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Governo do Estado do Paraná Secretaria da Cultura CÂNDIDO - Jornal da Biblioteca Pública do ParanáBPP Busca Cultura Um Escritor na Biblioteca Michel Laub Com uma literatura marcada pela concisão e pelo tom aparentemente autobiográfico da narrativa, Michel Laub falou sobre essas e outras questões que envolvem sua obra romanesca durante o último encontro de 2013 do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, realizado em novembro. Laub lançou no segundo semestre deste ano o romance A maçã envenenada que — segundo o autor — compõe uma trilogia iniciada com Diário da queda (2011). O novo livro, que começará a ser escrito em 2014, deve marcar não só o fim da trilogia romanesca, disse Laub, mas também o fim de um ciclo ficcional do autor. “Depois da trilogia [iniciada em Diário da queda], talvez acabe minha carreira de ficcionista, pelo menos do ficcionista que eu fui até aqui. São seis livros, o leitor já entendeu e os livros têm muita semelhança entre si. Se eu voltar a escrever, certamente será uma coisa diferente.” Questionado a respeito dos autores que influenciaram a sua escrita, o escritor gaúcho revelou que prefere sempre fugir de sua zona de conforto e buscar autores que tenham concepções literárias diferentes da sua. “Cada vez mais, à medida em que os anos vão passando, procuro vozes que sejam particulares e que não necessariamente digam o que já sei ou o que eu espero ouvir, o que considero um grande pecado de quem lê ideologicamente, porque você acaba sempre procurando confirmar as próprias certezas.” Durante o encontro, mediado pelo diretor teatral Flávio Stein, Laub também falou que considera sua trajetória de escritor iniciada com os primeiros livros que leu. “O início da minha trajetória como escritor vem da minha vivência como leitor. Os primeiros livros que li, como O patinho feio, me fizeram ter gosto pela literatura, foram, para mim, mais influentes do que qualquer coisa que eu tenha lido depois.” Nascido em Porto Alegre, em 1973, Michel Laub foi editor-chefe da revista Bravo! e coordenador de publicações e internet do Instituto Moreira Salles. Hoje é colunista da Folha de S.Paulo e da revista Vip, além de colaborar com diversas editoras e veículos. Além de A maçã envenenada, publicou outros cinco romances: Música anterior (2001), Longe da água (2004, lançado também na Argentina), O segundo tempo (2006), O gato diz adeus (2009) e Diário da queda (2011), que teve os direitos vendidos para 11 países e virará filme. Confira os melhores momentos do papo. LEITURAS Um Escritor na Biblioteca - CÂNDIDO - Jornal da Biblioteca Pública ... http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?co... 1 of 6 08/04/2015 09:07

Um Escritor Na Biblioteca - CÂNDIDO - Jornal Da Biblioteca Pública Do Paraná

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  • Governo do Estado do ParanSecretaria da CulturaCNDIDO - Jornal da Biblioteca Pblica do ParanBPP

    Busca Cultura

    Um Escritor na Biblioteca

    Michel Laub

    Com uma literatura marcada pela conciso e pelo tom aparentemente autobiogrfico da narrativa, Michel Laub falou sobreessas e outras questes que envolvem sua obra romanesca durante o ltimo encontro de 2013 do projeto Um Escritor naBiblioteca, realizado em novembro. Laub lanou no segundo semestre deste ano o romance A ma envenenada que segundo o autor compe uma trilogia iniciada com Dirio da queda (2011). O novo livro, que comear a ser escrito em2014, deve marcar no s o fim da trilogia romanesca, disse Laub, mas tambm o fim de um ciclo ficcional do autor. Depois datrilogia [iniciada em Dirio da queda], talvez acabe minha carreira de ficcionista, pelo menos do ficcionista que eu fui at aqui.So seis livros, o leitor j entendeu e os livros tm muita semelhana entre si. Se eu voltar a escrever, certamente ser umacoisa diferente. Questionado a respeito dos autores que influenciaram a sua escrita, o escritor gacho revelou que preferesempre fugir de sua zona de conforto e buscar autores que tenham concepes literrias diferentes da sua. Cada vez mais, medida em que os anos vo passando, procuro vozes que sejam particulares e que no necessariamente digam o que j sei ouo que eu espero ouvir, o que considero um grande pecado de quem l ideologicamente, porque voc acaba sempre procurandoconfirmar as prprias certezas. Durante o encontro, mediado pelo diretor teatral Flvio Stein, Laub tambm falou queconsidera sua trajetria de escritor iniciada com os primeiros livros que leu. O incio da minha trajetria como escritor vem daminha vivncia como leitor. Os primeiros livros que li, como O patinho feio, me fizeram ter gosto pela literatura, foram, paramim, mais influentes do que qualquer coisa que eu tenha lido depois. Nascido em Porto Alegre, em 1973, Michel Laub foieditor-chefe da revista Bravo! e coordenador de publicaes e internet do Instituto Moreira Salles. Hoje colunista da Folha deS.Paulo e da revista Vip, alm de colaborar com diversas editoras e veculos. Alm de A ma envenenada, publicou outroscinco romances: Msica anterior (2001), Longe da gua (2004, lanado tambm na Argentina), O segundo tempo (2006), Ogato diz adeus (2009) e Dirio da queda (2011), que teve os direitos vendidos para 11 pases e virar filme. Confira os melhoresmomentos do papo.

    LEITURAS

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  • Hoje em dia leio muita coisa por obrigao. Como trabalho com livros, preciso ler sobre aquilo que escrevo, referncias quepreciso ter, etc. E, eventualmente, algo que eu precise acompanhar da produo atual, porque escrevo literaturacontempornea e legal saber o que meus parceiros de gerao esto fazendo.

    INFLUNCIASNo sei falar muito sobre influncias porque sempre acreditei que um escritor iniciante j tem a inteno de fazer algo nico eprecisa tentar fugir das influncias mais evidentes. Toda vez que o escritor iniciante percebe que um autor est muito presentenaquilo que ele escreve, imediatamente foge disso. Os escritores que mais poderiam me influenciar acabaram noinfluenciando porque, conscientemente, fugi deles na hora de escrever.

    ESCRITOR COMO LEITORA maior influncia de toda a minha trajetria foi a leitura. Acho que todo escritor um leitor de si mesmo, no sentido de queaquilo que vai para a pgina, que ele concorda em mostrar para seu editor e depois para o seu pblico, passou pelo crivodesse escritor como leitor. Ele nunca publica algo sem ter lido antes. Eu jamais faria uma coisa dessas e acredito que 99% dosescritores tambm no. Voc publica aquilo que quer, de acordo com o que gosta como leitor. Essa habilidade para ler um textoe decidir se ele bom ou ruim, o que falta ou no, o que faz o processo de escrita. O incio da minha trajetria como escritorvem da minha vivncia como leitor. Os primeiros livros que li, como O patinho feio, os ttulos da Coleo Vaga-Lume, romancesda Agatha Christie e, mais tarde, os contos de Rubem Fonseca, que foram os livros que me fizeram ter gosto pela literatura,foram, para mim, mais influentes do que qualquer coisa que eu tenha lido depois.

    TEMPO DE LEITURAVoc todo dia est no computador, escreve trechos e, ao final de dois, trs, quatro anos vai olhar aquela maaroca e dar umaforma para ela, de maneira que aquilo se torne um romance, um todo coerente. Essa habilidade de ler acho que se adquire aolongo dos anos lendo outros autores, muito mais do que imitando-os. Um livro similar a Como funciona a fico, do JamesWood, s vezes te d ferramentas para ler e destrinchar tecnicamente um texto que voc acaba usando na sua prpria escritade maneira muito mais efetiva e visvel do que propriamente aquilo que voc leu e eventualmente tenha influenciado voc.

    NOVAS VOZESCada vez mais, a medida em que os anos vo passando, procuro vozes que sejam particulares e que no necessariamentedigam o que j sei ou o que eu espero ouvir, o que eu considero um grande pecado de quem l ideologicamente, porque vocacaba sempre procurando confirmar as prprias certezas e a no sair do lugar, pois as leituras se tornam pregaes paraconvertidos. Eu gosto muito de ler escritores que pensam o mundo e escrevem de uma maneira totalmente diferente da minha.A escrita que fao, por exemplo, s vezes muito apolnea, muito trabalhada, no sentido de que demasiadamente exata. Egosto, por exemplo, de escritores que tenham uma prosa muito mais suja.

    O diretor teatral Flvio Stein conversou com o autor de Dirio da queda.

    ESCRITA EM PROGRESSOQuando estou escrevendo, muito dramtico pra mim, muito angustiante. Cada frase demora muito pra sair, s vezes passoum dia inteiro sem conseguir escrever um pargrafo, no outro dia, continuo na mesma. E, quando vejo, passo a semana toda

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  • sem um pargrafo. Escritores mais prolficos, me alimentam porque so autores que usam as palavras sem se preocupar, quecomem no restaurante sem se preocupar com a conta, digamos. Um exemplo o Lobo Antunes. No um escritor da minhapreferncia, mas durante a escrita de O gato diz adeus, lembro ter lido Lobo Antunes porque um tipo de escrita caudalosa,meio barroca e tal. E aquilo me serviu como um estmulo. P, no sei fazer um pargrafo e esse cara escreveu 700 pginas,pensei. No preciso fazer 700 pginas nem ser o Lobo Antunes, mas pelo menos uma pagininha eu consigo terminar at o fimda semana. E se fizer uma pgina por semana, estou no ritmo dos meus livros de 120, 150 pginas, que publico a cada dois outrs anos. Assim est tudo bem.

    FAULKNERO Faulkner cito sempre como uma influncia, porque tem algum ponto da prosa dele que eu acho que incorporei na minha. Ele muito generoso, digamos assim, escreve livros longos e no poupa as frases, est tudo dito ali de uma maneira que vai paravrios lugares, sem se preocupar muitas vezes com o leitor, uma coisa que eu acho legal tambm. Num ritmo s vezes lento,s vezes muito rpido, muito violento e tal. um cara que faz coisas que eu no costumo fazer e, por isso, admiro ainda mais aescrita dele.

    PREOCUPAO COM O LEITOREu acho que existem duas repostas possveis. Uma delas, a mais fcil e a que mais agrada as pessoas, que dizer,contraditoriamente, que voc no se preocupa com o leitor. E isso pega muito bem, porque eu sou contra o mercado, contra oleitor, sou contra a inteligncia, sou contra tudo, porque eu quero fazer exatamente aquilo que penso e o mundo que seadapte. Em alguma medida, claro que assim, porque voc tem que ir contra algum tipo de certeza sua mesmo e se uma certeza sua, tambm uma certeza geral, porque voc no consegue fugir muito do lugar-comum. Mas ao mesmo tempo, claro que o livro pra ser lido, em alguma ponto, voc quer que o leitor tenha algum envolvimento com aquilo. Acho que aprimeira coisa com que um escritor deve se preocupar, em fazer o leitor chegar at o final do livro. No necessariamente pormeio de um enredo bem construdo, aquela coisa folhetinesca, mas um interesse que o faa pular de uma pgina para a outra.No existe pureza nessa questo, de fingir que o leitor no existe. Nem, por outro lado, ser um escravo do leitor e falar s oque as pessoas querem ouvir. O equilbrio est em algum ponto no meio.

    PBLICOAcho que ao longo do tempo, pelo menos em termos de linguagem, puxei para o lado do leitor. Meus ltimos textos esto maisinteligveis que os primeiros, certamente. Quanto aos temas, acho que foi ao contrrio. Quero crer que eu hoje tenho umassofisticao temtica maior que a de antigamente. At porque estou mais velho e a experincia de vida d outra compreenso.

    REALIDADE E FICONo momento em que voc escolhe contar uma histria, tambm escolhe no contar outra histria. Eu sou, constantemente,confundido com um escritor autobiogrfico. Mas existe um erro bvio em dizer que uma pessoa que conta uma histria de 20anos atrs vai reproduzir exatamente tudo o que aconteceu.

    LONGE DA GUADos meus seis romances, o que eu poderia dizer que maisautobiogrfico o Longe da gua (2004), que tem um episdio sobre umacidente que aconteceu com um amigo, em 1987. Hoje muito difcil eulembrar da sensao daquele dia, mais fcil eu me lembrar das palavrasdo livro que usei para descrever aquela sensao meio abstrata, que seperdeu na memria, pois eu tinha 14 anos. A memria vai transformandoas coisas ao longo do tempo. E a escrita, no momento em que vocresolve fixar, registrar isso, congela isso no tempo. A realidade no temsentido, fragmentada, sensorial. Um livro no isso, ele tem lgica,trabalha com um instrumento, que a linguagem, possui regras. Voc usaum instrumento tcnico e artificial para falar de algo que no nemtcnico nem artificial.

    EXISTNCIA DA REALIDADEExiste uma objetividade possvel. claro que quando eu digo que meupai nasceu em Berlim, em 1930, ou que tenho 40 anos, isso verdade,no vou discutir a existncia da realidade. Mas isso no importante naliteratura, dentro de um livro. Essas referncias factuais servem paracolorir algo que est ali por baixo, a ao, o emocional do livro e tal. Oconto que enviei para a revista Granta, chamado Animais, queprovavelmente meu maior exerccio autobiogrfico, em vriosmomentos, meu pai realmente aquela pessoa da histria, que morreudaquele jeito. Essa neutralidade da descrio desse conto talvez sinteresse ao leitor porque dentro do Animais existe uma histria sobreum cachorro que morre e essa histria mentira. Se algum gostar doconto, vai gostar pela histria do cachorro e no pela do meu pai.

    MEMRIAExistem mil circunstncias que interferem no registro da memria e eu

    no tenho nenhuma dvida sobre essa subjetividade. Quanto literatura, o que posso dizer que existem tambm vriasformas de tratar a memria, e uma delas a temtica. A memria no est nem na estrutura do texto, est na forma com que

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  • voc a trata no livro. Uma das escolhas que sempre fiz nos meus livros, foi situar personagens num perodo da vida infnciaou adolescncia em que as coisas so necessariamente mais intensas porque elas so vividas pela primeira vez. Como emLonge da gua, em que o garoto v o amigo morrendo. Se hoje meu melhor amigo morrer, vai ser terrvel, mas diferente. Eusei que o mundo no para, que no tenho s esse amigo, que tenho uma vida familiar, que a vida tem muitos caminhos e nada definitivo. Na adolescncia, voc no tem nenhum experincia de vida para saber que possvel ter uma vida alm disso.

    ROMANCE DE FORMAODentro dos romances, sempre me pareceu mais interessante tratar dessa poca, inclusive porque os dramas dos meus livrosso coisas s vezes muito banais e que se fossem vista apenas do ponto de vista de um adulto no teriam fora suficiente parasegurar um livro de 150 pginas. Esse o principal motivo para eu ter produzido uma srie de livros que so identificadoscomo romances de formao, acho que talvez at falta de imaginao da minha parte em pensar em algo mais complexo queesses pequenos dramas que precisam ser coloridos por questes etrias.

    PRIMO LEVIDirio da queda (2011) trata de um menino cujo av esteve no campo de concentrao de Auschwitz. Esse av nunca falavadiretamente sobre o campo de concentrao, e eu precisava contrapor isso, de algum modo, colocando toda a experinciaintelectual da segunda metade do sculo XX falando sobre a Segunda Guerra. Para isso, escolhi isto um homem? (1956), doPrimo Levi, que considero o livro que traz o relato mais literal, menos sentimental, e exato do que foi a experincia em umcampo de concentrao. Eu j estava quase terminando Dirio da queda, quando resolvi reler esse livro para conferir se nohavia algum erro que comprometesse meu texto. Meu av nunca esteve em um campo de concentrao. Mas o av de umprimo meu esteve em Auschwitz no mesmo ano em que o Primo Levi, o nome dele era Chaim e era relojoeiro. E o cara quedividia a cama com o Primo Levi nos alojamentos se chamava Chaim e era relojoeiro. Foi chocante, eu inclusive procurei meuprimo pra checar se isso era verdade, comparamos datas e chegamos concluso de que no era ele, at porque o Chaimque conhecamos saberia se fosse ele o citado no livro, pois era uma pessoa bem informada.

    A MA ENVENENADAA ma envenenada conta a histria de um soldado do exrcito de Porto Alegre que quer ir para So Paulo porque a namoradaest l e vai assistir ao show do Nirvana. A partir disso, ele faz uma srie de relaes entre Kurt Cobain e uma meninachamada Immacule Ilibagiza, sobrevivente do massacre de Ruanda que passou noventa dias no banheiro com outras seismulheres. Ela entrou nesse banheiro no dia da morte do Kurt. Comecei a escrever esse livro antes de Dirio da queda e era umlivro s sobre o Kurt Cobain, mas ele empacou em um determinado momento e eu no sabia para onde ir. Muito tempo depois,quando conheci Immacule Ilibagiza na vida real e ela me contou tudo isso, eu fiquei impressionado com a histria, li os livrosdela e percebi essa coincidncia de datas. Eu estava escrevendo um livro sobre algum que se matou no mesmo dia em queuma mulher perdeu tudo, e essa histria comea no mesmo dia, era algo muito forte para eu desprezar. O desafio passou a seraproximar essas histrias e ento eu retomei o livro. Queria entender essas experincias aparentemente to opostas, descobrirse havia possveis pontos de contato entre elas, por meio de um personagem que est entre esse desejo de sobrevivncia e aideia romntica da morte.

    LITERATURA E VIDAOs livros tm impacto na vida pessoal, sim. No incio da carreira, como todo escritor que quer impressionar, sempre dizia queliteratura no serve pra nada, ningum se importa e tal. Mas, no mnimo, ela muda a vida de quem se prope a ler. Se vocpassa a vida inteira escrevendo um livro, participando de debates, isso gera um efeito sobre o mundo, um mundo possvel, oseu mundo. Claro que eu no estou interferindo na economia brasileira, mas estou mudando algo na minha vida, na vida de umleitor, de dez leitores, etc. Isso mudar a realidade dentro de uma esfera possvel.

    ROMANCE AUTOBIOGRFICOExistem dimenses autobiogrficas nos livros que so subestimadas. Exceto pelo O gato diz adeus, que tem mais de umnarrador, todos os meus outros livos tm uma voz mais uniforme, que um pouco a minha voz natural. Leio meus romances eidentifico neles exatamente a maneira como penso, e isso muito mais autobiogrfico do que dizer que uma coisa aconteceuexatamente daquela maneira.

    ROMANCISTA RELATIVISTASempre existem extremos que os personagens, por ter mais ou menos a minha voz, e por ter uma certa curiosidade intelectualque eu tenho, testam as ideias at o limite delas. No Dirio da queda onde eu mais fiz isso, porque um personagem fala denazismo e est o tempo inteiro se colocando dos dois lados da histria, algo que no aceito como naturalmente moral, masintelectualmente, o que se faz. E acho que eu sou assim na vida real, relativista. Quem acompanha o que escrevo naimprensa, percebe que certamente no sou um colunista enftico, com ideias mais ou menos previsveis como tem tanta gentepor a. Quando falo de um assunto, sempre vou olhar os dois lados e dar voltas em cima daquilo, e acho que os meus livrosreproduzem isso.

    LEITORESEssa postura deve irritar leitores que gostam de algo mais direcionado, mas agrada um outro tipo de leitor. Embora eu tenhame impressionado muito com a histria da Immacule, no podia deixar isso contaminar o texto, tinha que dissecar essamulher. Falar mal do Kurt Cobain, que foi um cara muito importante na minha vida, faz parte do mesmo processo. Acredito queo verdadeiro respeito e entendimento pelas pessoas passa por voc ser capaz de pes-las assim e de analisar todos osaspectos da personalidade delas, sem fazer um julgamento prvio, pois o julgamento vai ser do leitor. Esse um tpicoprocedimento meu, que no feito para agradar o leitor, no de propsito, mas acaba tendo esse efeito.

    DEPRESSO COMO TEMA

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  • H um livro do Otavio Frias Filho chamado Queda livre Ensaios de risco (2003), em que cada ensaio tem um tema. Noltimo captulo ele voluntrio do CVV [Centro de Valorizao da Vida] por seis meses. Com essa experincia ele escreve quese curou do suicdio. Eu no posso dizer que tenha uma tendncia concreta ao suicdio, mas essa uma ideia que meinteressa intelectualmente. Nunca sofri de depresso, por exemplo, mas a depresso foi um tema que me interessou, acho adepresso uma coisa fascinante, um instinto contra a prpria espcie. Tanto que, em quase todos os meus livros, h umpersonagem que sofre dessa doena. Tratar desse tema talvez seja uma maneira de exorcizar esse instinto em mim.

    FIM DA CARREIRATenho 40 anos e sinto um esgotamento de mim mesmo em relao literatura. Tenho mais um livro, que j no vai mais passarpela questo do suicdio, mas ainda falar sobre a morte, sobrevivncia e tal. Provavelmente o ltimo livro que eu escrevo etalvez seja ltimo produzido nessa chave de primeira pessoa, de misturar algumas referncias de experincia pessoal, etc.Depois da trilogia [iniciada em Dirio da queda], talvez acabe minha carreira de ficcionista, pelo menos do ficcionista que eu fuiat aqui. So seis livros, o leitor j entendeu e os livros tm muita semelhana entre si. Se eu voltar a escrever, certamenteser uma coisa diferente, narrar sob a tica de outra pessoa, ou escrever livros-painis com vrios personagens, em terceirapessoa, no sei. Mas certamente vou dar um tempo, fazer livros de no-fico, que algo que me interessa, ou entoreportagens mesmo. No quero passar o resto da vida escrevendo romances de formao porque eu mesmo estou cansandodisso.

    CARTER AUTOBIOGRFICONo nego o carter autobiogrfico de meus livros. Acho que todo livro autobiogrfico de alguma maneira, porque o escritorparte da sua memria, mesmo que seja para inventar alguma coisa. Eu gostaria de ter escrito A divina comdia, mas sconsegui escrever A ma envenenada, so os limites da minha escrita. Os limites do escritor so exatamente os livros que elepublicou, a capa, o miolo, aquilo o mximo que eu consegui fazer. Meu talento, minhas circunstncias, idade, experincia devida, etc., est tudo ali. Por saber disso, voc usa as armas que tem. O Bernardo Carvalho, em uma entrevista que fiz com elecerta vez, disse que quando ele entendeu que os defeitos que tinha eram s seus, passou a apostar justamente nisso. Ou seja,investir nos meus defeitos o que vai me fazer um escritor nico, no um escritor como o Bernardo Carvalho, ou qualqueroutro que faz um outro tipo de literatura. Percebi isso e muitas vezes forcei a barra, exacerbando esses defeitos. Essesdetalhes autobiogrficos criam um espcie de jogo com o leitor, que ao longo dos anos comea a ter alguma ressonncia. Umadas maneiras de convencer o leitor, hoje em dia, que todo mundo to interessado em detalhes pessoais, em relatosconfessionais, fazer com que o leitor acredite que aquilo realmente aconteceu. um mau motivo para atra-lo, mas ali nomeio voc contrabandeia e coloca l as coisas mais importantes e que voc espera refletir pro leitor.

    TCNICAA tcnica uma coisa curiosa. J dei algumas oficinas literrias e possvel voc ensinar a identificar alguns procedimentos.Um filme, por exemplo, trabalha com cortes. Mas voc se acostumou, porque isso no nasceu com o cinema. Isso uma teoriaque faz com que a narrativa do cinema ande pra frente por meio dos cortes. A literatura no assim, ela tem algo que nopode ser reproduzido pelo cinema. E cada autor faz essa transio de um jeito. Com o tempo, voc consegue desenvolver noseu discurso esse tipo de tcnica.

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  • ROTINACada escritor tem uma rotina diferente. No tenho um ritmo muito regular porque trabalho em outras coisas, viajo bastante. Eutenho um ritmo de produo muito lento, em perodos curtos e com muitas distraes no meio. S publiquei tantos livros porqueeles so quase novelas. Se eu fosse romancista mesmo, daqueles que escrevem 300, 400 pginas, teria publicado no mximodois livros, pois no tenho esse ritmo de romancista de flego e no adianta eu querer lutar contra isso. Eu era contista econseguir me estender a ponto de escrever novelas, mas mais que isso eu no vou conseguir fazer. Mas, enfim, cada um temque achar sua prpria maneira de exprimir por meio da tcnica aquilo que est dentro de voc, que o mais importante. umpoo de petrleo que voc precisa encontrar a ferramenta certa para furar.

    ESCREVENDO NA REDAOTrabalhei muito tempo em redao. Longe da gua eu escrevi quase todo dentro de uma redao. Foi o primeiro livro em queeu usei os captulos curtos, e de l pra c fui diminuindo cada vez mais, porque eu precisava terminar esse captulo em umasesso de uma hora ou duas sesses porque depois a redao entrava em polvorosa, entrava uma matria em que eu tinhaque viajar e eu ficava trs semanas fora.

    Biblioteca Pblica do Paran - BPPCndido Lopes, 133 - Curitiba - Paran - 80020-901 - Curitiba - PR41 3221-4900 / 41 3225-6883 - Localizao

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