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Um Drama Na Caca & Outros Contos - Anton Tchekhov

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  • ANTON TCHEKHOV

    UM DRAMA NA CAA

    &

    Outros Contos

    Traduo: J. Ferreira Mezes

  • ANTON TCHEKHOV

    UM DRAMA NA CAA

    1936 by Tchekhov, AntonClassificao: Rssia Sculos XIX e XX - FicoTtulo Da Edio Francesa: Un Drame La ChassePublicado em: 2004Traduo: J. Ferreira Mezes

    Anton Pavlovitch Tchecov nasceu em Taganrog, 29 de janeiro de 1860 faleceu Badenweiler, 15 de julho de 1904Foi um mdico, dramaturgo e escritor russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.Em sua carreira como dramaturgo criou quatro clssicos e seus contos tm sidos aclamados por escritores e crticos.Tchecov foimdico durante a maior parte de sua carreira literria, e em uma de suas cartas ele escreve a respeito:"A medicina a minha legtima esposa; a literatura apenas minha amante."Tchecov renunciou do teatro e deixou de escrever obras teatrais aps a pssima recepo de A Gaivota em 1896, mas a obra foireencenada e aclamada em 1898, interpretada pela companhia Teatro de Arte de Moscou de Constantin Stanislavski queinterpretaria tambm Tio Vnia , As Trs Irms e O Jardim das Cerejeiras.

    Converso & Formatao:

    Fonte usadas no eBook: ContreraMinionPro - HelveticaNeueLT Std - Corpo 12

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    ISBN 972-38-2720-4 (recurso eletrnico)1. Romance Russo. 2. Livros eletrnicos.

  • ANTON TCHEKHOVROMANCISTA POLICIAL desnecessrio apresentar seja a quem for, em qualquer parte do mundo, o grande contista, novelista e dramaturgo russo que foiAnton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904).Descendente de servos libertados, filho de um merceeiro - que, na sua loja, tambm vendia bebidas a copo e medicamentos -,Anton, nascido em Taganrog, na costa do Mar de Azov, licenciou-se em Medicina aos 24 anos e, logo aps, dedicou-se a escreverpequenos contos. O seu enorme talento no tardou a ser reconhecido e, admitido como colaborador de um dos mais prestigiososjornais literrios da Rssia (o Novie Vremia), a fama de Tchekhov no parou de crescer. Entre as suas obras mais divulgadascontam-se "a Estepe" 1888) e as peas "A Gaivota" (1896), "O Tio Vnia" (1897) e " O Jardim das Cerejeiras" (1903)."Um Drama na Caa" - tido por alguns como o nico romance escrito por Tchekhov - uma das suas primeiras produespublicadas. Foi servido aos leitores do Nvosti Dnia, em folhetins, no ano de 1884 e 1885 e, para assinar a obra, o autor serviu-sede dois pseudnimos: "Ante" e, Depois, "Antone Tchekonnte".O romance ficou esquecido durante vrios anos, tendo sido omitido pelo prprio Tchekhov quando, em 1899, cedeu ao (bemnomeado) editor Marx os escritos das suas "Obras Completas", em dez volumes. A reedio, dita "da Niva", de 1903, emboraagregasse novos textos e compreendesse 16 tomos, tambm no acolheu "Um Drama na Caa". Em 1930, o Governo da URSSdescobriu a narrativa e, finalmente, incluiu-a em novas "Obras", desta vez verdadeiramente "completas", se bem que comprimidasem 13 volumes.Ao Ocidente, o romance s chegou em 1936, quando a "Librairie Plou" editou Un Drame la Chasse (Histoire vraie), comoapndice, hors srie, nos vinte volumes das "Oeuvres Completes d'Anton Tchkov" e, como aqueles, traduzido por Denis Roche.Se bem que o romance exiba j as caractersticas que iam tornar mpar a obra de Tchekhov, manifesta a influncia exercidasobre o autor pela produo de outro folhetinista, ento muito em voga: mile Gaboriau, "pai"do roman policiair. Logo numa das pginas iniciais, nomeado o agente Lecoq que, como se sabe, protagonizou vrias obras de Gaboriau e considerado, ainda hoje, como principalcandidato sucesso, em termos cronolgicos, do chevalier Dupin, de Edgar Poe.Com a publicao desta obra - que por si s enobrece a Fico Policial -, a coleco Vampiro homenageia Tchekhov nocentenrio da sua morte.Deixemos o leitor deliciar-se com a narrativa deste grande nome da Literatura Universal. Depois de dobrada a ltima folha - mas,adverte-se, s depois - quem quiser saber mais sobre "Um Drama na Caa" poder consultar o posfcio dedicado ao seupioneirismo.

  • SumrioAnton tchekhovLivro(Extractos Das Memriasde Um Juiz De Instruo Criminal)PrlogoCaptulo 1Captulo 2Captulo 3Captulo 4Captulo 5Captulo 6Captulo 7Captulo 8Captulo 9Captulo 10Captulo 11Captulo 12Captulo 13Captulo 14Captulo 15Captulo 16Captulo 17Captulo 18Captulo 19Captulo 20Captulo 21Captulo 22Captulo 23Captulo 24Captulo 25Captulo 26Captulo 27ComentrioPosfcioA ApostaIIIA CondecoraoA CoristaA Enfermaria Nmero SeisIIIIIIIVVVIVIIVIIIIXXXIXIIXIIIXIVXV

  • XVIXVIIXVIIIXIXA EsposaA FeiticeiraA Jia RoubadaA Morte do FuncionrioA Mulher Do FarmacuticoA NOIVAIIIIIIIVVVIANGSTIAA OBRA DE ARTEBorboletaIIIIIIIVVVIVIIVIIIBrincadeiraD-doce(1)Livro de ReclamaesNo Mar da CrimiaIIIIIIIVVO AduladorO Bilhete De LoteriaO BispoIIIIIIIVO CaadorO Monge NegroIIIIIIIVVVIVIIVIIIIXO OradorO Sapateiro e a Fora MalignaO VingadorOlhos Mortos De Sono

  • Os NervosPamonha>Um AssassinatoIIIIIIIVVVIVIIUm Caso MdicoVankaVizinhos

  • LIVRO

    (EXTRACTOS DAS MEMRIASDE UM JUIZ DE INSTRUOCRIMINAL)

  • -Q

    PRLOGO

    kual o assunto da sua obra? - perguntei, com displicncia, ao cavalheiro elegante,extremamente gil e desembaraado, chamado Ivan Kamichov que, com di culdades nanceiras e embora se confessasse um principiante, viera propor-me a publicao de um

    volumoso manuscrito. Que posso dizer-lhe?... O tema no novo... Amor...assassnio... Leia-o e o senhor mesmo ver... So ; memrias de um juiz de instruo criminal... Devo ter franzido as sobrancelhas porque Kamichov pestanejou, teve um sobressalto e

    acrescentou, de pronto: - A minha histria est escrita em velho estilo . policial, mas relata um facto real... verdadeiro.

    Tudo o que evoco passou-se perante os meus olhos, desde o princpio at ao m. Fui testemunhado sucedido e cheguei mesmo a tomar parte no caso...

    - O importante no a verdade e to-pouco indispensvel ter visto um acontecimento para odescrever de forma adequada. O nosso pblico est farto dos romances de Gaboriau e deChkliarevski. Farto de assassnios misteriosos, de detectives perspicazes e de sagazes juzes deinstruo. E claro que h leitores e leitores; falo dos que lem o nosso jornal e os seus folhetins.Qual o ttulo da sua histria?

    "Um Drama na Caa". Ora, meu caro senhor, isso no um ttulo que se veja!... E, na verdade, tenho j tantos

    originais para publicar que me praticamente impossvel aceitar outros, por melhores que sejam. Apesar de tudo, senhor, que com o meu manuscrito... Disse no ser coisa que se veja, mas

    pode quali c-lo dessa forma, antes de o ter lido?... E por que razo no quer admitir que at osjuzes de instruo saibam escrever a srio?

    Kamichov gaguejava, fazia girar um lpis entre os dedos e tinha o olhar xo nas biqueiras dossapatos.

    Acabei por sentir pena dele. Muito bem... Deixe-me, ento, o seu manuscrito, mas no posso prometer-lhe l-lo

    imediatamente. Vai ter de esperar... Por muito tempo? No sei ao certo... Volte dentro de dois ou trs meses... Oh, tanto tempo! Bom, no me atrevo a insistir...Esperarei.Levantou-se e pegou no seu gorro, um gorro de funcionrio pblico. Agradeo-lhe por me ter recebido - acrescentou. Tenho de alimentar esperanas... esperanas durante trs meses... No quero, contudo,

    roubar-lhe mais tempo...Queira aceitar os meus cumprimentos. Um momento! - exclamei, depois de ter folheado o grosso mao de folhas manuscritas com

    letra mida. A sua narrativa est escrita na primeira pessoa.

  • O juiz de instruo o senhor mesmo? Sou, sim, mas sob nome suposto. O meu papel, neste caso, foi um tanto confuso... Teria sido

    desagradvel figurar nele com o meu nome verdadeiro... Daqui a trs meses, no foi o que disse? Sim, pelo menos. Despeo-me, desejando-lhe as maiores felicidades.O ex-juiz de instruo saudou-me com um corts aceno de cabea, fez girar delicadamente o

    fecho da porta e desapareceu, deixando o seu manuscrito em cima da minha secretria. Guardei-onuma gaveta e ali permaneceu durante dois meses.

    Por ocasio de uma viagem que tive de fazer, lembrei-me dele e levei-o comigo. No comboio,comecei a leitura a meio e o que li despertou a minha ateno. Nessa mesma tarde, se bem que meescasseasse o tempo, li toda a narrativa desde as primeiras linhas at palavra "Fim", escrita emletra gorda e com notria energia. A noite, voltei a ler a histria e a madrugada surpreendeu-me apassear pela varanda, esfregando as frontes como que para afastar do esprito um pensamentoinesperado e a itivo... Era, com efeito, uma ideia dolorosa, quase insuportvel... Embora no sejajuiz de instruo nem doutorado em Psicologia julgava haver descoberto um segredo atroz, umsegredo em relao ao qual no sabia o que fazer. Perturbado, passeei pela varanda, de um ladopara o outro, procurando persuadir-me de que no devia atribuir exagerada importncia ao que,segundo pensava, havia deduzido.

    A histria acabou por ser publicada no jornal que dirijo pelos motivos que, mais adiante,revelarei aos leitores. Por agora proponho apenas que leiam a obra de Kamichov.

    No , decerto, nada de extraordinrio e nem sequer est isenta de redundncias e deimperfeies... O autor preocupa-se, por vezes, com frases de impacto... V-se que escreve pelaprimeira vez e que no particular mente destro no uso da pena, mas o seu relato de fcil leitura.

    H um tema, uma ideia mestra e, o que original, trata-se de uma narrativa "sui generis"... Emresumo, vale a pena l-la. Aqui fica.

    k

  • -O

    CAPTULO 1

    kmarido matou a mulher! Ah, que estpidos so vocs!... Passem-me o aucareiro!

    Aquelas exclamaes acordaram-me. Espreguicei-me e senti um certo mal-estar e osmembros tolhidos... Pode sentir-se um brao dormente, ou uma perna, mas, daquela vez,

    parecia-me que todo o meu corpo estava tolhido, da cabea aos calcanhares. Uma sesta numambiente sufocante, de estufa, no meio dos zumbidos das moscas e mosquitos acaba por nosenfraquecer, em vez de nos recompor.

    Alquebrado, banhado em suor, levantei-me e dirigi-me para a janela. O Sol, ainda alto,queimava com o mesmo ardor de trs horas antes. Faltava bastante tempo para que se ocultasse pordetrs do horizonte, dando lugar frescura da noite...

    O marido matou a mulher! - gritei, dando um ligeiro piparote no bico do papagaio. - Pra dementir!...

    Os maridos, meu caro, s matam nas novelas ou nos trpicos, onde fervem paixes africanas!Quanto a ns, bastam-nos os horrores dos roubos por arrombamento ou das falsi caes deidentidade!

    Roubos por arrombamento! - repetiu Ivan Demianitch com o seu bico adunco. -Ah, queestpidos so vocs!

    Que queres, meu amigo? Que culpa temos se o nosso crebro to limitado? No nenhumcrime, Ivan Demianitch, ser estpido com um calor to sufocante.

    Tu s muito esperto, meu caro, mas o teu crebro tambm se derreteu. O calor ps-te idiota.Toda a gente trata o meu papagaio por Ivan Demianitch. Adquiriu esse nome por casualidade

    no dia em que o meu criado Policarpe, ao limpar a gaiola, fez uma descoberta sem a qual o meunobre pssaro continuaria a chamar-se simplesmente "o papagaio"...

    Policarpe apercebeu-se, de sbito, que o bico da ave era assombrosamente parecido com o narizde Ivan Demianitch, o merceeiro da terra.

    E, a partir desse dia, o nome e o apelido do comerciante de nariz grande caram para sempreligados ao papagaio. A descoberta de Policarpe incorporou o animal no gnero humano e, aomesmo tempo, o merceeiro, perdendo o nome, passou a ser, na boca da gente da aldeia, o"papagaio do senhor juiz de instruo".

    Comprei Ivan Demianitch me do meu antecessor, o juiz de instruo Pospielov, juntamentecom a velha moblia de carvalho, a bateria de cozinha e todos os artefactos de Pospielov, falecidopouco tempo antes da minha nomeao. Ainda agora as paredes da minha casa esto ornadas comfotogra as dos seus parentes e, por cima da cama, encontra-se pendurado o retrato do anteriorproprietrio. No cessa de me tar, quando estou deitado... Em resumo: no tirei nenhumafotogra a das paredes e o apartamento encontra-se tal como no dia em que o tomei dearrendamento. Sou demasiado preguioso para me preocupar com o conforto e no estouminimamente interessado em negar, seja aos mortos seja aos vivos - se for essa a sua vontade -, oprivilgio de continuarem pendurados nas paredes da minha casa.

    O papagaio achava-se to incomodado com o calor como eu. Espanejava a plumagem, abria asasas e repetia as frases que lhe haviam sido ensinadas pelo meu antecessor e por Policarpe.

  • Para me entreter pus-me a observar os movimentos do pssaro, procurando, como podia, evitaro tormento do calor e dos insectos que se haviam introduzido nas suas penas. Parecia muito infeliz.

    Da antecmara chegou-me aos ouvidos uma voz grave. A que horas acorda? Depende - respondeu Policarpe. - Por vezes, s cinco, mas em outras ocasies, ca a dormir

    at de manh... natural. No tem nada que fazer... O senhor trabalha para ele? Sou o seu criado. Mas basta de conversas... Ests a incomodar-me. No vs que estou a ler?Dirigi-me antecmara. Sobre a grande arca encarnada, Policarpe, como de costume, lia um

    livro. Com os olhos semicerrados, muito prximo das pginas impressas, movia os lbios e franzia as

    sobrancelhas.A presena de um estranho, um mujique barbudo, de alta estatura, que procurava em vo

    prolongar a conversa, enfastiava-o visivelmente. Ao ver-me, o campnio afastou-se da arca, eassumiu uma atitude ] reverente. Sem tirar os olhos do livro, Policarpe, com ar aborrecido,soergueu-se.

    - Que queres? - perguntei ao mujique. - Venho da parte do senhor conde, Excelncia. Osenhor conde dignou-se enviar os seus cumprimentos a Vossa Excelncia, informando-o de que

    deve apresentar-se imediatamente em sua casa. - O conde j regressou? - perguntei, surpreendido. - Exactamente, Excelncia... Regressou ontem noite. Aqui tem uma carta dele. Foi o Diabo que o trouxe de volta! - grunhiu Policarpe. - Enquanto esteve longe passmos

    dois Veres tranquilos. Agora que regressou, vai reabrir a sua pocilga. Que pouca vergonha! Cala-te! Ningum pediu a tua opinio. Mesmo assim, digo o que tenho a dizer! Vo voltar as bebedeiras! Vo voltar os banhos no

    lago, com a roupa vestida!... E depois: "Policarpe, limpa!" trabalho para trs dias, pelo menos... Que faz hoje o senhor conde? - perguntei ao campnio. Encontrava-se mesa, quando me ordenou que viesse at aqui. E, antes de ir comer, esteve a

    pescar linha, no pavilho dos banhos... Que resposta deseja que lhe transmita? : : ; Abri a carta e li: : . ) Meu caro Lecoq: (1), Se ainda ests vivo e de sade, e se no te esqueceste do teu sedento amigo, sai do claustro em

    que vives e corre para minha casa. Regressei esta ; noite e j morro de tdio. A impacincia com quete ; aguardo in nita. Gostaria de ir, eu prprio, buscar- -te e trazer-te at ao meu covil, mas estecalor deixa- -me sem foras. Sofro e fico a abanar-me com o leque.

    Como est o teu engenhoso Ivan Demianitch? E tu?: Continuas em guerra perptua com o irascvel Policarpe? Vem, to depressa quanto possvel,

    para me dares as respostas.Teu A. K.

  • (1) O agente Lecoq, um dos mais notveis detectives dos primrdios da Fico Policial, divide, com oPre Tabaret e o chefe Gevrol a investigao de L'Affaire Lerouge (1863). Em seguida, assumiu-se comoprincipal personagem dos restantes romans policiers de mile Gaboriau, desde Le Dossier 113 (1867) a La Cordeau Cou (1873). (N. do T.)

    No era necessrio decifrar a assinatura para que eu reconhecesse a caligra a grande e fria

    traada pela mo insegura do alcolico inveterado Alexei Karnieiev.A brevidade da carta e a sua aparente jovialidade levaram-me a pensar que o meu pouco

    inteligente amigo havia rasgado muitas folhas de papel, antes de conseguir escrever aquele texto.Com astcia, havia evitado as formas gramaticais e as palavras no conseguidas

    primeira vez. Que resposta deseja que eu transmita ao senhor conde? - insistiu o mujique.Pensei durante uns momentos; qualquer homem honesto, no meu lugar, teria tambm

    hesitado.O conde gostava de mim e buscava sinceramente a minha amizade; comigo passava-se o

    contrrio. Por conseguinte, teria sido mais honesto romper, de uma vez por todas, tal relao deamizade, no levando por diante aquele jogo hipcrita. Ir visit-lo equivaleria, decerto, a mergulharde novo naquela maneira de vida que Policarpe equiparara a uma pocilga e que, antes da ida doconde para So Petersburgo, havia minado a minha sade, em regra perfeita, e debilitado o meucrebro.

    Essa vida desregrada e inslita, embora no me tivesse arruinado de nitivamente o organismo,granjeara-me, contudo, uma nefasta celebridade na religio. A conscincia no me iludia e, aorecordar o passado, corei de vergonha. Apesar disso, a minha hesitao no durou muito.

    Cumprimenta o senhor conde e agradece-lhe da minha parte o facto de se ter lembrado demim - respondi.

    - Diz-lhe que estou muito ocupado e que... Diz-lhe que...No momento em que os meus lbios iam proferir um "no" fui assaltado por uma lembrana

    penosa: a da angstia e solido de um homem jovem e cheio de vida que as circunstncias haviamobrigado a enterrar-se numa zona rstica e sem atractivos.

    Recordei-me dos jardins do conde com os seus sumptuosos jardins de Inverno e os seuscarreiros estreitos e poticos. Conhecia bem esses carreiros protegidos do sol por uma abbada develhas tlias cuja folhagem se entrelaava. Conhecia tambm algumas mulheres que haviamprocurado dar-me o seu amor naquela penumbra...

    Recordei-me igualmente do salo luxuoso e do delicioso conforto dos seus sofs de veludo, dospesados reposteiros e das alcatifas fofas; recordei-me de tudo isto com a languidez de um animaljovem e saudvel. E, por fim, recordei-me da ousadia que me dava a embriaguez, acompanhada poruma satnica soberba e por um profundo desprezo pela vida.

    E todo o meu corpo, fatigado de tanto dormir, aspirou de novo agitao de outrora... Diz-lhe que irei visit-lo.O mujique inclinou-se e saiu. Se tivesse sabido ao que vinha :- resmungou Policarpe, folheando precipitadamente o seu

    livro - no teria deixado entrar esse diabo! Pe o livro de lado e vai preparar a Zorka - ordenei, em tom severo. - E depressa! Depressa? No querem l ver? Julga que vou a correr? Ainda se fosse para alguma coisa de

  • til... mas no, para levar uma alma de volta ao Inferno...A ltima frase foi dita entre dentes, mas com a nitidez su ciente para que eu a ouvisse. Depois

    de articular aquela insolncia, o meu criado levantou-se com um sorriso, como se esperassedesdenhosamente um comentrio enrgico da minha parte.

    Eu, porm, z de conta que no ouvira as suas palavras. Nas minhas escaramuas comPolicarpe, o silncio a minha melhor arma e a mais contundente, porque o atinge com maioreficcia do que uma pancada na nuca ou um chorrilho de palavras insultuosas.

    Enquanto Policarpe saa para pr a sela e os arreios na minha gua Zorka, deitei uma olhadelaao livro que a minha ordem o impedira de continuar a ler. Era O Conde de Monte Cristo, esseterrvel romance de Dumas...

    Aquele idiota civilizado lia tudo desde os anncios dos jornais at August Comte, cujas obrasguardo no meu ba entre outros livros que nunca li e que renunciei a ler.

    Dessa babilnia escrita e impressa, a Policarpe apenas interessavam as novelas de aco vigorosae terr ca, com "cavalheiros" distintos, com venenos, com subterrneos... Tudo o mais s lheinspirava desprezo.

    Mas agora era necessrio partir...Um quarto de hora mais tarde, as patas de Zorka levantavam a poeira do caminho que leva da

    minha casa at casa do conde. O Sol estava prestes a esconder-se mas o calor pesado ainda se faziasentir. A atmosfera, em ignio, estava seca, embora o carreiro corresse ao lado de um grande lago. direita, havia a gua,

    esquerda, um bosque de carvalhos e, apesar disso, o meu rosto parecia atravessar o deserto doSara.

    "Vem a uma trovoada", disse para mim prprio, antevendo, com delcia, uma boa chuvada.O lago dormia, tranquilo. Nenhum rudo respondia ao barulho que faziam os cascos de Zorka.

    S de vez em quando o grito agudo de uma galinhola quebrava o fnebre silncio do giganteimvel.

    Em certos pontos Zorka levava-me a atravessar espessas nuvens de mosquitos e, ao longe,apenas via moverem-se os trs barquitos do velho Michei, concessionrio da pesca no lago.

    Tive de contornar a curva da margem do lago; s de barco possvel seguir em linha recta.Quem vai por terra obrigado a fazer um enorme desvio que alonga o percurso em cerca de oitoquilmetros. Sem perder de vista o lago, divisava todo o caminho: a argila branca da margemoposta, as cerejeiras em or e, mais ao longe, o pombal do conde, repleto de pombos de vriascores; podia lobrigar tambm a mancha branca do pequeno campanrio da igreja.

    Durante o trajecto pensei no estranho relacionamento que tivera com o conde. Teria gostadode analis-lo melhor, pondo em ordem as minhas ideias, mas, infelizmente era questo queultrapassava as minhas capacidades de momento.

    Aqueles que nos conheciam explicavam de diferentes maneiras o meu relacionamento comAlexei Karnieiev.

    Os espritos mais mesquinhos a rmavam que o ilustre conde via na pessoa de um pobre juiz deinstruo criminal, de origem humilde, um mero companheiro de bebedeiras. Segundo eles, euaproximava-me a rastejar da mesa do meu an trio, espera de algumas migalhas e de ossos pararoer. Julgavam que o dalgo rico, terror e inveja do distrito, era muito engenhoso e liberal. Nuncapoderiam entender, de outro modo, a sua graciosa condescendncia para com o juiz pobre e a sua

  • magnanimidade, aceitando que eu o tratasse por tu.As pessoas mais sensatas, contudo, viam na nossa amizade uma comunho de "interesses

    intelectuais".Tenho a mesma idade e estudmos na mesma Universidade. Ambos seguimos o curso de

    Direito, domnio em que os nossos conhecimentos so bastante escassos. Os meus so medocres eo conde j se esqueceu de tudo ou afogou em lcool quanto aprendeu. Somos ambos orgulhosos e,por razes que s ns sabemos, evitamos a convivncia social, como dois selvagens. No nosimportamos com o que os outros pensam, isto , com o que possam pensar os habitantes do distritode S.

    Somos imorais, um e outro, e havemos de acabar mal.: A tm os "interesses intelectuais" que nos unem.; Quem nos conhece no consegue adiantar outras , explicaes. Teriam dito algo mais se

    soubessem como ! suave, dbil e submissa a natureza do conde e como a minha forte eobstinada. E teriam acrescentado ainda mais se estivessem ao corrente de quanto aquele homem fraco me estimava e quo escassa era a minha simpatia por ele. O conde props-me a sua amizadee eu fui o primeiro a trat-lo por tu; ele veio a fazer o mesmo, mas que diferena de tom! Ele,numa efuso de bons sentimentos, abraou-me e pediu-me timidamente que fosse seu amigo; eu,um dia, cheio de nojo e de desprezo, disse-lhe:

    - Deixa-te de parvoces! Acolheu aquela forma de tratamento como expresso da minha amizade e aproveitou o ensejo

    para me pagar com um honesto e fraterno "tu".Sim, teria sido mais correcto puxar as rdeas e regressar para junto de Policarpe e do meu

    papagaio.Teria sido, na verdade, muito melhor.Mais tarde, pensei nisso inmeras vezes. De quantas ; desgraas me teria livrado e que bem

    teria feito ao meu ; amigo se, naquela tarde, eu houvesse tido a coragem de voltar para trs ou se aminha Zorka, tomando o freio : nos dentes, me conduzisse para longe do terrvel lago!

    Quantas recordaes dolorosas deixariam de assaltar-me, agora, obrigando-me, em todos osmomentos, a deixar cair a pena para levar as mos cabea!

    No entanto, no quero antecipar-me at porque, mais por diante, terei ocasio de evocarlembranas dolorosas e amargas do passado. Por agora, falemos s de coisas alegres.

    k

  • ZCAPTULO 2

    korka levou-me at porta-cocheira da casa do conde. Ao chegar, tropeou e eu perdi oestribo e estive em risco de cair.

    Mau sinal, cavalheiro! - gritou-me um campnio que se encontrava perto da estrebaria.Acredito que um homem, ao cair dum cavalo possa partir a cabea, mas no acredito em

    supersties.Entreguei as rdeas ao mujique, sacudi com a chibata o p das botas e dirigi-me

    apressadamente para a residncia.Ningum veio ao meu encontro. As janelas e as portas achavam-se abertas de par em par e,

    apesar disso, utuava no ar um odor estranho e pesado. Era o cheiro a ba o de velhos aposentosabandonados misturado com o agradvel - mas forte e narcotizante - aroma de plantas de estufacolhidas recentemente.

    No salo nobre, sobre um dos divs cobertos de seda de cor celeste, havia dois almofadesamarrotados e, sobre uma mesa redonda, um copo em que restavam algumas gotas de um lquidocom forte odor a licor de Riga.

    Tudo isto revelava que a casa estava habitada, mas, apesar disso, percorri as onze divises e noencontrei vivalma. A casa achava-se to deserta como as margens do lago.

    A grande porta envidraada do salo - o "salo dos azulejos" - dava para o jardim. Abri-a comfora e desci para o terrao de mrmore. Havia dado alguns passos no carreiro do jardim quando seme deparou a velha Nastasia, a ama do conde. Olhando para aquela velhinha cheia de rugas,esquecida pela Morte, calva e de olhos penetrantes, recordei-me involuntariamente da alcunha quelhe havia a demais criadagem: Sitchikka (a coruja).

    Ao ver-me, a Coruja estremeceu e por pouco no derramou o contedo de um copo quesegurava com as duas mos.

    Bom dia, Sitchikka - disse-lhe.A velhota olhou-me de travs e, sem pronunciar uma palavra, seguiu o seu caminho. Agarrei-a

    pelo ombro e acrescentei: No tenhas medo, tonta. Onde est o conde?Apontou para os ouvidos e fez um gesto para mostrar que no havia compreendido o que eu

    lhe dissera. Ests surda? Desde quando?Apesar da sua idade, a velha v e ouve perfeitamente, mas quando lhe convm no hesita em

    caluniar os seus cinco sentidos.Ameacei com o dedo indicador e deixei-a partir.Avancei mais alguns passos e ouvi vozes masculinas.No stio em que o carreiro se alargava, formando um terreiro rodeado de bancos de ferro,

    sombra de grandes accias, fora colocada uma mesa sobre a qual refulgia um samovar. A volta damesa, trs homens conversavam.

    Aproximei-me sorrateiramente e, oculto por um macio de lilases, procurei o conde com osolhos.

  • O conde Karnieiev tomava o ch, sentado sobre almofades. Vestia um roupo colorido - queeu j conhecia - e na cabea colocara um chapu de palha de Itlia. O seu rosto contradodemonstrava inquietao, de tal forma que quem no conhecesse Karnieiev poderia supor que umaideia fixa ou qualquer preocupao o atormentava.

    Desde a sua partida, o conde no havia mudado em nada.O mesmo corpo franzino, magro e esguio. Os mesmos ombros estreitos, de tsico, e a mesma

    cabea pequena e ruiva. Tal como antes, o nariz vermelho e as faces cidas que mais pareciamtrapos... Nada, na sua aparncia, de ousado, de forte, de varonil... Tudo dbil, aptico, murcho.Quando muito podia considerar-se ligeiramente sugestivo o seu grande bigode, de pontaspendentes.

    Algum havia dito que lhe cava bem e o conde deixara cresc-lo; havia acreditado e, todas asmanhs, o media para veri car quanto crescera a vegetao que sombreava os seus lbios plidos.Parecia um gato jovem e de grandes bigodes, se bem que demasiado dbil e enfermio.

    Perto do conde estava sentado um indivduo obeso, que eu no conhecia, de grande cabearapada e com sobrancelhas negras. O rosto gordo reluzia como um melo maduro. Tinha umbigode maior do que o do conde, testa estreita e lbios delgados. Olhava indolentemente para o cue a sua sionomia, se bem que jovem, era vincada e rude, to spera como a pele ressequida. Noparecia ser russo. Sem casaco nem colete, o obeso indivduo estava em mangas de camisa etranspirava abundantemente. Em vez de ch bebia gua de Seltz.

    A distncia respeitosa, mantinha-se uma terceira personagem: um homem encurvado,rechonchudo, com orelhas separadas do crnio e nuca avermelhada. Era Orbenine, o administradordas propriedades do conde.

    Em honra da chegada de Sua Excelncia vestira um casaco novo, de cor preta, que agora oatormentava.

    O suor escorria-lhe pelo rosto curtido. A seu lado encontrava-se o mujique que me transmitiraa mensagem do conde. S ento me apercebi de que era vesgo. Direito como um poste, hirto comouma esttua, esperava que o interrogassem.

    Kuzma! - dizia o administrador com voz enrgica e persuasiva. - Merecias que te aoitassecom o teu prprio chicote! assim que cumpres as ordens do patro? Devias ter-lhe pedido queviesse imediatamente ou, pelo menos, averiguar quando podia vir.

    Sim, sim... - confirmou o conde, com nervosismo. Devias ter procurado saber tudo. Ele disse-te que viria, mas isso no basta. Preciso dele j!

    Pediste-lhe que o fizesse, mas ele no compreendeu. Preciso dele imediatamente, sem tardana! Que necessidade to urgente essa? - perguntou o homem gordo. Preciso de v-lo. S isso? Quanto a mim, era melhor, Alexis, que esse tal juiz, permanecesse na sua casa. No

    me interessa ter visitas.Fiquei atnito. Que significava aquele "no me interessa ter visitas" to autoritrio e paternal? Mas no se trata de uma visita! - exclamou o meu amigo com voz suplicante. - No vai

    impedir que repouses da tua viagem. Tambm no precisas de fazer cerimnia com ele. J vais verque gnero de homem ...

    Estou certo de que vo ficar amigos.Sa detrs dos lilases e aproximei-me da mesa. O conde viu-me, reconheceu-me, e o seu rosto

  • abriu-se num sorriso. Aqui est ele! - gritou, corando de satisfao e levantando-se - Foste muito amvel em vir

    to depressa.Corri para ele, aos saltos, e o seu grande bigode arranhou-me as faces. Aos abraos seguiram-se

    prolongados apertos de mo e olhares fraternos. Sergei! No ests nada mudado! Sempre o mesmo belo rapaz! Agradeo-te por teres vindo...Logo que me libertei das suas efuses cumprimentei o administrador, que j conhecia, e sentei-

    me. Ah, meu caro - prosseguiu o conde, emocionado e contente -, se soubesses como me sinto

    feliz por voltar a ver o teu rosto sisudo. Mas... no conheces este cavalheiro? Apresento-te o meuamigo Gaetan Casimirovitch Pschekhotski. E este - continuou, apresentando-me ao sujeito gordo -, Sergei Petrovitch Zinoviev, juiz de instruo do distrito.

    O obeso indivduo de sobrancelhas espessas estendeu-me a sua mo enorme e suada. Encantado - resmungou, examinando-me de cima a baixo. - Tenho muito gosto em

    conhec-lo.Terminados os cumprimentos, o conde serviu-me uma chvena de ch frio, avermelhado, e

    colocou minha frente uma lata de biscoitos. Prova... Comprei-os em Einem, quando fui a Moscovo. Estou zangado contigo, Serioja (1),

    tanto que nem pretendia voltar a ver-te. Durante estes dois anos no s no me escreveste umalinha sequer como ainda deixaste sempre sem resposta todas as cartas que te enviei.

    (1)Nesta obra abundam as abreviaturas e tratamentos familiares e afectuosos, compostos a partir dos

    nomes das personagens: "Serioja" por Sergei; "Olenka" ou "Olia" por Olga; "Nadenka" ou "Nadajda" por Nadia, etc.(N. do T.).

    No sei escrever cartas - repliquei - e, alis, escrever-te para qu? Para qu? Sim. S admito trs espcies de cartas: as de amor, as de felicitaes e as de negcios. No

    podia escrever-te as primeiras porque no sou mulher e no estou apaixonado por ti. Das segundas,no precisas, e as terceiras tm de ser postas de parte porque no temos negcios em comum.

    No fundo, tens razo - admitiu o conde que compartilhava sempre a opinio dos demais. -Apesar disso, porm, podias ter-me escrito duas ou trs palavras.

    Acresce que, segundo me disse Piotre Iegoritch, nunca passaste por c, como se vivesses a milquilmetros de distncia ou sentisses nojo pela minha propriedade.

    Podias ter vindo at c para caar... Quantas coisas podiam ter acontecido aqui, durante aminha ausncia!...

    O conde discorreu longamente. Uma vez lanado sobre qualquer tema, era to infatigvel aemitir sons como o meu papagaio Ivan Demianitch. Suportei com alguma impacincia a exibiodos seus dotes oratrios.

    O que o fez parar desta vez foi o aparecimento da Ilia, o mordomo, com a sua libr velha e suja,que, numa salva de prata, trouxe um clice de vodca e um copo de gua. O conde bebeu a vodca deum trago, fez o mesmo com a gua e, depois, esboou uma careta e meneou a cabea, como sesentisse a garganta em fogo.

  • Ao que vejo ainda no perdeste o hbito de te enfrascares em lcool - observei. Ainda no, Serioja. Pelo menos, evita esses ademanes de bbedo quando bebes um copo. absurdo! Vou deixar tudo isso, meu velho. Os mdicos proibiram-me o lcool. Se ainda bebo porque

    faz mal parar de repente... Deve proceder-se de forma progressiva.Examinei o rosto fatigado e enfermio do conde, o copo vazio, o criado com os seus sapatos

    amarelos, o polaco de sobrancelhas negras - que, primeira vista e sem saber a razo, me deu aimpresso de ser um vigarista - e, por m, o mujique estrbico, hirto e silencioso e tudo aquiloprovocou em mim um sentimento de profunda angstia. Assaltou-me, de imediato, o desejo deafastar-me daquele ambiente crapuloso, manifestando ao conde a minha imensa averso. Estivequase a levantar-me e a ir-me embora...

    No o fiz, contudo, talvez por simples preguia fsica e agora envergonho-me desta confisso. Traz-me tambm um copo de vodca - disse ao criado.Sobre as leas e o terreiro comeavam a estender-se as sombras. O grasnar das rs, o crocitar

    dos corvos e os silvos dos verdilhes anunciavam o pr-do-sol. Era um entardecer de Primavera... Diz a Orbenine que se sente - segredei ao conde. Est ali, especado como uma esttua. Ah, no me havia apercebido disso. Piotre Iegoritch, senta-te, se quiseres. J ests a de p h

    muito tempo.Orbenine sentou-se, lanando-me um olhar de gratido. Em regra saudvel e bem disposto,

    naquele dia parecia adoentado e aborrecido. Tinha o rosto como que crispado e os olhos,dormentes, pareciam revelar preguia.

    Que novidades h por c? - quis saber Karnieiev. Nada de especial? Nada de especial, Excelncia. Hum! Nenhuma rapariga nova?O administrador, envergonhado, corou. No sei, Excelncia... No coisa que me diga respeito. H, sim, Excelncia - disse o mujique vesgo, com a sua voz grossa, falando pela primeira vez.

    - E at algumas bem interessantes. Bonitas? De todo o gnero, Excelncia, e para todos os gostos. Morenas, loiras... Espera, recordo-me de ti... Leporelo, secretrio para certos assuntos... Chamas-te Kuzma,

    segundo creio. Sim, Excelncia. Ora a est! Lembro-me agora... E quem tens em mira? Camponesas, no assim? Sobretudo camponesas, mas tambm h coisa melhor. Ah, sim? Onde descobriste tu isso? - perguntou Ilia, fitando Kuzma. Pela Pscoa chegou Nastasia Ivana, cunhada do guarda- orestal... Uma rapariga de belas

    formas... Teria gostado de experiment-la, mas, para isso, era preciso ter dinheiro... O seu rostocorado e o resto... Mas h ainda coisa melhor e pode dizer-se que est sua espera, Excelncia...Muito nova, aveludada, vivaa... Nem em Petersburgo podia encontrar outra mais perfeita.

    Quem ela?

  • Olenka, a filha do guarda-florestal Skvortsov.A cadeira de Orbenine emitiu um estalido. Com as mos apoiadas sobre a mesa e o rosto

    congestionado, o administrador ergueu-se devagar e tou o vesgo. A sua clera aumentava a cadamomento.

    Cala-te, miservel! - vociferou. - Fala do que quiseres mas no te metas com gente honrada! No estou a falar de si, Piotre Iegoritch - replicou Kuzma, impassvel. No se trata de mim, imbecil! - berrou Orbenine que logo acrescentou: - Suplico a Vossa

    Excelncia que proba o seu Leporelo, como apropriadamente lhe chama, de exercer a suaactividade em relao a pessoas dignas de toda a considerao!

    No percebo porque repreend-lo - murmurou ingenuamente o conde. - Kuzma no dissenada de ofensivo.

    Exaltado, Orbenine afastou-se da mesa. Com os braos cruzados e a piscar os olhos, foiesconder o rosto congestionado atrs de uns ramos.

    Teria ele o pressentimento de que, num futuro prximo, o sentido da moralidade iria sofrerofensas muito mais contundentes?

    No compreendo porque cou ofendido - segredou-me o conde. - Que homem estranho!No foi dito nada que pudesse mago-lo.

    Depois de dois anos de vida sbria, o copo de vodca entonteceu-me levemente. Uma sensaode bem-estar e de prazer insinuou-se no meu crebro e no meu corpo.

    Ao mesmo tempo apercebi-me da brisa fresca que, pouco a pouco, substitua o calor do dia.Propus um passeio.

    Trouxeram da casa o casaco do conde e o do seu novo amigo polaco, e partimos. Orbenine veioatrs de ns.

    O jardim to belo que merece descrio particular.De todos os pontos de vista o mais rico e grandioso de quantos tenho visto. H grutas quase

    destrudas e cobertas de musgo, fontes, pequenos lagos cheios de peixes, montanhas russas, bosquesem miniatura, estufas... Concebida pelos avs e pelos pais do conde, aquela rara profuso deenormes roseirais, de grutas poticas e de interminveis carreiros foi progressivamente abandonada, cando merc das ervas daninhas, dos machados dos ladres e dos corvos quefazem ninho nas rvores exticas.

    O legtimo proprietrio do jardim caminhava a meu lado, sem que nenhum msculo da suacara, deformada pelo lcool, se contrasse perante to lamentvel displicncia.

    S por uma vez, para dizer alguma coisa, fez notar a Orbenine que seria bom pr areia noscarreiros. Notava a falta de areia, mas no reparava nas rvores secas, mortas durante o Invernonem nas vacas que pastavam no jardim. Em resposta observao feita pelo conde, Orbeninerespondeu que para tratar convenientemente do jardim era necessria uma dezena de homens eque, como sua Excelncia no residia ali, essa despesa constituiria um luxo desnecessrio. Como erade esperar, o conde concordou de imediato.

    Alis - acrescentou Orbenine, com ademanes de superioridade. -, no tenho tempo para talcoisa. No Vero, os campos, no Inverno, a cidade, para vender o trigo. No co com tempo paramais nada.

    A principal lea do jardim, ladeada por altas e velhas tlias e macios de magnlias, terminavaao longe numa mancha amarelada. Era um pavilho de pedra, onde, em tempos, houvera um

  • bufete e um bilhar, um chinquilho e um jogo chins.Sem propsito determinado, dirigimo-nos para o pavilho. A entrada fomos recebidos por algo

    que fez estremecer os meus no muito corajosos companheiros. Uma vbora! - gritou o conde, agarrando-me o brao. - Olha!O polaco deu um passo atrs e cou parado a agitar os braos como para afugentar um

    fantasma. Sobre um dos degraus de pedra semidestrudos vi uma pequena cobra vulgar. Ao ver-nos, ergueu a cabea e fez um movimento. O conde soltou outro grito e escondeu-se atrs de mim.

    No tenha medo, Excelncia - disse Orbenine, sem se alterar e pondo o p no primeirodegrau do pavilho.

    E se nos morde? No nos morder. Alis, tem-se exagerado o perigo das mordeduras de cobras. Certo dia fui

    mordido por uma velha serpente e, como podem ver, no morri. As picadas dos homens so maisperigosas do que as das cobras - moralizou Orbenine.

    Com efeito, logo que o administrador ps o p no segundo ou terceiro degrau, a cobra esticou-se e desapareceu, como um raio, por entre as pedras. No entanto, ao entrar no pavilho, deparou-se-nos outro ser vivo.

    Sobre um velho bilhar, de pano rasgado e pudo, achava-se um velhote de camisa azul, calaslistadas e bon de jquei. Dormia suave e sossegadamente. As moscas voavam por cima da sua bocasem dentes, que lembrava um buraco de rvore, e sobre o seu nariz a lado. De magreza esquelticae com a boca aberta dava a impresso de ser um cadver pronto para a autpsia.

    Orbenine tocou-lhe no cotovelo e chamou: Frantz!Frantz!Ao quinto ou sexto toque Frantz fechou a boca, ergueu o tronco, olhou para ns e, em

    segundos, voltou a deitar-se. Um minuto depois a sua boca tornou a abrir-se e as moscas quevoavam volta do nariz foram, de novo, espantadas pela trepidao do ressonar.

    Como dorme, este porco depravado! - exclamou Orbenine. Trischer, o jardineiro, no assim? - perguntou o conde. Ele prprio... Faz sempre o mesmo. Dorme durante o dia inteiro e, noite, joga s cartas, Na

    noite passada deve ter jogado at de manh... A que joga ele? A dinheiro. Em regra, ao stoss. (2) Quer dizer que esta gente trabalha pouco ou mesmo nada mas recebe pontualmente o

    salrio. No o digo para me queixar, Excelncia - a rmou Orbenine em tom vivo. - Limito-me a

    comprovar um facto. com pena que vejo este homem escravizado por to grande paixo. Apesardisso, ele trabalha; no rouba o que ganha...

    Olhmos novamente para o jogador e samos.Do pavilho dirigimo-nos para o porto do jardim que d para os campos circundantes.Quase no h novela em que o porto do jardim no desempenhe um papel importante. Se

    ainda no o notaram, perguntem a Policarpe que, durante a vida, tem devorado tantas novelas,terrficas ou no. Ele pode confirmar certamente este facto assaz caracterstico.

    (2) - Jogo de azar russo semelhante ao "monte". (N. do T.)

  • A minha novela to-pouco prescindir do porto do jardim, mas diferenciar-se- das outras

    pela circunstncia de a minha pena, ao contrrio do que sucede s dos demais autores, ser foradaa fazer passar por ele muitas desgraas e poucas venturas. E o pior que no vou descrever essesacontecimentos como novelista mas sim como juiz de instruo. Por esse porto passaro maiscriminosos do que namorados.

    k

  • ACAPTULO 3

    kpoiados s nossas bengalas chegmos, um quarto de hora mais tarde, a uma colina conhecidacomo o "Tmulo de Pedra".

    Este montculo, solitrio no meio dos campos, parece um bon invertido. Do cimo podamosver o lago com toda a sua maravilhosa serenidade e a sua indescritvel beleza. O Sol j se pusera,mas deixara atrs de si uma prpura que tingia o cu e a gua com uma agradvel cor alaranjada.

    S eu e o conde trepmos ao cume da colina.Orbenine e o polaco, mais pesados, preferiram ficar nossa espera no caminho. Quem aquele emplastro? - perguntei ao conde, apontando para o polaco. - Onde foste

    busc-lo? Meu velho Sergei - respondeu, com certo alarme. Trata-se de um homem muito amvel. Tu e ele ficaro amigos dentro em pouco. Duvido. Porque fala to pouco? calado por natureza. Mais tarde cars a saber tudo, meu velho Sergei, mas por agora no

    me perguntes mais nada. Vamos descer?Descemos e encaminhmo-nos para o bosque. A tarde atingia o seu termo. Do bosque vinham

    o grito do cuco e o canto trmulo de um rouxinol jovem e extenuado.Ao chegar orla do bosque ouvimos a voz aguda de uma criana que gritava: Hei! Hei! No consegues apanhar-me!Uma menina de cerca de cinco anos, de cabelo cor de linho e com um vestido azul-claro, saiu

    do bosque. Ao ver-nos, correu para Orbenine e agarrou-se aos seus joelhos, soltando grandesgargalhadas. Orbenine tomou-a nos braos e beijou-a na face.

    a minha pequena Sacha - disse, apresentando-nos a criana.Um estudante dos seus onze anos, lho do administrador, perseguia a irm. Quando nos viu,

    hesitou, tirou o bon e, depois, voltou a p-lo na cabea para, logo de seguida, o tirar de novo.Atrs do estudante, caminhando lentamente, surgiu uma gura vermelha que logo atraiu a nossaateno.

    O conde pegou-me no brao. Que magn ca apario! Olha! - exclamou. - Que maravilha! Quem esta rapariga? No

    sabia que no bosque havia niades assim!Voltei-me para Orbenine a m de lhe perguntar quem era a rapariga e s ento me apercebi de

    que estava completamente embriagado. Sergei Petrovitch, suplico-lhe - sussurrou-me ao ouvido, exalando vapores de lcool -,

    impea que o seu amigo faa outros comentrios acerca daquela rapariga. uma pessoa digna de toda a considerao. Como de costume, o conde capaz de dizer

    alguma inconvenincia e eu no quero que ela as escute.A pessoa digna de toda a considerao devia rondar os dezoito anos e tinha uma deliciosa

    cabea com bondosos olhos azuis e cabelo loiro, comprido e ondulado.Entre menina e adolescente, trazia um vestido escarlate.Os ps, nos como agulhas, estavam calados com meias vermelhas e sapatos quase infantis. Vi

  • que os seus ombros estremeceram quando neles xei os olhos, como se a rapariga, coquete, tivessesentido um calafrio ou o meu olhar lhe tivesse mordido a pele.

    Que contraste! - extasiou-se o conde. - Um rosto to jovem e formas to perfeitas...Desde muito novo havia perdido a faculdade de olhar para as mulheres de outra maneira que

    no fosse a de um bicho sensual.Pelo contrrio, lembro-me de que aquela viso despertou em mim um sentimento de ternura

    que me aqueceu a alma. Continuava a ser um poeta e, no meio do bosque, num crepsculo deMaio, sob o tmido cintilar das estrelas, no podia contemplar uma mulher seno como um poeta.Fitei a rapariga com o mesmo enlevo com que costumava observar os bosques, as montanhas, o azuldo cu... Ainda restavam, dentro do meu ser, vestgios do sentimentalismo que herdara da minhame, alem.

    Quem ? - quis saber o conde. Excelncia - disse Orbenine -, a filha do guarda-florestal Skvortsov. a tal Olenka de que falou o zarolho? , sim - respondeu o administrador, lanando-me um olhar suplicante.A rapariga de vermelho deixou-nos passar junto dela sem nos conceder a menor ateno. Os

    seus olhos estavam voltados para outro lado, mas eu, que conheo as mulheres, apercebi-me de quenos observava furtivamente.

    Ouvi-a perguntar, enquanto nos afastvamos: Qual deles o conde? O do bigode comprido - respondeu o estudante.Escutei o seu sorriso sonoro, um riso de decepo.Por certo, a rapariga havia julgado que o conde, proprietrio daqueles imensos bosques e do

    grande lago, era eu e no o pigmeu com rosto de alcolico e bigodes cados.Do peito de Orbenine saiu um profundo suspiro. O homem quase no era capaz de andar. Manda embora o administrador - segredei ao conde. - Est doente e embriagado. Ests doente, Piotre Iegoritch? - perguntou. - J no preciso de ti. Podes retirar-te. No se preocupe, Excelncia. Agradeo o cuidado mas no estou doente.Olhei para trs. A figura escarlate, imvel, seguia-nos com o olhar.Pobre cabecita loura! Como poderia eu adivinhar, naquele entardecer suave e tranquilo de

    Maio, que ela ia ser a protagonista de minha atormentada narrativa.Escrevo estas linhas enquanto a chuva bate nos vidros e o vento ulula. Olho para a janela negra

    e, sobre aquele fundo de trevas, esforo-me por evocar a imagem da minha gentil herona... Vejo oseu rosto infantil, ingnuo, e os seus olhos cheios de ternura. Assaltam-me desejos de pr a pena delado e de queimar quanto escrevi. De que serve recordar aquela criatura jovem e inocente?

    Junto do tinteiro, minha frente, est a fotogra a de Olenka. Vejo-lhe o rosto formoso emtoda a frvola grandeza da mulher que se aviltou. Os olhos, lnguidos mas orgulhosos da suaperversidade, esto imveis. a serpente cuja peonha Orbenine desprezara. Provocante, tentou atempestade e o furaco destroou a flor.

    Recebeu muito, mas pagou bem caro. Que o leitor possa perdoar-lhe...

    k

  • CCAPTULO 4

    kaminhvamos atravs da silenciosa monotonia do pinhal.

    E se regressssemos? - props o conde.Ningum lhe respondeu. Ao polaco era indiferente estar ali ou em outro local, Orbenine sabia

    que a sua voz no contava e, quanto a mim, a frescura do bosque e o aroma a resina cativavam-medemasiado para querer voltar para trs. De qualquer maneira, havia que matar o tempo at a noitecair.

    A perspectiva de uma selvagem noitada de copos excitava-me deliciosamente. Envergonho-mede confess-lo: gozava o prazer antecipadamente. O conde, impaciente, olhava amide para orelgio, sinal de que o consumia idntico desejo. Creio que naquele momento nos compreendamosntima e mutuamente.

    Perto da casa do guarda- orestal, erigida numa clareira quadrada rodeada de pinheiros, fomosrecebidos pelos latidos agudos de dois ces de plo amarelo e raa que eu desconhecia. Eram geis ereluzentes como enguias. Compreendi que Orbenine visitava aquela casa com frequncia porque osces saltaram sua volta, ladrando alegremente. Ali perto encontrava-se um rapazote descalo, comcara apalermada e cheia de sardas. Olhou-nos por momentos, em silncio e, em seguida,certamente por reconhecer o conde, soltou uma exclamao e ps-se a correr em direco casa.

    Sei porque vai a correr - declarou o conde, sorrindo. - Lembro-me dele; Mitka.No se enganou. No havia decorrido um minuto quando o rapaz reapareceu trazendo consigo

    uma bandeja com um copo de gua e outro de vodca. A sua sade, Excelncia - disse ele, abrindo a cara aparvalhada num largo sorriso.O conde engoliu a vodca e lavou a boca com a gua e, desta vez, reprimiu a habitual careta.A cerca de cem passos da casa havia um banco de ferro to velho como os pinheiros. Sentmo-

    nos e cmos a contemplar a beleza tranquila daquele entardecer de Maio. Mesmo em taiscircunstncias, nas quais a voz humana a coisa mais desagradvel que existe, o conde noconseguiu ficar calado.

    No sei se vais gostar da ceia - adiantou. - Mandei preparar sopa de percas e uma lebre...Depois, para acompanhar a vodca, esturjo frio e leito com rabanetes.

    Os pinheiros agitaram-se, como que ofendidos por aquele discurso, e um murmrio surdocorreu por todo o pinhal. Levantou-se uma brisa fresca que fez voar as folhas cadas no solo ebalouar os ramos das rvores.

    Basta! Basta! -gritou Orbenine, dirigindo-se aos ces que, com as suas festas, o impediam deacender um cigarro. - Parece-me que vai chover. Durante o dia faz um calor to sufocante que no preciso ser um grande sbio para profetizar chuva. Vai ser bom para o trigo.

    "Que importa o trigo", pensei eu, "se o conde gasta todo o seu rendimento em bebida? A chuvaperde o seu tempo".

    O bosque foi atravessado por um vento mais fresco.Os pinheiros e os arbustos aumentaram os seus murmrios. Vamos para casa. Levantmo-nos e inicimos, indolentemente, o caminho de regresso. Vale mais ser a loura Olenka - disse eu a Orbenine - e viver aqui, entre os animais, do que

  • ser juiz de instruo e viver entre os homens. bem mais repousante. No concorda, Piotrelegoritch?

    Tudo est bem quando se tem a conscincia tranquila, Sergei Petrovitch.A conscincia da formosa Olenka estar tranquila? S Deus v os coraes humanos, mas, segundo me parece, ela no tem qualquer razo para

    se inquietar.Poucos desgostos, no mais pecados do que uma criana.E boa rapariga... A vem a chuva.Ouviu-se um rudo como o do rodado de um carro ou de um jogo de chinquilho. O trovo

    surgiu por cima das copas. Mitka, que no nos perdia de vista, estremeceu e benzeu-se. A trovoada! - exclamou o conde. -A chuva vai apanhar-nos no caminho! E quase noite.

    Bem te disse que devamos regressar, mas tu teimaste em vir at aqui. Vamos acolher-nos na casa do guarda-florestal, espera de que passe a chuva - propus eu. Para qu? - comentou Orbenine, piscando os olhos de forma estranha. - Vai chover toda a

    noite e no podero dormir aqui. Mas no se preocupem.Continuem o vosso passeio. Mitka ir a casa, e pedir que mandem um carro para os levar de

    volta. No preciso - contrapus. - No vai chover torrencialmente durante toda a noite. Em regra,

    as nuvens da trovoada passam depressa... E, a propsito, no conheo ainda o novo guarda- orestale tambm gostaria de conversar com Olenka para ficar a saber qual o seu temperamento...

    Acho bem - concordou o conde. O qu? Vamos car aqui? - balbuciou Orbenine, muito inquieto. - Para qu permanecer

    num ambiente sufocante, Excelncia, se, em sua casa, pode estar muito melhor? No compreendoque vantagem h nisso...

    Acresce que no me parece correcto ir visitar o guarda- orestal precisamente quando seencontra adoentado...

    Era manifesto que Orbenine no desejava de modo algum que entrssemos naquela casa.Chegou ao ponto de estender os braos como se pretendesse impedir a nossa passagem.Compreendi que devia ter razes para querer afastar-nos. Respeito as razes e os segredos alheios,mas sentia-me espicaado por uma forte curiosidade. Acabmos por entrar na casa do guarda-florestal.

    Faam o favor de ir para a sala - gaguejou o rapazote descalo, doido de alegria.Imaginem a mais pequena "sala" possvel, com os seus tabiques de madeira sem pintura; como

    decorao, fotogra as em molduras com cascas de caracis e conchas, atestados e gravurasrecortadas da revista Niva. Um dos atestados manifestava a gratido de certo baro por no sei queservio; os outros referiam-se a cavalos. Aqui e alm, a hera trepava pelos tabiques. Uma pequenachama ardia suavemente em frente de um cone, a um canto, e re ectia-se levemente numamoldura prateada. Encostadas s paredes havia cadeiras, em quantidade excessiva para o tamanhoda saleta; embora as mais velhas j fossem bastantes, tinham comprado outras havia pouco tempo,sem razo aparente.

    Apertados uns contra os outros viam-se ainda uns cadeires e um canap com cobertas brancasadornadas com folhos e rendas. Havia tambm uma mesa redonda, bem envernizada... Sobre ocanap dormia uma lebre domesticada... A diviso era confortvel, agradvel. Em tudo aquilo era

  • notria a presena de uma mulher. At a pequena estante, cheia de livros, dava a impresso de algoinocente e feminino, como se contivesse apenas novelas ingnuas e poesias pouco transcendentes.No na Primavera que pode aperceber-se todo o encanto de uma saleta como aquela; noOutono, quando procuramos abrigo contra a humidade e o frio...

    Mitka, a fungar, riscou um fsforo energicamente e acendeu duas velas que, com grandecuidado, colocou nossa frente, sobre a mesa.

    Sentmo-nos nas poltronas e, ao olhar uns para os outros, no pudemos conter o riso. Nicolas E mitch est de cama, doente, e a lha decerto foi passear com as crianas -

    adiantou Orbenine como que para explicar o que se passava naquela casa.Do quarto vizinho chegou uma voz dbil: Mitka, fechaste as portas? Fechei, sim, Nicolas E mitch - respondeu Mitka com voz rouca, correndo para o aposento

    contguo. Est bem - disse a mesma voz. - Certifica-te de que esto bem fechadas chave. Se os ladres

    quiserem entrar, diz-me... Vamos receb-los a tiro... Malvados... Claro que sim, Nicolas Efimitch.Rimo-nos e olhmos interrogativamente para Orbenine. Que queria aquilo dizer? Sorriu-se e,

    para disfarar o seu embarao, aproximou-se da janela e comeou a mexer numa cortina. Quesigni cava tal atitude? Olhmos de novo uns para os outros, mas a nossa perplexidade cedo sedesvaneceu. Do exterior chegou o rudo de passos geis e apressados e a porta e o guarda-ventobateram. A rapariga de vermelho irrompeu bruscamente na sala.

    Vinha a cantar com voz de soprano mas, ao ver-nos, calou-se de sbito e, depois, esboou umsorriso.

    Perturbada, tmida como uma gazela, esgueirou-se para o quarto de onde viera a voz do pai. Ficou surpreendida! - disse Orbenine, sorrindo.Algum tempo depois, a rapariga reapareceu; foi sentar-se, em silncio, na cadeira mais prxima

    da porta e comeou a observar-nos. Olhou-nos com insistente atrevimento, como se no fssemospessoas estranhas mas, sim, exemplares num jardim zoolgico. Por momentos, tambm a olhmos.

    Estava to formosa naquele m de tarde que eu seria capaz de car a olh-la um ano inteiro. Asua pele tinha a frescura da gua ou da brisa, o peito erguia-se-lhe suavemente quando respirava eos cabelos, ondulados sobre a testa e cados sobre os ombros, cobriam-lhe as mos com quecomprimia a gola do vestido. Os seus olhos, muito grandes, brilhavam. E tudo isto num corpoairoso e mido que eu apreciava com um s olhar. Naquele pequeno espao era possvel ver maiscoisas, numa s vez, do que a contemplao durante sculos de um horizonte sem m... A raparigaexaminou-me de alto a baixo com ar srio e curioso, mas, quando desviou a vista para o conde epara o polaco, no pde conter um sorriso.

    Fui o primeiro a falar. Apresento-me - disse, aproximando-me. - O meu nome Zinoviev e apresento-lhe, tambm,

    o conde Karnieiev. Pedimos desculpa por termos entrado na sua bonita casa sem sermosconvidados. No o teramos feito se a trovoada no nos houvesse forado...

    A nossa casa no vai desabar s por isso - replicou ela, estendendo a mo.Sorriu, pondo a descoberto os seus dentes admirveis. Sentei-me junto dela. Princpio de todos os princpios, o tempo foi o primeiro tema. Enquanto

  • conversvamos Mitka serviu vodca, de novo, e o meu amigo, aproveitando o facto de eu no estar aolhar para ela, depois de cada gole fazia a sua careta preferida e meneava a cabea.

    Quer tomar alguma coisa? - perguntou-me Odenka.E, sem esperar a minha resposta, saiu da sala.As primeiras gotas de chuva bateram contra a vidraa. Aproximei-me da janela e s consegui

    vislum- brar a gua que escorria pelo vidro e o re exo do meu nariz. Brilhou um relmpago,iluminando os pinheiros mais prximos.

    As portas esto todas fechadas? - voltou a perguntar a voz do enfermo. - Mitka, malditorapaz, vai fechar as portas! Oh, Senhor, que tormento!

    Uma camponesa, de grande barriga e rosto inquieto e aparvalhado, entrou na sala.Cumprimentou o conde timidamente e estendeu uma toalha branca sobre a mesa. Por detrs dela,Mitka, com muita cautela, trazia diversos pratos. Em pouco tempo, havia na mesa vodca, rum,queijo e no sei que ave assada.

    O conde bebeu outro copo de vodca, sem ligar comida. O polaco, pelo contrrio, comeou atrinchar a pea de caa, depois de a haver cheirado.

    J est a chover - disse eu a Olenka, quando esta regressou. - Veja.Aproximmo-nos da janela e, nesse mesmo instante, fomos iluminados por um grande claro

    azul. Estalou um trovo, dando a impresso de que algo, enorme e pesado, se havia desprendido docu e rolava sobre a Terra. A vidraa e os copos tremeram com um rudo cristalino. O estampidofora tremendo.

    Tem medo das trovoadas? - perguntei a Olenka.Inclinou um pouco a cabea sobre o ombro e fitou-me com expresso infantil e confiante. Sim, tenho medo - murmurou, passados uns momentos. - A minha me foi fulminada por

    um raio.Foi at noticiado nos jornais... Ia a atravessar um descampado, a chorar... Teve uma vida muito

    infeliz...Deus teve pena dela e matou-a com a electricidade do cu... Como sabe que h electricidade no cu? Estou certa disso... No sabe? Os que morrem fulminados por um raio, os homens que

    morrem na guerra e as mulheres que morrem ao dar luz vo para o Paraso... No vem nasEscrituras, mas verdade...

    A minha me, agora, est no Paraso... Pressinto que tambm eu vou morrer fulminada por umraio e que irei igualmente para o Paraso... O senhor tem lido muitos livros?

    Muitos. Ento, no se ria de mim... Sabe como eu gostaria de morrer? Vestida com as roupas mais

    belas e mais caras, segundo a ltima moda, como as da senhora Scheer, a milionria... Traria osbraos cheios de lindas pulseiras, subiria ao cume do "Tmulo de Pedra" e pronto! Vinha um raio efulminava-me de maneira a que todos vissem... Um tremendo trovo e tudo ficaria consumado...

    Que fantasia macabra! - comentei, sorrindo e tando os olhos da rapariga de vermelho,onde se reflectia o sagrado terror provocado por aquela imagem de um fim atroz mas espectacular. -No deseja, ento, morrer com um vestido trivial.

    No - garantiu Olenka, com tom obstinado. - Gostava que todos vissem. O vestido que hoje traz mais belo do que qualquer outro, por mais caro e mais na moda

  • que seja...Fica-lhe maravilhosamente bem... Parece uma flor silvestre, vermelha e bela! No, no verdade! - suspirou Olenka, ingenuamente. - Um vestido barato nunca pode ficar-me bem...Com manifesto desejo de falar com Olenka, o conde aproximou-se. Se bem que domine trs

    idiomas, nunca sabe como falar com as mulheres. Postado, sem qualquer graa, junto de ns,esboava um sorriso aparvalhado e s conseguiu grunhir "Ol", voltando, de seguida, sua garrafade vodca.

    Quando entrou em casa vinha a cantar "Gosto das Tempestades de Vero". H algumacantiga com essas palavras? - perguntei a Olenka.

    No - respondeu ela. - Sou eu que ponho em msica, minha maneira, todos os versos quesei.

    Distraidamente, virei a cabea e vi que Orbenine nos observava xamente. Li-lhe nos olhos umressentimento e um dio que no condiziam com o seu rosto plcido. "Deve estar com cimes",pensei.

    Ao ver-se surpreendido, levantou-se e, muito agitado, encaminhou-se para o vestbulo. Ostroves eram cada vez mais frequentes e ruidosos. Os relmpagos iluminavam o cu, os pinheiros ea terra molhada. Ia chover durante muito tempo. Acerquei-me da estante e passei em revista abiblioteca de Olenka."Diz-me o que ls..." No entanto, do que vi, no pude extrair concluses sobreo nvel mental da rapariga.

    No momento em que comeava a folhear um dos livros, abriu-se a porta do quarto vizinho esurgiu uma singular criatura que logo despertou a nossa ateno.

    Era um homem alto e magro, com um roupo de algodo adornado com desenhos indianos;nos ps trazia pantufas esgaadas. O bigode e as suas, de talhe militar, davam-lhe o aspecto deum pssaro. A cabea pequena baloiava sobre o pescoo alto e a ma de Ado agitava-se comoum ninho de estorninhos sacudido pelo vento. A estranha personagem tou-nos com os seus olhosverdes que, de seguida, se fixaram no conde.

    Fecharam as portas? - perguntou com voz suplicante.O conde olhou para mim, surpreendido. No se inquiete, pai - disse Olenka. - Est tudo bem fechado. Volte para o seu quarto. E fecharam tambm o... barraco? s vezes, ca um tanto perturbado - murmurou Orbenine, regressando do vestbulo. - Tem

    muito medo dos ladres e s pensa nas portas. Nicolas E mitch - continuou, voltando-se para odono da casa -, volta para o teu quarto e deita-te. Nada receies. Est tudo bem fechado.

    E as janelas tambm?O homem dirigiu-se s janelas e veri cou os fechos de todas elas. Depois, sem nos prestar

    ateno, desapareceu no interior do quarto. Que tristeza - comentou Orbenine. - bom homem mas, quase todos os anos, quando se

    aproxima o Vero, a sua mente fica transtornada...Olenka, embaraada, procurou esconder o rosto e comeou a pr no lugar os livros que eu

    desarrumara.Era patente que se envergonhava da loucura do pai. Excelncia - disse, ento, Orbenine. - Chegou a carruagem. J pode partir.

  • Quem mandou vir a carruagem? - perguntei. Fui eu quem a mandou buscar...Minutos mais tarde, sentado na carruagem ao lado do meu amigo, resmunguei, enquanto ouvia

    bramir o temporal: Foi Piotre Iegoritch quem nos ps fora daquela casa! Que o Diabo o carregue! Nem sequer

    nos deu tempo para examinar Olenka! Estpido! No amos com-la!Rebentava de cimes! Creio que est apaixonado por ela. Est, claro que est, j me apercebi disso. Por cimes no queria que entrssemos, e por

    cimes fez-nos sair dela... Ah, Ah! De barba j grisalha e ainda com o Diabo no corpo! certo que no difcil a qualquer homem enamorar-se daquela rapariga, se a vir todos os dias

    tal como a vimos hoje. extremamente formosa. Mas no para os dentes do asqueroso Orbenine.Ele devia dar-se conta disso e no ser to egosta. Que a adore distncia, v que no v, mas queno impea os outros de a admirar. Alm do mais, devia saber que no mulher para ele... Velhoimbecil!

    Lembras-te - fez notar o conde, com uma risada de troa - de como cou enfurecidoquando, ao ch, Kuzma se referiu a ela? Parecia que queria bater em todos ns... No se assumedaquela forma a defesa de uma mulher que nos indiferente...

    Sim, pode-se faz-lo, mas isso no importa... Se hoje nos gritou daquela maneira, imagina oque far com os pobres tipos sob as suas ordens. O amor e o cime tornam-nos injustos emisantropos. Ia jurar que, por causa de Olenka, j converteu num inferno a vida de grande nmerode servidores. Creio que deves tomar isso em considerao quando ele zer queixa de algumcriado. Modera os seus poderes, nem que seja por uns tempos. O entusiasmo vai passar-lhe e ascoisas melhoraro... Apesar de tudo um bom homem.

    E o pap da rapariga? Que tal o achaste? um louco que devia estar no manicmio e no na casa do guarda- orestal. tua porta

    devias mandar pr o letreiro "Hospcio". No falta nada: o guarda, a Coruja, o jogador Franz, umvelho apaixonado, uma moa exaltada e, para terminar, tu, perdido pelo lcool. Que mais preciso?

    Mas o guarda ganha um salrio. Para que pode servir-me se est doido? Orbenine conserva-o certamente por causa da lha. Alega que o velho s tem estas crises no

    Vero... pouco provvel, Estou convencido de que o guarda est doente durante o ano inteiro.

    Felizmente, o teu Piotre Iegoritch s mente de vez em quando, porque, quando o faz, logo odemonstra.

    O carro entrou no ptio e parou junto da porta principal. Descemos. A chuva cessara.Iluminadas por relmpagos, as nuvens da tempestade afastavam-se agora para Nordeste, deixandoa descoberto uma poro cada vez maior de cu estrelado. Entrmos na casa, onde nos aguardavaum gnero bem diferente de "poesia".

    k

  • -A

    CAPTULO 5

    kinda bem que no comeste em casa do guarda-florestal.

    Terias perdido o apetite - disse-me o conde, quando entrmos. - Hoje, vamos saborearuma ceia magn ca, como nos bons velhos tempos... Podes servi-la - rematou, voltando-se

    para Ilia, que o ajudara a tirar o casaco e a vestir o roupo.Dirigimo-nos sala de jantar.Sobre a mesa, alinhadas como no bufete de um teatro, garrafas de todas as cores e tamanhos

    re ectiam a luz dos candeeiros. Aperitivos salgados, de escabeche e de muitas outras espciesesperavam numa segunda mesa, junto de uma garrafa de vodka e outra de aguardente inglesa.Perto das garrafas, havia dois pratos com leito e esturjo frios.

    A vossa sade, meus senhores! - exclamou o conde, enquanto, com mos trementes, enchiatrs clices. -Aqui tens o teu, Gaetan Casimirovitch.

    Eu bebi, mas o polaco abanou a cabea. Aproximou o nariz do esturjo, aspirou o seu cheiro ecomeou a comer.

    Peo desculpa ao leitor por descrever coisas to pouco romnticas. Vamos! - convidou o conde. - Sigamos o que diz o poema: E beberam o segundo...Quando me encheu o copo, pela segunda vez, acrescentou: Toma, Lecoq.Peguei no copo, examinei-o e voltei a coloc-lo sobre a mesa. Diabos me levem - disse. - H muito que no bebo. Faamos como nos velhos tempos.E, sem hesitar, enchi mais quatro clices e bebi os cinco, uns atrs dos outros. No sabia beber

    de outra maneira. Os estudantes aprendem com os mais velhos a fumar os primeiros cigarros. Oconde, como um caloiro, seguiu o meu exemplo; encheu tambm cinco clices e, curvado em arco,de sobrancelhas franzidas e a sacudir a cabea, emborcou-os de rajada. Os meus cinco clicespareceram-lhe um desa o, mas sem razo. Eu no bebera daquele modo por bravata de bebedormas, sim, para me embriagar, para apanhar uma valente bebedeira, como no acontecia haviamuito, perdido como estava na pasmaceira daquela vilria.

    Depois de beber, sentei-me mesa e comecei a comer leito.O lcool no tardou a produzir os seus efeitos. Pouco depois, senti uma ligeira vertigem. No

    meu peito espalhou-se uma agradvel frescura, preldio de um estado expansivo e feliz. Semtransio, quei, de repente, extremamente eufrico, Uma sensao de enorme alegria tomou olugar do vazio e do tdio que experimentara at ento. Sorri e, num instante, tive vontade deconversar, de rir, de ver gente. A comer e a beber, senti a plenitude da vida, quase a alegria deviver, quase a felicidade completa.

    Porque no bebe? - perguntei ao polaco. Nunca bebe - declarou o conde. - No insistas. Beba um copo, ao menos!,:! O polaco, a mastigar uma grande posta de esturjo, abanou a cabea.O seu silncio irritou-me. Oua l, Gaetan... Desculpe, mas no me lembro do seu apelido... Porque ca sempre

  • calado? At agora, ainda no tive o prazer de lhe ouvir a voz...As sobrancelhas ergueram-se, como andorinhas que levantam voo, e o homem fitou-me. O senhor quer que eu fale? - perguntou, com forte sotaque polaco. Claro. Porqu? Porque mais natural. Nos barcos e nos hotis, os estranhos que se sentam mesma mesa

    metem conversa uns com os outros. Ns, que nos conhecemos h j vrias horas, olhamo-nosmutuamente sem trocar palavra. Que significa isso?

    O polaco manteve-se calado. Porque no responde? - perguntei, passados instantes. - Diga alguma coisa! No quero responder-lhe. Vejo que quer troar de mim e no gosto disso. No est a troar de ti, Gaetan! - interveio o conde, assustado, - Onde foste buscar tal ideia?

    Est a falar amistosamente contigo. Nem condes nem prncipes me falaram jamais em semelhante tom. - replicou Gaetan,

    franzindo as sobrancelhas. - E um tom que no me agrada. Quer dizer que me nega o prazer de conversar comigo - continuei eu, espicaando-o ainda

    mais. Sabes porque regressei? - atalhou o conde, tentando mudar o rumo da conversa. - Fui

    consultar o meu mdico em So Petersburgo e ele, depois de me auscultar, perguntou-me: "Osenhor cobarde?" Embora no seja, empalideci e respondi: "No, no sou".

    Deixa-te de rodeios, meu velho, porque comeas a maar-me... A rmou que eu no duraria muito, se no sasse rapidamente da cidade... Tenho o fgado

    desfeito... Sabes?Por causa da bebida... Era uma estupidez continuar em So Petersburgo... Disponho desta

    propriedade que magn ca... E o clima, aqui, excelente! Alm disso, sempre posso entreter-me afazer qualquer coisa. O trabalho o melhor remdio, no te parece, Gaetan? Vou tratar das minhasterras e deixarei de beber... O mdico proibiu-me de tomar nem que seja um copo de vinho...

    Bom, ento no bebas! E vou mesmo deixar de beber! Hoje a ltima vez e s o fao por teres vindo visitar-me... -

    a rmou o conde, enquanto se arrastava at mim e me beijava na face. - Por teres vindo visitar-me,tu, meu querido e bom amigo. Mas, a partir de amanh, nem uma s gota!

    Dou frias a Baco at eternidade. Vamos despedir-nos dele com conhaque, Serioja...Bebemos conhaque. Vou curar-me, Serioja, e tratar das minhas terras.Cultura racional! Orbenine bom, afvel, sabe de tudo, mas no passa de um pateta.

    rotineiro. Vou assinar revistas agrcolas, olhar por tudo, tomar parte em exposies rurais... Ele noserve para isso... Mas h Olenka... possvel que esteja apaixonado por ela... Ah!

    Ah! Serei eu a tratar de tudo... Participarei nas eleies, darei festas. Creio que aqui poderei serfeliz... No achas?

    Ah, l ests tu a rir... Ests sempre a rir... Na verdade, no se pode falar contigo de coisassrias!...

    Sentia-me alegre e de bom humor. Tudo me fazia rir: o conde, as luzes, as garrafas, as lebres eos patos esculpidos que ornavam as paredes da sala de jantar.

  • A nica coisa que me entristecia era a cara sisuda de Gaetan Casimirovitch. A presena daquelehomem tinha o condo de me irritar.

    No podes mandar para o diabo este fidalgote polaco? - sussurrei ao conde. Que se passa contigo? Pelo amor de Deus, deixa-o em paz! - murmurou, agarrando-me o

    brao, como se eu tivesse inteno de agredir o polaco. No posso com ele. Oua! - exclamei, dirigindo-me a Pchekotski. - O senhor recusa-se a

    falar comigo mas ainda no perdi a esperana de travar mais amplo conhecimento com as suasfaculdades oratrias.

    Deixa-o - suplicou de novo o conde, puxando-me o brao. Vou colar-me a si - continuei -, at que me responda. Porque franze as sobrancelhas? Ter a

    coragem de afirmar, outra vez, que quero troar de si? Se tivesse bebido tanto como o senhor, poderamos falar - resmungou o polaco -, mas assim

    no estamos em igualdade de condies.A tem! A tem o que eu queria demonstrar... Um ganso no pode ser boa companhia para

    um porco, um bbado no pode andar de brao dado com um homem sbrio...O bbado incomoda o sbrio e o sbrio incomoda o bbado.Veja! No salo h uns magn cos sofs, muito macios, onde uma pessoa pode estender-se

    depois de ter enchido a barriga com esturjo e rabanetes. L no se ouve a minha voz. No quer irpara l?

    O conde, estupefacto, ergueu os braos, pestanejou e ps-se a andar de um lado para o outro.Cobarde como era, temia as discusses acaloradas... Eu, pelo contrrio, quando bebo, adoro asaltercaes e as controvrsias.

    No te percebo - gemeu, no sabendo o que dizer ou fazer. - No te percebo.Sabia que era difcil acalmar-me. Ainda no o conheo bem - prossegui. - Pode acontecer at que seja um excelente homem.

    Por isso mesmo no queria discutir consigo, neste momento.E no o farei. Limito-me a fazer-lhe ver que, entre bbados, as pessoas sbrias esto a mais. Um

    homem sbrio irrita o organismo de um bbado. Meta isso na cabea. Diga o que quiser, jovem - suspirou Pchekotski. Nada me far perder a calma. Tem a certeza disso? Nada? E se eu lhe chamar "porco teimoso", no se sente ofendido?O polaco corou e nada mais. O conde, muito plido, aproximou-se de mim em atitude

    suplicante e abriu os braos. Por favor! Modera a tua linguagem!Bem compenetrado do meu papel de bbado, teria continuado os meus ataques ao polaco, mas,

    por sorte para ele e para o conde, ouviram-se uns passos e Orbenine entrou no salo. Bom proveito! - saudou. - Vossa Excelncia tem alguma ordem a dar-me? Por enquanto, no, mas alegro-me por ter vindo, Piotre Iegoritch. Sente-se. Vai cear

    connosco e falaremos das culturas.O administrador sentou-se. Enquanto comia e bebia conhaque, o seu patro exps-lhe os seus

    planos de cultura racional. Falou de maneira cansativa, repetindo-se e saltando de uma ideia paraoutra. Orbenine escutava-o com ateno indolente, tal como os adultos escutam a fala incoerentede uma criana. Tomava a sopa e ficava a olhar para o prato com tristeza.

  • Trouxe comigo uns projectos magnficos - declarou o conde. - Quer v-los?Karnieiev levantou-se e correu para ir buscar os tais projectos. Orbenine aproveitou a sua

    ausncia para servir-se de vodca, que despejou numa chvena e bebeu de um s trago. Que asquerosa bebida! - disse, olhando horrorizado para o garrafo. Porque no bebe na presena do conde? - perguntei-lhe. - Tem medo dele? melhor, Sergei Petrovitch, passar por hipcrita e beber s escondidas do que beber diante

    dele. Como sabe, o conde tem um temperamento esquisito. Se eu lhe roubasse descaradamentevinte mil rublos, ele, por preguia, no diria nada, mas se me esquecesse de lhe prestar contas deuma despesa de dez copeques, ou se bebesse sua frente, era capaz de chamar-me as piores coisas.

    Orbenine serviu-se outra vez de vodca e engoliu-o de seguida. Creio que antigamente no bebia, Orbenine. exacto. E, actualmente, bebo em excesso.O conde nunca bebeu tanto como eu bebo agora. Sempre tive grande considerao por si,

    Sergei Petrovitch, e vou ser franco para consigo: gostava de ter coragem para me enforcar. Que ideia! Porqu? Por causa das minhas parvoces. No s as crianas so patetas. H imbecis de cinquenta

    anos que...Por favor, no pergunte mais nada!O regresso do conde ps um ponto final nas efuses de Orbenine. Um excelente licor - proclamou, colocando sobre a mesa, em lugar dos "magnficos"projectos,

    uma garrafa bojuda com o lacre da Bndictine. - Comprei-o na loja Desprs, em Moscovo. Queresprov-lo, Serioja?

    No tinhas ido buscar uns projectos? - perguntei. Eu? Que projectos?... Ah, sim... No os encontrei.Nem o Diabo era capaz de se entender com as minhas malas. Procurei por toda a parte e acabei

    por desistir... ptimo, este licor. No queres prov-lo?Orbenine pediu licena para retirar-se e saiu.Bebemos mais vinho tinto - e esse vinho acabou comigo.Vi acercar-se a bebedeira por que tanto ansiava desde que me decidira a visitar o conde. Sentia-

    me cada vez mais alegre e atrevido. Desejava fazer algo de extraordinrio, de grotesco, deassombroso... Em momentos como aquele, julgo-me capaz de atravessar o lago a nado, de resolveros casos mais complicados, de subjugar qualquer mulher... Tinha vontade de me pegar com outrapessoa, de cobri-la de insultos, de irritar, com palavras acerbas, o polaco e o prprio conde. Queriareduzi-los a p.

    Porque esto calados? - comecei. - Falem! Todo eu sou ouvidos. Ah, ah! Adoro ouviraqueles que dizem os maiores disparates com cara muito sria. uma ironia, uma terrvelbrincadeira da natureza humana.

    Rostos que no correspondem aos crebros! Para no enganar os outros, vocs dois deviam tercaras de idiotas e no de filsofos gregos...

    Tomara o freio nos dentes. No acabei. Viera-me cabea a ideia de que no mereciam sequerque lhes dirigisse a palavra. Do que eu precisava, naquela altura, era de uma sala cheia de belasmulheres inteligentes e carregadas de jias.

  • Levantei-me, peguei num copo e pus-me a passear pela casa. Quando organizvamos uma festano nos confinvamos a uma sala s; invadamos toda a casa e, s vezes, at toda a propriedade.

    No salo dos azulejos escolhi o sof turco para nele me entregar ao imprio da fantasia. O meucrebro foi tomado por mirabolantes divagaes alcolicas. Dei comigo num mundo novo, cheio deexaltaes, encanto e de cores indescritveis. S me faltava fazer versos e ter alucinaes.

    k

  • OCAPTULO 6

    kconde veio sentar-se no sof, a meu lado. Queria dizer-me alguma coisa. Adivinhava-lhenos olhos o desejo de me fazer uma con dncia muito especial, logo aps haver emborcado

    os seus clices de que j falei. E eu sabia do que se tratava. Quanto bebi! - confessou. - Isto, para mim, pior do que um veneno, mas ser a ltima vez.

    Palavra, vai ser a ltima vez. Estou decidido e a minha vontade muito forte... Basta! J sei tudo isso. A ltima vez, Serioja. E a propsito, no seria melhor telegrafarmos para a cidade? Se quiseres telegrafa. Vamos fazer uma pndega pela derradeira vez.Levanta-te e redige o telegrama.O conde no sabe escrever telegramas. Ficam prolixos mas incompletos. Levantei-me e escrevi:Para o chefe do coro Karpov, Restaurante Londres.Deixe tudo e venha imediatamente no comboio das duas.Conde Karnieiev - So duas menos um quarto - disse o conde. - Em trs quartos de hora, no

    mximo uma hora, o mensageiro estar na estao. Karpov ter tempo de apanhar o comboio... Se operder, poder vir no de mercadorias, no achas?

    Kuzma, o vesgo, levou o telegrama e foi ordenado a Ilia que mandasse o carro estao, da auma hora.

    Para passar o tempo pus-me a acender lentamente todos os candeeiros da casa. Abri o piano eexperimentei o teclado.

    Em seguida, deitei-me no sof, sem pensar fosse o que fosse, procurando evitar o conde que meincomodava com as suas histrias. Entrei num estado de sonolncia, numa disposio de espritofeliz e tranquila, no vendo mais nada do que a luz das velas... Passou-me em frente dos olhos aimagem da rapariga de vermelho, com a sua cabea inclinada sobre o ombro, o seu olhar cheio deterror perante a ideia de uma morte sensacional e o gesto de leve ameaa que me zera com odedo. Tambm me xei noutra imagem: a de uma rapariga altiva e plida, vestida de preto, que mefitava com ar de splica e, ao mesmo tempo de desprezo.

    Nesse momento ouvi um barulho de vozes e correrias... Dois olhos negros velaram. Apercebi-me de que algum se ria junto de mim e de uns lbios frescos que se abriam alegremente. Era Tina,a minha cigana favorita.

    Ests a dormir? - perguntou - Levanta-te, querido... H quanto tempo no te via! - Apertei-lhe a mo, em silncio, e puxei-a para mim. Vem ter connosco - pediu. - J chegaram todos. Fica comigo, Tina. Sinto-me bem aqui. Mas... h luz a mais. Pode aparecer algum... - Se aparecer algum, toro-lhe o pescoo. Sinto-me bem aqui, Tina. Dois anos sem te ver...Na sala, o piano comeou a tocar e um coro de vozes entoou Ah, Moscovo! Moscovo das pedras

    brancas. Vs? J esto a cantar. No vir ningum incomodar-nos.

  • Sim... sim...A chegada de Tina tirou-me do meu torpor. Dez minutos mais tarde, levou-me para a sala,

    onde um coro de ciganas estava instalado em semicrculo. Escarranchado numa cadeira, o condefazia de maestro e o polaco, de p, olhava tudo aquilo com olhos esgazeados. Tirei a balalaica dasmos de Karpov e, com um trejeito, comecei a cantar: Navegando sobre o rio, que como a nossame, o Volga...

    Vo-o-olga! - acompanhou o coro. Ah! Arde...fala...fala...Fiz novo trejeito e, com a velocidade de um raio, passou-se para outra cantiga: Oh! Que noites

    de loucura, noites de prazer...Nada me excitava tanto os nervos como aquelas mudanas bruscas de ritmo e de melodia.

    Estremeci, em xtase, e, agarrando Tina pela cintura com uma das mos e brandindo a balalaica naoutra, acabei de cantar As noites de loucura. A balalaica escapou-se-me das mos, caindo no choe, com fragor, quebrou-se em mil pedaos.

    Vinho!Da em diante, as minhas recordaes penetram num caos. Tudo se mistura e confunde...

    Lembro-me do cu cinzento da madrugada. Encontramo-nos num pequeno barco. O lago estlevemente agitado, como que indignado com os nossos excessos. De p, no meio do barco, fao-obaloiar. Tina grita, dizendo que vou cair gua e pedindo que me sente. Em alta voz, lastimandoque o lago no tenha ondas to altas como o "Tmulo de Pedra", a minha gritaria assusta asgaivotas que aparecem e desaparecem, em manchas brancas sobre o azul das guas.

    Vem depois um dia longo e quente, com as suas interminveis refeies, os seus licores,conhaques e ponches. Recordo-me apenas de alguns momentos.

    Vejo-me com Tina, no jardim, sobre uma prancha de baloio. Estou sentado numa dasextremidades e Tina na outra. Subo e deso, com vigorosos impulsos, e no sei o que quero: queTina caia e morra ou que suba at s nuvens. A cigana est muito plida, mas, por amor prprio,aperta os lbios para no dar mostras do medo que sente. Subimos cada vez mais alto, mais alto... eno me recordo como acabou aquela brincadeira.

    Vem em seguida um passeio com Tina ao longo de um caminho arborizado. As copas verdesdas rvores unem-se ao alto, ocultando o sol. Uma penumbra potica, as negras tranas de Tina, osseus lbios hmidos, um murmrio... depois, caminha a meu lado uma rapariga loura, de narizarrebitado, olhos de criana e cintura na - contralto no coro. Passeio na sua companhia at aomomento em que Tina, que nos seguiu, faz uma cena de cimes. Est plida, furiosa; chama-me"maldito"

    e quer voltar para a cidade. O conde, tambm plido e com as mos trmulas, corre para ns e,como de costume, no encontra palavras para acalmar Tina. A cigana, no auge da sua excitao,esbofeteia-me. Eu, que me enfureo perante a primeira palavra menos prpria de qualquer homem,fico de todo indiferente s agresses de uma mulher.

    Ao cair da tarde, eu e Tina reconciliamo-nos. E chega a noite, to agitada como a anterior, commsica, cantigas endiabradas... e nem um segundo de sono reparador.

    um suicdio - murmurou Orbenine, que entrara, durante uns instantes, para ouvir osciganos Obviamente, tem razo... Recordo-me de certa altura, no jardim, em que eu discutia com oconde.

  • O polaco de sobrancelhas negras rondava por perto. Em momento algum tomou parte nasnossas efuses, embora nos seguisse por toda a parte, como uma sombra, sem fechar os olhos porum momento.

    O cu comeou a aclarar-se e as copas das rvores voltaram a dourar-se com os primeiros raiosde sol. Ao redor iniciou-se o alvoroo dos pardais e o canto dos estorninhos - rudos sedosos, golpesde asas entorpecidas pela noite. Ouviu-se o mugir dos rebanhos acompanhado pelos gritos dospastores. Perto de ns, sobre um alto castial de mrmore, ardia uma vela Chandor com a suachama plida. O solo est coberto de pontas de cigarros, invlucros de bombons, copos partidos,cascas de laranjas...

    Toma l! - disse ao conde, entregando-lhe um mao de notas. - Tens de aceitar! Fui eu quem os convidei e no tu - contraps o conde com energia, agarrando-me pelo

    casaco. - Sou eu o anfitrio. Mandei-te buscar. Por que razo hs-de ser tu a pagar? No vs que meofendes?

    Eu tambm os convidei - retorqui. - Quero pagar a minha parte. No queres aceitar o meudinheiro? Pois eu no aceito os teus favores! Julgas que por seres rico podes impor-me a tuavontade? Diabos me levem. Fui eu quem convidou Karpov e serei eu a pagar-lhe. Eu que redigi otelegrama.

    Num restaurante, Serioja, podes pagar o que quiseres, mas a minha casa no umrestaurante. E no compreendo porque te exaltas assim. Tens pouco dinheiro enquanto eu tenho-ode sobra. Amais elementar equidade obriga-me a pagar toda a despesa.

    Ento no queres o meu dinheiro? No o queres, pois no?Aproximei as notas da chama da vela, peguei-lhes fogo e atirei-as ao cho. Gaetan soltou um

    gemido. Abriu os olhos, empalideceu e lanou-se por terra, procurando apagar as chamas com asmos. Os seus esforos foram coroados de xito.

    Queimar dinheiro! - exclamou, en ando no bolso as notas chamuscadas. - No possocompreender tal coisa! Como se fosse o trigo do ano passado ou cartas de amor. melhor d-lo aospobres.

    Encaminhei-me para casa. Em todas as divises, sobre os sofs e os tapetes, dormiam oscantores, esgotados. Tina dormia no sof do salo dos azulejos.

    Respirava com di culdade, de dentes cerrados e rosto plido. Provavelmente via, em sonhos, obaloio...

    A Coruja percorria os quartos espreitando, com os seus olhos penetrantes, as pessoas quetinham perturbado o silncio sepulcral daquela casa desabitada. No era sem uma razo vlida queassim deambulava e cansava as pernas.

    Eis o que me cou na memria daquelas duas noites de tremenda orgia - mas creio que su ciente. Tudo o mais esvaiu-se do meu crebro perturbado pelo lcool ou no prprio para sercontado. E, por agora, basta!

    k

  • ZCAPTULO 7

    korka nunca me transportou para casa com tanta energia como naquela manh, depois doepisdio das notas... Parecia que tambm a gua tinha urgncia em regressar.

    As ondas espumantes do lago re ectiam o nascer do Sol. difcil descrever o que ia dentro demim naquele momento. Direi somente, sem insistir, que me sentia inegavelmente feliz e, ao mesmotempo, corava de vergonha ao ver, na margem do lago, o velho Michei, esgotado pelo trabalhohonesto e pelas maleitas. A sua aparncia fazia lembrar a dos pescadores da Bblia.

    Fiz estacar Zorka e estendi a mo ao velhote, como para me puri car, tocando na sua mocalejada. Michei ergueu para mim os seus olhos espertos e sorriu.

    Bom dia, meu senhor - disse, acanhado e estendendo-me a mo. - Vem a cavalo. Quer dizerque o vadio j regressou. Leio-o na sua cara. Eu observo sempre o que se passa minha volta. Omundo ser sempre o mundo. Vaidade das vaidades. Olhe, o alemo est quase a morrer, masagora preocupa-se com futilidades. Veja-o.

    O velhote, com o seu cajado, apontou para o pavilho de banhos do conde, de onde saiu, numbote, um homem com bon de jquei e casaco azul: o jardineiro Frantz.

    Todas as manhs vai ilha para l esconder dinheiro. O imbecil no compreende que, paraele, o dinheiro e a areia tm o mesmo valor. No o levar consigo, quando morrer. D-me umcigarro, senhor.

    Estendi-lhe a cigarreira e ele tirou trs cigarros que guardou no bolso da camisa. So para o meu sobrinho... Ele gosta de fumar...Impaciente, Zorka retomou a marcha. Despedi-me do velho, agradecido por me ter dado a

    oportunidade de repousar os olhos no seu rosto. Michei cou a observar-me at eu desaparecer dasua vista.

    Em casa, Policarpe estava minha espera. Mediu-me de alto a baixo, com um olhar dedesdm, como se quisesse certificar-se de que, tambm daquela vez, tomara banho vestido.

    Felicito-o - grunhiu. - Divertiu-se muito? Cala-te, idiota!O seu ar estpido irritou-me. Despi-me rapidamente, enterrei a cabea na almofada e fechei os

    olhos.A cabea andou-me roda. Como que trazidas por uma bruma vaga, chegaram ao meu esprito

    imagens familiares e recentes. Ouvi o grito "O marido matou a mulher... Ah, que estpidos sovocs!" A rapariga do vestido vermelho ameaou-me com o dedo. Tina veio ensombrar o quartocom os seus olhos negros e eu adormeci.

    Que sono delicioso e inocente! Dir-se-ia que nesta almofada repousa a conscincia maissossegada deste mundo, que o conde no regressou ainda, que no houve nenhuma orgia nemciganos, que beira do lago no se produziu qualquer escndalo... Levante-se homem maligno!No merece as delcias de um sono tranquilo.

    Levante-se!Entreabri os olhos e espreguicei-me com delcia. Da janela chegava um raio de sol em que

    utuava o p branco do quarto. Esse raio to depressa desaparecia dos meus olhos como voltava a

  • incidir neles, consoante se interpunha ou no, diante de mim, o Dr. Pavel Ivanovitch Voznessensk ,meu simptico vizinho.

    O seu largo jaqueto desabotoado utuava-lhe sobre o corpo como se este fosse um cabide.Com as mos en adas nos bolsos das calas, exageradamente largas, ia de uma mesa para a outraou de um retrato para o seguinte, observando, com olhos de mope, tudo o que encontrava nocaminho.

    Cedendo ao seu hbito de meter o nariz em quanto podia, inclinou-se para a frente paraexaminar o lavatrio, as pregas dos cortinados, as fendas das portas e o candeeiro, como se quisesseassegurar-se de que tudo estava em ordem.

    Examinando atentamente, atravs dos culos colocados na ponta do nariz comprido, a menorracha, a mais pequena mancha no papel de parede, assumia ar preocupado, resfolgav