é impossível falar do meu encontro com o Cortázar sem falar dele, o elo

propiciador daquele encontro. Ler O Escorpião Encalacrado, lá por 1974, me fez reinterpretar toda a

leitura que eu havia feito “a seco” do Cortázar, sem o repertório de referências culturais explícitas ou

implícitas nos contos e em Rayuela. A poderosa luz analítica, vazada num texto cristalino e envolvente, à

la Antonio Candido e Edmund Wilson, que Arrigucci lança sobre a obra do argentino não desmanchou, ou

sequer esmaeceu, muito pelo contrário, o intenso prazer que suas belezas desruptivas e estranhezasformais me haviam provocado, com destaque, você já sabe, para o Rayuela, o momento mais radical

daquela obra, segundo o ensaísta.

Na verdade, era a primeira vez que eu lia um ensaio crítico que dialogava em chave analítica de altíssimo

nível com a obra de um escritor que, àquela altura, eu já podia dizer que conhecia bem. (Em 1976 me cairia

nas mãos outro ensaio que cumpriria o mesmo papel, Ao Vencedor as Batatas, um clássico do Roberto

Schwarz sobre a obra do Machado de Assis. Esse ensaio viria a cair em minhas mãos graças ao Giba, junto

com verdadeiras aulas a respeito.)

O meu amigo Giba tinha papado uma bolsa de estudos de pós-doutorado em Paris, no ano de 1978, e,antes de seguir viagem, recebeu do Davi a incumbência de levar ao Cortázar um presente, o disco Bicho,

do Caetano Veloso, que tinha saído naquela época. O Cortázar já era então amigo pessoal do Davi, a quem

conhecera em São Paulo, em 1973, apresentado por um amigo em comum, o poeta Haroldo de Campos.

Depois disso, viram-se outras vezes, inclusive em Paris, onde Davi morou por um ano.

O Giba já estava há quase um ano em Paris, sem nunca ter se mexido pra levar o disco do Caetano pro

cronópio argentino. Ele nunca foi grande fã do Cortázar, a quem, no fundo, considerava um autor pra

consumo de hippies ligeiramente cultivados, no que tinha a sua razão, tamanho era o número de

cabeludos e, sobretudo, de babies flower-power que tiravam O Jogo da Amarelinha pra ler em voz altanuma mesa de bar algum trecho entusiasticamente sublinhado durante uma trip de ácido ou zoeira de

fumo, estado mental apropriado, segundo muitos acreditavam, a se curtir numa naice “o jogo com a

linguagem ao limite da destruição e do silêncio”, como cravou o Davi em seu ensaio, decerto tomando café

com água mineral, únicos combustíveis que a sua lucidez admite na hora de escrever.

Cortázar já era então um ativo “homem de esquerda”, mas, por causa do clima lúdico, anticonvencional,

estranhado e romântico de Rayuela, e de muitos de seus contos, tornara-se um autor canônico para o

maluquete ilustrê padrão da época. Tratava-se de uma dessas contradições que faria um autêntico

cronópio dar estrelas de contentamento no meio da avenida Paulista, mas que não inspirava grandeentusiasmo num sociólogo de esquerda, com vasta cultura acadêmica de viés nacionalista, como o Giba.

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Foi aí que as musas do ócio criativo, intercedendo junto aos fados acadêmicos e demais canais

competentes, colhidos num momento de profunda distração, descolaram-me uma bolsa de estudos

(economia, blergh!) em Paris, em 1979. Cheguei lá no verão e logo no primeiro dia encontrei o Giba – e o

disco abandonado do Caetano, com a dedicatória do Davi Arrigucci pro Cortázar. Não teve conversa. No

dia seguinte, acordei no studiô caótico do meu amigo, na rue des Boulangers, onde tinha dormido numcanto naquela primeira noite, entre garrafas vazias de cerveja tcheca, pratos repletos de bitucas de cigarro

e pilhas e mais pilhas de livros, e chutei meu amigo sociólogo da cama com o comando peremptório e

irretorquível: “Vamos já ligar pro Cortázar, porra!”

Ligamos, e nada. Ou o cara não tava em casa ou o número da casa dele que o Davi fornecera tinha

caducado. Mas o endereço tava lá: 68, rue St. Honoré. Depois de um banho, um beque de haxixe e um

café-calvá (de calvados, a pinga de maçã francesa) no bar da esquina, nosso competente e indispensável

desjejum, nos man-damos com nossas barbas e cabelões compridos e o disco do Caetano debaixo do braço

pra rive droite, à la recherchedo grão-mestre da veneranda ordem cronopial do Ocidente a leste doOriente. Era um dia quente de verão, razão pela qual resolvemos nos refrescar com um demi , nome do

chope na França, antes de alcançar o simbólico número meia-oito da rue St. Honoré. Eu não sabia ainda,

mas em Maio de 68, em meio ao reboliço anárquico das manifestações estudantis nas ruas parisienses,

Cortázar tinha rodado panfletos com textos seus, decerto na linha do “É proibido proibir”, “A imaginação

no poder” e “Sejamos realistas: exijamos o impossível”, e saído à rua para distribuí-los nas barricadas dos

revoltosos embriagados de liberdade e vinho barato.

E agora eu estava a um passo de entrar na toca do cronópio, façanha que deixaria meus coleguinhas do

Clube da Serpente paulistano babando a mais verdolenga e visgosa baba, não del diablo, como no famoso

conto do Cortázar, mas sim da velha e boa inveja.

Naquela época, o típico prédio parisiense, de no máximo seis ou sete andares, tinha um portão sempre

aberto, ou fechado mas destrancado, que comunicava a calçada com uma cour interna, a qual dava acesso

à escada e, em alguns casos, também a um pequeno elevador de porta pantográfica. Nessa cour, ou

pequeno pátio interno, havia uma fileira de caixas do correio, uma pra cada condômino. Essa era a

configuração do meia-oito da rue St. Honoré. Só que nenhuma das boîtes à lettres trazia o nome do

Cortázar. A concierge, cujo minúsculo apartamento ficava no térreo, com a porta se abrindo pro pátio,

apareceu pra saber o que queríamos e confirmou que ali não morava nenhum escritor argentino chamado

Julio Cortázar.

Meu desapontamento desabou feito um vaso de vidro cheio de bolinhas de gude a pipocar no chão duro da

realidade. Não ia ser daquela vez que eu iria conhecer pessoalmente meu escritor favorito, meu

companheiro de todas as horas na solidão do Butantã perfumada pelos eflúvios estercorários do rio

Pinheiros. Merde alors! – devo ter exclamado no meu francês precário.

 

O Giba expressou seu grande alívio por ter se livrado de um encontro que ele prefigurava maçante com umescritor que ele pouco lera e menos ainda admirava, e sugeriu que tomássemos a única providência cabível

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no momento, que era correr até o café mais próximo pra tomar mais um demi , ver a mulher que passa e

estudar o Pariscope em busca de um filme noir dos anos 40 pra assistir na Cinémathèque do Palais de

Chaillot, atividade a que ele se dedicava com afinco por aqueles tempos.

Ocorre que, ao sairmos da cour do 68 pra calçada da St. Honoré, e darmos os primeiros passos rumo ao

refrescante bálsamo que nos aguardava no café da esquina, pude constatar que o prédio ao lado do 68

trazia um 68-bis inscrito na plaquinha, como era, e talvez ainda seja, normal em Paris, por algumamisteriosa razão numerológica. Sem pestanejar empurrei o pesado portão do 68-bis e entrei, com um Giba

relutante seguindo atrás, sem o menor saco para novas prospecções cronopiescas. Só que dessa vez lá

estava, na portinhola de uma das caixas de correio coladas a uma parede, a inscrição tão ansiada: “M.

Cortázar”! Sim, monsieur Cortazárr, como pronunciam os franceses, morava ali, no meia-oito bis, senha

mágica que parecia augurar um repeteco da zoeira libertária que eclodira onze anos antes naquela mesma

cidade – naquela mesma rua!

Mas, e agora? Em que andar morava o Cortázar, em qual apartamento? Eu já estava a ponto de tentar

descobrir isso subindo a todos os andares e apertando a campainha de todos os apartamentos, depois deconstatar que a concierge não estava em seu costumeiro reduto para nos dar a informação preciosa,

quando o acaso, essa força astral que propicia mais viradas importantes numa história de vida, ou mesmo

na História maiúscula da humanidade, do que a velha lógica marmórea do seu Aristóteles & Cia., irrompeu

com tudo na cena, inicialmente sob a forma de vários jovens branquíssimos, loiríssimos, eslavíssimos, que

desciam a grande escadaria do prédio carregando apetrechos de filmagem, como araras, cruzetas, fios

enrolados, caixotes prateados, uma pesada câmera de vídeo e outra de cinema, uma Arri 16 milímetros,

entre outros badulaques. Por último vieram umas longas pernas que sustentavam um tronco também

espichado, sobre o qual se assentava a cabeça daquele cara cuja fotografia aparecia na orelha da minha

edição brasileira de O Jogo da Amarelinha, o próprio, messiê Cortazárr em pessoa. Yeah!

 

Não poucos de seus amigos escritores se deixaram impressionar por sua figura física e o recordaram de

forma vívida e carinhosa depois de sua morte. Nas palavras de Gabriel García Márquez, por exemplo,

“Cortázar não apenas falava com uma profunda voz de órgão com erres arrastados, como também com

suas mãos de ossos grandes como não lembro de outras mais expressivas”. Disse também que “Era o

homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de moleque sapeca dentro de um interminável

sobretudo preto que mais parecia a sotaina de um viúvo, e tinha os olhos muito separados, como os de um

 bezerro, e tão oblíquos e diáfanos que poderiam ser os do diabo se não estivessem submetidos ao domíniodo coração”.

Já Mario Vargas Llosa se lembra de como conheceu Cortázar em Paris numa festa na casa de um amigo

comum: “Aquela noite, em fins de 1958, me sentaram junto a um rapaz muito alto e magro, de cabelo

curtíssimo, imberbe, de grandes mãos que movia ao falar.”

 Ao revê-lo anos depois, em Londres, onde morava, com Cortázar já transformado num Che Guevara

surrealista da literatura, sobretudo depois de Maio de 68, Vargas Llosa viu que seu amigo tinha deixado

crescer “uma barba arruivada e imponente de profeta bíblico”. Outra mudança curiosa, esta de naturezacomportamental, chamou sua atenção: “Me fez levá-lo pra comprar revistas eróticas e falava de marijuana,

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de mulheres, de revolução, como antes de jazz e de fantasmas.”

Carlos Fuentes, por sua vez, viu Cortázar nos anos 60 como um “jovem descabelado, sardento, imberbe,

desengonçado, com uma calça de brim e camisa de manga curta, desabotoada no pescoço; um rosto, então,

de não mais de 20 anos, animado por uma gargalhada profunda, um olhar verde, inocente, de olhos

infinitamente grandes, separados, e duas sobrancelhas sagazes, unidas entre si, dispostas de modo a

lançar uma maldição cervantina a todo aquele que se atrevesse a violar a pureza de seu olhar.” Umaestampa muito diversa, como Márquez salienta, do “senhor velho, com grossas lentes, cara afilada, cabelo

sumamente aplacado pela gomalina, vestido de preto e com um aspecto severo”, que ele vira em foto na

revista literária argentina Sur, anos antes. Fuentes chegou a pensar que o Cortázar jovial que o recebia em

casa era filho do sujeito velhusco e sisudo da foto.

 

Cortázar registrou nossa presença no pátio do seu prédio com uns olhos surreais de tão azuis – ou seriam

mesmo verdes, como afirmou o colombiano? –, atrás dos quais devia se esboçar algum receio sobre nossasidentidades, já que três anos antes uma violenta ditadura militar se instalara em seu país, fazendo

 pendant com a brasileira, e ele, antes apenas um exilado existencial em fuga boêmia do peronismo, tinha

 virado agora persona non grata de um regime disposto a encurtar peremptoriamente o tempo de vida de

seus adversários, e da forma mais dolorosa possível, em especial os mais atuantes nos foros internacionais,

como era o seu caso.

Inspirei todo o ar disponível naquele pátio e, com o Bicho caetânico na mão, fui pra cima dele, trêmulo e

abestado como só eu mesmo poderia ser ali: “ Me-me-messiê Co-o-ortazárr... nous... ici... nous...” – me

escapava o sommes – “... nous... amis... des amis... de Davi... Davi du Brésil ...”

 Até um pinguim afônico da Patagônia falaria um francês melhor que aquele patuá tartamudo que eu

esboçava ali. Me senti o último pascácio da Stultífera Navis, e não estava enganado. O G iba não disse

nada, ocupado que estava em se espandegar de rir da minha abordagem. O que era aquilo?! – Cortázar

deve ter pensado, tranquilizando-se, porém, quando viu o disco do Caetano que eu lhe estendia, com a

dedicatória do Davi escrita num espaço branco da própria capa. Ali deve ter tido a plena certeza de que

não éramos agentes da ditadura argentina, nem nada remotamente parecido, mas só dois malucos que o

Davi Arrigucci tinha, sabe-se lá por quais motivos, admitido como amigos, a ponto de encarregá-los de lhe

enviar aquela lembrança musical.

O homem foi de uma simpatia inigualável com a gente, e, num português perfeito que fez o meu francês da

primeira abordagem soar ainda mais ridículo, começou contando que tinha visto um show do Caetano em

São Paulo, provavelmente o show que marcou seu retorno do exílio, no Tuca, o teatro da Universidade

Católica, no bairro de Perdizes.

Eu mesmo tinha assistido em aura de encantamento a esse show histórico, repetido duas ou três vezes

numa dada semana em São Paulo, com a casa abarrotada de gente até o teto, e não era impossível,

portanto, que eu e o Cortázar o tivéssemos visto na mesma noite, possibilidade que aventamos ali no pátio,

conversando de pé, enquanto a equipe de loirinhos da tevê estatal polonesa o esperava na rua para darprosseguimento ao ar livre a um documentário que faziam sobre o grande escritor argentino de esquerda

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exilado em Paris. Argumentei, porém, que teria sido muito difícil eu não ter notado sua presença, de 1,93

metro, no foyer ou na plateia, observação que, do alto dos meus próprios 192 centímetros, lhe pareceu

engraçada.

Uma garota com cara de produtora de tevê, num francês rascante não muito mais fluente que o meu, veio

avisar o Cortázar de que estavam todos na van à sua espera. El grancronópios e despediu, então, de nós,

com mil desculpas por não nos convidar a subir ao seu apartamento e nos passando o número certo de seutelefone, que havia, de fato, mudado. Depois de efusivos apertos de mão, pediu que lhe telefonássemos

dali a dois meses, ou seja, em fins de setembro, quando estaria de volta de uma longa viagem. Aí, sim, nos

entregaríamos com toda a calma e os licores adequados ao rituais da confraternização.

Guardei meu seboso caderninho de anotações no bolso com o número do telefone do Cortázar anotado

nele, com a certeza de que ali nascia uma amizade imorredoura prestes a se traduzir em risonho e estreito

convívio naquele ano que me cabia passar em Paris como estudante bolsista de uma pós em economia.

Ocioso dizer que a partir do dia 15 de setembro daquele ano passei a discar aquele número todos os dias,

de duas a três vezes, pelos seis meses seguintes, sem nunca ser atendido por ninguém, vivo ou morto. Ouel hombre tinha dado o número errado, ou tinha mudado de endereço, ou sei lá que porra aconteceu.

Sempre que eu me via nas proximidades da rue St. Honoré, dava uma passadinha lá pra espiar a cour do

68-bis, na esperança de que o milagre cronopiesco se repetisse, o que jamais aconteceu.

 

Cerca de um ano e meio depois, na manhã do dia em que eu devia me pirulitar de Paris, finda a bolsa e

findos meus fundos no fundo do bolso furado, liguei pela última vez pro Cortázar. Liguei. Como sempre,

uma campainha parecia soar do lado de lá. E, como sempre, ninguém atendeu aquele último telefonema.

Penso hoje se não seria patafisicamente possível que eu um dia vá a Paris, passe a mão num telefone, liguepraquele mesmo número, na hipótese remota de achar onde o anotei num dos meus velhos caderninhos

que ainda tenho guardados e, do lado de lá, soe a voz do Cortázar, em seu português escorreito, de vogais

abertas. “Ô-lá, como está?”, ele dirá ao ouvir meu nome, do qual ele por certo não se esqueceu.

“E Davi? Está bem? Terá me mandado mais algum disco de Caetáno?”

Digo que sim, que o Davi mandou muitos outros discos do Caetano que saíram desde 1979, e marcaremos

de nos encontrar no Old Navy, o bar michureba do Boulevard Saint-Germain que ele frequentava nos anos

50 pra escrever. García Márquez, então um escritor desconhecido, conta que o encontrou lá um dia, depoisde o esperar por uma hora. Viu quando o pilulão se sentou num canto, puxou um caderninho e uma velha

caneta-tinteiro que manchava os dedos dele, e mandou tinta no papel. Sem coragem de abordar o escritor

que tanto admirava, ficou observando o homem de longe: “Fiquei vendo ele escrever durante mais de uma

hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada mais que meio copo de água mineral, até que começou

a escurecer na rua e ele guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno debaixo do braço como o escolar

mais alto e mais magro do mundo.”

Boa dica do Gabo. Se eu chegar ao Old Navy e ele já estiver lá, escrevendo com sua caneta-tinteiro, não

serei eu a interrompê-lo. Talvez peça um demi  e me ponha a observá-lo por alguma superfície espelhadaatrás do balcão até me sentir o perfeito fama deslumbrado e pedir a conta e cair fora do Old Navy pra

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dentro da noite mítica da Paris do Cortázar, me sentindo um Oliveira em busca de sua Maga perdida no

fundo do Sena, no fim do tempo.