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UM ESBOÇO DE ANALISE SOCIOLóGICA DE "A FILHA DO CAPITÃO" DE A. S. PUCHKIN Aurora F. Bernardini INTRODUÇÃO Puchkin viveu de 1799 a 1837 e escreveu A Filha do Capitão entre os anos de 1833 e 1836, ao mesmo tempo em que se dedicava a elaboração de sua outra obra História da Revolta de Pugatchóv de 1773. A figura do rebelde aparece em ambas, contudo, no romance, apesar de amplamente transposta, não é o sujeito real da obra, como tampouco o é Piotr Andrieitch Griniev, o narrador da estória. Cada personagem nos parece ser o sujeito, em potencial ou não, de seu mundo particular e a coletividade, complexa e interligada, fun- ciona como o verdadeiro agente do romance . PRINCIPAIS GRUPOS SOCIAIS DESCRITOS PELO AUTOR O livro se abre com a apresentação do plácido universo no qual vive a família de Andriei Petrovitch Griniev, major aposentado, ca- sado com Advótia Vassilievna Y., filha de um nobre arruinado, e seu único filho, Piotr Andrieitch Griniev. A fazenda do pai de Piotr, que fica na aldeia de Simbirsk, ao sudoeste de Moscou, do lado es- querdo do Volga, é o protótipo das fazendas dos senhores de terra, que ainda constituíam na época, apesar do comércio e da indústria se terem instalado em algumas regiões, a estrutura fundamental da economia do país. Correspondentemente, a descrição do grupo social que vive na fazenda é fundamental, nas obras de Puchkin. Comparando várias delas e tomando esta como exemplo, é possível salientar três categorias Rev. Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez. 1989 21

UM ESBOÇO DE ANALISE SOCIOLóGICA DE A FILHA DO CAPITÃO DE ... · de cada grupo, aos quais correspc,ndem as características citadas. Logo em seguida, já externa ao mundo da fazenda,

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2. CAMóES, Luís de . Os Lusíada.<~ . In: Obra Completa. Rio de Ja­neiro, Agttilar, 1963.

3. COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis na Literatura Brasileira . Estudo Critico . In: Machado de Assis. Obra Completa . 3v . Rio de Janeiro, Aguilar, v . 1. , 1985 .

4 LIMA, Alceu Amoroso. "Migalhas Inéditas". In: Autores e Livros, Su­plemento Literário de A Manhã, vol. I , n.o 7, apud RAMOS, Péricles Eugênio da Silva . Machado de Assis- Poesia . Rio de Janeiro, AGIR, p. 91f, (Coleção Nossos Clássicos, n .o 82) , 1964 .

5 . MEYER, Augusto . De Machadinha a Brás Cubas . In: Revista do Livro, órgão do Instituto Nacional do Livro, n.o 11 . Apud RAMOS, Péricles Eugênio da Silva . Machado de Assis - Poesia. Rio de Ja· neiro, AGIR, p . 96, (Coleção Nossos Clássicos, n.o 82), 1964.

6. PACHECO, João . Precursor e Contemporâneo: Machado de Assis. In: O Realismo . v.3 . São Paulo, Cultrix, (Coleção A Literatura Bra­sileira, 5 .v. ), 1968 .

7. RAMOS, Péricles Eugênio da Silva . Machado de Assis -Poesia . Rio de Janeiro, AGIR, (Coleção Nossos Clássicos, n.o 82), 1964.

8. SOUSA, J . Galante de . Machado de Assis, Poesia e Prosa, Editora Civilização Brasileira S/ A, S . Paulo, 1~57. Apud RAMOS, Péricles Eugênio da Silva . Machado de Assis ··- Poesia . Rio de Janeiro, AGIR, p . 97, (Coleção Nossos Clássicos, n.o 82), 1964 .

20 Rcv. de Letras, Fortaleza, 14 U/2) - jan./dez. 1989

UM ESBOÇO DE ANALISE SOCIOLóGICA DE "A FILHA DO CAPITÃO" DE A. S. PUCHKIN

Aurora F. Bernardini

INTRODUÇÃO

Puchkin viveu de 1799 a 1837 e escreveu A Filha do Capitão entre os anos de 1833 e 1836, ao mesmo tempo em que se dedicava a elaboração de sua outra obra História da Revolta de Pugatchóv de 1773.

A figura do rebelde aparece em ambas, contudo, no romance, apesar de amplamente transposta, não é o sujeito real da obra, como tampouco o é Piotr Andrieitch Griniev, o narrador da estória.

Cada personagem nos parece ser o sujeito, em potencial ou não, de seu mundo particular e a coletividade, complexa e interligada, fun­ciona como o verdadeiro agente do romance .

PRINCIPAIS GRUPOS SOCIAIS DESCRITOS PELO AUTOR

O livro se abre com a apresentação do plácido universo no qual vive a família de Andriei Petrovitch Griniev, major aposentado, ca­sado com Advótia Vassilievna Y., filha de um nobre arruinado, e seu único filho, Piotr Andrieitch Griniev. A fazenda do pai de Piotr, que fica na aldeia de Simbirsk, ao sudoeste de Moscou, do lado es­querdo do Volga, é o protótipo das fazendas dos senhores de terra, que ainda constituíam na época, apesar do comércio e da indústria já se terem instalado em algumas regiões, a estrutura fundamental da economia do país.

Correspondentemente, a descrição do grupo social que vive na fazenda é fundamental, nas obras de Puchkin . Comparando várias delas e tomando esta como exemplo, é possível salientar três categorias

Rev. d~ Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez. 1989 21

principais com as respectivas características, que passamos a enu­merar:

1) Categoria dos nobres

Características: a) código de honra b) sentimentos estáveis c) hábitos tradicionais d) atitudes formalmente morais

2) Categoria dos servos

Características: a) ausência do código de honra b) sentimentos instáveis c) hábitos imediatos d) atitudes amorais

3) Categoria dos tutores

Características: a) proveniência francesa h) hábitos repreensíveis c) atitudf's burlescas d) duração efêmera

Tanto o estado de "servo" quanto o estado de ''nobre" é, em princípio, um verdadeiro estampo, do qual sai a personagem para viver sua vida. Savielitch, os pais de Piotr e Mr. Beaupré são os expoentes, de cada grupo, aos quais correspc,ndem as características citadas.

Logo em seguida, já externa ao mundo da fazenda, é a categoria dos soldados que vamos conhecer. Tal conhecimento é obtido t:m duas etapas sucessivas: Ivan Zurin, na cidadezinha de Simbirsk, no:; esboç;t seus aspectos mais frívolos e Ivan Kusmitch Mironov, na fortaleza de Bielogorsk, resume seus traços essenciais. Temos assim:

4) Categorit.:l dos soldados

Características: a) beber bastante b) contar piadas c) jogar

D)CORAGEM E) LEALDADE F) SENTIDO DO DEVER

22 Rev. de Letras, Fortaleza, 14 U/2) - jan/dez. 1989

Essas categorias, apesar de fortemente caracterizadas, não são estanques. Ao lado de personagens protótipos (Andriei Petrovitch e esposa, Ivan Kusmitch e esposa, Ivan Zurin, Maria Ivanovna) há per­sonagens condutores (Savielitch) e personagens transbordantes (Shvabrin, Pugatchicv) . O entrelarçar-se de suas ações confere dina­mismo à narrativa, dinamismo esse acentuado pela parcimônia com que é usado o elemento descritivo. Tanto para transmitir um con­teúdo, quanto para criar uma atmosfera, bastam implicações. Puchkin é um grande poeta, nessa sua obra em prosa. Vale-se de recursos, se assim podem ser chamados, de uma engenhosidade tão inata, que, na sua naturalidade, se integram perfeitamente na estrutura da narrativa. Só um estudo e um levantamento sistemático permite-nos desvendá­los. Abordar('mos alguns dos casos mais expressivos. Antes disso porém, parece-nos interessante apenas revelar alguns procedimentos de caracterização dos personagens, sem pretender entrar em seu es­tudo detalhado que chamamos de "Aspectos das personagens".

Verifica-se em primeiro lugar, que há uma aderência quase que física das características às personagens .

Comecemos, por exemplo, por Savielitch:

O núcleo de seu ser é: eu sou um servo

e a lei que governa suas ações: eu tenho que zelar por meu amo

Do roubo ao sacrifício de sua própria vida, toda a gama de ações permitidas por essa lei é possível. Qualquer exemplo que se tome é válido.

Já a personalidade de Piotr Andrieitch pode se realizar entre dois pólos, com uma série de ações desvios que quase chegam a destruir 1.cu equilíbrio:

2.0 pólo 1.0 pólo l'll sou um nobre eu jurei fidelidade à Imperatriz

desvios:

1) continuou pensando em casar com M . I . apesar do não consentimento do pai;

2) aceitou e fez uso da benevolência de P . 3) desertou do forte de Orenburg

A personalidade de Maria Jvanovna pode ser considerada, num 0111hlto mais restrito, como uma réplica do esquema da realização da

ltt•V de Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez. 1989 23

principais com as respectivas características, que passamos a enu­merar:

1) Categoria dos nobres

Características: a) código de honra b) sentimentos estáveis c) hábitos tradicionais d) atitudes formalmente morais

2) Categoria dos servos

Características: a) ausência do código de honra b) sentimentos instáveis c) hábitos imediatos d) atitudes amorais

3) Categoria dos tutores

Características: a) proveniência francesa b) hábitos repreensíveis c) atitudes burlescas d) duração efêmera

Tanto o estado de "servo" quanto o estado de ''nobre" é, em princípio, um verdadeiro estampo, do qual sai a personagem para viver sua vida . Savielitch, os pais de Piotr e Mr. Beaupré são os expoentes, de cada grupo, aos quais correspc,ndem as características citadas.

Logo em seguida, já externa ao mundo da fazenda, é a categoria dos soldados que vamos conhecer. Tal conhecimento é obtido ~;m duas etapas sucessivas: Ivan Zurin, na cidadezinha de Simbirsk, nos esboç!l seus aspectos mais frívolos e Ivan Kusmitch Mironov, na fortaleza de Bielogorsk, resume seus traços essenciais. Temos assim:

4) Categori!l dos soldados

Características: a) beber bastante b) contar piadas c) jogar

D)CORAGEM E) LEALDADE F) SENTIDO DO DEVER

22 R ev. de Letras, Fortaleza, 14 U/2) - jan./dez. 1989

Essas categorias, apesar de fortemente caracterizadas, não são c~ tanques. Ao lado de personagens protótipos (Andriei Petrovitch e esposa, Ivan Kusmitch e esposa, Ivan Zurin, Maria Ivanovna) há per­sonagens condutores (Savielitch) e personagens transbordantes (Shvabrin, Pugatchiov) . O entrelarçar-se de suas ações confere dina­mismo à narrativa, dinamismo esse acentuado pela parcimônia com que é usado o elemento descritivo . Tanto para transmitir um con­teúdo, quanto para criar uma atmosfera, bastam implicações. Puchkin é um grande poeta, nessa sua obra em prosa. Vale-se de recursos, se assim podem ser chamados, de uma engenhosidade tão inata, que, na sua naturalidade, se integram perfeitamente na estrutura da narrativa. Só um estudo e um levantamento sistemático permite-nos desvendá­los. AbordarC'mos alguns dos casos mais expressivos. Antes disso porém, parece-nos interessante apenas revelar alguns procedimentos de caracterização dos personagens, sem pretender entrar em seu es­tudo detalhado que chamamos de "Aspectos das personagens".

Verifica-se em primeiro lugar, que há uma aderência quase que física das características às personagens.

Comecemos, por exemplo, por Savielitch:

O núcleo de seu ser é: eu sou um servo

e a lei que governa suas ações: eu tenho que zelar por meu amo

Do roubo ao sacrifício de sua própria vida, toda a gama de ações permitidas por essa lei é possível . Qualquer exemplo que se tome é válido.

Já a personalidade de Piotr Andrieitch pode se realizar entre dois pólos, com uma série de ações desvios que quase chegam a destruir seu equilíbrio:

2.0 pólo 1.0 pólo eu sou um nobre eu jurei fidelidade à Imperatriz

desvios:

1) continuou pensando em casar com M. I . apesar do não consentimento do pai;

2) aceitou e fez uso da benevolência de P . 3) desertou do forte de Orenburg

A personalidade de Maria I vanovna pode ser considerada, num âmbito mais restrito, como uma réplica do esquema da realização da

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personalidade de Piotr as vicissitudes pelas quais ela passa, também tendem a desviá-la de sua meta.

1.0 pólo eu sou uma boa moça

2.0 pólo eu amo Piotr

desvios: 1) não é aceita como esposa de Piotr 2) perde os pais 3) é presa por Shvabrin a partir desse momento sua atuação é dependente da atu­ação de Piotr

A realização da personalidade de Shvabrin, apesar de promissora, é comprometida desde o início. Ele já nos é apresentado como aquele que matou um homem. A decolagem é vertical e irreversível. Cada ação é uma etapa negativa que só pode levar à morte ou ao degredo.

O mesmo, de uma forma mais complexa, se dá com Pugatchóv. Ele é um rebelde e a conjuntura não comporta uma revolta vitoriosa nem a "redenção" que tantas vezes lhe dese.iou Piotr.

Extremamente significativo, talvez o ponto crucial da obra, é o trecho que vamos expor:

24

''B mesmo", disse a Pugatchóv. "Não seria melhor afas­tar-se deles por tua própria vontade, enquanto é tempo e recorrer à generosidade da Imperatriz?" · Pugatchóv sorriu amargamente. "Não, é tarde para me arrepender, respondeu. Não haverá perdão para mim. Vou continuar como comecei. Quem sabe? Talvez eu tenha sorte! Grichka Otripiev reinou em Moscou." "E sabes como terminou? Atiraram-no pela janela, dego­laram-no, queimaram seu corpo, carregaram um canhão com suas cinzas e atiraram." "Escuta , disse Pugatchóv, com uma espécie de inspira­ção selvagem. "Vou contar-te uma fábula, que uma velha calmica me contou na infância. Certa vez uma águia per­guntou ao corvo: - Diz-me, pássaro-corvo, como é que vives trezentos anos neste mundo e eu apenas trinta e três anos? - Isto paizinho, porque bebes sangue vivo, enquanto que eu me alimento de carniça -, respondeu o corvo. A águia pensou: "Vamos experimentar alimen­tar-nos do mesmo". Muito bem. A águia e o corvo alça­ram vôo. Eis que viram um cavalo morto. Desceram e

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pousaram sobre ele. O corvo começou a bicar e elogh:tr. A águia bicou, uma vez, uma seguPda vez, abanou as asas e disse ~o corvo: - Não, amigo corvo, em vez de me alimentar trezentos anos de carniça, é melhor saciar­me uma só vez de sangue vivo e depois seja o que Deus quiser! - "O que achas da fábula calmica?" "é interessante", respondi-lhe. "Mas viver de assalto e assassinato, para mim significa bicar a carniça". Pugatchóv olhou-me espantado e nada respondeu. Fica-mos calados, absortos em reflexões ...

Aqui está a resposta, antecipando-nos um pouco, que não dare­mos na nota (3). Acossado pela censura , Puchkin não pode pregar suas idéias abertamente . Semei-as em parábolas e alusões. Chega mesmo a submetê-las 3 reprovação de Piotr, bom rapaz, personagem prindnal da história , com o qual simpatizamos. Os representantes da ordem es­tão satisfeitos e o grupo social para o qual Puchkin escreve, encontra

impunemente sua mensagem.

O ELEMENTO PO~TTCO E RECURSOS DE ESTILO EM A FILHA DO CAPITÃO

Leia-se à pag. 2 do cap. 1 da obra citada em Português

"Certa vez, no outono, minha mãe cozinhava no salão, geléia de mel e eu, lambendo-me todo, contemplava a es­puma borbulhante. Meu pai, à janela, lia o Cr.:tlendário da Corte. que recebia todos os anos. Esse livro sempre lhe provocava uma forte impressão: nunca o relia sem um inte-resse esperi a 1. e essa leitura sempre perturbava estranha-

mente a bílis''.

Agora. à pág. 7 do cap. 14

"Uma noite, meu pai estava sentado no divã, folheando as páginas do Calendário da Corte, mas os seus pensamen­tos estavam longe e a leitura não produzia nele o efeito hnbitual. Assobiava uma marcha antiga. Minha mãe, em silêncio, tricotava um agasalho de lã e às vezes uma lágri­ma caía sobre seu trabalho. De repente, Maria Ivanovna, que também estava sentada com o seu trabalho, anunciou que, por motivo de força maior deveria ir a Petersburgo e pedir recursos para a viagem. Minha mãe ficou muito

triste".

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personalidade de Piotr as vicissitudes pelas quais ela passa, também tendem a desviá-Ia de sua meta.

1.0 pólo eu sou uma boa moça

desvios:

1) não é aceita como esposa de Piotr 2) perde os pais

2.0 pólo eu amo Piotr

3) é presa por Shvabrin

a partir desse momento sua atuação é dependente da atu­ação de Piotr

A realização da personalidade de Shvabrin, apesar de promissora, é comprometida desde o início. Ele já nos é apresentado como aquele que matou um homem. A decolagem é vertical e irreversível. Cada ação é uma etapa negativa que só pode levar à morte ou ao degredo.

O mesmo, de uma forma mais complexa, se dá com Pugatchóv. Ele é um rebelde e a conjuntura não comporta uma revolta vitoriosa

nem a "redenção" gue tantas vezes lhe desejou Piotr. Extremamente significativo, talvez o ponto crucial da obra, é o

trecho que vamos expor:

··:e mesmo", disse a Pugatchóv. "Não seria melhor afas­tar-se deles por tua própria vontade, enquanto é tempo e recorrer à generosidade da Imperatriz?'' · Pugatchóv sorriu amargamente.

"Não, é tarde para me arrepender, respondeu. Não haverá perdão para mim. Vou continuar como comecei. Quem sabe? Talvez eu tenha sorte! Grichka Otripiev reinou em Moscou."

"E sabes como terminou? Atiraram-no pela janela, dego­laram-no, queimaram seu corpo, carregaram um canhão com suas cinzas e atiraram."

"Escuta, disse Pugatchóv, com uma espécie de inspira­ção selvagem. "Vou contar-te uma fábula, que uma velha calmica me contou na infância. Certa vez uma águia per­guntou ao corvo: - Diz-me, pássaro-corvo, como é que vives trezentos anos neste mundo e eu apenas trinta e três anos? - Isto paizinho, porque bebes sangue vivo, enquanto que eu me alimento de carniça -, respondeu o corvo. A águia pensou: "Vamos experimentar alimen­tar-nos do mesmo". Muito bem. A águia e o corvo alça­ram vôo. Eis que viram um cavalo morto. Desceram e

Rev. de Letras, Fortaleza, 14 U/2) - jan./dez. 1989

pousaram sobre ele. O corvo começou a bicar e elogi~r. A águia bicou, uma vez, uma segunda vez, abanou as asas e disse ~o corvo: - Não, amigo corvo, em vez de me alimentar trezentos anos de carniça, é melhor saciar­me uma só vez de sangue vivo e depois seja o que Deus quiser! - ''O que achas da fábula calmica?" "é interessante", respondi-lhe. "Mas viver de assalto e assassinato, para mim significa bicar a carniça". Pugatchóv olhou-me espantado e nada respondeu. Fica­mos calados, absortos em reflexões ...

Aqui está a resposta, antecipando-no~ um pouco, que não dare­mos na nota (3). Acossado pela censura, Puchkin não pode pregar suas idéias abertamente . Semei-as em parábolas e alusões. Chega mesmo a submetê-las 3 reprovação de Piotr, bom rapaz, personagem princinal da história , com o qual simpatizamos. Os renresentantes da ordem és­tão satisfeitos e o grupo social para o qual Puchkin escreve, encontra impunemente sua mensagem.

O ELEMENTO PO(;.TJCO E RECURSOS DE ESTILO EM A FILHA DO CAPITÃO

Leia-se à pag. 2 do cap. 1 da obra citada em Português

"Certa vez, no outono, minha mãe cozinhava no salão, geléia de mel e eu, lambendo-me todo, contemplava a es­

puma borbulhante . Meu pai, à janela, lia o Ct;tlendário da Corte. que recebia todos os anos. Esse livro sempre lhe provocava uma forte impressão: nunca o relia sem um inte-resse esperial. e essa leitura sempre perturbava estranha­mente a bílis".

Agora , à pág. 7 do cap. 14

"Uma noite, meu pai estava sentado no divã, folheando as páginas do Calendário da Corte, mas os seus pensamen­tos estavam longe e a leitura não produzia nele o efeito habitual. Assobiava uma marcha antiga. Minha mãe, em silêncio, tricotava um agasalho de lã e às vezes uma lágri­ma caía sobre seu trabalho. De repente, Maria Ivanovna, que também estava sentada com o seu trabalho, anunciou que, por motivo de força maior deveria ir a Petersburgo e pedir recursos para a viagem. Minha mãe ficou muito triste".

Rev. de Letras, Fortaleza, 14 (1/2) - jan./dez. 1989 25

Ainda à pag. 3 do cap. 1

''A idéia que em breve separar-se-ia de mim causou tal im· pressão a minha mãe que ela deixou cair a colher dentro da panela, e as lágrimas correram-lhe pelo rosto."

Finalmente à pag. 1 do cap. 10

"Que pena! Era um oficial maravilhoso. E a senhora Mi­ronova era uma excelente mulher, e colhia cogumelos tão bem ... "

O Calendário da Corte. as conservas, as lágrimas possuem uma carga evocativa muito alta. No caso da senhora Mironova, o fato do general associá-Ia, ..::m presença a Piotr, à cor..serva de cogumelos, leva-nos imediatamente à lembrança a figura da primeira mãe: Advo­tia Vassilievna.

A epígrafe pela qual começa o livro: "bieregui platie snóvu, a tc·hiest smólodu", que foi traduzida, na versão em língua inglesa por "keep your coat clean while it is still new, and guard your honour in the days of your youth", e que em Português, numa tradução li­teral poderia ~er "cuida da roupa enquanto é nova e a honra enquan­to és jovem", volta, no primeiro capítulo. como coroamento dos con­sdhos-leis que o pai dá ao filho, por ocasião de sua partida.

Ao mesmo tempo, como veremos, ela pode, aparentemente. fun­cionar como metro, pelo qual é medida a possibilidade ou não de realização das personagens.

Após a enunciação deste provérbio, os pais dão ao filho uma roupa nova que ele doará a Pugatchiov e que lhe salvará a vida. 1! interessante reparar quantos níveis são atribuídos a essa roupa .

O capítulo chamado pelo próprio Puchkin de "Capítulo omisso" é o único em que ele faz vasto uso do que os Ingleses denominam 'poetic imagery'. Seu emprego é consciente, talvez para equilibrar a extrema dramaticidade de certas cenas. Veja-se por exemplo, à pag. 1

26

" O céu ec;tava claro. A lua brilhava. O tempo estava calmo. O Volga corria, regular e tranqüilo. O barco ba­lançando-se suavemente, deslizava rapidamente sobre as ondas escuras. Absorvi-me em devaneios da imaginação. Passou-se cerca de meia hora. Já havíamos alcançado a metade do rio. . . quando de repente os remadores come­çaram a cochichar entre si . "O que há?" perguntei, voltando a mim.

R: v. de Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez 1989

BCH-PERIODtCO

"Não sabemos, só Deus sabe", responderam os remado­res, olhando para a margem. Os meus olhos fixaram-se na mesma direção e eu vi, na escuridãv, algo que vinha flutuando Volga abaixo . O ob­jeto desconhecido se aproximava. Ordenei aos remadores que parassem e ficassem aguardando. A lua se escondeu atrás de uma nuvem. O farilaque flutuante fez-se ainda mais vago, já se encontrava próximo de mim e eu não conseguia destingui-lo. "O que seria?" diziam os rema­dores. Vela não é, nem mastro ... Subitamente a lua surgiu de trás da nuvem e revelou uma tétrica visão".

Um estudo à parte mereceriam as epígrafes, os ditos e os pro­vérbios que encabeçam os capítulos, bem como os poemas e as can­ções que se encontram no romance. Queremos aqui nos deter nl:!§ raras intervenções diretas que o autor faz na obra. São três ao todo:

A primeira, na última página do capítulo 10

''De repente uma idéia me passou pela cabeça - o leitor ficará sabendo da leitura do capítulo seguinte - como diziam os velhos autores - que idéia foi essa. "

e. um recurso meramente formal, situado pelo próprio autor. A segunda, à página 10 do capítulo omisso:

"Não vou descrever o que sentia. Aqueles que já estive­ram em situação igual entenderão mesmo sein isso. Pos­so apenas ter pena e aconselhar a quem não esteve en­quanto é tempo de se apaixonar e receber a bênção dos pais".

Encerra um intuito moralizante, e a exortação, talvez irônica, é coerente com a personalidade de Piotr.

ATITUDE DO AUTOR ~

A terceira intervenção se reveste, para a nossa análise, de uma importâr.cia bem maior. É uma das poucas chaves que o autor nos fornece para que se discuta sua atitude em relação à época que des­creve.

Rev. de Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez. 1989 27

Ainda à pag. 3 do cap. 1

''A idéia que em breve separar-se-ia de mim causou tal im-pressão a minha mãe que ela deixou cair a colher dentro da panela, e as lágrimas correram-lhe pelo rosto."

Finalmente à pag. 1 do cap. 10

"Que pena! Era um oficial maravilhoso. E a senhora Mi­ronova era uma excelente mulher, e colhia cogumelos tão bem .. . "

O Calendário da Corte. as conservas, as lágrimas possuem uma carga evocativa muito alta. No caso da senhora Mironova, o fato do general associá-la, .::m presença a Piotr, à cor..serva de cogumelos, leva-nos imediatamente à lembrança a figura da primeira mãe: Advo­tia Vassilievna.

A epígrafe pela qual começa o livro: "bieregui platie snóvu, a tchiest smólodu", que foi traduzida, na versão em língua inglesa por "keep your coat clean while it is still new, and guard your honour in the days of your youth", e que em Português, numa tradução li­teral poderia ser "cuida da roupa enquanto é nova e a honra enquan­to és jovem", volta, no primeiro capítulo. como coroamento dos con­sdhos-leis que o pai dá ao filho, por ocasião de sua partida.

Ao mesmo tempo, como veremos, ela pode, aparentemente, fun­cionar como metro, pelo qual é medida a possibilidade ou não de realização das personagens.

Após a enunciação deste provérbio, os pais dão ao filho uma roupa nova que ele doará a Pugatchiov e que lhe salvará a vida. I! interessante reparar quantos níveis são atribuídos a essa roupa.

O capítulo chamado pelo próprio Puchkin de "Capítulo omisso" é o único em que ele faz vasto uso do que os Ingleses denominam 'poetic imagery'. Seu emprego é consciente, talvez para equilibrar a extrema dramaticidade de certas cenas. Veja-se por exemplo, à pag. 1

26

"O céu e<Jtava claro. A lua brilhava. O tempo estava calmo. O Volga corria, regular e tranqüilo. O barco ba­lançando-se suavemente, deslizava rapidamente sobre as ondas escuras. Absorvi-me em devaneios da imaginação. Passou-se cerca de meia hora. Já havíamos alcançado a metade do rio. . . quando de repente os remadores come­çaram a cochichar entre si . "O que há?" perguntei, voltando a mim.

R~v. de Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez 1989

~

BCH-PERIODtCOs

"Não sabemos, só Deus sabe", responderam os remado­res, olhando para a margem. Os meus olhos fixaram-se na mesma direção e eu vi, na escuridão, algo que vinha flutuando Volga abaixo. O ob­jeto desconhecido se aproximava. Ordenei aos remadores que parassem e ficassem aguardando. A lua se escondeu atrás de uma nuvem. O farilaque flutuante fez-se ainda mais vago, já se encontrava próximo de mim e eu não conseguia destingui-lo. "O que seria?" diziam os rema­dores. Vela não é, nem mastro ... Subitamente a lua surgiu de trás da nuvem e revelou uma tétrica visão".

Um estudo à parte mereceriam as epígrafes, os ditos e os pro­vérbios que encabeçam os capítulos, bem como os poemas e as can­ções que se encontram no romance. Queremos aqui nos deter n~~ raras intervenções diretas que o autor faz na obra. São três ao todo:

A primeira, na última página do capítulo 10

''De repente uma idéia me passou pela cabeça - o leitor ficará sabendo da leitura do capítulo seguinte - como diziam os velhos autores - que idéia foi essa."

~ um recurso meramente formal, situado pelo próprio autor. A segunda, à página 10 do capítulo omisso:

"Não vou descrever o que sentia. Aqueles que já estive­ram em situação igual entenderão mesmo sein isso. Pos­so apenas ter pena e aconselhar a quem não esteve en­quanto é tempo de se apaixonar e receber a bênção dos pais".

Encerra um intuito moraHzante, e a exortação, talvez irônica, é coerente com a personalidade de Piotr.

ATITUDE DO AUTOR

A terceira intervenção se reveste, para a nossa análise, de uma importância bem maior. É uma das poucas chaves que o autor nos fornece para que se discuta sua atitude em relação à época que des-creve.

Rev. de Letras, Fortaleza, 14 (1/2) - jan./dez. 1989 27

Veja-se, portanto, à pag. 11 do capítulo omisso:

''Não vou descrever nossa marcha, nem o término da guerra de Pugatchóv. Passávamos por aldeias destroça­das (pilhadas por Pugatchóv e, involuntáriamente, rPti­rávamos dos pobres habitantes aquilo que lhes resbwa dos handidos: QUE DEUS N.ÃO PERMITA VER UMA REVOLTA RUSSA; INCLEMENTE E INSENSATA. AQUELES QUE ENTRE NOS TRAMAM REVOLU­ÇOES IMPOSSfVETS OU SÃO JOVENS E NÃO CO­NHECEM NOSSO POVO, OU T~M UM CORAÇÃO EMPEDERNIDO PARA QlTEM A CABECA DE SEU

SEMELHANTE V ALE UM VINTnM E SEÚ PESCOÇO NÃO VALE NADA".

Até que ponto as opiniões de Piotr sejam endossadas por Puchkin (3), é difícil estabelecer. A única informação de que dispomos é en­contrada em suas ''Notas Gerais" referentes à citada "História da Revolta de Pugatchóv de 1773".

"Todo o povo comum estava do lado de Pugatchóv .. Após um estudo cuidadoso das medidas tomadas por Pu­gatchóv e seus aliados, não se pode senão admitir que os meios empregados pelos rebeldes fossem os mais bem es­colhidos para a realização de seu propósito."

Baseando-nos nesses dados, as duas posições não se incompatibi­lizam, fato que, ao contrário, ocorre, quando se compara a impressão de Catarina lT que nos é dada, respectivamente, por Grinev e por Pu­chkin (capítulo 14, pág. 9).

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"Seu rosto, cheio e corado, refletia calma e dignidade e os olhos de um azul claro e o leve sorriso possuíam um en­canto inconcebível. A senhora foi a primeira a romper o silêncio" .

''Capitão Mironov! O que foi comandante de uma das fortalezas de Oremburgo?" '"Exatamente''

A senhora pareceu ficar comovida. "Perdoe-me" disse, a voz ainda mais carinhosa, "se estou ir.terferindo em seus negócios, mas eu costumo freqüentar

R~v. de Letras, Fortaleza, 14 0/2) - jan./dez 1989

a Corte. Explique-me em que consiste o seu pedido e talvez eu consiga ajudá-la''. "A princípio lia com expressão atenta de simpatia. De repente, porém, seu rosto se transfigurou e Maria Ivanovna que acompanhava com os olhos todos os seus movimentos, assustou-se cem a severa expressão deste rosto, um instante antes tão agradável e calmo. ''A senhorita está intercedendo em favor de Griniev?" a senhora perguntou com frieza. "A imperatriz não pode perdoar-lhe. Ele se uniu ao impostor, não por ignorância ou boa-fé, mas como um miserável perigoso e sem escrú­pulos".

E agora, novamente Puchkin em suas notas:

''Se capacidade de governar é sinônimo de conhecimento da fraqueza humana e habilidade em saber aproveitar-se di5so, então Catarina H merece a admiração da posteri­dade .. .. Mas o tempo há de chegar em que a história avaliará a influência de seu reinado sobre a moral, revelando, enco­berta por uma máscara de gentileza e tolerância, a reali­dade cruel de seu despotismo, os seres oprimidos por seus mercenários, os cofres públicos saqueados por seus favo­ritos e dpsvendando erros essenciais em economia política, uma legislação inepta, uma bufonaria revoltante em suas relações com os filósofos de seu tempo - e então, nem mesmo a voz do desiludido Voltaire conseguirá salvar sua gloriosa memória da execração na Rússia" .

A oposição aparente é explicada pelas restrições impostas pela censura na época em que Puchkin escrevia seu romance.

Isso não impede que a obra em si tenha salvaguardada sua uni­dade e coerência interna, corroborada pelo relacionamento entre o todo e suas partes, como já acenamos.

RELAÇÕES ENTRE O GRUPO E A OBRA

A dificuldade maior surge quando nos dispomos a procurar re­lacior..ar a obra com o grupo social que ela atinge, no sentido que aponta Lucien Goldman, ou seja, procurar as homologias entre as estruturas do universo da obra e as e~truturas mentais do grupo social da época (ou grupos), cuja consciência tenda para uma visão global do homem.

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Veja-se, portanto, à pag. 11 do capítulo omisso:

''Não vou descrever nossa marcha, nem o término da guerra de Pugatchóv. Passávamos por aldeias destroça­das (pilhadas por Pugatchóv e, involuntáriamente, reti­rávamos dos pobres habitantes aquilo que lhes rest:wa dos bandidos: QUE DEUS N.ÃD PERMITA VER UMA REVOLTA RUSSA; INCLEMENTE E INSENSATA. AQUELES QUE ENTRE NOS TRAMAM REVOLU­ÇOES JMPOSSfVETS OU SÃO JOVENS E NÃO CO­NHECEM NOSSO POVO, OU T~M UM CORAÇÃO EMPEDERNIDO PARA QlTEM A CABECA DE SEU

SEMELHANTE V ALE UM VINTI!M E SEÚ PESCOÇO NÃO VALE NADA" .

Até que ponto as opiniões de Piotr sejam endossadas por Puchkin (3), é difícil estabelecer. A (mica informação de que dispomos é en­contrada em suas ''Notas Gerais" referentes à citada "História da Revolta de Pugatchóv de 1773".

"Todo o povo comum estava do lado de Pugatchóv . . Após um estudo cuidadoso das medidas tomadas por Pu­gatchóv e seus aliados, não se pode senão admitir que os meios empregados pelos rebeldes fossem os mais bem es­colhidos para a realização de seu propósito."

Baseando-nos nesses dados, as duas posições não se incompatibi­lizam, fato que, ao contrário, ocorre, quando se compara a impressão de Catarina lI que nos é dada, respectivamente, por Grinev e por Pu­rhkin (capítulo 14, pág. 9).

28

"Seu rosto, cheio e corado, refletia calma e dignidade e os olhos de um azul claro e o leve sorriso possuíam um en­canto inconcebível . A senhora foi a primeira a romper o silêncio".

''Capitão Mironov! O que foi comandante de uma das fortalezas de Oremburgo?" "Exatamente''

A senhora pareceu ficar comovida. "Perdoe-me" disse, a voz ainda mais carinhosa, "se estou ir:terferindo em seus negócios, mas eu costumo freqüentar

R€v. de Letras, Fortaleza, 14 U/2) - jan./dez 1989

a Corte. Explique-me em que consiste o seu pedido e talvez eu consiga ajudá-la''. "A princípio lia com expressão atenta de simpatia. De repente, porém, seu rosto se transfigurou e Maria Ivanovna que acompanhava com os olhos todos os seus movimentos, assustou-se cem a severa expressão deste rosto, um instante antes tão agradável e calmo. ''A senhorita está intercedendo em favor de Griniev?" a senhora perguntou com frieza. "A imperatriz não pode perdoar-lhe. Ele se uniu ao impostor, não por ignorância ou boa-fé, mas como um miserável perigoso e sem escrú­pulos".

E agora, novamente Puchkin em suas notas:

''Se capacidade de governar é sinônimo de conhecimento da fraqueza humana e habilidade em saber aproveitar-se disso, então Catarina II merece a admiração da posteri­dade . .. Mas o tempo há de chegar em que a história avaliará a influência de seu reinado sobre a moral, revelando, enco­berta por uma máscara de gentileza e tolerância, a reali­dade cruel de seu despotismo, os seres oprimidos por seus mercenários, os cofres públicos saqueados por seus favo­ritos e d-:-svendando erros essenciais em economia política, uma legislação inepta, uma bufonaria revoltante em suas relações com os filósofos de seu tempo - e então, nem mesmo a voz do desiludido Voltaire conseguirá salvar sua gloriosa memória da execração na Rússia" .

A oposição aparente é explicada pelas restrições impostas pela censura na época em que Puchkin escrevia seu romance.

Isso não impede que a obra em si tenha salvaguardada sua uni­dade e coerência interna, corroborada pelo relacionamento entre o todo e suas partes, como já acenamos.

RELAÇÕES ENTRE O GRUPO E A OBRA

A dificuldade maior surge quando nos dispomos a procurar re­lacior.ar a obra com o grupo social que ela atinge, no sentido que aponta Lucien Goldman, ou seja, procurar as homologias entre as estruturas do universo da obra e as estruturas mentais do grupo social cta época (ou grupos), cuja consciência tenda para uma visão global do homem.

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Puchkin conseguiu criar um universo imaginário coerente e, de uma certa forma, antecipar-se à sua época. De fato, captando tendências ainda em embrião na Europa e transpondo-as para a Russia, criou uma obra cuja estrutura se antecipou àquela para a qual tendia um certo gmpo . A história li.terária prova isso, para o conjunto de sua obra; nós vamos tentar prová-lo para uma estmtura significativa desta obra em particular.

A moral aparente da obra parece um eco da epígrafe inicial: "Se agires conforme o código de teu estado atingirás tuas reali­

zações, caso contrário, serás castigado" com a atenuante: "Poderás errar, mas sem te comprometer". A narrativa parece desenvulver-se dentro deste ·esquema mais ou

menos determinado até quase o final do livro. Acompanhemos a personagem principal em alguns pontos neces­

sários: Após o recebim~nto, por parte de Zurin, da ordem de prisão para

Piotr este é levado a julgamento. Defende-se provando que nunca havia compactuadú com Pugatchóv, apesar de ter-se valido de sua complacência

Os juízes aceitam as explicações do jovem oficial, de fato nós sabemos que ele nunca aceitou propostas de Pugatchóv; resta, en­tretanto, a explicar, sua deserção e nós sabemos que ele desertou de fato.

· '?iotr abandonou o forte de Bielogorsk por motivos estritamf!nte pessoais, nós sabemos que foi para tirar sua amada do poder de Shvabrin.

Ele não dá explicações aos juízes a esse respeito e é condenado à morte. Sua pena é comutada pela imperatriz, em consideração aos feitos de Rett pai. O livro poderia terminar aqui.

Antes, porém, de discutir o último capítulo, achamos importante "reforçar'' uma alternativa que Puchkin deixa aberta propositada­mente. Se Piotr tivesse explicado aos juízes os motivos pelos quais desertou . estes teriam-no absolvido? Teria um motivo pessoal. naquela circunstância, pesado mais que o dever de um soldado, na balança dos militares?

A tradição e a conjuntura da época seriam taxativos: não. Puchkin porém faz questão de nos levar a acreditar num veredicto

favorável, salientando a atitude benevolente dos juízes no momento culminante de julgamento. B a es~e vislumbre de salvação que nos apegamos .

De nad:: adianta . Como 'tinha que ser' a pena é aplicada . O último capítulo nos defronta, novamente, com o mundo da

fazenda.

30 Rev. de Letras, Fortaleza, 14 U/2) - jan./dez. 198.9

O pai está folheando, sem prazer algum, o Calendário da Corte e a mãe está costurando, em lágrimas. Ambos estão conformados. O espírito da epígrafe os alcançou e se fechou sobre eles . Tudo está de acordo.

Eis o inesperado: Maria Ivanovna, a que sempre se submeteu, a que sempre "es­

perou com santa paciência o que a sorte lhe reservava" (pág. 126) resolve simplesmente mudar tudo. Num requinte de malícia nem sequer suspeitada dirige-se à imperatriz dizer..do-lhe:

"Vim pedir um favor, não justiça . .. " E com a mesma naturalidade com que havia chegado a Peters­

burgo, volta à fazenda, vitoriosa. Puchkin não nos diz o que fez com que Catarina li concedesse

v ''favor". Deixa-nos na mesma ambigüidade em que nos deixou por ocasião

do julgamento. Resta o fato de que maior importância foi atribuída ao sentimento

humano do que à rigidez da lei tanto por Piotr, quando desertou, quanto pela autoridade máxima do país, quando deixou de punir.

Não representaria essa vitória do sentimento uma forma velada e eufêmica de sintetizar . . . aspirações do gmpo social que Puchkin

atingia? B a tese que aventuramos .

OBRAS CONSULTADAS

1. A.S . Puchkin. Kapitanskaia Dotchka em Polnoie Sobranie Sotchi· nienii . tomo 6.•, Editora Akadiemii Nauk SSSR; Moscou, 1957.

2. A. Pushkin The captain's daughter. Progress Publishers, Moscou, 1965 .

3. A short history ot the USSR . 1.• Parte. Academia de Ciências da URSS . Editora Progresso, Moscou, 1965.

4 . Sociologia do Romance por Lucien Goldman . Editora Paz e Terra Ltda ., Rio de Janeiro, 1967 .

5. Teoria da Literatura por R . Wellek e A. Warren . Publicações Eu­ropa América, Lisboa, 1962.

6 . Tra(lução para o Português de A filha do Capitão por Helena S . Nazário (obra ainda inédita, patrocinada pela FAPESP).

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Puchkin conseguiu criar um universo imaginário coerente e, de umu ccrl:l forma, antecipar-se à sua época. De fato, captando tendências !indu em embrião na Europa e transpondo-as para a Russia, criou uma ohru cuja estrutura se antecipou àquela para a qual tendia um certo grupo. A história literária prova isso, para o conjunto de sua obra; nós vumos tentar prová-lo para uma estrutura significativa desta obra c111 purticular.

A moral aparente da obra parece um eco da epígrafe inicial: "Se agires conforme o código de teu estado atingirás tuas reali­

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O pai está folheando, sem prazer algum, o Calendário da Corte e a mãe está costurando, em lágrimas . Ambos estão conformados. O espírito da epígrafe os alcançou e s~ fechou sobre eles. Tudo está de acordo.

Eis o inesperado: Maria Ivanovna, a que sempre se submeteu, a que sempre "es­

perou com santa paciência o que a sorte lhe reservava" (pág. 126) resolve simplesmente mudar tudo . Num requinte de malícia nem sequer suspeitada dirige-se à imperatriz dizendo-lhe:

"Vim pedir um favor, não justiça .. . " E com a mesma naturalidade com que havia chegado a Peters­

burgo, volta à fazenda, vitoriosa. Puchkin não nos diz o que fez com que Catarina li concedesse

CJ ''favor".

Deixa-nos na mesma ambigüidade em que nos deixou por ocasião do julgamento.

Resta o fato de que maior importância foi atribuída ao sentimento humano do que à rigidez da lei tanto por Piotr, quando desertou, quanto pela autoridade máxima do país, quando deixou de punir.

Não representaria essa vitória do sentimento uma forma velada e eufêmica de sintetizar . . . aspirações do grupo social que Puchkin

atingia? ~ a tese que aventuramos.

OBRAS CONSULTADAS

1. A.S . Puchkin . Kapitanskaia Dotchka em Polnoie Sobranie Sotchi­nienH . tomo 6.•, Editora Akadiemii Nauk SSSR; Moscou, 1957 .

2. A. Pushkin The captain's daughter . Progress Publishers, Moscou, 1965 .

3. A short history ot the USSR . 1.• Parte . Academia de Ciências da URSS . Editora Progresso, Moscou, 1965.

4. Sociologia do Romance por Lucien Goldman. Editora Paz e Terra Ltda .• Rio de Janeiro, 1967 .

6. Teoria da Literatura por R . Wellek e A. Warren. Publicações Eu­ropa América, Lisboa, 1962.

6 . Tradução para o Português de A filha do Capitão por Helena S . Nazário (obra ainda inédita, patrocinada pela FAPESP) .

Rcv. de Letras, Fortaleza, 14 (1/2) - jan./dez. 1989 31