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Carolina Carvalho Um jeito de espiar o mundo: a análise das crônicas- reportagens do livro A Vida que Ninguém Vê da jornalista Eliane Brum Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social, da Faculdade de Artes e Comunicação, da Universidade de Passo Fundo, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social Habilitação em Jornalismo, sob a orientação da professora Ms. Roberta Scheibe. Passo Fundo 2007

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Carolina Carvalho

Um jeito de espiar o mundo: a análise das crônicas-reportagens do livro A Vida que Ninguém Vê da

jornalista Eliane Brum

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social, da Faculdade de Artes e Comunicação, da Universidade de Passo Fundo, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, sob a orientação da professora Ms. Roberta Scheibe.

Passo Fundo

2007

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AGRADECIMENTO

Agradeço primeiramente a Deus, através de Seu Filho Jesus Cristo e de seus seguidores, por estar neste mundo. Ao meu avô Onézimo e às minhas avós Hilire e Áurea pelo carinho e pelo aconchego. Aos meus pais, José Carlos e Leonilda Tereza, pelo otimismo, pela ajuda, pelo amor incondicional dedicado a mim e pela oportunidade que me concederam de chegar até aqui. Ao meu irmão Estevan por compartilhar das minhas entusiasmadas explicações sobre o tema de que vai tratar esta monografia. À minha orientadora e amiga, a professora Ms. Roberta Scheibe por ter me proporcionado a trabalhar com um tema tão belo e ao mesmo tempo tão instigante. À jornalista Eliane Brum pela obra de arte que escreveu e que com isso ajuda a transformar o jornalismo em algo sublime. Por sua atenção em responder as minhas perguntas e pelo interesse em ter este trabalho em mãos. Ao membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar, pela generosidade em conceder-me entrevista. Ao professor Edvaldo Pereira Lima pela gentileza em me esclarecer uma dúvida. Ao repórter Moisés Mendes que contribuiu significativamente para a construção deste trabalho. E a todas as pessoas que contribuíram com mais um título conquistado por mim nesta universidade.

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O repórter em campo, participando da cena, ouvindo seus participantes, gastando alguns dias de investigação para ter o controle absoluto do assunto e depois contá-lo no capricho, investindo na subjetividade e na inteligência sutil...

Joaquim Ferreira dos Santos

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RESUMO

O presente trabalho realiza um estudo dos textos escritos pela jornalista

Eliane Brum no livro A Vida que Ninguém Vê. Nesta monografia é evidenciada a

questão da crônica e da reportagem como gêneros passíveis de fusão. Além

disso, o estudo observa na obra da autora as características importadas da

literatura e do jornalismo, ratificando os entrelaçamentos da crônica com a

reportagem na obra da jornalista. Este trabalho é fundamentado nas teorias

propostas por Edvaldo Pereira Lima, Tom Wolfe, José Marques de Melo, Antonio

Candido, Luiz Beltrão, entre outros. A investigação utiliza o método analítico

comparativo que resulta no exame simultâneo entre o livro que constitui a obra

analisada e as teorias evidenciadas, que dizem respeito aos estilos dos dois

gêneros: a crônica e a reportagem. A análise aponta, no final, para os seguintes

sentidos: a hibridez de dois gêneros, a utilização do belo no jornalismo e um

criterioso parecer sobre uma nova variante de livro-reportagem.

Palavras-chave: Eliane Brum, crônica, reportagem, crônica-reportagem.

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SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................ .....4 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7 1. “DESSA POSIÇÃO DE IGUALDADE, PUDE ENXERGÁ-LO”: AS

CARACTERÍSTICAS DO JORNALISMO IMPORTADAS DA LITERATURA .......... 10

1.1 Da epopéia ao século XXI: uma questão de narrativa.......................................14

1.2 O hibridismo entre o real e a ficção .............................................................. ....24

1.3 As técnicas narrativas ...................................................................................... 30

1.4 O narrador e as personagens............................................................................34

1.5 O cotidiano transformado pelo olhar sensível .................................................. 38 2. “CADA ZÉ É UM ULISSES. E CADA PEQUENA VIDA UMA ODISSÉIA”: A

CRÔNICA-REPORTAGEM ....................................................................................... 43

2.1 Contando histórias: a crônica ........................................................................... 43

2.2 “Repórter que vai pra a rua suja os sapatos”: a reportagem........................... ..51

2.3 A vida e a arte: a crônica-reportagem............................................................... 67 3. O JORNALISMO E OS HUMANOS ANÔNIMOS: A ANÁLISE DAS CRÔNICAS-

REPORTAGENS DO LIVRO A VIDA QUE NINGUÉM VÊ DA JORNALISTA ELIANE

BRUM......................................................................................................................... 76

3.1 “Boa viagem pela vida”: o livro ......................................................................... 77

3.2 A moça da biblioteca: a jornalista Eliane Brum ................................................ 79

3.3 A vida que ninguém vê: a análise do livro ........................................................ 81

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 99

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 103

ANEXOS ................................................................................................................. 109

ANEXO A – Entrevista Eliane Brum ..................................................................... 110

ANEXO B – Entrevista Moacyr Scliar ................................................................... 113

ANEXO C – Entrevista Moisés Mendes.................................................................114

ANEXO D – Entrevista Edvaldo Pereira Lima.......................................................’116

ANEXO E – O conde decaído............................................................................... 117

ANEXO F – O gaúcho do cavalo-de-pau..............................................................’121

ANEXO G – A voz..................................................................................................126

ANEXO H – O álbum............................................................................................ 130

ANEXO I – Depois da filha, Antonio sepultou a mulher........................................’138

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INTRODUÇÃO

Significativamente, alcunha-se de crônica o texto leve que flui com facilidade

de estilo, e semblante indomável de arte, que forma o elo entre o passado e o

presente. Versátil e de natureza requintada, a crônica, enquanto gênero, não deve

ser vista apenas como um repertório de temáticas, mas como um campo estruturado

de conflitos simbólicos e imaginários, históricos e estéticos.

[...] um gênero que discute um núcleo problemático que uma sociedade deseja ou precisa pensar mas o faz de uma forma específica que não se encontra em outros campos da cultura. [...] Em outras palavras, diríamos que se esboça, assim, uma relação específica entre normas e práticas que definem o gênero da crônica: uma cultura das margens que se exprime com a lei dos letrados [...]. (ANTELO, 1992, p. 155).

Já a reportagem deve ser entendida como a melhor versão da verdade

provável de obter-se. Logo, os repórteres estão condenados a unir versões da

verdade transmitidas pelos protagonistas, e organizá-las da melhor maneira possível

com o máximo de sentido. É como assegura o professor Pedro Celso Campos: “Para

fazer a boa reportagem o jornalista deve escapar dos limites da redação [...] porque

a grande notícia tem que ser buscada, checada, conferida ali onde o homem está,

no meio do povo, na rua, nas esquinas do mundo.” (2007).

Como a crônica transita tanto no campo da literatura quanto no campo do

jornalismo – pois é entendida como categoria nas duas linguagens –; e a reportagem

contém alguns elementos híbridos, como o uso de diálogos, técnicas narrativas,

personagens e a questão do narrador; este trabalho pretende evidenciar a

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possibilidade de união dos dois gêneros – crônica e reportagem –, tornando-os um

gênero do jornalismo literário que se chama de crônica-reportagem.

Para tanto, este estudo vai se deter em cinco textos do livro A Vida que

Ninguém Vê, da jornalista Eliane Brum, que são examinados em duas óticas: crônica

e reportagem. A pesquisa tem o objetivo de analisar os textos da repórter,

previamente selecionados, verificando se o estilo adotado pela jornalista, utilizando a

crônica e a reportagem, é passível de hibridez.

A pesquisa de caráter bibliográfico e o método analítico-comparativo têm

como recursos metodológicos a fundamentação teórica baseada nos estudos de

Edvaldo Pereira Lima, Tom Wolfe, José Marques de Melo, Antonio Candido, Luiz

Beltrão, entre outros; e entrevistas de autores que têm relação estreita com o

assunto, como o membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar e o

jornalista Moisés Mendes. Logo, a relação que foi estabelecida entre a teoria, o

método e o objeto explica a estrutura dos capítulos.

Parte-se do princípio de que o jornalismo importa características da literatura

em seus textos. Neste sentido procura-se objetar como esses dois ramos foram se

encontrando com o desenvolvimento da imprensa no país e como a produção numa

área acaba por influenciar a outra. Por isso no primeiro capítulo, intitulado “‘Dessa

posição de igualdade, pude enxergá-lo’: as características do jornalismo importadas

da literatura”, se vai apresentar um panorama da questão narrativa, das relações

entre o real e a ficção, das técnicas narrativas, das personagens e do narrador e

também de um ponto pouco explorado que é a inserção do sublime no jornalismo.

O segundo capítulo, “‘Cada Zé é um Ulisses e cada pequena vida uma

Odisséia’: a crônica-reportagem”, destina-se à fundamentação das particularidades

da crônica e da reportagem. Contudo, propõe-se o mix entre estes dois gêneros que

ainda é pouco difundido teoricamente, mas que na prática é muito executado por

jornalistas e escritores e que recebe o nome de crônica-reportagem.

O último capítulo, cujo título é “O jornalismo e os humanos anônimos: a

análise das crônicas-reportagens do livro A Vida que Ninguém Vê da jornalista

Eliane Brum”, dedica-se à análise de cinco textos desta obra. Ao longo deste tópico

evidencia-se, pelo método analítico comparativo, que não existe fronteira entre a

literatura e o jornalismo. Os textos são comparados com as teorias explanadas ao

longo do trabalho. Em cada texto procura-se ratificar algumas das hipóteses

apresentadas nos dois primeiros capítulos e são destacadas, principalmente,

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aquelas as quais dizem respeito aos estilos da crônica e da reportagem. A presente

análise volta-se para os seguintes aspectos: o hibridismo de dois gêneros; o

emprego do belo no jornalismo como fator artístico; e para uma ponderada sugestão

sobre uma nova variedade de livro-reportagem.

O tema desta monografia justifica-se pela lacuna bibliográfica existente sobre

a hibridez dos gêneros da crônica e da reportagem, bem como a inserção do belo ao

jornalismo.

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1. “DESSA POSIÇÃO DE IGUALDADE, PUDE ENXERGÁ-LO”: AS

CARACTERÍSTICAS DO JORNALISMO IMPORTADAS DA LITERATURA

Produzir e ler jornal transformou-se, nos tempos de hoje, numa atividade pós-

moderna. E dos jornais e revistas espera-se algo mais: o comentário, a interpretação

do fato e a análise, e que estes auxiliem as pessoas na tomada de decisões e na

formação de opiniões. Segundo Manuel Carlos Chaparro “é em sua totalidade

interpretativa que o jornalismo se realiza como espaço e processo cultural.” (apud

Abreu, 2006).

Nessa conexão imprescindível entre informar e interpretar, a ajuda da

literatura pode ser de grande valor.

Para além da questão de estilos, a “palavra-revelação” é necessária tanto ao escritor quanto ao jornalista para além das “carpintarias próprias” de um ou outro segmento. Uma palavra que não se consubstancia numa fria palavra analítico-descritiva, gramaticalizada em manuais de estilo, e sim na palavra narrativa, sintético-reveladora. (MEDINA, 1990, p. 28).

Cabe ao jornalista buscar o termo fundamental do acontecimento, a

habilidade de simbolização mais completa e plausível da realidade, e tudo isso é

oferecido, em demasiado, pela literatura.

Quando um sistema novo surge, seu funcionamento é sensivelmente

delimitado pela conectividade quase que completamente dependente que formula

com um ou mais sistemas com os quais interage freqüentemente. “A conectividade

entre eles acontece por uma troca, na qual certas funções de um e de outro sistema

interagem.” (LIMA, 1995, p. 137). Nas palavras de Edvaldo Pereira Lima, “em termos

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modernos, a literatura e o jornalismo são vasos comunicantes, são formas diferentes

de um mesmo processo.” (1995, p. 139).

Lima (1995, p. 138), declara que num primeiro momento, o jornalismo bebe

na fonte da literatura. Num segundo, é esta que encontra, no jornalismo, fonte para

reciclar sua técnica, enriquecendo-a com uma variante bifurcada em duas

probabilidades: a de reprodução do real efetivo, uma qualidade de reportagem –

com sabor literário – dos fatos sociais, e a inclusão da maneira de expressão escrita

que vai aos poucos distinguindo o jornalismo, com suas marcas de precisão, clareza

e simplicidade.

O jornalismo vai de encontro à literatura, são campos que provém de um

cruzamento e se inter-relacionam pelo texto e formas de linguagens.

À medida que o texto jornalístico evoluiu da notícia para a reportagem, surgiu à necessidade de aperfeiçoar as técnicas no tratamento da mensagem. Assim, os jornalistas se embrenharam na arte literária para encontrar seus próprios caminhos e narrar o real. (LIMA, 1995, p. 135).

O autor acrescenta que o jornalismo absorve os subsídios do fazer literário,

mas altera-os e direciona-os para outro fim.

As características que o jornalismo importa da literatura, adaptando-as e transformando-as, devem-se à necessidade de se reportar aos fatos e à factualidade. A tarefa de sair do real para retratar os dados é o que aproxima o jornalismo das formas de expressões oriundas da literatura. (LIMA, 1995, p. 138).

Com base na opinião de Edvaldo Pereira Lima, de que o jornalismo pode

interagir com a literatura para que as técnicas textuais avancem e que o jornalismo

não se prenda à pirâmide invertida, é incorreto afirmar que exista uma barreira

intransponível entre o jornalismo e a literatura.

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Ora, literatura e jornalismo estão tão próximos, tão ligados. O jornalismo apropria-se das técnicas da literatura e vice-versa. O jornalismo tem dado maior vivacidade à literatura moderna. Qualquer reportagem bem feita tem elementos literários. O Graciliano Ramos é uma lição de boa literatura e uma lição de jornalismo. Porque o literário não é apenas o ornamento. Graciliano Ramos explorou o despojamento, esse descarnar da linguagem. Memórias do Cárcere traz essa marca. Onde está o jornalismo? Onde está a literatura? Fica muito difícil demarcar a fronteira. (1995, p. 139).

Ao se avaliar as afinidades entre o jornalismo e a literatura, é necessário

compreender o alicerce comum, da qual ambas as práticas se detém: a linguagem.

Por outro lado a linguagem determina alguns cuidados a fim de que se extraiam

elementos comuns a ambos os campos, e que, assim sendo, sirva de base para um

exame de relações admissíveis. Quanto a esta afirmação, é preciso uma observação

dos elementos comuns, pois acredita-se que haja uma identidade entre o jornalismo

e a literatura.

A linguagem é o substrato sobre o qual se pode construir uma representação do mundo. Não sua reprodução. A equivalência é impossível. Significante e referente, neste caso, jamais coincidirão. Portanto, quer na literatura, quer no jornalismo, a reconstrução do real pode chegar, no máximo, ao verossímil. Afirma-se isto e frisa-se em relação ao plano da linguagem. Isto coloca o jornalismo e a literatura numa relação de identidade a partir da materialidade da linguagem: a palavra. (DEMÉTRIO, 2007, p. 3).

O jornalismo é parte da modernidade e tem a suficiente flexibilidade para

consentir que outros discursos se infiltrem no seu “habitat”, mesmo os mais adversos

a ele, neste caso, a literatura, sem, no entanto, deteriorar sua especificidade.

Ambas têm suas especificidades sem, no entanto, deixarem de exercer o seu estatuto básico de serem modalidades de comunicação. O tempo é a medida da precariedade de qualquer coisa. Não seria diferente com o jornalismo. Não seria diferente com a literatura. [...] O “tornar-se” literatura fixa o terreno próprio do jornalismo quando este é pautado pela idéia de uma articulação de fragmentos em busca de uma totalidade do tempo presente, de sua leitura. Se a leitura do presente é a impossibilidade de seu esgotamento, já que este regime de tempo é a superfície sobre a qual emergem os acontecimentos, jornalismo e literatura vão se colocar como horizontes na relação que guardam entre si. (DEMÉTRIO, 2007, p. 5).

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Denota-se a partir de tais conceitos e de acordo com o que Roberta Scheibe

afirma, é de que existe a possibilidade de se escrever textos jornalísticos muito fiéis

à realidade, mesmo utilizando técnicas habitualmente propensas à literatura. “Para

que aconteça essa interação entre o jornalismo e a literatura, é necessário que haja

uma quebra de paradigmas, uma mudança estrutural e de linguagem no jornalismo.”

(2006, p. 35).

O jornalismo não pode acostumar-se sem a literatura. É necessário interagir a

expressividade com a inexpressividade no texto. Juremir Machado da Silva diz que

“em se tratando de literatura, o inexpressivo pode ser um estilo. Em jornalismo, ser

expressivo é mais do que uma exigência: um imperativo.” (apud CASTRO; GALENO,

2002, p. 51).

E essa relação entre jornalismo e literatura não aponta para uma divisão, mas

para uma hibridez. Sérgio Capparelli complementa: “os dois campos se juntam numa

perspectiva de unir o maior número de leitores e estruturar uma nova e diferente

linguagem no jornalismo.” (1996, p. 183).

É possível, portanto, desviar-se do padrão comum do texto jornalístico através

da literatura. Para tanto, o emprego da reportagem por meio de um caráter

interpretativo resultaria em um discurso enriquecedor para a imprensa: “a linguagem

expressiva se opõe ao padrão pela criação artística que envolve. O padrão não

desaparece – a clareza continua exigindo padrões gerais de neutrabilidade – mas a

criação acrescenta formas, especialmente sintáticas, mais flexíveis.” (MEDINA;

LEANDRO, 1973, p. 39).

Como diz Allan de Abreu no artigo “Da Literatura para o Jornalismo:”

A linguagem literária aplicada ao discurso jornalístico não é uma fuga, como muitos pregam: ela pode ser o único caminho capaz de levar o jornalismo à captação de uma sociedade complexa, com todas as suas contradições. Se a arte literária é exímia em captar, através de sua linguagem (a palavra-revelação) a essencialidade do ser humano, por que não transplantar essa potencialidade para o jornalismo? Afinal, não é esse também o objetivo último de toda prática jornalística? Será que o jargão dos jornais de hoje, tão simples, dá conta de captar uma realidade intrinsecamente complexa? (2006).

Nesta mesma perspectiva Marcos Faerman declara que:

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O repórter está em busca da realidade. Com a sua sensibilidade. Ouvindo histórias das vidas dos outros. Sugando dos outros, a única coisa que eles têm, além dos próprios corpos, nus: uma história, a sua perplexidade, as suas dúvidas, as mínimas certezas. (1979, p. 148).

Abreu coloca que o que se tem é, de um lado, uma realidade múltipla,

complexa e muitas vezes incoerente, que não se deixa abordar de forma simples. Do

outro, tem-se uma linguagem monolítica que estima que, pelo seu verbo triturado em

tantas edições sucessivas de jornais, conseguirá apreender a essência do fato com

objetividade e transmiti-lo sem preconceitos ao leitor. “A abrangência do leque de

possibilidades lingüísticas (e literárias) na reportagem permite uma maior

profundidade no plano dos conteúdos, dos significados, o que só auxilia o jornalismo

na transmissão de informações.” (2006). No dizer de Medina, “acima de tudo, a

literatura ajuda o jornalismo para que este se torne mais humano.” (1990, p. 29).

1.1 Da epopéia ao século XXI: uma questão de narrativa

Muitas são as narrativas do mundo. Existe uma abundância de gêneros que

são sustentados por uma linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou

móvel, ou ainda pela miscelânea destas.

A narrativa está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pintura, no vitral, no cinema, enfim, na conversação. Além disso, ela está presente em todos os tempos, em todos os lugares e em todas as sociedades. A narrativa começa com a própria humanidade; não há em parte alguma, povo algum, sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas. (BARTHES, 1973, p. 19).

A narrativa é infinitamente catalisável, ou seja, apta às transformações e

sabe-se que ela é a exposição de fatos. Nela, por sua vez, se configura um estilo de

narração. Carlos Reis diz que “os textos narrativos levam a cabo um processo de

exteriorização, porque neles procura-se descrever e caracterizar um universo

autônomo, integrado por personagens, espaços e ações.” (1999, p. 347). Entende-

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se que esse universo é autônomo porque é representado pela presença do narrador.

Ele (o narrador) sabe o que acontece e por isso é colocado numa situação de

alteridade em relação aquilo de que fala. Tanto na narrativa literária quanto na

jornalística, a participação daquele que conta a história é indispensável, como se

verá adiante.

A literatura clássica teve início na Grécia e em Roma. A literatura grega

começa com dois épicos1 de Homero: Ilíada e Odisséia, por volta do século VIII

(a.C.). Ilíada descreve a guerra travada pelos gregos contra Tróia, com o pretexto de

trazer de volta Helena, esposa de Menelau. Helena havia sido seqüestrada por

Paris, filho de Príamo, rei de Tróia. Odisséia narra a jornada de Odisseu – conhecido

pelos romanos como Ulisses – ao retornar de Tróia para reaver sua esposa e seu

trono. Juntos, estes dois poemas estabeleceram a forma e os temas do gênero épico

ocidental. (ENCICLOPÉDIA Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos Gerais,

1995, p. 98).

Carlos Ceia afirma que “desde seu início, a literatura romana foi fortemente

influenciada pela grega, mas a primeira obra de real independência foram os Anais,

de Ênio (239-169 a.C.).” (2005). Um épico histórico do qual se conhece apenas

fragmentos. Os 1500 anos decorridos entre Homero e a Idade Média revelaram o

surgimento de quase todas as principais formas de prosa e poesia, além do próprio

conceito da literatura como arte.

Como consta na Enciclopédia Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos

Gerais, (1995, p. 130), as maiores glórias da literatura medieval estão em suas

narrativas: épicos, romances de cavalaria, e contos escritos em poesia e prosa para

recitação. Todos os aspectos da vida humana eram representados: das dificuldades

dos camponeses aos privilégios dos aristocratas, passando pelo comércio em

ascensão. As histórias variavam em assunto e técnica da obscenidade cômica à

1 Procurando distinguir os gêneros – épico, lírico e dramático –, Hegel (apud Leite, 1997, p. 9),

caracteriza o primeiro como eminentemente objetivo, o segundo como subjetivo, e o terceiro como uma espécie de síntese dos outros dois, objetivo-subjetivo. Assim, a poesia épica seria aquela em que, do conjunto dos homens e dos deuses, brotaria a dinâmica dos acontecimentos que o poeta deixaria evoluir livremente, sem interferir. Trata-se de uma realidade exterior a ele, com a qual não se identifica a ponto de se envolver com os sentimentos, pensamentos e ações dos caracteres em jogo. Já a lírica teria por conteúdo subjetivo “a alma agitada pelos sentimentos”, e, em lugar da ação externa ao sujeito, o que se expõe é o seu extravasar; é ele que se expressa diretamente, e musicalmente, pela palavra que profere. O terceiro gênero – o dramático –, como síntese dos outros dois, se constitui, ao mesmo tempo, de um desenrolar objetivo de acontecimentos e da expressão vibrante da interioridade.

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espirituosidade erudita, do romance puro à sátira pungente, da superstição popular à

elevada doutrina cristã.

Percebe-se, como descreveu Reis, que os textos narrativos literários

consolidam um processo de representação eminentemente dinâmica, sobretudo pela

ação de mecanismos temporais. Ao mesmo tempo, a narrativa literária estrutura-se

em dois planos fundamentais: “o plano da história relatada e o plano do discurso que

a relata, articulados num ato de enunciação que é a instância da narração.” (1999, p.

345).

A literatura da Renascença teve seu início quando a humanidade começou a

se ocupar de sua própria consciência, afastando-se de assuntos religiosos. A

poesia, a prosa e o teatro da Idade Média têm caráter essencialmente religioso, já a

literatura da Renascença é predominantemente secular, incorporando o domínio da

atividade humana. A preocupação com a vida após a morte e com a salvação da

alma foi substituída por uma análise dos destinos de reinos, países, famílias e raças.

A literatura renascentista se tornou o espetáculo do homem tentando atingir seus

objetivos. (ENCICLOPÉDIA Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos Gerais,

1995, p. 146). Segundo Manuel Amaral (2007), Luís Vaz de Camões foi um dos

maiores escritores da literatura da Renascença com Os Lusíadas em 1572.

No Brasil, a literatura chega com o descobrimento. A partir deste marco

histórico já acontece a interação do jornalismo com a literatura. Para muitos autores,

a carta de Pero Vaz de Caminha em 1500, descrevendo as belezas do novo país, é

o marco inicial da literatura brasileira, mais especificamente da crônica, assim como

os relatos de vários cronistas portugueses que aqui estiveram, como Pero de

Magalhães de Gandavo e Gabriel Soares de Souza, e os poemas e sermões

escritos por jesuítas que tinham por objetivo a catequese dos índios. Os de maior

renome são os de autoria dos padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Neste

período destacam-se dois movimentos: o Barroco e o Arcadismo. (ENCICLOPÉDIA

Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos Gerais, 1995, p. 444). Para outros

autores, como SÁ (1985, p. 5), a crônica, os poemas e as cartas trazem muito do

feitio jornalístico. O Barroco no Brasil tem estreita ligação com o jornalismo devido

ao surgimento de cidades e vilarejos em Minas Gerais por causa da exploração das

minas de metais preciosos. Logo, as manifestações literárias deste movimento

representavam a realidade do drama humano no garimpo. O que evidencia a

proximidade com as técnicas jornalísticas de informar (ARAÚJO, 2006).

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Em razão desta proximidade com o jornalismo, e também para entender os

processos narrativos surgidos no Brasil, se fará um breve resgate dos movimentos

da Literatura Brasileira.

A linguagem barroca preocupa-se com a elegância, havendo o predomínio da

idéia abstrata e da valorização dos sentidos sobre o materialismo. A temática

barroca é a antítese entre a vida e a morte, valorizando a experiência humana e

todas as suas contradições. Seu início se dá com a publicação do poema épico

Prosopopéia, de Bento Teixeira, em 1601, que louvava o segundo donatário de

Pernambuco e celebrava a prosperidade desta então capitania hereditária.

(ENCICLOPÉDIA Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos Gerais, 1995, p. 444).

Com o crescimento do nacionalismo, há a necessidade de se adequar às

produções literárias ao gosto e às temáticas brasileiras. Ao mesmo tempo, a

popularização das obras faz com que os escritores busquem uma linguagem mais

simples e natural, além de idéias mais claras e facilmente compreendidas. Valoriza-

se mais a natureza e os gêneros bucólicos se difundem, representando a inocência

e a rusticidade sadia dos habitantes dos campos. (ENCICLOPÉDIA Compacta Istoé-

Guiness de Conhecimentos Gerais, 1995, p. 444). No Brasil, o Arcadismo inicia-se

com a publicação das Obras Poéticas de Cláudio Manoel da Costa em 1768, uma

poesia rica e elegante que revela o culto aos clássicos. (MIRANDA, 2004).

Com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, as atividades culturais

são incentivadas e a afirmação da identidade nacional se intensifica, iniciando-se

uma nova etapa da literatura brasileira.

De acordo com a Enciclopédia Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos

Gerais, (1995, p. 444), o movimento romântico foi muito importante, coincidindo com

a época em que o país se definia em termos de nacionalidade, reconhecendo seu

passado histórico, origens, tradições e folclore. Há uma produção bastante grande

em termos de poesia, teatro e ficção. São pregados o subjetivismo, a

individualidade, a valorização da nossa paisagem física e social, as tradições e lutas

político-sociais do momento. Apesar de muito nacionalista, o Romantismo brasileiro

também se preocupa com as temáticas universais, sendo um movimento bastante

rico. Inicia-se em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, de

Domingos Gonçalves de Magalhães. No entanto, o primeiro grande romântico

brasileiro é Antônio Gonçalves Dias, cujos poemas de caráter nacionalista se

notabilizaram na Canção do Exílio. Outros romancistas que se destacaram foram

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Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha) e José de Alencar (O Guarani e

Iracema).

Com todas as mudanças políticas e sociais que ocorreram no II Reinado, o

Romantismo entra em crise e o regionalismo vem à tona, com personagens que

ilustram o real – e não o idealizado romântico – e o crescente questionamento de

valores e dúvidas inerentes ao ser humano. Os movimentos do Realismo e do

Naturalismo se iniciaram oficialmente no país com Memórias Póstumas de Brás

Cubas de Machado de Assis em 1880, considerado um dos maiores escritores

brasileiros de todos os tempos. Aluísio Azevedo se consagrou como naturalista ao

exagerar certos aspectos da realidade em O Cortiço, de 1890. (ENCICLOPÉDIA

Compacta Istoé-Guiness de Conhecimentos Gerais, 1995, p. 445). Deve-se levar em

conta que o Realismo e o Naturalismo impulsionaram a forma de se narrar as

histórias jornalísticas.

O Parnasianismo enaltecia a poesia objetiva e o rebuscamento formal. Há a

preocupação com a correção métrica, o vocabulário raro e as rimas exóticas.

Considerado como primeiro livro parnasiano as Fanfarras de Teófilo Dias, em 1882.

O principal nome do período é Olavo Bilac, cujo volume Poesias de 1888 é o retrato

exato do pensamento parnasiano. (ENCICLOPÉDIA Compacta Istoé-Guiness de

Conhecimentos Gerais, 1995, p. 445).

No ensaio “O Parnasianismo na Poesia Brasileira”, o professor Sânzio de

Azevedo, ressalta o fato de que o movimento no Brasil teve três correntes

preparatórias.

A poesia filosófico-científica; a poesia realista; e a poesia socialista. Os poetas do primeiro grupo buscavam praticar uma poesia que demonstrasse que conheciam, “os grandes princípios da filosofia geral e o espírito renovador da ciência no século XIX”, sem, no entanto fazer uma poesia didática. [...] A corrente da poesia realista basicamente lutava contra a idealização romântica, e cultivava pormenores realistas nas descrições. [...] Já a poesia socialista, em geral, atacava a monarquia e a igreja, defendia o sufrágio universal, pregava a república, o comunismo, a paz, a igualdade social e o amor total. (2004, p. 376).

Conforme Marina Cabral (2007) o Simbolismo caracteriza-se pela melancolia,

musicalidade, imagens ousadas e vocabulário vago, recorrendo muitas vezes a

neologismos. Inicia-se em 1893 com as obras Missal – poemas em prosa – e

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Broquéis – versos –, de Cruz e Souza. O movimento reflete um momento histórico

extremamente complexo que marcaria a transição para o século XX e a definição de

um novo mundo, basta lembrar que as últimas manifestações simbolistas e as

primeiras produções modernistas são contemporâneas da Primeira Guerra Mundial e

da Revolução Russa.

No site Brasil Escola (2007), encontra-se que o Pré-Modernismo se destaca

com a consolidação da República e a expansão cultural. Em Triste Fim de Policarpo

Quaresma de 1915, de Lima Barreto, a vida urbana carioca é retratada com riqueza

de detalhes. Os Sertões de 1902, de Euclides da Cunha, narra a campanha contra

os seguidores de Antônio Conselheiro, no nordeste, sendo até hoje uma obra-prima

em termos de linguagem. O livro de Cunha também é considerado o marco inicial da

reportagem no Brasil, uma vez que foi publicado em 1898 no jornal O Estado de São

Paulo. O pré-modernismo também figura no corpo do jornal impresso, assim como

as características do Realismo e do Naturalismo.

O marco inicial do Modernismo é a Semana de Arte Moderna de 1922, que

difundiu os ideais europeus vanguardistas por todo o país. O principal é a busca da

nacionalidade, valorizando todos os aspectos da nossa cultura. Nesta primeira fase,

são expoentes Mario de Andrade, cuja obra-prima é Macunaíma de 1928, Oswald de

Andrade, cujas principais contribuições ao movimento foram os poemas Pau Brasil

em 1925 e a Revista Antropofágica, e Manuel Bandeira que traduziu

primorosamente as obras de Shakespeare. A partir de 1930, o movimento

modernista se consolida com nomes como o de Carlos Drummond de Andrade e

vários romancistas como Erico Verissimo, Jorge Amado e Rachel de Queiroz. Numa

linha mais intimista, surge Vinícius de Moraes, um dos maiores poetas do Brasil. A

chamada Geração de 45 volta a se preocupar com o apuro formal e busca temas

mais complexos, destacando-se João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e

Guimarães Rosa, cujo romance Grande Sertão Veredas de 1956, é um dos

melhores já produzidos pela literatura nacional. (ENCICLOPÉDIA Compacta Istoé-

Guiness de Conhecimentos Gerais, 1995, p. 445).

A partir de então, a literatura brasileira oferece um panorama de narrativas

muito vasto, desde pesquisas regionalistas até narrativas fantásticas. O romance de

denúncia e o romance-reportagem assumem um importante papel, transformando a

literatura nacional em uma posição de destaque na América Latina.

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Diante dessas afirmações reitera-se que a técnica literária serviu de berço ao

jornalismo. É inegável a influência da literatura no jornalismo. Há um processo

histórico de troca de elementos entre literatura e jornalismo, e o primeiro foi o

realismo social. Este estilo literário, segundo Fernando Torres, cooperou para o

surgimento da reportagem. “A literatura de então destacava a temática social, a

descrição detalhada de ambientes e personagens do cotidiano, contribuindo assim,

não apenas com os aspectos estéticos do texto jornalístico, mas também para a

captação e apuração dos dados.” (2007). Mais adiante, o New Journalism,

movimento literário, tomaria fôlego mediante a reportagem. A partir daí, a ficção

incorporou elementos informativos à sua narrativa e vice-versa. E mais: histórias

reais e grandes reportagens começaram a ser publicadas em livros.

Com alusão de que muitos dos escritores citados foram também jornalistas e

que exerceram o trabalho jornalístico de investigação e interpretação dos fatos,

surge na década de 60 o New Journalism. Lima diz que a chance que o jornalismo

poderia ter para se nivelar, em qualidade narrativa, à literatura, seria aperfeiçoando

meios sem, porém, perder suas características. Isto é, “teria de sofisticar seu

instrumental de expressão de um lado, e elevar seu potencial de captação do real de

outro. Esse caminho chegaria a bom termo com o New Journalism.” (1995, p. 146).

De acordo com Marco Aurélio Silva, o Novo Jornalismo busca na literatura

realista do século XIX, dados para a composição narrativa, em conseqüência disso,

uma forma mais aprazível de informar o mundo sobre vários assuntos estava

nascendo. “Tal trabalho pode ser encontrado no que se convencionou chamar de

romance-reportagem com destaque para Os Eleitos, de Tom Wolfe, e A Sangue

Frio, de Truman Capote.” (2007).

Neste contexto, Diego Junqueira Torres complementa que:

O Novo Jornalismo, febre norte-americana iniciada na década de 60, priorizava o enfoque literário na construção dos fatos/narrativas, indivíduos/personagens. Contudo, abriu espaço para a prática do “jornalismo literário” – mais literatura, diriam uns, mas ainda informativo, diriam outros. (2007).

Lima diz que no Brasil é possível presumir que o Novo Jornalismo tenha

entusiasmado dois veículos lançados em 1966 que se notabilizaram exatamente por

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uma proposta estética renovadora: “a revista Realidade, considerada a nossa

grande escola da reportagem moderna, e o Jornal da Tarde.”

O novo modo de fazer jornalismo começou a ser adotado no Brasil através do gênero interpretativo em meados do século XX, e na década de 1960 ocorreram então, bons exemplos de jornalismo voltado para a literatura sem fugir do real, como foi o caso da revista Realidade e do Jornal da Tarde, lançados em São Paulo, em 1966. Os dois veículos publicavam reportagens que se aproximavam da literatura. Naquela época eles eram verdadeiras escolas do gênero no Brasil e abrigavam uma geração de escritores que combinavam o jornalismo e a literatura, o livro-reportagem, geração de cronistas, etc., que não encontravam espaço para matérias do gênero literário principalmente depois da extinção da revista Realidade na década de 70. (1995, p. 146).

Conforme Rangel e Ribeiro (2006, p. 2), a inclusão deste protótipo de texto é

resultado de uma ansiedade constante, com a ambição de fazer um jornalismo que

permita a implantação de um mundo que conserva-se oculto ao que se depara em

noticiários, momento que começa a surgir o livro-reportagem. Neste contexto, “os

profissionais que passaram a produzir nessa corrente abriram uma porta de

possibilidades vastas, primeiro em publicações periódicas e depois no livro-

reportagem.” (LIMA, 1995, p. 146).

Na verdade, comenta Lima, a literatura e a imprensa confundem-se até os

primeiros anos do século XX. “Muitos dos jornais abrem espaço para a arte literária,

produzem seus folhetins, publicam suplementos literários. É como se o veículo

jornalístico se transformasse numa indústria periodizadora da literatura da época.”

(1995, p. 136).

Rangel e Ribeiro (2006, p. 2), declaram que os jornalistas do New Journalism

entenderam que deveriam se aprofundar e levar ao leitor detalhes minuciosos. Além

das narrativas habituais, era preciso criar textos com emoção e escrever relatos

mais humanizados. O mesmo aconteceu no Brasil, embora sem o título de Novo

Jornalismo e muito antes desse período, como, por exemplo, Euclides da Cunha,

que despachava ao jornal O Estado de São Paulo, em 1898, suas impressões da

guerra de Canudos. Posteriormente as descrições das batalhas feitas por Cunha

foram reunidas e se transformaram no livro Os Sertões, um clássico da literatura

brasileira, como exposto anteriormente. “Os Sertões é considerado um livro-

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reportagem, e, paralelamente, Euclides da Cunha foi considerado um dos primeiros

jornalistas a executar uma reportagem digna do jornalismo científico.” (OLIVEIRA,

2002, p. 32).

Percebe-se, através dos subsídios teóricos apresentados neste trabalho, que

o Novo Jornalismo recupera a capacidade do texto de emocionar, possibilita

trabalhar com a arte, tanto o aspecto racionalista, dito objetivo, quanto o subjetivo da

realidade.

Partindo da premissa de que o Novo Jornalismo permite ao jornalista

encontrar meios diferentes para dizer o que, quem, como, onde, quando e o porquê,

explorando a criatividade, entende-se que o Novo Jornalismo exige uma abordagem

mais imaginativa da reportagem e consente que o escritor participe ativamente da

narrativa ou assuma o papel de observador imparcial. No site Irmandade Raoul Duke

encontra-se que:

O Novo Jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser tão verídico, como a mais exata das reportagens, buscando embora uma verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações, a adesão ao rígido estilo mais antigo. (2007).

Edvaldo Pereira Lima, no artigo “New Journalism X Jornalismo Literário”, diz

que:

O New Journalism americano foi a manifestação de um momento do Jornalismo Literário. Isso quer dizer que o Jornalismo Literário, enquanto forma de narrativa, de captação do real, de expressão do real, já existia antes e continua existindo após o New Journalism, que foi só uma versão específica do Jornalismo Literário, mas uma versão radical quando comparada à anterior, principalmente, no que se refere à capacidade do narrador se envolver com o universo sobre o qual vai escrever. (2002).

O Jornalismo Literário, segundo Thomas Berner, não é menos verdadeiro do

que o jornalismo objetivo e pode, de fato, representar a realidade mais precisamente

do que as formas tradicionais de redação noticiosa (apud LIMA, 1995, p. 159).

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Ricardo Noblat (2003, p. 37), diz que a missão de um jornalista é informar. Ou

melhor: contar histórias. Neste contexto, o jornalismo e a literatura estão muito

próximos. Evidencia-se, nesta perspectiva, que o Novo Jornalismo não se trata de

um gênero categoricamente inédito e sim parte da evolução da literatura que procura

se inspirar na literatura de realismo social, na literatura de relato e nas

manifestações literárias com caráter factual e informativo, ou seja, na literatura de

não-ficção, e, portanto, jornalístico, que se convencionou em chamar de Jornalismo

Literário, qualificado pela utilização das técnicas da literatura na captação, redação e

edição de reportagens. (SITE Irmandade Raoul Duke, 2007).

Oswaldo Coimbra cita que:

Uma das técnicas de construção da narrativa no texto do Novo Jornalismo era a de apresentar cada cena para o leitor através dos olhos de uma personagem, dando ao leitor a sensação de estar dentro do pensamento da personagem e sentindo a realidade emocional da cena como ela a sentiria. (1993, p. 76).

Numa concepção mais moderna, Alceu Amoroso Lima diz que “tudo é

literatura desde que no seu meio de expressão, a palavra, haja uma acentuação,

uma ênfase no meio de expressão, que é o seu valor de beleza.” E adiante conclui:

O jornalismo, por conseguinte, tem todos os elementos que lhe permitem a entrada no campo da literatura, sempre que seja uma expressão verbal com ênfase nos meios da expressão, e com todos os riscos e perigos, que possa produzir nos outros gêneros seus companheiros, ou que os outros nele possam produzir, quando desviados de sua natureza própria. (1958, p. 138).

O Novo Jornalismo traz ao brilho dos holofotes o mesmo tom comum de

mergulho completo, corpo e mente, na realidade, como acontecia em todas as

formas de expressão da contracultura, por exemplo. “À objetividade da captação

linear, lógica, somava-se a subjetividade impregnada de impressões do repórter,

imerso dos pés à cabeça no real.” (LIMA, 1995, p. 149). Ou seja, antes de se

escrever um texto eram realizadas extensas pesquisas sobre a linguagem, os tipos

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humanos e os costumes das pessoas. Estas informações eram repassadas ao texto

junto com os efeitos que a realidade provocava e despertava no autor.

Portanto, conclui-se que o Novo Jornalismo permitiu explorar o estilo e a

narrativa aprimorando a linguagem jornalística, já que este remete à idéia de

liberdade da escrita analítica e como enfatiza Lima:

O principal legado do New Journalism – a de que a melhor reportagem, no sentido de captação de campo e fidelidade para com o real, pode combinar-se muito bem com a melhor técnica literária – encontrou sua mais refinada expressão no livro-reportagem. (1995, p. 159).

Este por sua vez, alcançou respeitável nível de expressão ao transplantar

para seu campo específico, com sucesso, as técnicas da literatura.

1.2 O hibridismo entre o real e a ficção

A preservação do realismo já está segundo o produtor e roteirista de cinema e

televisão Pedro Eduardo Pereira Salomão, completamente desarticulada da idéia

purista do registro intocável. O termo realismo oculta em si um paradoxo. Ele causa

a sua própria contradição. A adesão da palavra real com o sufixo “ismo” concederia

ao realismo o atributo de representar o real.

A simultaneidade da presença do real com a experiência de vivê-lo, impede o homem de fazer a sua sistematização. Como forma de se relacionar com o real, ele recorre às representações. A primeira delas é a realidade, considerada uma construção social do real. A compreensão direta do real é impossível dada à intermediação da linguagem. O seu processo de percepção passa de modo invariável pelo auxílio das representações, sujeitas às seleções inerentes ao crivo da consciência. A realidade é parte do real, embora o real não possa ser aprisionado esteticamente senão filtrado pela representação da realidade. O objetivo maior do realismo é atingir o status de real. (2007).

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Neste contexto, entende-se que a ficção está a serviço da realidade. O

condicionamento do realismo a uma realidade externa é concernente às

manifestações modernas, quando acontecimento e ficção se unem. O real

impulsiona o ficcional e o ficcional estimula o real. Eneida Maria de Souza diz “que a

ambigüidade gerada pela relação entre realidade e ficção é fortalecida pela

utilização da narrativa em primeira pessoa, permitindo aos defensores do realismo

confundir autor e narrador, escritor e personagem.” (2002).

Christian Metz (1972, p. 19), observa que a impressão de realidade é sempre

um fenômeno de duas faces: pode-se procurar a explicação no aspecto do objeto

percebido ou no aspecto da percepção. Assim sendo, a fidelidade da cópia em

relação ao seu modelo depende da quantidade de indícios de realidade que ela

conserva.

Conforme Christiane Karydakis e Marillia Raeder Auar Oliveira, o mundo

desvendado pela arte é o mundo que ela mesma constrói. Um texto de ficção

proporciona uma fração do mundo real em que se vive, mas não acaba com essa

realidade, daí seu caráter ficcional. Um texto de ficção busca na própria realidade

artifícios para então instituir seu mundo especial, ficcional por excelência, mas

pincelado por informações reais que prosseguem desta maneira, reais, mesmo

fazendo parte de um universo idealizado.

Sabemos que a ficção se abastece de realidade e a transgride, alcançando novos universos, particulares e próprios da criação artística, muitas vezes mais verossímeis e confortáveis que esse mundo em que vivemos, dito “real”. Também sabemos que a ficção oferece muito mais certezas que a própria realidade. Ao lermos um texto, tomamos consciência de tudo o que se passa nas relações entre os personagens; sabemos o que cada um deles pensa, como agem, aquilo de que gostam, suas escolhas, seus segredos – tudo isso oferecido por um narrador onisciente. (2007).

As autoras colocam que na nossa realidade, ao dialogarmos com uma

pessoa, não existe a possibilidade de saber se o que ela está dizendo é de fato

verdadeiro:

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Não podemos saber o que esta pessoa está pensando – essas informações não nos são oferecidas. Podemos questionar nosso interlocutor, ao invés de fazermos projeções, mas não teremos certeza da informação que nos será dada por esse interlocutor – ele pode estar mentindo. (KARYDAKIS; OLIVEIRA, 2007).

De acordo com estas autoras, como saber a veracidade das palavras nas

relações interpessoais no mundo real? Não se sabe, apenas acredita-se na boa

vontade do outro em falar o que realmente é verdadeiro. No texto ficcional, no

entanto, se tem a noção de que tudo que está sendo narrado é produto da invenção

do autor do texto, mas no interior da ficção tudo é realidade.

Para Salomão essas relações e a conseqüente distinção entre arte e vida,

arte e realidade, é cíclico na história do pensamento humano.

O desenvolvimento do conceito de mímesis por Platão tenta, em geral, dar conta dessa problemática e determinar racionalmente as fronteiras. Porém, a mímesis para os filósofos da Antiguidade não se limita a um imitar da realidade e se estende a tensão entre os conceitos de arte e de vida. Em Platão, a mímesis abrange também a dimensão do jogo entre esquecimento e reconciliação da aparência com a essência. Essa dimensão do conceito original é resgatada no pensamento dos realismos contemporâneos. As representações artísticas, em especial, tendem a tencionar o ficcional e o factual. (2007).

Karydakis e Oliveira (2007) se referem à mímesis – figura em que o orador

imita a voz ou os gestos de outrem – no discurso ficcional da literatura, registrando

que ela acaba escapando de um código primário, alimentando-se da realidade para

evidenciar sua própria mímesis como criação imagética. Essa mímesis rompe com o

real, criando novas alusões e novas possibilidades. Neste contexto observa-se o que

Shusterman afirma:

Mímesis é usualmente traduzido por “imitação”, mas de fato este significado central está mais próximo de “realização”: objetos, eventos, ou ações que, porque são divinos, passados ou canônicos, pertencem a um domínio mais valioso da realidade do que nossa vida cotidiana, mas estão, por isso mesmo, de alguma forma afastados de nós, impõem sobre nós a obrigação de restaurar sua realidade. (apud KARYDAKIS; OLIVEIRA, 2007).

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Tatiana da Silva Capaverde coloca que Aristóteles também entendia a arte

como imitação da realidade, contudo, “para ele, a obra possuía valor estético, e o

significado de imitação passa a ser o de possíveis interpretações do real.” (2007).

Salomão enfatiza que:

A imbricação entre arte e vida, real e ficcional, em todos os contextos produz resultados inéditos, distanciados dos realismos antecedentes que sugerem uma receosa proximidade com a realidade. Propostas que, na verdade, apenas tomam a realidade como base para suas representações específicas. (2007).

A arte emprega a linguagem para representar a realidade. Na literatura isso

se consagra através da busca de novas linguagens, e que estas, admitam a livre

expressão das diferentes maneiras de ver o mundo, tendo em vista a inclusão do

cotidiano e da arte popular nas temáticas cogitadas e a valorização em termos

artísticos do subconsciente e do inconsciente. Esse movimento e o procedimento de

transformação da arte, todavia, não significaram uma alienação diante da realidade,

pois as analogias entre a arte e os homens são de intenso conhecimento e

identidade, sendo compreendida agora numa configuração mais imbricada que

antes. (CAPAVERDE, 2007).

Como decorrência desse movimento, tem-se a utilização do conceito de

simulacro para indicar a nova relação entre a realidade e a ficção. O simulacro é o

conceito que se superpõe àquele que Platão criou. Neste caso, como avalia Rejane

Pivetta de Oliveira:

A imagem prescinde de referencialidade, pois é criada a partir de modelos de simulação, que instituem a realidade por si mesmos. Elimina-se, assim, a diferença entre o real e o ilusório, o verdadeiro e o falso, de modo que a representação passa a viver sob o domínio do código, que pode ser infinitamente reproduzido. (2003, p. 28).

Como uma aposta, a obra modifica-se numa paródia dos valores de

referência, de estrutura e de sentido, deslocando a seqüência entre o pensamento e

o mundo. Neste sentido, acompanhando o raciocínio de Oliveira, “o simulacro ao

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contrário de mascarar a essência das coisas, desvela a fantasmagoria que sustenta

a verdade, mostrando que a máscara é a condição de existência de todas as coisas

e que a realidade é vivida como ficção.” (2003, p. 28).

Para Karydakis e Oliveira, a união entre ficção e realidade está firmada, uma

é indissociável da outra. “O que antes parecia difuso e nebuloso torna-se claro aos

olhos dos leitores mais atentos e comprometidos com suas leituras. A fusão da

realidade com a ficção já é um fingimento por si só, constituído de transgressões.”

(2007). De acordo com as autoras, viola-se a própria realidade sensível. O ato de

simular, segundo Wolfgang Iser (apud Karydakis e Oliveira, 2007), é, deste modo,

uma contravenção de limites.

Ainda conforme Iser:

O discurso ficcional da literatura se apropria das referencialidades, não para defendê-las, mas para colocá-las em questão. Isto é feito através de diferentes visões de mundo que se encontram em embate, em conflitos que não se resolvem. O discurso ficcional reorganiza horizontalmente as normas e os valores sociais. Daí a explicação do motivo por que não se faz sentido a separação ficção versus realidade. (apud KARYDAKIS; OLIVEIRA, 2007).

Para Coimbra (1993, p. 17), o caráter ficcional e não ficcional dos textos cria

uma dificuldade de discernimento entre o real e o fictício. Percebe-se, assim, que se

existe uma fronteira entre a narrativa literária e a jornalística, ela não é demarcável.

“A ficção é simplesmente uma composição entre claros e escuros.”

(CAPAVERDE, 2007). Entende-se então que a noção de ficção e real se imbrica

para mostrar a incoerência de sua separação e a inter-relação que existe entre as

duas dimensões.

André Bazin (1992, p. 27) diz que sejam quais forem as objeções de nosso

espírito crítico, somos obrigados a crer na existência do objeto representado,

literalmente representado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço.

Como aponta Anatol Rosenfeld, “a ficção é o único lugar em que os seres humanos

se tornam transparentes à nossa visão, porque o espaço do olhar é um espaço

relativo.” (apud KARYDAKIS; OLIVEIRA, 2007).

Sendo este espaço de olhar relativo, logo, cada ser pode transformá-lo em

imagens de acordo com suas percepções da realidade.

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A materialidade do discurso faz com que ele passe a emergir enquanto objeto articulador de imagens que são propostas no campo sintagmático do texto literário, que provocam em nós, leitores, diversas e diferenciadas reações de percepção diante do objeto literário que temos em mãos, pois cada leitor pode reagir diferentemente a um mesmo texto, levando em consideração os fatores realmente manifestos, extra teóricos, ou seja, sua própria experiência de vida, a sua referencialidade, e ainda, sua inserção em sociedade. Desta forma, o leitor está também sujeito aos efeitos históricos, identificando-se ou identificando certos elementos no texto, para que a experiência da alteridade resulte em um despertar de consciências por parte dos leitores. (KARYDAKIS; OLIVEIRA, 2007).

A literatura de testemunho pode ser uma alternativa neste caso. Márcio

Seligmann-Silva diz que pensar a literatura brasileira a partir da chave do

testemunho implica ampliar a “caixa de ferramentas” do leitor. O testemunho deve

ser visto como um elemento da literatura que aparece de modo mais claro em certas

manifestações literárias do que em outras. O conceito de testemunho pode permitir

uma nova abordagem do fato literário que leva em conta a especificidade do real

que está na sua base e as modalidades de marca e rastro que esse real imprime na

escritura. A literatura não pode ser pensada como um campo desligado da nossa

vida cotidiana e sem efeito sobre ela. Nas palavras de Seligmann-Silva, “aquele que

testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os

lacres da linguagem que tentavam encobrir o ‘indizível’ que a sustenta.” (2003, p.

39). Portanto, o testemunho seria a narração da resistência à compreensão dos

fatos.

Segundo o autor, a questão não está na existência ou não da realidade, mas

na nossa capacidade de percebê-la e de simbolizá-la. Não existe a possibilidade de

se separar os fatos da interpretação. “A verdade é que o limite entre a ficção e a

realidade não pode ser delimitado e o testemunho justamente quer resgatar o ‘real’

para apresentá-lo. Mesmo que para isso ele precise da literatura.” (SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 379).

Daí a necessidade do registro ficcional para a apresentação dos eventos.

Aquilo que transcende a verossimilhança exige uma reformulação artística para a

sua transmissão. Mas a imaginação não deve ser confundida com a “imagem”: o que

conta é a capacidade de criar imagens, comparações e, sobretudo de evocar o que

não pode ser diretamente apresentado. “Não é invenção, mas narração – ou mesmo,

construção – do real.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 386).

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Conforme o autor, na literatura de testemunho não se trata mais de imitação

da realidade, mas sim de uma espécie de manifestação do real.

É evidente que não existe uma transposição imediata do “real” para a literatura, mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo e com a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura, é marcada pelo “real” que resiste à simbolização. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 386).

Logo, o limite entre a ficção e a realidade é tão tênue que uma se deixa

atravessar pela outra (DUARTE, 2007). Para Georg Lukács “a literatura teria a

capacidade de dar a conhecer para mover, isto é, para levar o leitor – uma vez que

vislumbrou pela ficção uma realidade mais profunda – a desejar transformá-la.”

(apud Leite, 1997, p. 77). Confirma-se então a premissa de que a vida imita a arte e

a arte imita a vida, porque a vida real passa a ser mais interessante que a ficção e a

ficção, parece mais real que a realidade.

1.3 As técnicas narrativas

O texto, segundo Coimbra (1993, p. 11), pertence a uma de três matrizes de

gêneros: dissertativo, narrativo e descritivo.

A dissertação tem como finalidade principal expor ou explanar, explicar ou

interpretar idéias. A argumentação tende a convencer, persuadir ou influenciar o

leitor. Como na reportagem dissertativa a função de informar é inseparável do

esforço para convencer o leitor a aceitar a informação no contexto de um raciocínio

que se pretende correto, é obvia a presença nela de argumentação. “Assim, também

para nós, dissertação e argumentação são sinônimos.” (COIMBRA, 1993, p. 12).

Segundo Elisa Guimarães, o modelo de estrutura (ou de superestrutura) da

narração pode ser assim representado:

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[...] um estado de equilíbrio inicial, que define uma situação estável – uma ação transformadora que corresponde à intervenção de uma força perturbadora acarretando um estado de desequilíbrio – uma ação transformadora que corresponde à força da reação da qual decorre um estado final de equilíbrio. (apud COIMBRA, 1993, p. 15).

Por isso, segundo a autora, dentro deste ponto de vista, três categorias tecem

o esquema narrativo: exposição, complicação e resolução. Podem, ainda, completar

o esquema uma avaliação e uma moral. O texto narrativo, segundo a autora, ostenta

uma dimensão temporal: os comportamentos que nele se processam têm relações

mútuas de anterioridade e de posterioridade. Sua especialidade fundamental, no

entanto, é sua referência primordial a ações de pessoas, as quais ficam

condicionadas às descrições de circunstâncias e de objetos. (GUIMARÃES, apud

COIMBRA, 1993, p. 15).

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari definem a narração como:

A ordenação de fatos, de natureza diversa, externos ao relator (mesmo quando o narrador é parte dos fatos, isto é, participa da ação que está sendo narrada). No texto comunicativo, os acontecimentos (desde a mais simples notícia até a grande-reportagem), situados no nível de uma seqüência temporal, constituem uma narrativa. (1977, p. 77).

Para evidenciar a extensão do processo articulatório do texto descritivo,

Guimarães (apud Coimbra, 1993, p. 19), esclarece que toda descrição comporta as

seguintes categorias:

1. Um tema chave que enuncia a seqüência descritiva;

2. Uma série de subtemas;

3. Expansões predicativas (atribuições de qualidade, de ações, aos

subtemas).

Para Sodré e Ferrari, a descrição é entendida como a representação

particularizada de seres, objetos e ambientes. “A descrição imobiliza esse objeto ou

ser em certo instante do processo narrativo, fixa um momento, um lado, um aspecto

do ser que se move, retendo-o através da permanência de sua imagem imóvel.”

(1977, p. 105).

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No jornalismo os tipos mais comuns de descrições são, de acordo com

Gaudêncio Torquato (1984, p. 119), a pictórica – que se faz pela soma dos detalhes,

o observador imóvel em relação ao que é observado; a topográfica – que concede

mais ênfase a certos aspectos do que é observado, normalmente massa e/ou

volume; e a cinematográfica – que destaca a luz e o jogo de luzes ou sombras sobre

o objeto observado.

Coimbra ainda destaca a descrição de pessoas: que é, principalmente,

através da comunicação face a face, possibilitada pelas entrevistas, que o jornalista

observa as pessoas que se tornarão personagens de seus textos.

Há, portanto, uma dualidade – pessoa/personagem – diante da qual está permanentemente o jornalista, e com a qual é obrigado a conviver sempre, correspondente à dupla dimensão do seu trabalho – a de repórter, captador de informações do mundo real, e a de redator, estruturador de textos. Essa dualidade se intercomunica, graças aos mesmos fatores pelos quais o texto, como vimos, tem dupla face: uma voltada para o mundo real, outra para sua organização interna. Se o que está fora do contexto verbal escrito é transportável para dentro dele, podemos usar conceitos criados para classificar elementos da comunicação face a face como elementos da estruturação do texto descritivo de pessoa. (1993, p. 20).

Sodré e Ferrari (1977, p. 119) acrescentam às técnicas narrativas a exposição

e o diálogo. A exposição aplica-se à apresentação de um fato e suas circunstâncias,

com a análise das causas e efeitos, de maneira muito pessoal ou não. Já o diálogo é

realista e envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro instrumento.

Também situa e define o personagem mais rápida e efetivamente do que qualquer

outro recurso.

Lima diz que “a narrativa jornalística é como um aparato ótico que penetra na

contemporaneidade para desnudá-la, mostrá-la ao leitor, como se fosse uma

extensão dos próprios olhos dele, naquela realidade.” (1995, p. 122). Para cumprir

tal tarefa, a narrativa tem de selecionar a perspectiva sob a qual será mostrado o

que se pretende.

Karydakis e Oliveira fazem menção à narrativa fantástica. Segundo as autoras

neste caso, a narrativa é baseada em referências anteriores, que se pautam com a

realidade sensível. “O autor do texto cria imagens, e estas imagens criam sua

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própria realidade, elas se assumem como imagens de fato e bastam a si mesmas.

Aqui, as simulações pretendem inventar novas realidades.” (2007).

Além da técnica propriamente dita, o debate a respeito do tempo na literatura

passa pelas conexões entre o tempo e a linguagem.

Quando se pretende relacioná-los, a primeira premissa é a de que o discurso sempre sofre uma defasagem com relação ao fato descrito, já que aquilo que tentamos descrever agora, no momento seguinte já é passado. Mas o paradoxo, está em que ao mesmo tempo em que a linguagem não consegue acompanhar o acontecimento dos fatos, ela está mergulhada em referenciais temporais. Através destes é que o discurso é construído e passa a fazer sentido para o leitor, que pode, então, criar seqüências e relações de causa e efeito. (CAPAVERDE, 2007).

A literatura criou mecanismos próprios em função desta inabilidade da

linguagem em historiar os fatos no momento em que eles acontecem. Como a

literatura não é capaz de dominar o tempo real, ela cria seu próprio tempo, dentro de

uma relação de verossimilhança com o mundo. Segundo Capaverde, é pela direção

progressiva do discurso que se tem a ilusão de acompanhá-lo, pela associação de

uma palavra à outra, aponta-se uma direção para a memória ou para o futuro. “A

escrita, portanto, é uma forma de romper os limites entre o espaço e o tempo.”

(2007).

O elemento tempo, por conseguinte, é presença imprescindível na essência

de qualquer categoria narrativa – antes, durante e depois; início, meio e fim –. O

tempo da narrativa emana da relação entre o tempo de narrar e o tempo narrado,

como um grupo do discurso. Deste encontro surge o tempo físico e o psicológico, o

tempo cronológico e o tempo histórico. Já o tempo de leitura, consuma-se através da

ação de ler e da temporalidade do leitor. “O próprio ato narrativo se desloca

temporalmente, uma vez que contar uma história leva tempo e toma tempo. É

atividade real que consome minutos ou horas do narrador ou do ouvinte/leitor.”

(CAPAVERDE, 2007).

A narrativa jornalística, por sua vez, se utiliza desses recursos para

apresentar melhor qualidade e praticar uma literatura da realidade. Logo, a

reportagem pode exercer o papel de reprodutora do real, assumindo alguns dos

nobres ideais de que esta pode revestir-se e sem dúvida, beirando a arte.

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1.4 O narrador e as personagens

Histórias são narradas desde sempre. No início, com a Épica, foi no sentido

de uma narração de fatos, presenciados ou vividos por alguém que tinha a

autoridade para narrar, alguém que vinha de outros tempos ou de outras terras,

tendo por isso, experiência a comunicar e conselhos a dar a seus ouvintes atentos.

Assim, desde sempre, entre os episódios narrados e o público, se interpôs um

narrador. (LEITE, 1997, p. 5).

Para a autora, “quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou,

mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso, a narração e a

ficção praticamente nascem juntas.” (LEITE, 1997, p. 6).

Kayser trata da questão do narrador a partir da situação primitiva, onde um

narrador conta a um auditório alguma coisa que aconteceu. Depois o autor chama a

atenção para a variação substancial do narrador de romance: aqui o narrador fala

pessoalmente para um leitor também pessoal, individual, numa sociedade dividida. É

o fenômeno da particularização em personagens.

Na epopéia, o narrador tinha uma visão de conjunto e se colocava (e colocava o seu público) à distância do mundo narrado. Já o narrador do romance [...] perde a distância, torna-se íntimo, ou porque se dirige diretamente ao leitor, ou porque nos aproxima intimamente das personagens e dos fatos narrados. (apud LEITE, 1997, p. 11).

Para Reis, a pessoa do narrador só pode fazer parte da narrativa, como todo

o sujeito da enunciação no seu enunciado, na primeira pessoa. “Mesmo no relato

mais sóbrio há alguém que me fala, que me conta uma história, convida-me a ouvir

como ele a conta e este apelo – confiança ou pressão – constitui uma inegável

atitude de narração e, portanto de narrador.” (1999, p. 369).

Segundo Wayne Booth, o autor se disfarça constantemente, atrás de uma

personagem ou de uma voz narrativa que o representa. “A ele devemos a categoria

do autor implícito, extremamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do

jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração.” (apud LEITE,

1997, p. 18).

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Jean Pouillon indica três possibilidades na relação narrador-personagem: a

visão com, a visão por trás, e a visão de fora.

Na visão por trás, o narrador domina todo um saber sobre o seu destino. É onisciente [...] uma espécie de Deus. Na visão com, o narrador limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos. Renunciando à visão de um Deus que tudo sabe e tudo vê. Finalmente, a visão de fora, em que se renuncia até mesmo ao saber que a personagem tem, e o narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos nos adentrar nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens. (apud LEITE, 1997, p. 19).

Norman Friedman (apud Leite, 1997, p. 26), propõe a distinção de narrador2

nas seguintes categorias:

1. Narrador onisciente intruso: esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar

a bel-prazer, adotando um ponto de vista sublime, para além dos limites de tempo e

espaço. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras,

pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus

comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não,

estar entrosados com a história. Segundo Leite, no século XVIII e no começo do

século XIX, o narrador onisciente intruso saiu de moda. “Com o predomínio da

neutralidade preferia-se narrar como se não houvesse um narrador conduzindo as

ações e as personagens, como se a história se narrasse a si mesma.” (1997, p. 29).

2. Narrador onisciente neutro: fala em terceira pessoa. As outras

características referentes às outras questões são as mesmas do narrador onisciente

intruso, do qual este se distingue apenas pela ausência de instruções e comentários

gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens.

3. Narrador testemunha: narra em primeira pessoa, mas é um “eu” já interno à

narrativa, que vive os acontecimentos descritos como personagem secundária que

pode observar de dentro os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo

2 Além dos cinco mencionados, Leite (1997), na obra citada faz menção a outros três focos narrativos

descritos por Norman Friedman, que se deixou de considerar por não serem, segundo Coimbra (1993), empregados no jornalismo. 1. Onisciência seletiva múltipla: não há propriamente narrador. A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. 2. Onisciência seletiva: é uma categoria semelhante à anterior. Difere apenas por tratar-se de uma só personagem. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. 3. Câmera: significa o máximo da exclusão do autor. Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente.

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mais direto, mais verossímil. Apela-se para o testemunho de alguém quando se está

em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal. No caso do “eu”

como testemunha, o ângulo de visão é mais limitado. Como personagem secundária,

ele narra da fronteira com os acontecimentos, não consegue saber o que se passa

na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de

informações, de coisas que viu ou ouviu, e, até mesmo, de cartas ou outros

documentos secretos que tenha adquirido. Esse narrador tanto sintetiza a narrativa,

quanto a apresenta em cenas.

4. Narrador-protagonista: desaparece a onisciência. O narrador, personagem

central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um

centro fixo, limitado quase que unicamente às suas percepções, pensamentos e

sentimentos.

5. Modo dramático: eliminam-se os estados mentais e limita-se a informação

ao que as personagens falam ou fazem, como no teatro, com breves notações de

cena enlaçando os diálogos. Ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos

movimentos e palavras das personagens. O texto geralmente é apresentado por

uma sucessão de cenas. Esta técnica funciona melhor em contos.

Categoria fundamental da narrativa, a personagem evidencia a sua relevância

em relatos de diversa inclusão sociocultural e de variados suportes narrativos. “Na

narrativa literária (da epopéia ao romance), como na narrativa cinematográfica, na

telenovela ou na banda desenhada, ela é normalmente o eixo em torno do qual gira

a ação e em função do qual se organiza o relato.” (REIS, 1999, p. 360).

A personagem não existe fora das palavras, diz Beth Brait. “Se quisermos

saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente à

construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas

criaturas e aí pinçar a vida desses seres.” (apud Coimbra, 1993, p. 71).

A densidade psicológica é um elemento importante para distinguir as

personagens quanto à sua composição. A terminologia utilizada para designar as

personagens foi criada por E.M. Forster, citado por Brait (apud Coimbra, 1993, p.

72).

1. Personagem plana: é a personagem construída em torno de uma única

idéia ou qualidade. Depois de caracterizada pela primeira vez, ela sempre reincide

nos mesmos gestos e comportamentos, repete-se em tiques verbais, diz as mesmas

coisas. Enfim, torna-se pouco densa, previsível. Geralmente, a personagem plana é

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definida em poucas palavras e está imune à evolução no transcorrer da narrativa.

Essa espécie de personagem pode ser subdividida em: (a) tipo: a que alcança o

auge da peculiaridade, sem ser deformada pelo narrador; (b) caricatura: a que tem a

sua qualidade ou idéia única característica propositadamente distorcida pelo

narrador, com intenção de satirizá-la.

2. Personagem redonda: reveste-se de complexidade suficiente para

constituir uma personagem bem marcada. Um dos principais fatores de sua

configuração é a manifestação gradual de seus traumas, vacilações e obsessões. É

uma personagem dinâmica e multifacetada, constitui imagem total e ao mesmo

tempo muito particular do ser humano e permanece como elemento para a

averiguação da complexidade do ser humano. Este tipo de personagem corresponde

à entrevista aberta, aquela que mergulha no outro para compreender seus

conceitos, seus valores, comportamentos e histórico de vida.

3. Personagem referencial: é a que remete a um sentido pleno e fixo

imobilizado por uma cultura. Sua apreensão e seu reconhecimento dependem do

grau de participação do leitor nessa cultura.

4. Personagem anáfora: ao contrário da personagem referencial, só pode ser

completamente apreendida dentro do texto, ou, mais especificamente, na rede de

relações que os elementos do texto mantêm entre si.

5. Figurante: chamada às vezes de personagem com função decorativa,

ocupa um lugar claramente menor, distanciado e passivo em relação aos incidentes

narrados. Serve para ilustrar uma atmosfera, uma profissão, uma mentalidade, uma

atitude própria de certa cultura ou para constituir um traço de cor ou ainda para

constituir um número necessário à apresentação de uma cena em grupo.

De acordo com Sodré e Ferrari (apud Coimbra, 1993, p. 103), deve ser

chamado de perfil o texto que focaliza uma personagem, protagonista de uma

história – a de sua própria vida –. Quando a personagem é secundária e sua

descrição ocorre num breve momento de suspensão da ação narrada, o texto é

chamado de miniperfil. Por outro lado, quando existe uma única personagem e

determinada publicação dedica numa mesma edição, um conjunto de textos como

artigos, crônicas, poemas, entrevistas que, juntos, compõe uma espécie de grande

reportagem, ocorre, então o que denominam de multiperfil.

Leite (1997, p. 86), conclui que o narrador é um, entre os vários elementos

com os quais se articula uma obra.

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Pode-se inferir, de acordo com os subsídios teóricos apresentados, que a

presença de um narrador e das personagens é essencial tanto para a literatura

quanto para o jornalismo porque é a partir de um narrador que as histórias vêm à

tona e são as personagens que tornam isso possível.

1.5 O cotidiano transformado pelo olhar sensível

Todas as qualidades censuráveis em literatura vêm de uma causa: a ânsia de

novidade. Assim um belo estilo, concepções sublimes e feliz fraseado contribuem

para uma composição eficaz. “Esses fatores são a base e a origem do sucesso.”

(LONGINUS, 1990, p. 88). De um modo geral, pode-se dizer que a sublimidade, em

toda a sua verdade e beleza, existe nas obras que agradam a todos os homens e

em todos os tempos.

Cinco são as fontes do sublime: a primeira é a capacidade de arquitetar

grandes concepções. O ideal seria visar à concepção de grandes idéias. “A

sublimidade é o eco de um nobre espírito, assim, uma simples idéia às vezes por si

mesma despertará admiração pelo simples motivo da grandeza espiritual que

expressa.” (LONGINUS, 1990, p. 92). Em segundo lugar, vem o estímulo da emoção

em suas formas mais extremas.

Em terceiro aparecem as figuras do pensamento e da fala. “Uma combinação

de figuras para um objetivo comum habitualmente tem um efeito muito estimulante,

quando duas ou três se unem em uma espécie de parceria para aumentar a força, o

poder de persuasão e a beleza.” (LONGINUS, 1990, p. 111). O uso de figuras é para

aumentar a animação e o impacto emocional do estilo e os efeitos emocionais

desempenham parte na produção do sublime. Depois surge a criação de uma

elocução nobre, o que, por sua vez, se resolve com a escolha do vocabulário, o uso

de imagens e a elaboração do estilo.

A escolha de palavras adequadas e sonoras comove e encanta uma audiência, e salienta que tal escolha constitui o mais alto objetivo de todos os oradores e escritores, pois imediatamente transmite ao estilo grandiosidade, beleza, doçura, peso, força, poder e qualquer outra boa

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qualidade que imaginemos, e apresenta os fatos como se fosse uma realidade direta. (LONGINUS, 1990, p. 120).

Entende-se a partir disto que as palavras têm poder. Elas podem tornar

humilde o que é grandioso, e tornar grandioso o que, aparentemente, é humilde. A

quinta fonte é o efeito total resultante da dignidade e da elevação. A linguagem

amplificada, ou seja, pontos de argumentação que permitem o uso de frases de

efeito, proporciona grandiosidade ao assunto, evidentemente também pode ser

aplicada ao sublime e aos estilos emotivo e figurativo, uma vez que também

revestem a linguagem de um certo grau de grandiosidade (LONGINUS, 1990, p. 99).

Neste contexto, Fernando Pessoa diz que a finalidade da arte não é agradar, e sim

elevar. “A finalidade da arte é a elevação do homem por meio da beleza.” (1988, p.

44).

De acordo com Chklovski, arte é pensar por imagens. “Não existe arte sem

imagem. O objetivo da imagem é criar uma percepção particular do objeto, criar uma

visão.” (apud TOLEDO, 1973, p. 50). Segundo o autor, existem dois tipos de

imagens: a imagem como um meio de pensar, meio de agrupar os objetos e a

imagem poética, meio de reforçar a impressão.

A imagem poética é um dos meios de criar uma impressão máxima. Como meio, na sua função, é igual aos outros procedimentos da língua poética, é igual ao paralelismo simples e negativo, é igual à comparação, à repetição, à simetria, à hipérbole, é igual a tudo o que se chama uma figura, é igual a todos os meios próprios para reforçar a sensação produzida por um objeto (numa obra, as palavras e mesmo os sons podem também ser os objetos). A imagem poética é um dos meios da língua poética. Já a imagem prosaica é um meio de abstração, é um pensamento (apud TOLEDO, 1973, p. 42).

Para Pessoa, a arte reúne utilidade, resumo experimental e invenção com

valor. O valor fundamental da arte está em ela ser o sinal da passagem do homem

no mundo, a síntese do seu experimento emotivo e, como é pela emoção e pelo

pensamento que o homem mais vive na terra, a sua verdadeira experiência. Nas

palavras do poeta português, deixa-se a arte escrita para guia da experiência. “É a

arte que é a mestra da vida.” (PESSOA, 1988, p. 25).

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Segundo o autor, a arte tendo sempre por base uma abstração da realidade

tenta reaver essa realidade idealizando-a. “A obra de arte deve produzir uma

impressão, deve ter um sentido, seja sugestivo o processo, ou explícito.” (PESSOA,

1988, p. 30). O autor diz que a idéia original tem que ser sentida em todos os seus

detalhes. Uma obra de arte, portanto, é em essência, uma invenção com valor.

Por natureza, a inteligência, embora não crie constantemente se transforma. Um longo uso da inteligência pela humanidade criou um instinto nessa inteligência, e como a inteligência por natureza transforma, e o instinto por natureza opera uma fusão dos dois, ou, por outras palavras, um instinto intelectual será uma qualidade do espírito que transforme operando. Mas a transformação reduzida a ato é precisamente a essência da invenção, pois que a invenção é um ato, e um ato que transforma o que há. A obra de arte, no que invenção de um valor, deriva, portanto do que com propriedade se pode chamar um instinto intelectual. (PESSOA, 1988, p. 33).

A obra de arte, segundo Fernando Pessoa, deve provir do instinto. Porém

esse instinto como é intelectual, pode ser imitado nas suas operações pela

inteligência. A obra da inteligência não pode ter valor no gênero a que pertence,

porém pode simulá-lo. O fim da arte é imitar perfeitamente a Natureza. “Este

princípio elementar é justo, se não esquecermos que imitar a Natureza não quer

dizer copiá-la, mas sim imitar os seus processos. Assim a obra de arte deve conter

quanto seja preciso à expressão do que quer exprimir.” (1988, p. 40).

A arte moderna procura interpretar o que vê, sem deixar de ser uma forma de

crítica. O jornalismo, sendo também literatura, dirige-se, todavia ao homem e ao dia

que passa. Tem a força direta das artes, tem a força de ambiente das artes visuais,

tem a força mental da literatura, por de fato ser literatura. (PESSOA, 1988, p. 48).

A literatura de um povo, conforme o que Pessoa diz, é o que esse povo

pensou de si mesmo, e do universo, da sociedade, e do indivíduo, através de si

próprio. Por isso a história de uma literatura é, na realidade bem entendida, a história

da significação que tiveram as diferentes interpretações que esse povo deu a si

mesmo. “A história de uma literatura é a história da evolução de uma consciência

nacional.” (1988, p. 52). Neste contexto compreende-se que a arte tem em si a

criação de beleza.

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Para Barthes (1973, p. 24), não é mais possível conceber a literatura como

uma arte que se desinteressa de toda relação com a linguagem, já que a arte utiliza-

se da linguagem como um instrumento para exprimir a idéia, a paixão ou a beleza.

Uma obra só é grande se fizer o espírito do leitor experimentar uma sensação

de grandiosidade ou lhe deixar na mente motivos para reflexões. (LONGINUS, 1990,

p. 90). O mesmo diz Pessoa: toda arte é o resultado da colaboração entre sentir e

pensar. “Ora o pensamento pode colaborar de três maneiras com o sentimento.

Pode ser a base desse sentimento; pode interpretá-lo; e pode combinar-se

diretamente com ele de forma a intensificá-lo pela complexidade.” (1988, p. 75).

A arte da narrativa, aplicada à construção de matérias que consigam

expressar em imagens a realidade, exerce um natural fascínio sobre o leitor. Estas

imagens podem ser visuais – pessoas ou objetos – ou ainda imagens que o leitor

imagina, de acordo com a narrativa que foi contada. Edvaldo Pereira Lima, no artigo

“Jornalismo de Transformação”, diz que é possível a partir de um olhar mais crítico,

revirar as entranhas da face estética para tentar descobrir por trás da beleza

externa, uma função que move a edificação da obra de arte, seja uma pintura, seja o

texto jornalístico. “A arte narrativa pode provocar a elaboração de um pensamento

produtivo – aquele que provoca uma catarse mental no leitor, ajudando-o a dar um

salto de qualidade na resignificação da realidade.” (2007).

Para o autor, uma boa narrativa jornalística deve ter uma postura pró-ativa e

destinar seu potencial de sensibilização a um nível elevado de compreensão da

realidade.

O jornalismo aberto a esses novos caminhos em que percebemos a realidade não mais sob uma ótica reduzida, centrada apenas num patamar excludentemente racionalista em excesso. Um jornalismo que não fica à mercê do relato passivo dos acontecimentos, mas que percebe o eclodir de tendências e probabilidades, que acompanha a gestação de visões inovadoras, que sai do lugar comum. Que focaliza uma visão complexa, buscando uma compreensão ampla, ajudando o ser humano a encontrar novos significados, auxiliando-o a ampliar seu grau de consciência de si mesmo, do outro, da existência. Um jornalismo baseado no presente, mas voltado ao futuro, também capaz de mergulhar no passado para compreender contextos, processos, dimensões tempo-espaciais reunidas como numa dança quântica de átomos num certo momento iluminado de compreensão. Um insight revelador. [...] Um jornalismo de transformação. Que trabalha em prol da transformação individual e coletiva. [...] Busquei sugerir esse caminho a partir do Jornalismo Literário. (LIMA, 2007).

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John Hohenberg (apud Abreu, 2006) diz que em se tratando de níveis de

interpretação, a exatidão da linguagem torna mais clara a acepção dos fatos. Em um

texto pode-se utilizar da precisão e, ao mesmo tempo, valer-se da linguagem

literária, já que o encanto de uma linguagem artística e a precisão ao informar sobre

o objeto referido não são características excludentes, mas complementares. “A

aplicação da linguagem literária no texto jornalístico pode multiplicar a informação,

desde que se entenda que essa última também possui conteúdos significativos per

si.” (ABREU, 2006).

Isso acontece porque o uso de recursos literários abastece o texto com vários

níveis de interpretação, qualidade que os “arautos do bom jornalismo” negam,

expondo que o texto jornalístico não pode apresentar mais do que uma condição

interpretativa. Mas decodificar um fato é algo que incide em qualquer texto verbal,

seja ele literário; científico ou jornalístico. Atribuir à narrativa vários níveis

interpretativos talvez auxilie o leitor a achar aquele que mais o interesse, sem

permanecer “preso” a uma explicação que se pretende única, mas pode não ser

minimamente condizente com a complexa realidade que julga demonstrar (ABREU,

2006).

Nesse contexto, de acordo com o que Lima diz em seu artigo, a narrativa de

qualidade pode fazer algo mais.

Podemos trazer o amor – a aceitação das diferenças, a busca da compreensão profunda do outro, a humildade de reconhecer que a existência não só se constitui numa realidade complexa mas contém uma certa porção de mistério que não conseguimos explicar, a capacidade de nutrir uma cultura de paz, a alegria de ver e retratar a vida tão diversificada e paradoxalmente tão unificada nas suas diferentes formas – de volta ao texto jornalístico de profundidade. Podemos buscar equilibrar o entendimento racional com o insight intuitivo. Podemos ousar. Devemos tentar o novo. (2007).

Afinal, na arte tudo é forma e tudo inclui idéias. A arte da vista à imaginação.

É através dela que o mundo se aperfeiçoa. Como diz Fernando Pessoa, “a base de

toda arte é uma sinceridade traduzida.” (1988, p. 84). Para concluir, uma máxima de

Walter Benjamim: “A beleza é um valor socialmente construído. A beleza não está

na obra, está em quem observa a obra.” [s.d.].

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2. “CADA ZÉ É UM ULISSES. E CADA PEQUENA VIDA UMA ODISSÉIA”: A

CRÔNICA-REPORTAGEM

A crônica que tem no cotidiano sua matéria-prima, também vai aproximar-se

ainda mais da realidade. Ao transformar-se em crônica-reportagem leva ao leitor

histórias curiosas, problemas sociais e situações interessantes da vida. A crônica

guarda e mantém um caráter de atualidade.

O jornal pretende informar, ser imparcial, mas a crônica nas miudezas, de

outro modo é espaço de orientação. Utilizando os critérios de observação direta dos

fatos e contato direto com as fontes para narrar os acontecimentos, recursos

atribuídos ao jornalismo, busca-se referendar tanto os relatos quanto os comentários

aos critérios de veracidade e atualidade.

É nesta hibridez de gêneros que a crônica-reportagem ultrapassa as

fronteiras do entreter e passa a informar e orientar seus leitores em relação ao

cotidiano da cidade, como se verá neste capítulo. Para tanto, particularidades e

especificidades da crônica e da reportagem serão evidenciadas neste capítulo.

2.1 Contando histórias: a crônica

Os primeiros textos históricos, segundo José Marques de Melo (2002, p. 140),

são as narrações de acontecimentos, feitas por ordem cronológica, desde Heródoto

e César a Zurara e Caminha. A atividade dos cronistas vai estabelecer a fronteira

entre a logografia – registro de fatos, mesclados com lendas e mitos – e a história

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narrativa – descrição de ocorrências extraordinárias consolidadas nos princípios da

verificação e da fidelidade.

De acordo com dados obtidos da Enciclopédia Compacta Istoé-Guiness de

Conhecimentos Gerais (1995, p. 444), as primeiras manifestações literárias

ocorridas no Brasil foram um reflexo fiel do que ocorria em Portugal à época do

descobrimento: o gosto pela crônica histórica decorrente do entusiasmo com as

grandes navegações e descobertas, o teatro popular e a poesia lírica e épica de Luís

Vaz de Camões. Mas o marco inicial consta da carta escrita por Pero Vaz de

Caminha ao rei de Portugal para notificar o descobrimento da nova terra.

A crônica recebe total influência do jornalismo literário. Jorge de Sá (1985, p.

7) afirma que a Literatura Brasileira nasceu da crônica. Para Rangel e Ribeiro (2006,

p. 7), a crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser

perpetuado na imprensa, seja nas folhas de uma revista, seja nas de um jornal.

Coutinho (1971, p. 108) completa que foi no século XIX que a crônica apareceu nos

jornais, através de um texto que continha o resumo cronológico dos fatos aliado à

ficcionalidade. Eram histórias reais contadas com características literárias.

Quer dizer, ela é feita com uma intenção objetiva e pré-determinada: agradar

aos leitores dentro de um espaço sempre similar e com a mesma localização,

criando-se assim, no decurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o

escritor e aqueles que o lêem.

Apesar de seu florescimento no século passado e do seu cultivo por

jornalistas-escritores do porte de Machado de Assis e José de Alencar, a crônica

brasileira somente assumiria aquela feição de gênero tipicamente nacional, na

década de 30. Da história e da literatura, a crônica passa ao jornalismo, sendo um

gênero cultivado pelos escritores que ocupam as colunas da imprensa diária e

periódica para relatar os acontecimentos pessoais. Pode-se dizer que a crônica

situa-se entre o jornalismo e a literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta

dos acontecimentos do dia-a-dia.

Segundo Marques de Melo, a crônica consolidou-se como recriação do real e

o cronista começou uma busca interminável por alcançar a genialidade a cada texto.

Os autores escreviam os textos na tentativa de incutir no leitor a idéia-simulacro de

que todos fazem parte de uma grande reportagem da vida real. Deu-se, dessa

maneira, “a liberação da crônica como uma inspiração para o relato poético, a

descrição literária e a palpitação do jornalismo atual.” (2002, p. 154).

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A crônica é descendente da literatura, da história e mais atualmente, do

jornalismo. De acordo com Vieira (apud Coutinho, 1971, p. 108) a crônica possui

dois significados: o primeiro deles é voltado à história, no sentido do tempo

cronológico. Com o avanço da palavra o seu significado passa a se vincular ao

jornalismo, isto porque é nos jornais que se contam os principais acontecimentos do

dia, e esta seria, segundo o autor, a função da crônica.

“Em sua origem jornalística a crônica é um texto informal. E sendo assim,

informal, de estilo livre, ela não perde o rigor da informação nem a qualidade lírica

e/ou irônica do seu texto.” (ANDRADE apud SCHEIBE, 2006, p. 19). As principais

alterações na técnica textual da crônica decorrem, em parte, da Semana da Arte

Moderna, de 1922, que estimulou um movimento de brasilidade, incentivando a

produção da literatura local, com assuntos e estilos referentes ao Brasil. “As

temáticas e a linguagem dos textos foram se aproximando da realidade nacional.”

(SCHEIBE, 2006, p. 17).

Na passagem do século XIX para o XX, paralelamente ao registro factual e,

também, informativo-jornalístico, a crônica adicionou a subjetividade do narrador. A

crônica seria de acordo com Margarida de Souza Neves uma espécie de “espírito do

tempo”, em razão de suas características de forma e conteúdo, fatos e

informalidade.

A crônica aparece como portadora por excelência do “espírito do tempo”, por suas características formais como por seu conteúdo, pela relação que nela se instaura necessariamente entre ficção e história, pelos aspectos aparentemente casuais do cotidiano, que registra e reconstrói como pela complexa trama de tensões e relações sociais que através delas é possível perceber. Pela “cumplicidade lúdica”, enfim, que estabelece entre autor e possível leitor no momento de sua escrita e que parece reproduzir-se entre historiador e o tempo perdido em busca do qual arriscamos nossas interpretações, ainda que sempre ancorados em nosso tempo vivido. (1992, p. 82).

Marília Rothier Cardoso (1992, p. 138), define a crônica como um gênero que

se aproveita do habitual e da coloquialidade. A crônica não quer ser formal, pelo

contrário, almeja utilizar uma linguagem despretensiosa. De acordo com Telê Porto

Ancona Lopez, a conclusão a que se chega, considerando-se o sucesso da crônica,

um texto com assuntos do cotidiano, em formato informal, é a de que: “o leitor não

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só gosta como precisa de quem converse com ele, dizendo-lhe os sentimentos

experimentados no dia-a-dia, frente aos fatos que todos conhecem de algum modo,

ou frente às ocorrências da vida pessoal de quem escreve.” (1992, p. 166).

Para Martin Vivaldi, a caracterização da crônica torna-se necessária para

diferenciá-la de outros gêneros: “o característico da verdadeira crônica é a valoração

do fato ao tempo em que se vai narrando. O cronista, ao relatar algo, nos dá sua

versão do acontecimento, põe em sua narração um toque pessoal.” (apud MELO

2002, p. 141).

A crônica adotou linguagem prática e coloquial, fazendo com que o texto e os

assuntos se aproximassem do leitor e da sua realidade. José Marques de Melo

escreve que a crônica brasileira apresenta duas fases bem distintas:

A crônica de costume – que se valia dos fatos cotidianos como fonte de inspiração para um relatório poético ou uma descrição literária – e a crônica moderna – que figura no corpo do jornal não como objeto estranho, mas como matéria inteiramente ligada ao espírito da edição noticiosa. (2002, p. 149).

As características da crônica são a opinião, a leveza e a união de recursos

textuais literários e jornalísticos. Ela materializa-se em texto crítico, praticando a

interação entre o real e o irreal, a subjetividade do lirismo e a objetividade dos fatos.

Os assuntos abordados nas crônicas fazem parte da vida dos leitores. Além

disso, pode-se desfrutar de liberdades lingüísticas e estruturais, como a utilização do

foco narrativo em primeira ou terceira pessoa e a de estabelecer diálogos. Assim,

como diz Scheibe “a crônica, inserida no jornalismo como um gênero literário,

precisa ser arte.” (2006, p. 25).

Nesse mesmo sentido, referindo-se à crônica como um texto literário e

jornalístico, Lopez define o gênero como um texto escrito ao “correr da pena”:

A crônica pára no meio do caminho entre a literatura e o jornalismo, é gênero híbrido. Quando escrita, não se imagina em livro, nem dispõe de tempo necessário para melhor se preparar. É realmente escrita ao “correr da pena”, a qual, muitas vezes, está sob pressão do aviso que o número do jornal vai fechar e que restam poucas horas para pôr o texto no papel. Dessa premência decorre a grande espontaneidade da crônica, sua simplicidade na escolha das palavras – temas do dia-a-dia, do vocabulário

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da população. A crônica, por força de seu discurso híbrido – objetividade do jornalismo e subjetividade da criação literária -, une com eficácia código e mensagem, o ético e o estético, calcando com nitidez as linhas mestras da ideologia do autor. (1992, p. 166).

A crônica mistura informação, imaginação, poesia e sentimento. Na sua

narrativa, encontra-se um conjunto de conteúdos, reais e/ou fictícios, que aparecem

no texto sob forma de lembrança. Desse modo, o texto pode transformar-se em

crônica de jornal, que é a sua origem. “A crônica procura mostrar, ou indicar, o que

há por trás das aparências, o que o senso comum não vê (ou não quer ver).”

(MENEZES, 2002, p. 165).

O foco discursivo da crônica centra-se na primeira ou na terceira pessoa. Os

textos, assinados pelos cronistas, comunicam a visão que o autor tem do mundo,

seja de maneira cruel ou emotiva. Nilson Lage diz que, “enquanto na literatura a

forma é compreendida como portadora, em si, de informação estética, em jornalismo

a ênfase desloca-se para os conteúdos, para o que é informado.” (1993, p. 35). A

crônica relaciona-se aos registros de linguagem, ao processo de comunicação e aos

compromissos ideológicos.

Conforme Lage (1993, p. 36), o que orienta a linguagem jornalística e,

também, a crônica, são:

1. Registros de linguagem: a língua portuguesa é heterogênea e dentro dela

abrigam-se usos regionais, discursos especializados e dois registros específicos: o

formal; próprio da modalidade escrita, e o coloquial; linguagem natural que mostra a

realidade local e regional, evidenciando as formas de expressão utilizadas pela

população. Nesse sentido, a crônica tem por costume incorporar neologismos de

origem coloquial e de grande expressividade. Ela se utiliza de um discurso de duplo

juízo, com eufemismos (como suavizar uma situação), interdições (empregando

ironias) e metáforas da linguagem corrente.

2. Processo de comunicação: na crônica o autor desenvolve o foco narrativo

que deseja, e também pode utilizar-se de vários formatos e estilos de linguagem.

3. Compromissos ideológicos: assim como aparece no jornalismo e na

literatura, a ideologia também surge na crônica, através da história contada e da

opinião expressa no relato. Os cronistas revelam seus gostos e juízos através de

seus textos.

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Deixar a imaginação fluir. Essa segundo o jornalista Vieira da Cunha, é uma

das únicas regras da crônica. (apud SCHEIBE, 2006, p. 28). Ao escrevê-la, o escritor

ou jornalista deixa a ficção apropriar-se da realidade, ou a vida mundana aproveitar-

se da ficção. Pode-se dizer que a matéria de não-ficção se transforma em matéria

ficcional, se for aceito o princípio de que a História – pela interpretação, pelo

subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – é também, de acordo com Jorge

Fernandes da Silveira (1992, p. 27), uma ficcionalização do real.

Segundo Cunha, a crônica trata de assuntos surpreendentes utilizando

temáticas de simples entendimento através de uma “fala fácil”. É cúmplice do humor

e da poesia, porém, no seu formato simples, do dia-a-dia, no seu modo direto.

Cunha escreve sobre a importância da informalidade da crônica:

A crônica é aquele canto de página onde um jornal respira. Ali não se admitem catástrofes, globalização é nome feio, os transgênicos e seus opostos são barrados na porta. Mas há sempre lugar para o romance, a nostalgia, o humor e o sonho. Talvez não seja nada: mas, para gente feito eu, é tudo. (apud SCHEIBE, 2006, p. 28).

Jorge de Sá complementa dizendo que:

Com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura também. (1985, p. 11).

Luiz Beltrão (1980, p. 55) propõe duas classificações: quanto à natureza do

tema e quanto ao tratamento. A partir da natureza do tema, são três espécies:

1. Crônica geral: sob uma forma gráfica determinada ou sob uma epígrafe

geral aborda os assuntos mais variados, ocupando espaço fixo no jornal. É chamada

coluna ou seção especial.

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2. Crônica local: sempre sob a mesma epígrafe em página e coluna fixa, fala

da vida cotidiana da cidade, atuando como um tipo de receptor da opinião da

comunidade onde se insere o jornal. É chamada urbana ou da cidade.

3. Crônica especializada: integra página ou seção determinada, com

apresentação gráfica do texto diferente das demais matérias e focaliza assuntos

referentes a um determinado campo específico, como política, esportes, economia

etc. Também é conhecida como comentário.

Quanto ao tratamento, surgem três modalidades:

1. Analítica: a linguagem é sóbria, elegante e enérgica, os fatos são expostos

com brevidade e analisados com objetividade. O cronista dirige-se à inteligência ao

invés do coração.

2. Sentimental: a linguagem é vivaz de ritmo ágil, os fatos apresentam-se a

partir de aspectos pitorescos, líricos, épicos, capazes de comover e influenciar a

ação. O cronista recorre para a sensibilidade.

3. Satírico-Humorística: a linguagem é de duplo sentido com o objetivo de

criticar, ridicularizando ou ironizando fato, ações e personagens com a finalidade de

advertir e entreter o leitor.

Afrânio Coutinho (1971, p. 68) define cinco tipos de crônicas:

1. Crônica narrativa: estória ou episódio próximo do conto contemporâneo,

que não necessita obrigatoriamente de começo, meio e fim.

2. Crônica metafísica: são reflexões sobre acontecimentos e pessoas

projetadas ao sentido filosófico.

3. Crônica-poema-em-prosa: de conteúdo lírico expressa os sentimentos do

cronista ante o espetáculo da vida, das paisagens ou episódios significativos.

4. Crônica-comentário: refere-se aos discursos opinativos sobre determinado

assunto; é uma forma de descrição minuciosa dos acontecimentos; crítica de

acontecimentos díspares.

5. Crônica-informação: relata os fatos, fazendo breves comentários

impessoais.

Coutinho ainda cita a crônica-carta, enfatizando que a “carta” destinada aos

leitores “transita com facilidade na área estritamente privada e íntima – troca de

informações e amabilidades entre as duas pessoas distintas para o plano público.”

(1971, p. 124). Para Ferreira (1990, p. 27), a crônica-carta restringe-se a tratar de

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assuntos diversos, de interesse geral, com a finalidade de uma comunicação e/ou

informação de ordem histórica, científica, política ou social.

Antonio Candido (apud Melo, 1994, p. 158) aponta outros quatro tipos de

crônica:

1. Crônica-diálogo: o cronista e seu interlocutor se revezam trocando pontos

de vista e informações.

2. Crônica-narrativa: apresenta alguma estrutura de ficção, semelhante ao

conto.

3. Crônica exposição poética: uma divagação sobre um fato ou personalidade,

uma série de associações.

4. Crônica biográfica lírica: narrativa poética da vida de alguém.

Massaud Moisés (1979, p. 245), propõe dois tipos de crônica baseado no

ponto de vista da ambigüidade do gênero:

1. Crônica-poema: prosa emotiva que chega ao verso.

2. Crônica-conto: o cronista narra um acontecimento que provoca sua atenção

como se fosse um conto, sendo ele apenas o estoriador.

Finalizando as classificações para a crônica, Dileta Silveira Martins (apud

Ferreira, 1990, p. 25) difere-a da seguinte forma:

1. Crônica-poema – que também pode ser chamada – poema em prosa ou

crônica-digressão: abrange um grande número de assuntos.

2. Crônica-metafísica: costitui-se de reflexos filosóficos sobre a vida humana.

3. Crônica-sociológica: aborda problemas sociais através das reflexões do

cronista.

4. Crônica-memorialística: relato lírico dos fatos e das coisas de diferentes

épocas.

5. Crônica-de-viagem: retrata viagens, descrevendo paisagens e espaços

físicos de lugares e objetos.

6. Crônica-fantástica: mescla fatos do cotidiano com fatos inexplicáveis ou

transcendentais.

Logo, a partir das definições propostas, percebe-se que a crônica esconde

sofisticadas estratégias estéticas e uma nada inocente tendência à observação e

crítica dos comportamentos e acontecimentos cotidianos. Definida como um gênero

híbrido, situando-se entre jornalismo e literatura, a crônica se coloca como um dos

principais canais de comunicação com a sociedade, tanto para o escritor quanto

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para o jornalista. Isso porque sua liberdade textual e temática traduz em seu curto

espaço de jornal e revista entre outras mídias possíveis, pensamentos,

acontecimentos e hábitos de vida das pessoas. Por ser um gênero colado ao tempo,

a crônica se ocupa principalmente dos assuntos cotidianos, e dessa relação surge

seu estreito elo com o espaço e com o seu lugar.

2.2 “Repórter que vai pra a rua suja os sapatos”: a reportagem

Entende-se a reportagem como a procura de conexões entre os

acontecimentos, de modo a proporcionar uma compreensão aprofundada da

realidade contemporânea. A reportagem, produzida com esta determinação de

abrangência vasta da realidade, rumo à compreensão, pode ser então entendida de

maneira complementar, pela adição e consistência das colocações de diferentes

autores.

Segundo Lage (1979, p. 83), como estilo de texto (não como departamento

das redações), a reportagem é difícil de definir. Compreende desde a simples

complementação de uma notícia – uma expansão que situa o fato em suas relações

mais óbvias com outros fatos antecedentes, conseqüentes ou correlatos – até o

ensaio capaz de expor, a partir da prática histórica, conteúdos de interesse estável,

como acontece com o relato da campanha de Canudos realizada por Euclides da

Cunha.

Para Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari:

Narrativa, sabe-se, é todo e qualquer discurso capaz de evocar um mundo concebido como real, material e espiritual, situado em um espaço determinado. Desse modo, quando o jornal diário noticia um fato qualquer, como um atropelamento, já traz aí, em germe, uma narrativa. O desdobramento das clássicas perguntas a que a notícia pretende responder (quem, o que, como, quando, onde, por que) constituirá de pleno direito uma narrativa, não mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela realidade factual do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que, discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem. Esta é uma extensão da notícia e, por excelência, a forma narrativa do veículo impresso. Por conseguinte, a reportagem constitui, assim, basicamente, um dos gêneros jornalísticos. (1986, p. 11).

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Melo, diz que a notícia é o relato global de um fato que já eclodiu no

organismo social. “A reportagem é o relato ampliado de um acontecimento que já

repercutiu no organismo social e produziu alterações que são percebidas pela

instituição jornalística.” (1994, p. 49).

A reportagem é a forma de maior aprofundamento possível da informação

social e, por outro lado, é aquela que responde melhor aos anseios de uma

democracia contemporânea, com toda a plenitude até mesmo da utopia, o

socialismo, ou dentro da atualização capitalista.

Pois é justamente a pluralidade de vozes e a pluralidade de significados sobre o imediato e o real que fazem com que a reportagem se torne um instrumento de expansão e instrumentação plena da democracia, uma vez que a democracia é polifônica e polissêmica. (MEDINA, apud LIMA, 1995, p. 27).

Em sentido metafórico, a polifonia3 consiste na pluralidade de sons que se

desenvolvem independentemente, mas dentro da mesma tonalidade e a polissemia

revela a qualidade que uma palavra apresenta tendo várias significações.

Então, a reportagem é um dos gêneros jornalísticos, e esta, enquanto gênero,

pressupõe a apreciação do estilo, assim como o jornalista articula sua mensagem.

Constitui-se também num grau de extensão e/ou aprofundamento do relato, quando

comparado à notícia, e recebe a classificação de grande-reportagem quando o

aprofundamento é extenso e intenso, na busca do entendimento mais amplo

possível da questão em exame. “Em particular, ganha esse status quando incorpora

à narrativa elementos que possibilitam a compreensão verticalizada do tema no

tempo e no espaço, ao estilo do melhor jornalismo interpretativo.” (LIMA, 1995, p.

27).

Pedro Celso Campos (2007), afirma que a reportagem com certeza é uma

grande notícia porque sem um fato importante, um bom fato, não se tem reportagem

que interesse o leitor. Na definição de Amaral “reportagem é a representação de um

fato ou acontecimento enriquecida pela capacidade intelectual, observação atenta,

sensibilidade, criatividade e narração fluente do autor.” (apud Campos, 2007). Para

3 Fonte: Priberam Informática. Língua Portuguesa On-Line. Disponível em: <http://www.priberam.pt/

dlpo/dlpo.aspx>. Acesso em: 28 set. 2007.

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Alberto Dines, a reportagem também é uma arte, porque se insere toda a bagagem

subjetiva de quem a faz. (apud CAMPOS, 2007). Muitos autores situam a

reportagem a meio caminho da literatura; na verdade já incluída na literatura como

se pode observar, inclusive na modalidade do livro-reportagem que faz muito

sucesso. Até mesmo quando o volume ostenta grande número de páginas, tamanha

é a leveza do texto e a destreza de narrar os fatos jornalisticamente (AMARAL apud

CAMPOS, 2007).

Nesta perspectiva, Marcos Faerman define a reportagem como “a arte de

reconstruir os fatos através da documentação.” (apud Campos, 2007). É um artifício

de investigação da realidade que se difere da historiografia, da sociologia ou da

antropologia e que tem como centro a arte de averiguar os fatos e saber descrevê-

los.

Ainda no campo das definições, Dines coloca que a reportagem não pode

prender-se apenas ao relato factual porque não pode ser um relatório frio, como um

processo judicial ou um inquérito policial. A reportagem faz parte da arte de

escrever, de um estilo e de uma interpretação jornalística dos fatos. O jornalismo

precisa prestar um sentido para os fatos, uma contextualização, uma humanização

do relato. “O retrato quadrado de um acontecimento não é jornalismo, é registro. O

retrato de um acontecimento engrandecido pela técnica da narração, argúcia e

cultura de quem observa, isto sim é jornalismo.” (apud CAMPOS, 2007).

Eugênio Bucci, diz que “a reportagem, como a arte, tem a necessária

pretensão de iluminar o significado, de apontar uma direção acima do caos dos

eventos cotidianos”. Para alcançar este objetivo, o repórter deve apreender o que

tem a contar. E, para entender, precisa sentir. Só então ele coloca em ordem o caos

(e escreve, relacionando os fatos como são encadeadas as palavras). “Porque o

repórter sente, as reportagens emocionam. Porque ele entende, elas informam.

(Informação, não custa repetir, é um dado que contém sentido para o leitor. Ou não

será informação, mas apenas um dado a mais, perdido).” (apud CAMPOS, 2007).

A arte da reportagem é trazer à luz a informação que é notícia – aquela cujas repercussões tendem a alterar a expectativa dos fatos futuros... Vivemos um momento em que a imprensa proporciona uma gigantesca oferta de dados, mas carece de informações; anda atulhada de opiniões, mas raquítica em visão de mundo; lista fatos e mais fatos, mas quase não tem reportagem. A reportagem só é arte (e bom jornalismo) quando foge da

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indiferença e traz, em sua narrativa, a pretensão de compreender o que se passa. (BUCCI apud CAMPOS, 2007).

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari apontam como principais características

que a reportagem deve apresentar, a predominância da forma narrativa, a

humanização do relato, o texto de natureza impressionista e a objetividade dos fatos

narrados, frisando que:

Conforme o assunto ou o objeto em torno do qual gira a reportagem, algumas dessas características poderão aparecer com maior destaque. Mas será sempre necessário que a narrativa (ainda que de forma variada) esteja presente numa reportagem. Ou não será reportagem. (1986, p. 15).

Como a reportagem se apresenta de formas distintas, essa multiplicidade de

formatos deu origem a diversos modelos de reportagem. Sodré e Ferrari (1986, p.

45) apontam três tipos fundamentais:

1. Reportagem de fatos: volta-se ao relato objetivo de acontecimentos, que

obedece na redação à forma da pirâmide invertida e os fatos são narrados em

sucessão, pela ordem de importância;

2. Reportagem de ação: cuida do relato de uma maneira movimentada,

começando sempre pelo fato mais atraente, para ir descendo aos poucos na

exposição dos detalhes, de tal maneira que o leitor fica envolvido com a visualização

das cenas, como num filme;

3. Reportagem documental: o relato é acompanhado de citações que

complementam e esclarecem o assunto tratado, ao mesmo tempo em que se apóia

em dados que lhe conferem fundamentação.

Coimbra (1993, p. 166), difere os modelos de reportagem da seguinte forma:

1. Reportagem dissertativa: o texto se estrutura por meio de um raciocínio

tornado explícito por afirmações gerais, seguidas de justificação ou fundamentação.

2. Reportagem narrativa: tem por característica principal a de conter os fatos

organizados dentro de uma relação de anterioridade e de posteridade, mostrando

mudanças progressivas de estado nas pessoas e nas coisas.

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3. Reportagem dissertativo-narrativa: incorpora trechos narrativos, embora

seja predominantemente dissertativo.

4. Reportagem narrativo-dissertativa: é predominada a narração e contém

fragmentos dissertativos.

5. Reportagem descritiva: deve abrigar pessoas e coisas, como o da

reportagem narrativa, mas ao contrário desta, mostra-as fixadas num único

momento, sem as mudanças progressivas que lhe traz o tempo. Quando há verbos

de movimento, eles manifestam ações que ocorrem no instante apreendido pelo

texto. Assim, se for alterada a ordem das partes em que se divide – os seus

subtemas –, isto não afetará a relação cronológica dos acontecimentos. Nela, o

momento apreendido é sempre detalhado, pormenorizado. Em geral, incorpora

frações e blocos de textos narrativos e dissertativos.

Medina enfatiza que a preocupação real do jornalismo é entender a

contemporaneidade. “Agora, através do saber jornalístico, nós podemos também ir a

especulações mais profundas que ultrapassam o imediatismo da notícia, sem perder

a diretriz básica, que é se situar na contemporaneidade.” A autora acrescenta que a

crítica à superficialidade e ao oportunismo extremo da cobertura jornalística é válida

para o grosso do fenômeno, mas não é adequado se pensarmos no jornalismo com

uma linha dinâmico-histórica que ultrapassa a etapa da superficialidade e do

oportunismo, superando-a justamente pela linha de aprofundamento da notícia

realizada na grande-reportagem. (apud LIMA, 1995, p. 32).

Campos, diz que a boa reportagem pode e carece ser o diferencial entre os

meios impressos e a mídia eletrônica – internet, rádio, TV – uma vez que permite

aprofundar-se na questão abordada. No entanto, como em tudo na existência, uma

boa reportagem inicia com uma boa sugestão, com a percepção do repórter para

farejar fatos sensacionais ou graves.

Para fazer a boa reportagem o jornalista deve escapar dos limites da redação e não se prender à rodinha dos amigos porque a grande notícia tem que ser buscada, checada, conferida ali onde o homem está, no meio do povo, na rua, nas esquinas do mundo. (2007).

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O planejamento a partir da pauta é uma fase eficaz da boa reportagem. É o

plano que vai conduzir a pesquisa de campo e guiar as ações posteriores do

trabalho. O repórter do grande texto deve ter autonomia para reinventar a pauta

quando for necessário. Às vezes o repórter faz uma longa viagem e se a pauta cair

compete a ele a iniciativa de mencionar outra adaptada à situação em que se

encontra, comunicando ao editor. (CAMPOS, 2007).

O autor ainda afirma que a reportagem é sempre um gênero informativo

sucedido de interpretação e opinião. “De acordo com o assunto tratado, poderá ser

também um texto recreativo, pois a crônica social, a crônica esportiva e o texto

cultural também podem ter a forma de reportagem.” Entre os pré-requisitos da

reportagem destaca-se o aspecto humano.

As pessoas se interessam pelo drama vivido por outras pessoas porque, de algum modo, sentem-se envolvidas com os fatos na imensa aldeia global onde tudo afeta a todos cada vez mais. Por isto as agências e os jornais exploram o lado humano de suas histórias, despertando o interesse dos seus leitores. (CAMPOS, 2007).

Segundo Clovis Rossi:

Reportagem é uma coisa paradoxal, por se tratar, ao mesmo tempo, da mais fácil e da mais difícil maneira de viver a vida. Fácil porque, no fundo, reportagem é apenas a técnica de contar boas histórias. Todos sabem contar histórias. Se bem alfabetizado, pode-se até contá-las em português correto e pronto: está-se fazendo uma reportagem, até sem o saber. Difícil porque o repórter persegue esse ser chamado verdade, quase sempre inatingível ou inexistente ou tão repleto de rostos diferentes que se corre permanentemente o risco de não conseguir captá-los todos e passá-los todos para o leitor. (apud CAMPOS, 2007).

Uma boa reportagem divulga a realidade em todos os seus detalhes, com

todas as suas nuances. E é devido a estas peculiaridades que muitas vezes ela fica

para sempre, não tendo uma vida temporária como a de uma notícia factual que é

superada em 24 horas de circulação do jornal. O importante, segundo Sodré e

Ferrari, é que a matéria tenha uma boa narrativa, um relato humanizado, que motive

o leitor à admiração e que trate dos fatos objetivamente, tanto numa reportagem de

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ação (com o fato em movimento: por exemplo, uma votação importante, uma

competição esportiva ou uma ação policial), como numa reportagem de fatos (que

por exemplo, se identifica todos os detalhes de um evento como a morte de um

presidente ou a execução de um condenado famoso) ou numa reportagem

documental (que tem como base os depoimentos, de cunho pedagógico, como

numa matéria sobre o relacionamento homem-mulher em Cuba, por exemplo). (apud

CAMPOS, 2007).

Medina e Leandro determinam a reportagem como o campo por excelência da

aplicação da linguagem literária no texto jornalístico.

Seu texto permite uma grande liberdade de experimentações formais, pois o estilo da reportagem é menos rígido que o da notícia, podendo-se dispor as informações tanto em ordem decrescente, como na notícia, como narrar a história da mesma forma que um conto ou um excerto de romance. A reportagem também não possui o caráter imediato da notícia, o que permite um texto de lavra mais cuidada, interpretando o fato jornalístico. Na passagem de uma prática para outra, mudam as configurações de tempo e espaço: enquanto a notícia registra o aqui, o já, o acontecer, a reportagem interpretativa determina um sentido desse aqui num círculo mais amplo, reconstitui o já no antes e no depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos presente. (1973, p. 25).

A reportagem reinterpreta a realidade percebida, ao deter o real sob múltiplos

ângulos e observações. A maior profundidade na abordagem do fato permite a essa

forma de narrativa jornalística um tratamento diferenciado do texto, mais elaborado

que o noticioso. A procura por um formato narrativo mais refinado que os relatos-

fórmula da notícia são fundamentais para a estruturação de uma reportagem

interpretativa. Do relato direto e padronizado da notícia tradicional parte-se para

técnicas narrativas mais criativas. “Foge-se aí das fórmulas usuais para a criação de

fórmulas inovadoras e até mesmo artísticas, na qual o jornalista não dispõe de

soluções imediatas e fáceis, mas busca novas soluções, novas linguagens para o

enquadramento do fato.” (MEDINA; LEANDRO, 1973, p. 25).

Para Sodré e Ferrari (1986, p. 75), a reportagem jornalística é uma narrativa

como a literária, que contém personagens, ação e descrições de ambientes, mas

afastada desta exclusivamente por seu compromisso com a objetividade da

informação. Como em muitos formatos da literatura em prosa, as principais

características da reportagem são: predominância da forma narrativa, humanização

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do relato, texto de natureza impressionista (a subjetividade do sujeito do discurso) e

objetividade dos fatos narrados.

Corroborando o caráter maleável e dinâmico da reportagem enquanto

estrutura textual, Sodré e Ferrari afirmam que a reportagem pode alterar o modo de

construção textual (a hierarquia das informações) de acordo com as referências

apreendidas pelo jornalista no assunto tratado, o que demonstra que ela não é um

molde fixo, mas uma narrativa expositiva que visa à efetividade da comunicação e

da transmissão de informações e também da troca de emoções com o leitor.

(SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 75).

De acordo com Lima, a reportagem se manifesta nas emissoras de rádio e

televisão, nos jornais e revistas e, extrapolando todos esses canais, no livro.

Entendendo a reportagem como a ampliação da notícia, a horizontalização do relato – no sentido da abordagem extensiva em termos de detalhes – e também sua verticalização – no sentido de aprofundamento da questão em foco, em busca de suas raízes, suas implicações, seus desdobramentos possíveis –, o livro-reportagem é o veículo de comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística. Esse grau de amplitude superior pode ser entendido no sentido de maior ênfase de tratamento ao tema focalizado – quando comparado ao jornal, à revista ou aos meios eletrônicos –, quer no aspecto extensivo, de horizontalização do relato, quer no aspecto intensivo, de aprofundamento, seja quanto à combinação desses dois fatores. (1995, p. 29).

O livro-reportagem surgiu na década de 60 quando o Novo Jornalismo

ultrapassou os limites do jornal impresso, como se viu no capítulo anterior. “O livro-

reportagem surgiu da necessidade de aprofundamento em reportagens importantes.”

(LIMA, 1998, p. 12). Lima acrescenta que com o passar dos anos os veículos de

comunicação foram crescendo e com isso os assuntos ampliaram-se. Esta realidade

atentou para a diminuição do espaço disponível nos impressos para a grande

reportagem.

O livro-reportagem transcende as concepções norteadoras do jornalismo atual. Tem potencial para assumir posturas experimentais. Tem pique suficiente, se trabalhado de forma adequada, para fazer nascer à vanguarda de um jornalismo realmente afinado com as tendências mais avançadas do conhecimento humano contemporâneo. (1998, p. 17).

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O valor essencial do livro-reportagem na sociedade moderna reside em sua

capacidade de estender a função informativa e orientativa do jornalismo cotidiano,

por isso algumas de suas particularidades serão tratadas neste item.

Segundo Lima (1995, p. 29), o livro-reportagem distingue-se das demais

publicações classificadas como livro por três condições essenciais:

1. Quanto ao conteúdo: os temas de abordagem de que trata o livro-

reportagem corresponde ao real, ao factual. A veracidade e a verossimilhança são

fundamentais.

2. Quanto ao tratamento: compreendendo a linguagem, a montagem e a

edição do texto, o livro-reportagem apresenta-se como eminentemente jornalístico.

O livro-reportagem satisfaz, em linhas gerais, às particularidades específicas à

linguagem jornalística, que facilmente são identificáveis na mensagem que veicula,

mas que naturalmente oferece maior maleabilidade de tratamento. O trabalho de

montagem e edição apresenta muitas vezes os mesmos recursos utilizados para a

grande-reportagem nas publicações periódicas, aparecendo com assiduidade o

mesmo emprego de ilustrações, por exemplo, num leque de opções que vai da

fotografia ao mapa, do diagrama ao cartum.

3. Quanto à função: o livro-reportagem pode servir a distintas finalidades

típicas ao jornalismo, que se desdobram desde o objetivo fundamental de informar,

orientar e explicar.

Por causa do vínculo estreito com o jornalismo cotidiano, segundo Lima

(1995, p. 34), pode-se encontrar, então, dois grupos particulares de livros-

reportagem:

1. O livro-reportagem que se origina de uma grande-reportagem ou de uma

série de reportagens veiculadas na imprensa cotidiana, em primeira instância.

2. O livro-reportagem originado, desde o começo, de uma concepção e de um

projeto elaborado para livro.

Da mesma forma, de acordo com Lima (1995, p. 34), pode-se colocar duas

categorias básicas de livro-reportagem, quanto ao seu vínculo menor ou mais

estreito com a atualidade:

1. O livro-reportagem que aproveita um fato de repercussão atual, para

explorá-lo com maior alcance, enquanto o impacto reverbera pela sociedade.

2. O livro-reportagem que não se limita rigorosamente ao atual. Trabalha

assuntos um pouco mais distantes no tempo, de modo que possa trazer explicações

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para as origens, no passado, das realidades contemporâneas. Ou que aborda temas

não atrelados a um fato de núcleo específico, no sentido restrito do termo, e que

mais se relacionam à explicação de uma situação perene.

Para o autor, o livro-reportagem como um processo da comunicação social

moderna cumpre a função de informar e orientar em profundidade sobre ocorrências

sociais, episódios factuais, acontecimentos duradouros, situações, idéias, e figuras

humanas, de modo que proporcione ao leitor um quadro da contemporaneidade

capaz de situá-lo diante de suas múltiplas realidades, de lhe mostrar o sentido, o

significado do mundo contemporâneo.

O livro-reportagem prolonga ainda mais o ciclo de existência dos acontecimentos, ao partir de temas conhecidos pelo público, muitas vezes veiculados inicialmente pela imprensa cotidiana. É de se sugerir que o hábito mental criado pela audiência, ao se acostumar a acompanhar na imprensa um determinado tema, poderá fazer com que parcela dessa audiência se interesse em encontrar, no livro, a continuidade da permanência viva, palpitante do tema. Por esse processo, o livro-reportagem que ressuscita o passado recente concede-lhe uma sobrevida. (LIMA, 1995, p. 41).

Lima também enfatiza que o livro-reportagem complementa o papel da

imprensa cotidiana, no que se refere à universalidade.

Isso se dá tanto porque o livro amplia o conhecimento sobre um tema já divulgado pela imprensa cotidiana, como também porque penetra, por vezes, em temas pouco explorados pelos periódicos. Esses temas normalmente possuem atrativo jornalístico; são considerados pautáveis, em princípio, se quisermos aplicar um raciocínio próximo ao jargão da área. Mas por um motivo editorial qualquer, não são abordados pelas publicações de rotina. Talvez o motivo seja a falta de um segmento de público considerável, dentre a audiência preferencial do veículo, que se interesse mais a fundo pelo tema. Talvez seja seu caráter especializado. Talvez possa ser a falha momentânea do “faro jornalístico”. O fato é que o tema “escapa” à imprensa cotidiana e é absorvida no livro-reportagem. (1995, p.43).

A variedade de livros-reportagens existentes, distintos quanto à linha

temática, aos modelos de tratamento narrativo, conduz à possibilidade de classificá-

los em diferentes grupos. Lima (1995, p. 45), propõe um critério que toma por base

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dois fatores intrinsecamente relacionados entre si: o objetivo particular, específico,

com que o livro desempenha narrativamente sua função de informar e orientar com

profundidade, e a natureza do tema de que trata a obra. Desse modo, encontram-se,

de acordo com a avaliação de Lima, os seguintes grupos de livros-reportagens:

1. Livro-reportagem-perfil: trata-se da obra que procura evidenciar o lado

humano de uma personalidade pública ou de uma personagem anônima que, por

algum motivo, torna-se de importância. No primeiro caso, trata-se geralmente de

uma figura olimpiana. No segundo, a pessoa geralmente representa, por suas

características e circunstâncias de vida, um determinado grupo social, passando

como que a personificar a realidade de tal grupo a que pertence. Uma variante

dessa modalidade é o livro-reportagem-biografia, quando um jornalista centra seu

trabalho mais em torno da vida, do passado, da carreira da pessoa em foco,

normalmente dando menos destaque ao presente.

2. Livro-reportagem-depoimento: reconstitui um acontecimento relevante, de

acordo com a visão de um participante ou de uma testemunha privilegiada. Pode ser

escrito pela pessoa que está envolvida – geralmente com a assistência de um

jornalista – ou por um profissional que compila o depoimento e elabora o livro.

Apreende-se, daí, que o tom é passar ao leitor uma narrativa quente, com bastante

clima de bastidores, movimentada.

3. Livro-reportagem-retrato: exerce papel parecido, em princípio, ao do livro-

perfil. Mas, ao contrário deste, não focaliza uma figura humana, mas sim uma região

geográfica, um setor da sociedade, um segmento da atividade econômica,

procurando traçar o retrato do objeto em questão. Visa esclarecer, sobretudo, seus

mecanismos de funcionamento, seus problemas, sua complexidade. É marcado, na

maioria das vezes, pelo interesse em prestar um serviço educativo, explicativo.

4. Livro-reportagem-ciência: serve à finalidade de divulgação científica,

geralmente em torno de um tema específico. Pode também apresentar um caráter

de crítica ou reflexão.

5. Livro-reportagem-ambiente: vincula-se aos interesses ambientalistas, às

causas ecológicas. Pode apresentar uma atitude combativa, de crítica ou

simplesmente tratar de temas que auxiliam na conscientização da importância da

harmonia nas relações do homem com a natureza.

6. Livro-reportagem-história: enfoca um tema do passado recente ou algo

mais distante no tempo. O tema, porém, tem geralmente algum elemento que o

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conecta com o presente, dessa forma possibilita um elo comum com o leitor atual.

Uma variante dessa modalidade é o livro-reportagem que trata da história

empresarial, expondo o mundo dos negócios, um grande grupo ou uma atividade

produtiva. No melhor dos casos, tenta abarcar as conexões políticas, sociais ou

culturais. Outra modalidade variante é a do livro-reportagem-epopéia. Abarca, com

grande magnitude, episódios históricos de grande relevância social.

7. Livro-reportagem nova consciência: desdobra temas das novas correntes

comportamentais, sociais, culturais, econômicas e religiosas que surgem em várias

partes do mundo, resultantes de duas efervescências significativas do mundo

ocidental nos anos 60. Uma foi a contracultura, a outra, o conjunto de movimentos

de aproximação à cultura e a civilização do Oriente Médio, e do continente asiático.

8. Livro-reportagem-instantâneo: debruça-se sobre um fato recém-concluído,

cujas adjacências finais podem ser identificadas. Atém-se basicamente ao fato

nuclear, mas pode inserir algo de sua amplitude, de seus desdobramentos no futuro.

9. Livro-reportagem-atualidade: também aborda um contexto atual, como faz

o livro-instantâneo. Mas apresenta uma diferença peculiar: seleciona os temas atuais

dotados pela durabilidade no tempo, mas cujos desdobramentos finais ainda não

são conhecidos. Assim, deixa o leitor resgatar as procedências do que ocorreu, seu

contorno do presente e facilita a identificação das forças em conflito que poderão

determinar o seu desfecho no futuro. Faz com que o leitor acompanhe com mais

conhecimento uma ocorrência de maior magnitude que esteja em progresso.

10. Livro-reportagem-antologia: cumpre a tarefa de reunir reportagens

agrupadas sob os mais distintos critérios, previamente publicadas na imprensa

cotidiana ou até mesmo em outros livros. Podem ser as reportagens, sobre os mais

diversos temas, de um profissional conhecido do público. Outro domínio são as

matérias, de distintos profissionais, sobre um único tema. E também podem ser os

trabalhos, de diferentes jornalistas, sobre os mais diversos temas, mas que têm em

comum um gênero jornalístico ou uma categoria de prática do jornalismo (o opinativo

ou o interpretativo, por exemplo).

11. Livro-reportagem-denúncia: com propósito investigativo, esse tipo de livro

recorre ao clamor contra as injustiças, contra os desmandos dos governos, os

abusos das entidades privadas ou as incorreções de segmentos da sociedade,

enfatizando casos marcados por escândalos.

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12. Livro-reportagem-ensaio: tem como forma o estilo de ensaio. A presença

muito evidenciada do autor e de suas opiniões sobre o tema é conduzida com teor

de convencer o leitor a compartilhar do ponto de vista do autor. Quanto ao

tratamento de texto, emprega-se, normalmente, a função expressiva da linguagem.

O uso do foco narrativo na primeira pessoa é freqüente no decorrer do livro.

13. Livro-reportagem-viagem: apresenta como fio condutor uma viagem a

uma região geográfica específica, o que serve de pretexto para retratar, como em

um quadro sociológico, histórico ou humano, vários aspectos das realidades

prováveis do local. Difere do relato meramente turístico, ou daquele dotado de

romantismo e exotismo típicos aos viajantes não habilitados profissionalmente no

escrever, por ter nítida preocupação com a pesquisa, com a coleta de dados, com o

exame de conflitos. O conhecimento constrói-se, ao longo do livro, por acesso da

ótica jornalística, alicerçada por recursos advindos de diversos campos do saber

moderno.

A classificação proposta não pode ser considerada definitiva porque conforme

o próprio autor, novas variedades podem surgir, em decorrência da flexibilidade e da

criatividade peculiares ao livro-reportagem. Na prática é possível que títulos se

enquadrem simultaneamente em mais de uma classificação. As modalidades

mesclam-se, combinam-se, muitas vezes. É neste sentido que se enquadram os

textos de Eliane Brum, numa combinação de propriedades técnicas, mas, contudo,

tem-se prudentemente a intenção de apontar uma nova possibilidade para o livro-

reportagem. O gênero é pouco disseminado teoricamente, mas na prática é muito

executado. A crônica e a reportagem se fundem, transformando-se em crônica-

reportagem, motivo pela qual se pode ser analisada como um fator para mais uma

variedade de livro-reportagem.

O período de captação das informações para o livro-reportagem é muito

importante, porque resulta na qualidade do produto final que também está sujeito

aos dados acumulados na fase inicial do trabalho dos repórteres, fotógrafos e

ocasionalmente dos ilustradores. Um benefício de valor em relação aos demais

veículos é o fato de que no livro normalmente há um tempo maior para o trabalho.

Uma seleção de fontes que garanta pluralidade de opiniões e quantidade de

informações consentirá a elaboração de textos mais ricos em detalhes e que não

deixem no leitor uma impressão de que ficou faltando alguma informação quando se

termina a leitura. Paulo Roberto Botão exemplifica o exercício da entrevista como

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gênero específico, “que reúne a um só tempo intenção dialógica e função mediadora

permitindo evidenciar o protagonismo de fontes representativas, especialmente em

espaços mais extensos e fixos.” (2004, p. 13).

Em termos de captação, conforme Lima (1995, p. 84), configura-se os

diferentes tipos de instrumentos:

1. Entrevistas de compreensão: como se propõe à busca do aprofundamento,

o livro-reportagem quase sempre despreza a espetacularização nas entrevistas,

efetuando-as na maioria das circunstâncias com o intuito de compreensão. Muito

mais do que na reportagem do jornalismo impresso cotidiano, a entrevista mostra-se

no livro como uma fórmula dotada de individualidade, força, tensão, drama,

esclarecimento, emoção, razão, beleza. Nasce daí o diálogo possível, o crescimento

do contato humano entre entrevistador e entrevistado, que só acontece porque não

existe a pauta fechada minimizando a criatividade. Subgêneros: entrevista conceitual

que traduz conceitos; o subgênero investigativo é encontrado em trechos de livros-

reportagens onde o autor se ampara em depoimentos em off, acareando-os com as

coletas realizadas em on, ou a pesquisa documental, para confirmar a verdade do

que vai transmitir; a confrontação-polemização surge no livro-reportagem em

decorrência da aptidão do autor em provocar sua fonte no diálogo direto, de modo

que seus conceitos, suas posições se elucidem e o perfil humanizado que é onde o

livro-reportagem concede à entrevista a máxima possibilidade de obter dimensão

elevada o que raramente acontece nos veículos periódicos.

2. Histórias de vida: esse recurso de captação também é utilizado pelo livro-

reportagem, brotando em forma clássica de entrevista – com a reprodução da

conversa entre o entrevistador e o entrevistado – ou como declaração direta, ou

ainda numa mescla em que se combinam essas modalidades de apresentação com

narrativa em primeira ou terceira pessoa. Nem sempre aparecem seguidas de

observação participante, mas manifestam-se nas distintas versões e nos diferentes

modelos reconhecidos. Normalmente, o livro-reportagem utiliza-se do recurso para

tornar difícil encontrar títulos que sejam, integralmente, percebidos como histórias de

vida. Mas em trechos específicos de diferentes obras pode-se deparar com o

emprego do recurso para realçar o aspecto humanizado que se procura em quase

todas as reportagens em profundidade.

3. Observação participante: essa modalidade de captação teve o seu auge,

em livro-reportagem, na época da inovação norte-americana conhecida como New

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Journalism. Para retratar a realidade a cor, a vivacidade e a presença são

fundamentais. Isto é, com imersão e envolvimento total nos próprios acontecimentos

e situações, os jornalistas tentam viver, na pele, as circunstâncias e o clima

intrínseco ao ambiente de seus personagens.

4. Memória: entendido como resgate de opulências psicológicas e sociais,

essa técnica de captação encontra melhor aplicação no livro-reportagem. Pela

reconstrução que faz o narrador, é extrapolado o limite infértil, imperceptível, da

informação concreta e chega-se a uma extensão superior de compreensão tanto dos

atores sociais como da própria realidade em que se insere a situação examinada.

5. Documentação: referindo-se à coleta de dados em fontes registradas de

conhecimento, o termo aplica-se tanto ao jornalismo diário quanto ao livro-

reportagem. Mas, sem dúvida, é neste que a documentação ganha eficácia e poder

de sustentação porque auxilia a fundamentação do tema de que trata a reportagem,

principalmente na matéria de profundidade e em especial a que destaca mais a

situação e a questão do que o fato ou o acontecimento isolado.

6. Visão pluridimensional simultânea: ao contrário do jornalismo cotidiano, o

livro-reportagem moderno enseja introduzir, em seu enfoque, uma lente que passa a

observar a realidade numa condição ampliada perceptível pela ciência moderna,

uma visão da inclusão de óticas atuais abrangentes. Não se trata do mergulho no

imaginário como fantasia ou ficção, mas como noções que ajudam a explicar o real

num contexto total, sistêmico. O jornalismo não deixa de abordar o real, não se

embaraça com a ficção, mas nega que o real seja apenas sua porção mais aparente,

visível, concreta e material.

Lima, diz que o livro-reportagem estende a função informativa e orientativa do

jornalismo impresso habitual na medida em que cobre vácuos deixados pela

imprensa, na medida em que aumenta, para o leitor, a compreensão da realidade.

Segundo o autor, é possível dizer que o livro-reportagem é um dos gêneros da

prática jornalística, dadas as suas especificidades relacionadas com o papel

aparente que desempenha. Segundo o autor, o livro-reportagem elucida o sentido e

a direção dos eventos, além de manifestar seus significados. Também, em razão do

autor ter uma grande liberdade de não discutir apenas o factual e o não-factual,

como narrador dos acontecimentos, ele presta assistência ao homem

contemporâneo no acompanhamento das grandes questões de seu tempo e espaço.

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É uma modalidade de comunicação eminentemente jornalística. Contudo, apresenta peculiaridades que a tornam única. Leva ao limite o uso dos recursos técnicos do jornalismo e transcende-os; apropria-se num grau bastante sofisticado da arte literária; trata de temas que parecem pertencer às preocupações da história. [...] Em suma, o livro-reportagem é um instrumento de conhecimento. Através dele, as faixas mais exigentes do grande público podem saborear a compreensão das realidades contemporâneas, podem ser levadas a encontrar formas próprias, novas, de entendimento. Nesse espaço, a reportagem de profundidade em livro presta um grande serviço à moderna sociedade urbanizada de nossos dias. Traduz o conhecimento disponível em círculos fechados para grandes audiências e o faz com a melhor arma do jornalismo, que é sua linguagem acessível, atraente, afinada ao propósito da divulgação. (1995, p. 264).

Logo, é fácil compreender que o livro-reportagem, agora, como no passado, é

muitas vezes fruto da inquietude do jornalista que tem algo a dizer, com sagacidade,

e não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho, ou seja, na

imprensa diária. Ou é fruto disso ou de uma outra razão: a de tentar realizar um

trabalho que lhe permita utilizar todo o seu potencial de construtor de narrativas da

realidade. Como complementa Lima:

O jornalismo oferece ao profissional de talento e fôlego para o aprofundamento, inúmeras possibilidades de tratamento sensível e inteligente do texto, enriquecendo-o com recursos provenientes não só do jornalismo, mas também da literatura. (1995, p. 33).

Dessa forma, pode-se concluir que o livro-reportagem é um veículo

caracterizado por um jornalismo que se vale de formas de narrativa da literatura.

Este é o verdadeiro espaço para os contadores de histórias, onde é possível

escrever mais do que trinta linhas, longe das estatísticas, dos manuais de redação e

das pesquisas de opinião. A professora de jornalismo Cremilda Medina chama de

comunhão com o presente o desejo de compartilhar com outras pessoas, por meio

da narrativa, o destino de um pedaço específico da humanidade, “gente de carne e

osso.” Já o jornalista Igor Fuser diz que “a reportagem, embora também contemple

os grandalhões, as celebridades, os poderosos e os nomes consagrados, é por

excelência o lugar dos humildes, dos anônimos, dos que só aparecem no jornal uma

vez na vida.” (1996, p. 16). Entendendo a crônica e a reportagem como reflexos do

viver e sendo que o viver é uma aventura, e mais ainda, que a arte reflete a vida,

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pode-se encontrar nestes dois gêneros uma possibilidade de união, portanto, numa

outra grande aventura.

2.3 A vida e a arte: a crônica-reportagem

Em uma frase famosa, o cantor Bob Dylan disse: “a vida é mais importante

que a arte.” [s.d.]. No entanto, como já foi escrito nesta monografia, para viver, se

precisa da arte como um meio de emoção e expressão. Logo, a vida e a arte andam

juntas. A linha é tênue entre uma e outra. E, se a vida é mais importante do que a

arte, está ratificada a importância da narrativa realista espalhada tanto no jornalismo

quanto na literatura. Por isso o gênero crônica-reportagem é fundamental dentro da

narrativa moderna. Vale reiterar que alguns teóricos a chamam de reportagem-

crônica, como Muniz Sodré e Helena Ferrari, no entanto, outros autores a

consolidam como crônica-reportagem como Fernanda Magalhães Silva. Deve-se

evidenciar que tanto a crônica como a reportagem tem um caráter de realismo e

arte. A diferença é que a crônica é uma obra mais aberta do que a reportagem. Ela

aceita uma brincadeira infindável entre linguagem, narrativa, tema e estilo. Como

disse Carlos Heitor Cony, “a crônica é um gênero ônibus. Nela cabe tudo.” (apud

SCHEIBE, 2006, p. 13).

Nesse contexto, pode-se levar em conta que a influência da literatura na

imprensa periódica é afirmada antes mesmo de se instalar a controvérsia entre

jornalismo e literatura. Dentre todas as facetas do jornalismo, a reportagem é

produto direto dessa fusão, em termos de humanização, dramaticidade e descrição.

Atualmente, um grupo de jornalistas, escritores e estudiosos vêem na crônica e na

reportagem gêneros híbridos – em alguns momentos presos ao factual e à

atualidade, mas igualmente à visão subjetiva do autor e à sua qualidade narrativa.

De acordo com Torres, o mix entre jornalismo e literatura se aplica totalmente

no livro-reportagem, bem como há, de modo mais restrito, produtos com essa

composição no dia-a-dia dos periódicos. Os pesquisadores Muniz Sodré e Helena

Ferrari estabelecem semelhança também entre a reportagem e o conto, no intento

de que ambos favorecem a caracterização de uma informação que se tem como

interesse humano. No exercício do texto, a reportagem-conto elege um personagem

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para esboçar a questão a ser desenvolvida. Eles também vêem similaridades com a

crônica. “A reportagem-crônica alcança um resultado próximo da crítica social e da

opinião velada, ou seja, flagrantes e incidentes.” (apud TORRES, F., 2007).

Para Antonio Candido, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou

restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas.

Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitada. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas. (1992, p. 14).

Por isso mesmo, segundo o autor, consegue-se quase sem querer

transformar a literatura em algo reservado com relação à vida de cada um, e quando

passa do jornal ao livro, verifica-se que a sua resistência é muito maior. “O seu

grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca de oralidade na

escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no

modo de ser do nosso tempo.” (CANDIDO, 1992, p. 16).

A crônica, segundo o que relata Neves, pela própria etimologia –

chronus/crônica – é um gênero colado ao tempo.

Se em sua acepção original, aquela da linhagem dos cronistas coloniais, ela pretende-se registro ou narração dos fatos e suas circunstâncias em sua ordenação cronológica, tal como estes pretensamente ocorreram de fato, na virada do século XIX para o século XX, sem perder seu caráter de narrativa e registro, incorpora uma qualidade moderna: a do lugar reconhecido à subjetividade do narrador. Num e noutro caso, a crônica guarda sempre de sua origem etimológica a relação profunda com o tempo vivido. De formas diferenciadas, porque diferente é em cada momento a percepção do tempo histórico, a crônica é sempre de alguma maneira o tempo feito texto, sempre e de formas diversas, uma escrita do tempo. Não fosse senão por essa razão, já seria justo que delas se ocupassem os historiadores. (1992, p. 82).

Nos últimos dez anos do século XIX as crônicas e a crítica literária ocupavam

lugar de destaque nas laudas dos jornais. Conforme Joyce Almeida dos Santos, no

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início do século XX a imprensa passou por algumas reformulações para se adequar

ao novo jeito de vida dos tempos recentes. Daí a idéia da crônica-reportagem:

A crônica-reportagem surgiu como o estilo de escrita na imprensa para adaptar-se ao novo ritmo de vida da população. Os textos opinativos, que não raramente utilizavam recursos literários, retratavam as mudanças, as reformulações que as cidades passavam em seus mais diversos aspectos. (SANTOS, Joyce, 2007, p. 9).

Foi com essa propensão que apontava o jornalismo do início do século XX.

Paulo Barreto se destacou como um dos autores mais conhecidos do gênero, na

verdade quem mais apareceu foi um dos seus adotados pseudônimos, o de João do

Rio. Sua carreira de literato e jornalista, construída desde quando começou a se

dedicar ao mundo das letras na imprensa, consolidou-se com a série de reportagens

intitulada As Religiões do Rio e das entrevistas de O Momento Literário, seus

primeiros trabalhos publicados em livro. Além das reportagens e das entrevistas,

Paulo Barreto inovou instituindo o que se pode classificar como crônica-reportagem.

(SILVA, 2002).

No início a crônica era limitada ao espaço das “variedades” e aos poucos

alastrou-se para outros lugares do jornal. Acompanhando uma tendência comum

provocada pelas alterações na imprensa e pelos novos costumes de leitura dos

periódicos, essas crônicas foram substituindo, gradualmente, o folhetim; e a própria

crônica modifica-se recebendo novos contornos que a aproximam da reportagem.

(SILVA, 2002).

A crônica-reportagem, se não é original na história da imprensa, pelo menos no Brasil iniciou um processo de renovação nas folhas. João do Rio, um dos primeiros a praticarem o gênero, foi pioneiro ao desenvolver algumas características primárias do jornalismo moderno. Suas crônicas apontam, ainda que de forma incipiente, para uma tendência do jornalismo da época que veio a se tornar o principal objetivo da imprensa moderna: o caráter eminentemente informativo. (SILVA, 2002).

Liráucio Girardi atribui “a origem da reportagem a experiências estilísticas

realizadas na literatura associadas a uma espécie de trabalho de campo, a um

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envolvimento com os sujeitos e tramas sociais em que estão inseridos seus autores.”

(apud SILVA, 2002). Neste contexto também se insere a capacidade de observação

quase etnográfica que o cronista-repórter vai aperfeiçoando.

Segundo James Clifford, “a autoridade etnográfica vem de ter estado lá. O

cronista-repórter tem em comum com o etnógrafo a credibilidade e a autoridade da

testemunha.” (apud SILVA, 2002). Ao adotar o ponto de vista da testemunha que

discursa em primeira pessoa e compartilhar experiências com seus leitores, o

repórter utiliza-se da narração objetiva e neutra. No entanto, como cronista, dá vida

ao comentário subjetivo, como se fosse uma confidência. Também presta-se ao

papel de leitor e intérprete de algum fato trivial e cotidiano, vago de transcendência e

afastado de crítica ou opinião.

Entende-se que a crônica-reportagem acrescenta ao comentário a

investigação de fatos curiosos da cidade e a voz de atores sociais normalmente

ocultos ou esquecidos. Renato Gomes associa a “característica de se tornar múltiplo

do cronista a sua incumbência de ser aquele que se dedica a captar o efêmero, o

contingente, o circunstancial, que é o mundo moderno atrelado ao universo urbano

marcado pela mudança.” (2005, p. 15).

O ponto de partida ao produzir reportagens e renovar a crônica foi o emprego

da observação direta dos fatos relatados e a captação de dados objetivos que o

cronista-repórter deve narrar como se confiasse na possibilidade de uma escrita

neutra, informativa, pautada pela realidade dos fatos dos quais foi testemunha

ocular. Sair da redação para buscar na rua a matéria de seus textos, esse é o

caminho segundo Gomes.

Sabe-se que este espaço público representa a celebração da vitalidade urbana com sua diversidade e plenitude, símbolo fundamental da vida moderna. Escrevendo um gênero novo na imprensa brasileira, a crônica-reportagem, observará e encaminhará análises do meio do momento em que viveu tendo consciência do efêmero citadino [...]. (1996, p. 65).

Outra configuração que pode modificar a crônica em informação atraente e

curiosa é penetrar onde o leitor não entra e criar assim a ilusão voyeurística. O

cronista-repórter é quem tem acesso mais acessível a determinados lugares e

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pessoas. Dessa maneira é capaz de contar ao leitor o seu conhecimento adquirido,

é o intermediário entre os acontecimentos da cidade e o seu público.

O repórter-cronista, substitui a sala de redação pela agitação das ruas e, ao fazê-lo, além de trabalhar com a observação direta, coleta as informações em entrevistas que serão a matéria-prima da crônica. Passa a buscar informantes que o cronista por vezes identifica com seus nomes, conferindo assim autoridade à informação obtida, por vezes preserva no anonimato e por vezes apenas esboça de forma imprecisa quem são, como se convidasse o leitor para um jogo de adivinhação. (SILVA, 2002).

Afonso Lopes de Almeida enfatiza que “identificados ou não, os informantes

conferem um tom de veracidade aos fatos relatados.” (apud Silva, 2002). Na

intersecção destes dois conceitos – observação direta e coleta de informações

através de fontes – surge a definição atual de jornalismo.

O cronista-repórter descreve para o leitor suas experiências diárias, das quais

é o espectador que observa e também o personagem que vivencia determinadas

situações e decodifica o fato isolado como referência desse tempo vivido. Fernando

Torres diz que “muitas vezes o repórter evolui do status de narrador-observador para

narrador-personagem.” (2007). O autor acrescenta que na crônica-reportagem o

texto possui predominância narrativa, descrição detalhada, dramaticidade e

humanização das personagens.

Ao particularizar um fato social por intermédio de um perfil representativo,

parte-se para um duplo estratagema textual: o de impor ao fato a importância de

prova testemunhal. Dessa forma, aplica-se à narrativa uma dramaticidade que a

circunstância abstrata não poderia transpor ao leitor. A crônica é um caso a parte,

porque é o espaço do efeito produzido pela apreciação do autor do texto, da

interpretação e, é também atrelada à realidade cotidiana. Contando a ocasião vivida

a crônica se fortalece como uma interpretação do real e sua matéria ficcional é

baseada na realidade através de alguns métodos técnicos da prática jornalística, os

quais, já foram citados anteriormente neste trabalho, tais como a observação direta

dos fatos, a coleta de informações em entrevistas e ainda a utilização de

personagens e interlocutores que reforçam a impressão de realidade do fato

narrado. (SILVA, 2002).

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O autor procura transmitir seus comentários das coisas que se apresentam a

ele de maneira objetiva, apresentando-os como opiniões confessadas por um

interlocutor durante uma conversa.

O diálogo com este interlocutor é o aspecto que se apresenta como um fato, que além de dar um ritmo dinâmico ao texto narrado em discurso direto, é fundamental para que através da presença de um interlocutor o cronista crie a oportunidade de desenvolver seu argumento. (SILVA, 2002).

A crônica-reportagem também pode seguir pautas inusitadas que partem do

convencional para o fantástico mexendo com o imaginário popular e assim tornando-

se referência na fusão de jornalismo e literatura. Aqui, se concretiza a influência

direta do New Journalism. “O repórter é fiel ao que vê, mas para transmitir os fatos

utiliza-se dos recursos da ficção.” (TORRES, F., 2007).

Nesta perspectiva, Brito Broca afirma que “é difícil distinguir onde termina o

jornalismo e começa a literatura, caracterizando a combinação do documental e do

ficcional, que garante no texto o que pode ser chamado de estilização do fato.”

(apud Santos, Joyce, 2007, p. 4). Neste sentido as palavras de Joaquim Ferreira dos

Santos, concretizam a idéia de que as crônicas “são qualificadas como uma mistura

de jornalismo e ficção.” (2003). Para este autor o espaço da crônica é um vale tudo

de estilos. O mix de crônica e reportagem é no fundo uma lição do Novo Jornalismo,

porque “você não entende onde começa a crônica e a reportagem, onde é literatura

e jornalismo, onde é romance e matéria.” (SANTOS, Joaquim, 2003). Luiz Costa

Lima complementa dizendo que “a ficção não é o oposto da verdade, mas o

instrumento dela.” (1992, p. 61).

Santos ainda enfatiza que a literatura completa o produto do jornal.

Com todas as informações disponíveis na internet, na qual se tem metade do que vai sair amanhã de manhã, o jornal precisa ter um diferencial. Tem que ter mais análise, observação, personalidade nos textos. E isso aproxima da literatura porque o texto fica mais livre. (Joaquim, 2003).

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Uma das características da crônica-reportagem é a recriação do real. Esta

questão é tratada por Jorge de Sá, no livro Crônica. Segundo o autor, este gênero

acrescenta ao factual “uma roupagem mais literária:”

Em vez do simples registro formal, o comentário de acontecimentos que tanto poderiam ser do conhecimento público como apenas do imaginário do cronista, tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo da recriação do real. (1985, p. 9).

Torres (F., 2007), diz que são pelo menos três as contribuições deste novo

gênero: o jornalismo de texto e os novos feitios de representação verbal; a

participação do repórter como um personagem atuante no fato, o que induziu a

construção de textos mais profundos; e a transformação do material em fonte de

estudos para a história. Dessas, as duas primeiras colaboraram intensamente para a

excelência na fusão entre jornalismo e literatura.

Hoje, percebe-se que a reportagem literária vive um momento de pouca

expressividade na imprensa periódica devido ao culto ao factual. No atual estilo de

texto, o relato perde o movimento, tornando-se mais rígido. “A recente incorporação

de boxes e infográficos à reportagem resultaram em uma narrativa mais

fragmentada e impessoal, distante do leitor.” (TORRES, F., 2007).

A grande reportagem, por sua vez, está migrando para outro tipo de mídia: o

livro. Trata-se do livro-reportagem e em seu estilo predomina uma reciclagem do

New Journalism, isto é, uma reportagem mais rica em detalhes da realidade.

O escritor norte-americano Ernest Hemingway, que em sua carreira intercalou

produção jornalística e literária, defende que “a reportagem deveria funcionar como

suporte para a literatura.” (apud Torres, F., 2007). Isso já vem ocorrendo em grandes

veículos de comunicação, que destinam espaços à grande reportagem que é fruto

da interpretação. Espera-se, porém, como diz Torres, “que assim como no passado,

o jornalismo diário e semanal possa voltar a beber com mais freqüência na fonte da

literatura. A mídia periódica precisa [...] mais que técnicos do lead e da pirâmide

invertida, mas de contadores de histórias.” (F., 2007).

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Moacyr Scliar4 comentou que a crônica-reportagem é um gênero inovador

porque tem elementos do New Journalism americano. Para ele as características e

as peculiaridades da crônica-reportagem se misturam na objetividade do repórter

com a subjetividade do cronista. “A semelhança do que acontece na crônica, ou

seja, a subjetividade no texto é admitida e até cultivada pelos jornalistas.” (VER

ANEXO B).

Moisés Mendes5 afirma que a crônica-reportagem não é um gênero novo. “É

um formato antigo, do início do século passado. Há relatos realistas aqui mesmo do

Rio Grande do Sul, que podem ser encontrados nos arquivos de jornais do Museu

Hipólito da Costa, do início da ocupação, que são extremamente literários.” O

repórter ainda acrescenta:

Só para citar um outro exemplo: A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista, do Joel Silveira, é dos anos 40. Podem até dizer que é uma reportagem do Jornalismo Literário. Que não é uma “crônica”. Mas por que não? É uma crônica no sentido de que informa e reflete sobre o que revela. Ou a crônica é menor e traz mais a voz do autor do que dos personagens? Na verdade, é uma combinação de estilos e voltamos a falar de Jornalismo Literário, talvez até em conseqüência da transição do atual jornalismo para algo que não se sabe o que vai ser agora com a mídia online. Nunca se deixou de fazer o que se chama de Jornalismo Literário no Brasil e no mundo, principalmente tendo todas as referências dos norte-americanos. Tem uma nova onda aí, me parece que precisa ser investigada. (VER ANEXO C).

Eliane Brum6 (ver anexo A) cita outros colegas jornalistas que também

praticam este estilo de texto: Ruy Castro, que a partir de 1990, concentra-se nos

livros; Xico Sá que escreve para a revista da Folha, Trip, Tpm, entre outras

publicações; e Fred Melo Paiva, no caderno Aliás, do Jornal Estadão.

Mendes observa que muitas vezes um texto enquadra-se em Jornalismo

Literário porque tem lirismo, é poético.

4 Conforme entrevista concedida à autora em 26 de setembro de 2007. Entrevista com fim

metodológico. 5 Conforme entrevista concedida à autora em 2 de outubro de 2007. Entrevista com fim metodológico.

6 Conforme entrevista concedida à autora em 27 de setembro de 2007. Entrevista com fim

metodológico.

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Mas e o jornalismo mais naturalista não é literário? Os Sertões é literário. Em João do Rio inclusive se admite que seja crônica-reportagem porque em seus textos se trata de costumes, do cotidiano. Quem faz reportagens com síntese, economia de texto e informação direta, inspirado em Ernest Hemingway, por exemplo, mistura jornalismo e literatura. (VER ANEXO C).

“A marca da literalidade no discurso jornalístico não pode ser negada devido a

sua contribuição ao surgimento de gêneros narrativos alternativos”. (LAVORATI,

2007, p. 1). Ana Carolina Abiahy (2000, p. 22) enfatiza que dentro de um quadro tão

heterogêneo das publicações, uma das características que pode-se considerar é

justamente uma recuperação de reportagens mais sofisticadas, em cuja linguagem

percebe-se uma inquietação com o lado criativo da escrita. Carla Lavorati (2007, p.

4) confirma esta idéia justificando que a imprensa alternativa, através do livro-

reportagem, revela-se uma opção porque permite desviar-se das amarras e normas

da grande imprensa.

E é a partir desta quebra de paradigmas que ao contar histórias de outras

vidas e tecendo uma escrita de forma livre é que a jornalista Eliane Brum consegue

transformar seus textos em arte para quem os lê.

Scliar (ver anexo B) crê que os textos de Eliane Brum mesclam crônica e

reportagem. Moisés Mendes complementa dizendo que a jornalista descobriu um

jeito de contar histórias que é único. “Ela faz hoje o que se chama de crônica-

reportagem.” (VER ANEXO C). Quanto ao livro-reportagem, mencionado no subtítulo

anterior, 13 modalidades foram expostas, mas segundo Edvaldo Pereira Lima (1995,

p. 45) novas variedades podem surgir como resultado da flexibilidade e da

criatividade na criação de novos estilos de livros-reportagens devido à característica

de simbiose entre os gêneros. Lima7 (ver anexo D) concorda que certamente Eliane

criou um novo estilo de livro-reportagem baseado em crônicas com seus textos na

prática.

7 Conforme entrevista concedida à autora em 16 de setembro de 2007. Entrevista com fim

metodológico.

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3. O JORNALISMO E OS HUMANOS ANÔNIMOS: A ANÁLISE DAS CRÔNICAS-

REPORTAGENS DO LIVRO A VIDA QUE NINGUÉM VÊ DA JORNALISTA

ELIANE BRUM

Muita gente acredita que o jornalismo é um observatório neutro do que se

passa no mundo. Não é. E por não ser, não pode contentar-se com o relato factual.

Sobretudo a reportagem não pode. Claro que a objetividade e os fatos são

indispensáveis. Mas são insuficientes. A questão, portanto, não são os fatos, mas o

sentido que eles possam ter. Daí que a reportagem, como a arte, tem a necessária

pretensão de iluminar o significado dos eventos cotidianos. O repórter deve entender

o que tem a narrar. E, para entender é preciso sentir. Eugênio Bucci na orelha da

capa do livro “A Arte da Reportagem” do jornalista Igor Fuser, escreve que quando o

“repórter sente, as reportagens emocionam. Porque ele entende, elas informam.”

(1996).

A reportagem só é arte quando foge da impostura da neutralidade e quando

traz em sua narrativa a pretensão de compreender o que se passa, característica

específica da crônica.

Este capítulo serve à análise das crônicas-reportagens do livro A Vida que

Ninguém Vê de Eliane Brum, uma das jornalistas que volta a transformar a crônica

em reportagem na ação de tirar o jornalista do espaço da redação e levá-lo ao lócus

dos acontecimentos, que às vezes nem acontecimentos são. Para alguns são

apenas meros detalhes, mas que para outros são histórias incríveis. Uma jornalista

desapegada dos limites da sala de redação, que vivenciou uma experiência textual

também sem limites, assumindo o contexto de dinamismo dos novos tempos, com a

convivência ambígua entre gêneros e fazendo também do jornalismo uma expressão

literária.

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3.1 “Boa viagem pela vida”: o livro

O livro A Vida que Ninguém Vê é resultado de uma compilação de 21

crônicas-reportagens que a jornalista Eliane Brum escreveu para uma coluna

intitulada com o mesmo nome, no jornal Zero Hora no ano de 1999. A idéia de

escrever uma série de reportagens sobre personagens anônimos em forma de

crônicas da vida real surgiu do então diretor de redação da ZH, Marcelo Rech.

Rech, no prefácio do livro (2006), conta que ansiava por inovações e

inovadores para marcar a história do jornalismo brasileiro.

A idéia estava ancorada na convicção de que tudo – até uma gota de água – pode virar uma grande reportagem na mão de um grande repórter. A questão era achar alguém com os sentidos à flor da pele para dar forma a um misto de crônica, reportagem e coluna. [...] Com sua personalidade única, A vida que ninguém vê, de fato, criou vida própria. [...] Boa viagem pela vida. (p. 13-16).

As crônicas-reportagens reunidas no livro foram publicadas aos sábados

numa coletânea de 46 colunas por quase 11 meses. Com estes textos Eliane

venceu o Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de 1999. Em 2007, Eliane

também foi vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Reportagem com o livro A Vida

que Ninguém Vê.

Eliane iluminou um mundo recluso, obscurecido pela emergência da notícia ou pela máxima de que, em jornalismo, a história só existe quando o homem é quem morde o cachorro. A série provou o contrário. Ao extrair reportagens antológicas de onde outros só enxergariam a mesmice, Eliane deu a zés e marias do sul do Brasil a envergadura de personagens de literatura tolstoiana e reverteu um dos mais arraigados dogmas da imprensa. [...] Eliane traçou uma parte da história do jornalismo brasileiro ao escrever notáveis reportagens (ou seriam crônicas?) extirpadas das ruas anônimas. (RECH, Prefácio, 2006, p. 14).

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Segundo a própria Eliane, a proposta da coluna de crônicas-reportagens era a

de estimular um olhar que dissipasse com o vício e o automatismo de se enxergar

apenas a imagem dada, o que é do senso comum.

Era, com toda a pretensão que a vida merece, uma proposta de insurgência. Porque nada é mais transformador do que nos percebermos extraordinários – e não ordinários como toda miopia do mundo nos leva a crer. [...] Foram os leitores que enxergaram a coluna e apontaram para onde eu estava olhando. Toda semana desembarcavam e-mails e cartas contando sobre vidas próprias, vidas de outros, desacontecimentos, não-fatos, antinotícias, anonimatos. Tudo absolutamente extraordinário. (BRUM, 2006, p. 188).

O desafio estava em trilhar as ruas de Porto Alegre, ruas pelas quais a

jornalista já tinha andado, mas que almejavam por outro olhar. “É uma alteração de

foco que se faz em apenas um segundo e uma inclinação de alguns centímetros do

pescoço, mas que resulta avassaladora.” (BRUM, 2006, p. 189).

A jornalista abre um parêntese para o que se poderia chamar, segundo ela,

de “a arte de olhar – ou uma campanha pela volta dos sapatos sujos.”

Se o telefone e a internet são invenções geniais, não há tecnologia capaz de tornar obsoleto o encontro entre um repórter e seu personagem. Se isso acontece, é por distorção. Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento de trabalho do repórter. Só pode ser exercido sem a mediação de máquinas. [...] Olhar significa sentir o cheiro, tocar as diferentes texturas, perceber os gestos, as hesitações, os detalhes, apreender as outras expressões do que somos. Metade (talvez menos) de uma reportagem é o dito, a outra metade o percebido. Olhar é um ato de silêncio [...] Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos realmente decididos a enxergar não sabemos o que vamos ver. (BRUM, 2006, p. 190).

Na prática, segundo Eliane, a crônica-reportagem é uma maneira de se ter

mais liberdade na forma de contar uma história real. E talvez a nitidez com que o

jornalista se coloca no texto. “Toda notícia que se escreve é mediada, obviamente,

pelo olhar de quem escreve. No jornalismo mais tradicional, esse olhar é encoberto

por uma suposta objetividade, mascarado por um jeito impessoal de escrever.” E

sem hesitar Eliane demonstra seu olhar insubordinado:

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Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico. Usando o clichê da reportagem, eu sempre me interessei mais pelo cachorro que morde o homem do que pelo homem que morde o cachorro – embora ache que essa seria uma história e tanto. O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir essa verdade, fazendo com que o milagre do que cada vida é se torne banal. Esse é o encanto de A vida que ninguém vê: contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor, ou exercício de escrita, mas porque cada Zé é um Ulisses. E cada pequena vida uma Odisséia. (2006, p. 187).

Evidencia-se um dos principais motivos para a escolha dos textos de A Vida que

Ninguém Vê como ponto referencial deste trabalho. A escritora transitava, vivia na

cidade de Porto Alegre e transportava esse olhar impregnado de aspectos curiosos para

seus textos, mesmo quando o tema não era somente o espaço ou o desenrolar dos

acontecimentos urbanos, mas simplesmente as pessoas esquecidas.

Contar histórias? “É como eu dou sentido a minha vida.” (BRUM, VER

ANEXO A).

3.2 A moça da biblioteca: a jornalista Eliane Brum

Gaúcha de Ijuí, filha de pais professores, Eliane Brum se encantou pelos

livros muito cedo. Com sete anos, passava o dia todo em seu quarto, trancada,

lendo. Segundo relatos da autora para o posfácio de seu livro, escrito por Ricardo

Kotscho – que inclusive, considera a jornalista “uma incansável caçadora de

histórias que se especializou em contar a vida de humanos anônimos”, expressão

esta que originou o título do terceiro capítulo desta monografia –, não saía nem para

comer. Chegava a ler cinco livros por dia. Aos dez, já tinha lido toda a Biblioteca das

Moças, a obra completa de Monteiro Lobato e até a coleção inteira de José de

Alencar, algo que, segundo Eliane, só se costumava fazer por obrigação escolar.

De tanto ler, começou a escrever, a princípio apenas poesias. O pai Argemiro

gostou tanto que resolveu editá-las em livro; e assim, Eliane, aos 11 anos, fez sua

precoce estréia na literatura com Gotas da Infância. Quando adolescente Eliane

sonhava em ser astrônoma – “queria viajar até as estrelas.” Desistiu logo ao saber

que para isso tinha que “saber muita matemática.” Eliane nunca viajou pelas

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estrelas, mas teve a chance de fazer viagens muito especiais pela vida que ninguém

vê. O pai queria que ela estudasse Letras, mas ela inscreveu-se no vestibular para

Biologia. Acabou cursando Jornalismo junto com História, que não chegou a

concluir.

Até então, seu único contato com a futura profissão tinha sido, segundo ela,

como leitora preguiçosa do Correio do Povo, e não gostava do que lia. “Achava

jornal, em geral, muito chato. Preferia os livros.” (BRUM, 2006, p. 179). Mesmo na

faculdade, pensava que não tinha aptidão para ser jornalista. Seu gosto pela

profissão surgiu no último semestre da Faculdade de Jornalismo na PUC-RS. Eliane

descobriu a paixão pela arte de contar histórias e a primeira que escreveu intitulada

“Esperando na fila da existência” (sobre as filas que um cidadão enfrenta desde o

nascimento até a morte) lhe rendeu como prêmio do Set Universitário de 1988, ano

de sua formatura, um estágio na Zero Hora. Em 2000, a convite de Augusto Nunes,

foi para a revista Época em São Paulo, onde trabalha como repórter especial

atualmente.

Eliane Brum ganhou mais de 30 prêmios de reportagem, no Brasil e no

exterior. Em 1994, publicou Coluna Prestes – O Avesso da Lenda, pelo qual recebeu

o Prêmio Açorianos de Literatura como autora revelação. Em 2005, lançou o curta

Uma História Severina. O documentário conta a história de uma mulher grávida de

um feto sem cérebro. No roteiro a mulher ganha e, em seguida, perde o direito de

interromper a gestação. O enredo revela a peregrinação dela pelos hospitais, o

nascimento do bebê morto e o enterro da criança. O documentário já recebeu 12

prêmios.

Em entrevista ao site Coletiva.net, a jornalista disse que o sucesso é fazer o

que se acredita. “As histórias que conto, conto porque valem a pena. Tenho vontade

de mudar pelo menos um pouquinho do que está errado.” A autora garante que a

diferença está no jeito de olhar e não no tema de cada reportagem. “A vida está aí,

não importa se o assunto é grande ou pequeno, se é do dia-a-dia ou um fato

extraordinário, tudo está na forma como se enxerga.” (2006).

Gêneros híbridos, na fronteira entre o jornalismo e a literatura, as crônicas-

reportagens de Eliane Brum se apresentam como o espaço por excelência da cidade

e de seus anônimos transeuntes.

Tendo em vista que a crônica-reportagem se volta a um público interessado

nas pequenas Odisséias humanas, atualmente o livro se mostra em ascensão como

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um novo meio de difusão já que no jornal diário nem sempre é possível ter uma

maior liberdade de estilo, principalmente nas cidades interioranas dos estados

brasileiros. Através do livro-reportagem é que se revela uma relação muito fluida

entre a literatura e o jornalismo.

3.3 A vida que ninguém vê: a análise do livro

Dentre os 21 textos que contemplam o livro A Vida que Ninguém Vê foram

escolhidas cinco crônicas-reportagens para a análise. São elas: O conde decaído; O

gaúcho do cavalo-de-pau; A voz; O álbum; e Depois da filha, Antonio sepultou a

mulher. Os textos são apresentados sob a forma de fragmentos que não seguem

uma ordem cronológica, linear ou lógica, e que são independentes entre si. Ou seja,

pode-se abrir o livro em qualquer página e ler um fragmento sem que isto prejudique

a compreensão e a recepção estética da obra por parte do leitor. Os temas

abordados pelos textos escolhidos são os mais diversos possíveis, transitando entre

a estátua desprestigiada que é narrada poeticamente para logo em seguida

apresentar a outra face da moeda, o lado mais repulsivo da vida, a morte,

caracterizando a obra como uma espécie de espelho do mundo. Há, contudo, uma

harmonia entre eles, uma polifonia semelhante à do conjunto de sonoridades

musicais e uma fluidez instantânea, como a da água em movimento, já que tudo é

escrito no momento em que é sentido ou vivido.

Estas crônicas-reportagens revelam que há espaço para investir em

segmentos alternativos, elaborando produções jornalísticas com temáticas

diferenciadas. A estrutura desta análise segue um curso no qual se poderá obter

algumas evidências entre a rede que interliga aspectos tanto no campo do

jornalismo como no da literatura. Dois campos narrativos que suscitam a reflexão

fazendo com que o leitor possa questionar os aspectos da vida.

A primeira crônica-reportagem analisada, intitulada O conde decaído (Brum,

2006, p. 66), trata-se da primeira estátua construída em Porto Alegre. O eternizado

em mármore foi o Conde Manoel Marques de Souza, um filho das guerras, entre

elas a do Paraguai. O ano era 1885, e a própria Princesa Isabel veio ao Estado

inaugurar a estátua na praça que levava o nome do pai do herói, Dom Pedro II. Por

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27 anos a estátua permaneceu neste lugar. Em 1889, com a Proclamação da

República, Dom Pedro II foi destituído do posto que ocupava, e a praça de todos os

poderes passou a chamar-se Marechal Deodoro. E o que dizer sobre o Conde?

Este, teve que ceder o lugar cativo ao republicano Júlio de Castilhos em 1912.

Ele está lá. Quase ninguém vê, mas está. A maior lição sobre a relatividade do poder. A fugacidade da fama. A efemeridade da glória. Ele, o Conde de Porto Alegre. Manoel Marques de Souza. Terceiro varão de uma dinastia de centauros de espada em riste. Parido na guerra, pela guerra. Engatinhando nas poças de sangue dos campos de batalha, a pele do rosto feita couro pelos ventos do pampa. Aos 13 anos despedindo-se da casa da mãe para se entreverar com os castelhanos. Aristocrata da guerra, virou barão, visconde e por fim um conde, os dois últimos na Guerra do Paraguai. Morreu embebido em dores e feitos, a mortalha bordada de galões e medalhas. E era tão importante, mas tão importante, o nome estendido como um pelego de brios sobre as coxilhas do Rio Grande, que mereceu a primeiríssima estátua cravada na mui leal e valorosa Porto Alegre. Título, aliás, que ele conquistou para a capital ao arrancar a cidade dos arcabuzes farrapos. [...] Pois então. Não foram 15 segundos de fama como uns e outros e, mesmo assim, onde acabou? Num insignificante triângulo entre a Duque de Caxias e a Riachuelo, batizado com seu pomposo nome. Sei lá quem é aquele velho, irrita-se o mendigo do lugar. Quem diria. O Conde! O Conde! Reduzido àquele velho... Ele, que partia para a batalha como se fosse para um salão de baile. Marchava para o combate de luvas brancas. Agora com a sobrecasaca de guerra coberta de limo, a mesma que a lenda conta ter as abas 47 vezes perfuradas pelas balas inimigas na segunda batalha de Tuiuti. O conde, acostumado ao cheiro do sangue derramado pela pátria, condenado agora ao fedor do mijo. Porque sim, urinam na estátua do conde. Cheiro tão forte e tão constante que, mesmo que lhe reste ainda algum admirador, não haveria como chegar perto. O conde cheirando como um zorrilho. (BRUM, 2006, p. 66-67).

Percebe-se nesta passagem uma decisiva alteração no modo do fazer

jornalístico localizado exatamente na configuração de dois gêneros. Se por um lado

sua produção textual pode ser classificada, conforme as explicações de Sodré e

Ferrari (1986, p. 85), como uma reportagem de ação pelos detalhes que atraem o

leitor, por outro se atribui a ela, ao mesmo tempo, a categorização de crônica de

exposição poética conforme Candido (apud Melo, 1994, p. 158), porque a autora

percorre o texto de forma lírica. Esta classificação também pode ser evidenciada no

trecho em que a autora praticamente declama: “Morreu embebido em dores e feitos,

a mortalha bordada de galões e medalhas. E era tão importante, [...] o nome

estendido como um pelego de brios sobre as coxilhas do Rio Grande, que mereceu

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a primeiríssima estátua cravada na mui leal e valorosa Porto Alegre.” (BRUM, 2006,

p. 66).

Esta crônica também apresenta traços da crônica biográfica lírica, também

segundo Candido (apud Melo, 1994, p. 158) porque além da forma poética com que

Eliane apresenta o texto, ela também narra a história real da estátua do conde

Manoel Marques de Souza, o qual faz parte da História do Estado. Por esta razão

ela pode ser considerada uma crônica-reportagem de ação, com exposição

biográfica e poética.

Como diz Brum, na entrevista realizada para esta monografia, sobre a história

da estátua do Conde de Porto Alegre: “fiz pesquisas em arquivos, conto o que foi

acontecendo com a estátua pelos fatos relatados por outros e a partir daí construo a

‘fala’, a ‘vida’ da estátua.” (VER ANEXO A). O que remete aos termos de captação e

apuração descritos no capítulo dois. Paulo Roberto Botão (2004, p. 13) coloca que o

momento da captação, principalmente através de entrevistas é de extrema

importância, pois garante ao jornalista vastos elementos de informações. José Aloise

Bahia no ensaio “Jornalismo Literário de Primeira Qualidade”, neste contexto, afirma:

[...] as entrevistas intentam para a compreensão mais plena das pessoas e suas realizações. Num certo sentido é um estudo permanente, humanístico e desbravador com imperativos democráticos, e aponta uma interação a serviço da construção do imaginário coletivo. Pode ainda referir-se a um diálogo possível entre entrevistador e entrevistado, uma colaboração no sentido de trazer à tona uma verdade ou parte dela, regada pela emoção, temperada com clareza e servida pela razão compreensiva. Transforma-se em conversas, bate-papos, depoimentos, declarações, juízos de valores ou confissões. A entrevista é um gênero direto e esclarecedor da modernidade. (2007).

Brum afirma que todas as histórias contadas são informações apuradas, que

cada uma delas deu muito trabalho na procura dos detalhes. “Acredito que o bom

texto jornalístico depende do rigor e da profundidade da apuração, da quantidade de

detalhes que se conseguiu apurar, para que o texto tenha cheiro, sabor, textura,

além de quem disse o quê.” (VER ANEXO A).

Neste sentido, Eliane, ao responder a pergunta sobre como o jornalista (e/ou

narrador) pode saber o que se passa no íntimo das personagens de seus textos,

responde:

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Perguntando pra elas, pra começar. E observando muito. Ele pode chegar perto, mas tem de deixar claro que essa é a sua percepção da intimidade de alguém a partir de fatos, de falas, de observações. Se fossemos escrever sobre nós mesmos chegaríamos apenas perto da verdade, chegaríamos apenas a uma versão da nossa verdade. Não há verdade absoluta, obviamente. Às vezes um entrevistado te conta coisas incríveis e às vezes não é a verdade nem toda a verdade. Às vezes ele nem sabe que é quase uma mentira. Quanto mais claro isso é explicitado, esse processo é explicitado, mais honesto estamos sendo com o leitor. Eu procuro deixar claro pela minha escrita que esse é o meu olhar sobre tal pessoa, sobre tal acontecimento. Não um olhar descuidado ou preguiçoso. Um olhar de quem pesquisou muito, investigou muito, apurou muito, mas que é apenas uma pessoa humana tentando escrever sobre outro ser humano, sobre acontecimentos humanos. Ou seja, uma pessoa limitada, falha, incompleta. (BRUM, VER ANEXO A).

Lima (1995, p. 84) acrescenta à entrevista outros caminhos para se chegar à

apuração: as histórias de vida; a observação participante; a memória; a

documentação; e a visão pluridimensional simultânea.

Denota-se no próximo trecho de O conde decaído estas tarefas adicionadas

por Lima, atribuídas ao texto jornalístico de Eliane, que além de iniciar sua aventura

de seduzir o leitor através da padronização estilística da crônica aparecendo como

narradora onisciente intrusa como descreveu Norman Friedman (apud Leite, 1997, p.

26), pois transfere sua astúcia de repórter ao texto com sua opinião, fornecendo

também os dados de captação e apuração, atributos essenciais à reportagem.

Assim é a vida, como também a morte, e é bom que alguns muitos aprendam com o Conde de Porto Alegre. Porque ainda, ainda não era tudo. Por volta de 1970 viraram o conde. Assim, como se faz com um velho entrevado. Se mais uma vez cometeram esse desrespeito, não parece haver registro. O certo é que o olhar altaneiro, longínquo, que costumava pousar sobre os campos de batalha antes de esmagar o inimigo, está hoje condenado à tediosa visão de uma loja de artigos de cama, mesa e banho. Até a espada, que ele trazia cintilante, para que os inimigos nela pudessem mirar-se na hora da morte, se quebrou em uma dessas andanças. O conde – quanta ironia! – ficou sem espada, sem poder, sem fama e sem glória. Como o mais infeliz, o mais miserável de seus soldados. No fim tudo é pó. Esquecimento. E o inconfundível cheiro de urina. E se aconteceu com o conde – o conde! – pode acontecer com qualquer um. O Conde de Porto Alegre reduzido a uma vida que ninguém vê num canto da cidade. (BRUM, 2006, p. 69).

Nestes dois trechos apresentados de O conde decaído, o texto apreende um

enfoque mais individualizado por meio das personagens (o conde, personagem

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anáfora que só se compreende na trama que o envolve e o mendigo aparecendo

como um figurante por encontrar-se passivo e distante no relato) de acordo com os

subsídios teóricos encontrados em E.M. Forster, citado por Brait (apud Coimbra,

1993, p. 72) e de uma situação determinada, ou seja, a condição em que a estátua

se encontra – “sem fama e sem glória” –, indo ao encontro de uma das técnicas

narrativas, a narração, com desenvolvimento, clímax, desenlace. Ou seja, como diz

Elisa Guimarães (apud Coimbra, 1993, p. 15), “dentro desta perspectiva, três

categorias tecem o esquema narrativo: exposição, complicação e resolução.”

Justamente o que ocorre na crônica-reportagem. A jornalista fala do conde, explica a

mudança de local da estátua e a finaliza apontando para o esquecimento do herói.

Logo percebe-se que unindo as particularidades da crônica e da reportagem

justifica-se o que se chama de crônica-reportagem.

A próxima crônica-reportagem escolhida foi O gaúcho do cavalo-de-pau

(Brum, 2006, p. 106). A história de Vanderlei Ferreira é reconhecida pelas cocheiras

da Expointer desde 1991 quando ele amanheceu nos portões da feira acompanhado

de seu fiel escudeiro, um cabo de vassoura que ocupava a função de cavalo deste

gaúcho de Uruguaiana. Segundo relatos da autora, ele viaja um pouco a pé ou

espremido entre os bichos em algum caminhão.

Dizem que ele é louco. É possível. Da última à primeira cocheira da Expointer, dizem que ele é louco. Os patrões e também os peões dizem que ele é louco. Até as vacas premiadas e também as chibungas dizem que ele é louco. Será? Talvez seja ele quem ria. Talvez seja uma grande ironia. Ou talvez ainda ele seja um Dom Quixote de bombacha e cavalo-de-pau em busca de coxilhas de vento de um tempo que, como ele, seja também uma quimera. Talvez. [...] Desde que descobriu a Expointer, nunca falhou uma. Chega com fedor de bicho, os piolhos pastando pela cabeça. Os veterinários lhe dão um banho, desinfetam o couro e acaba até presenteado com um par de botas. Chapéu, bombacha e churrasco vai ganhando de outros padrinhos espraiados pela exposição. Veste um jaleco branco de veterinário e sai com uma planilha debaixo do braço. Dorme numa cocheira do galpão do isolamento, entre éguas e touros doentes. [...] Quando corcoveia sobre o lombo de pau do seu cavalo, o povo ri, se diverte. O dito louco também ri muito, por dentro e por fora. Não se sabe quem ri mais, se a platéia, se o suposto doido. Nem se sabe de quem será a derradeira gargalhada. (BRUM, 2006, p. 106-107).

Nesta passagem pode-se observar a presença da ficção infiltrada em meio a

tantos ricos detalhes do real, principalmente na frase: “Da última à primeira cocheira

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da Expointer, dizem que ele é louco. Os patrões e também os peões dizem que ele é

louco. Até as vacas premiadas e também as chibungas dizem que ele é louco.

Será?” (BRUM, 2006, p. 106). No primeiro capítulo, através do teórico Salomão

(2007), discutiu-se a idéia do realismo conceder a qualidade de representar o real.

Entende-se a partir desta afirmação que a ficção é utilizada como artifício do real,

não para inventá-lo, mas para dar ênfase a um determinado juízo. Para o autor “o

objetivo maior do realismo é atingir o status de real”, logo, quando fato e ficção se

unem, a diferença gerada pela relação entre realidade e ficção é fortalecida pela

utilização da narrativa descritiva. Neste texto a técnica narrativa utilizada pela

jornalista além da narração é a descrição de pessoas que é realizada através da

comunicação face a face, como encontra-se em Coimbra. (1993, p. 20).

Nesta mesma ótica, Seligmann-Silva, compreende que a utilização do registro

ficcional para a apresentação dos eventos é necessária porque não é invenção, mas

a construção do real. (2003, p. 386). Tatiana da Silva Capaverde (2007) relaciona as

duas dimensões, ficção e real, na tentativa de mostrar que não existe a possibilidade

de afastamento entre elas, e sim uma inter-relação entre ambas. Isto se explica na

frase: “Chega com fedor de bicho, os piolhos pastando pela cabeça.” (BRUM, 2006,

p. 107). Constata-se que a autora encontra na literatura de ficção formas de

representar a realidade em que se encontra a personagem.

No próximo trecho de O gaúcho do cavalo-de-pau, a jornalista aparece

dialogando com Vanderlei, personagem de seu texto. Neste momento, de acordo

com Friedman (apud Leite, 1997, p. 26), ela evidencia-se como narradora onisciente

intrusa no período em que tece seus comentários sobre o comportamento da

personagem como no seguinte questionamento: “Você sabe que isso é uma

fantasia, que o cavalo é um cabo de vassoura. E mesmo assim galopa por aí num

cavalo-de-pau. Por quê?” (BRUM, 2006, p. 110). Esta forma de abordar a

personagem também é uma técnica que Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 39) adota

como literatura de testemunho, mas que também apresenta características aplicadas

ao Novo Jornalismo, como se verá adiante. Estas características revelam que o texto

pode se enquadrar, como se viu em Candido (apud Melo, 1994, p. 158), entre a

crônica-diálogo e a crônica-narrativa. Diálogo por causa da conversa estabelecida

entre os dois e narrativa por apresentar trechos relativos à ficção e narrar fatos reais.

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– Por que você veio à Expointer? – Ouvi na faculdade, em Uruguaiana, que os alunos estavam liberados para ir à Expointer. Era 1991. Me atraquei a pé. – Foi difícil? – Foi a pior coisa da minha vida. Ninguém queria me trazer. Passei fome. Levei três dias para chegar. Mas amanheci aqui. – E o que achou? – Foi o melhor dia da minha vida. Me apavorei com o mundão de coisa. Nunca mais queria que acabasse. – E o seu cavalo? – Meu cavalo é uma vassoura. Queria que fosse o BT Faceiro do Junco (vencedor do Freio de Ouro de 1995), mas é um cabo de vassoura. – Se você sabe que é um cabo de vassoura, o que pensa quando está montado nele? – Sonho que eu tô num cavalo de verdade. Levando uma prenda na garupa. Laçando, paleteando... [...] – Você nunca trabalhou como peão? – Comecei a trabalhar, mas queriam que eu levantasse às 4h pra fazer coisa que podia fazer às 6h. Não deu certo. – Não é boa a vida de peão? – É muito difícil. O cara sofre, se machuca e ainda por cima ganha pouco. Não quero ser peão. Quero ser veterinário. – Você vai à faculdade? – Assisto às aulas, aprendo de tudo um pouco. Mas não sei ler nem escrever. Só números. – Quando você chegou à Expointer dessa última vez? – Cheguei na sexta passada. Vim de caminhão, com touros de raça. Sobrava um lugarzinho. – E quando a Expointer acaba? – Me dá uma tristeza no coração. – Como é essa tristeza? – É uma tristeza funda. – Como você vai embora? – Vou triste, deitado, pensativo. Volto com os bichos. [...] – Você sabe que isso é uma fantasia, que o cavalo é um cabo de vassoura. E mesmo assim galopa por aí num cavalo-de-pau. Por quê? – Sem invenção a vida fica sem graça. Fica tudo muito difícil. – Tem gente que acha que você é louco... – A verdade é que quem acha que eu sou louco não raciocina. (BRUM, 2006, p. 108-110).

Sodré e Ferrari determinam muitos pontos comuns entre a reportagem e a

crônica, pois algumas vezes o repórter encontra na crônica o modelo condutor do

seu texto. “Pode-se dizer que a reportagem é uma crônica jornalística – um modo

especial de propiciar a personalização da informação ou aquilo que também se

indica como interesse humano.” (1986, p. 75). Neste caso, a reportagem pode ser

entendida como de ação em conformidade com as idéias propostas por Sodré e

Ferrari (1986, p. 45). A autora consegue prender a atenção do leitor até o final do

texto, fazendo com que este imagine o personagem galopando num cabo de

vassoura pelo Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio, local que acontece a

Expointer. Para tanto, neste episódio o gaúcho que é chamado de louco é

compreendido como uma personagem redonda como foi visto em E.M. Forster,

citado por Brait (apud Coimbra, 1993, p. 72), porque abarca uma intensidade de

reações que a jornalista se vê instigada em desvendá-las como em: “Tem gente que

acha que você é louco...” (BRUM, 2006, p. 110).

Entretanto, da crônica importa-se para este texto um importante referencial de

comportamento ou dos hábitos de vida de alguém em determinada época. E da

reportagem importa-se o registro do factual, do acontecimento, mantendo-se fiel a

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factualidade e veracidade dos fatos. É, pois, perfeitamente compreensível que por

misturar dois gêneros, resulta-se na crônica-reportagem.

É como diz Abreu (2006), valoriza-se o humano no fato jornalístico, levando a

uma generalização capaz de fazê-lo coincidir com os anseios e preocupações do

leitor, dando a este a sensação de ser ele mesmo o herói. Isso se pode fazer através

de uma abertura de campos (objetivo da reportagem e subjetivo da crônica) de modo

a inseri-lo na história.

Segundo a ABJL, Academia Brasileira de Jornalismo Literário (2007), o

Jornalismo Literário é uma modalidade de prática da reportagem de profundidade e

do ensaio jornalístico utilizando recursos de observação e redação originários da (ou

inspirados pela) literatura. Modalidade conhecida também como Jornalismo

Narrativo. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo,

precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e

humanização. Características que se observa de forma clara em A Vida que

Ninguém Vê.

A crônica-reportagem A voz (Brum, 2006, p. 120) é o típico exemplo do Novo

Jornalismo. Este caráter de texto ao estilo Tom Wolfe, proporciona ao ofício de

contar histórias a perseguição a formas mais imaginativas. Pode ser mais subjetivo e

o ponto de vista pode ultrapassar as barreiras do narrador onisciente. E também

pode ter valor estético, pois é assim que a crônica-reportagem A voz é cogitada

neste trabalho.

Este texto da autora trata de uma voz ensurdecedora e quase letal aos

tímpanos das pessoas. E esta voz é de Clodair José Pinheiro Maidana, o Clodair

Cauby, que faz propagandas de loterias no centro de Porto Alegre. A situação da

voz, segundo Eliane, é caótica. Virou caso de polícia. Uma estudante de um curso

pré-vestibular registrou queixa contra o homem cego que passa o dia falando num

alto-falante na esquina da Ladeira com a Rua da Praia. O tormento é porque Clodair

eleva sua voz aos céus.

Clodair não enxerga um palmo adiante do nariz. Nem o próprio nariz. Nada. Em compensação, que voz! Grave como um dó de peito. Potente como uma tuba. E de longo, longuíssimo alcance. Voz de Cauby Peixoto! – Conceiçãoooooooooo! Eu me lembro muito beem... Essa aí. Pois então. Essa voz de Cauby tornou-se o flagelo da esquina da Ladeira com a Rua da Praia, em Porto Alegre. Imagina o Cauby, das 7h45 até às 10h. De terça a

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sábado: – É houuuuuuuuje a mega-sena acumulada. R$ 40 milhões! É houuuuuuje! Ininterruptamente. Seiscentas e setenta e oito vezes. É não tem sido exatamente uma sucesso de público e crítica. Tem sido uma guerra. Cega, é verdade, mas jamais surda e muda. E está num momento periclitante. (BRUM, 2006, p. 120).

No posfácio do livro Radical Chique e o Novo Jornalismo de Tom Wolfe,

Joaquim Ferreira dos Santos diz que o Novo Jornalismo, como qualquer repórter da

editoria de Cidade, vai ao local. Pega táxi, se necessário. Puxa do caderninho, sua

canequinha de humildade, e mendiga informação. “O novo repórter agora precisa,

além de bater em todas as outras portas clássicas da apuração de uma matéria [...]

agora precisa bater também na porta que vai dar na cabeça do entrevistado.” (2005,

p. 236). E nesta matéria d´A voz as fontes consultadas são cinco. Nesta acepção as

entrevistas e apurações associadas às fontes não deixa a credibilidade de lado e

afirma-se a veracidade dos fatos.

As narrativas do Novo Jornalismo concentram-se em recursos específicos e

descrições minuciosas de lugares, feições, hábitos, gestos, comportamentos e

objetos buscam indicar a realidade do mundo sobre um ângulo diferenciado

privilegiando o relato denso e pessoal que provoque emoções. “Propõe-se que os

fatos sejam, tratados de maneira diferenciada, com maior profundidade e reflexão

tornando a escrita jornalística mais sensibilizada.” (LAVORATI, 2007).

Na tentativa de Wolfe em explicar as táticas do Novo Jornalismo, ele cita o

crítico inglês John Bayley que “sonhava com uma era em que os escritores tivessem

a atitude de Puchkin de lançar um olhar fresco às coisas, como se fosse pela

primeira vez, sem a obrigação permanente de ter consciência do que os outros

escritores já haviam feito.”

[...] indo além dos limites convencionais do jornalismo, mas não apenas em termos de técnica. O tipo de reportagem que faziam parecia muito mais ambicioso também para eles. Era mais intenso, mais detalhado e sem dúvida mais exigente em termos de tempo do que qualquer coisa que repórteres de jornais e revistas, inclusive repórteres investigativos, estavam acostumados a fazer. [...] para captar o diálogo, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente. (2005, p. 37).

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Estas demonstrações do forte caráter informativo se vêem nas crônicas-

reportagens de Eliane Brum porque no plano das personagens, por exemplo, ela

consegue recuperar a experiência individual e como jornalista infiltra-se como uma

observadora rigorosa dos dados oferecidos pelo real.

Todos estes subsídios teóricos aparecem na prática na seguinte passagem

de A voz.

Clodair Cauby se posta perpendicularmente ao curso supletivo e pré-vestibular Monteiro Lobato. E eleva seu canhão de cordas aos céus. No segundo andar, o diretor da escola, Bruno Eizerik, fala por telefone com a agência de publicidade de São Paulo. – O que está acontecendo aí em Porto Alegre? Que manifestação é essa? – pergunta o paulista incauto. – É aquele cego!!! – murmura Bruno. – Aquele cego!!! No sexto andar, Pinheiro Eizerik, o fundador do curso, tenta combater o petardo que sobe – e sobe – com um concerto de Tchaikovski transmitido pela Rádio da Universidade. Só tenta. O radinho Phillips treme, mas o resultado é, no máximo, uma fusion entre Tchaikovski e Clodair Cauby. Tchaikovski e “o úúúllllllltimo bilhete premiado a um real”. – Fracassei – diz ele. Um Napoleão diante de Waterloo. [...] No oitavo, Evelise Bernardes, estudante do pré-vestibular, ignora os mistérios das orações sindéticas adversativas. Está a beira de cometer um ato impensado, resvalar para a insanidade, para a maldade explícita. Evelise quer torturar o cego! [...] Ela escreve no caderno como o personagem de Jack Nicholson em O iluminado. Em transe: “Das 6h40 às 10h45, ele gritou sem parar: – Quina milionária! – É pra hoje! – R$ 25 mil! – É pra hoje a quina milionária! – É pra hoje a quina acumulada! – É pra hoje 25 mil!” [...] Proprietária recente de olheiras fundas, Evelise escreveu um abaixo-assinado comovente ao 9º Batalhão da Polícia Militar. [...] A voz virou caso de polícia, registrado na 17ª Delegacia de Polícia da capital. Já peregrinou pela justiça. Em 5 de maio, Clodair Cauby prometeu, durante audiência no 3º Juizado Especial Criminal, que gritaria “em tom mais baixo”. [...] Ás 10h, pontualmente, Clodair Cauby e a patroa se encontram em um ponto invisível no meio dos dez passos que os separam, se dão o braço e saem com suas respectivas bengalas rua afora. No alto do prédio, 450 alunos suspiram de felicidade com a cabeça para fora da janela. Por pouco não fazem ola. Embaixo, Clodair comenta com a patroa, espraiando seu vozeirão de Cauby: – Sabe, Eva, tu não imaginas a dor de cabeça que me dá gritar desse jeito! (BRUM, 2006, p. 120-123).

No texto d´A voz percebe-se que o foco narrativo é alterado, possibilitando à

narradora, na definição de Friedman (apud Leite, 1997, p. 26), ser testemunha;

porque além de participar dos acontecimentos relatando suas observações na

medida em que as personagens envolvidas se entregam de corpo e alma aos fatos,

ela acaba se tornando uma personagem secundária. Esta constatação justifica-se na

frase: “Conceiçãoooooooooo! Eu me lembro muito beem... Essa aí. Pois então.”

(BRUM, 2006, p. 120). Esta reportagem mescla-se em dois tipos. Além de ser uma

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reportagem de ação por prender o leitor à leitura, ao mesmo tempo é documental,

pois denota-se que a autora se ampara nos dados que lhe são fornecidos como teor

de fundamentação, de acordo com as explanações de Sodré e Ferrari (1986, p. 45).

Além disso, a matéria é entendida como uma crônica local, segundo Beltrão (1980,

p. 55), porque ela se volta a um tema referente ao dia-a-dia da cidade de Porto

Alegre captando as opiniões das personagens. Estas, por sua vez, também se

misturam. Em conformidade com E.M. Forster, citado por Brait (apud Coimbra, 1993,

p. 72), Clodair é a personagem referencial, pois é o alvo da crônica-reportagem e

anáfora ao mesmo tempo, porque é o centro da rede de relações que os elementos

do texto mantêm entre si. A estudante é uma personagem redonda por revelar seus

traumas em relação ao vozeirão de alto falante do cego. As demais entendem-se

como figurantes, pois elucidam o ambiente e as profissões que estão submersas à

história.

A Vida que Ninguém Vê é composta de cenas da vida na cidade, cenas que

por sua vez se formam a partir de fragmentos urbanos que ganham uma leitura

particular através da cronista-repórter. Edvaldo Pereira Lima, no artigo “Jornalismo

de Transformação”, menciona que descobrir as vidas das pessoas e explorar

territórios deslumbrantes da realidade humana é o que vale a pena fazer no

jornalismo. “Colocar tudo no papel com estilo. Arte. Arte em forma de narrativa do

que é real, vivo.” (2007).

Em entrevista ao professor Edvaldo Pereira Lima, para o site da ABJL, sobre

o Prêmio Jabuti que Eliane Brum foi contemplada este ano com o livro na categoria

reportagem, ela comenta que:

Essa abordagem, essa escrita ter sido reconhecida através de um prêmio tão importante como o Jabuti é sensacional. [...] isso mostra que as pessoas estão abertas a uma outra forma de “reportear” o mundo. Não que eu tenha inventado alguma coisa. Não inventei nada. Embora tenha minhas particularidades, como qualquer um, esse jornalismo é muito mais antigo do que eu, como vocês do Jornalismo Literário sabem melhor do que ninguém. Só faço parte de um grupo de repórteres que continua brigando para fazer matéria pessoalmente, sem a mediação de telefones e e-mails, prestando atenção no que vê, sente, observa - e não apenas no que é dito. (2007).

Idéia esta que reporta mais uma vez ao Novo Jornalismo. Como Wolfe coloca:

“Neste Novo Jornalismo existe apenas a norma do fora-da-lei quanto à técnica:

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pegue, use, improvise.” O autor ainda fala que além das questões da técnica, existe

uma prerrogativa tão óbvia, tão interna, que quase se esquece o domínio que ela

tem: “o simples fato de o leitor saber que tudo aquilo que está sendo relatado

realmente aconteceu.” (2005, p. 57).

As crônicas-reportagens de A Vida que Ninguém Vê se mostram, neste

sentido, um jornalismo que é arte. Não é uma arte maior ou menor. É apenas arte,

aliado ao factual e real do jornalismo. E é exatamente sobre o jornalismo como arte

que se apresenta o próximo texto analisado.

O álbum (Brum, 2006, p. 154), a quarta crônica-reportagem escolhida para

analisar entre os 21 textos do livro, trata-se de um álbum de fotografias jogado no

lixo no bairro Cidade Baixa de Porto Alegre. Sabe-se, através das informações

escritas no texto de Brum, que alguma alma caridosa resolveu resgatá-lo do lixo e

anonimamente o depositou no prédio rosa, antigo, de número 1170. Uma das

moradoras do edifício, que costuma dar importância a objetos dispensados por

outros com o intuito de recuperá-los, recolheu o álbum. E a história continua como o

álbum que foi sendo preenchido com fotos dos momentos da vida de uma moça,

segundo suposições de Brum (2006, p. 155), chamada Carlita. O álbum inicia com

as fotos de Carlita, mas termina com Angel Santos, identidade misteriosa que Eliane

tenta descobrir. Na verdade todas as fotos e dedicatórias parecem ser uma

incógnita.

Era um fim de semana chuvoso, enlutado, quando o velho álbum foi condenado à morte. Álbum de capa preta e verde, um banquete de cupins por cada página de cartão. Ficou ali ao relento, não se sabe por quanto tempo, misturado aos restos da vida comezinha. [...] Embrulhado para presente em papel-manteiga, o álbum que alguém não quis foi despachado para a vida que ninguém vê. E talvez coubesse perguntar o que cada um dos envolvidos na salvação do álbum deseja, com desespero e devoção, salvar realmente. Talvez valesse questionar o que, em verdade, está em jogo. A ameaça contida em um álbum jogado fora, em uma vida atirada ao esquecimento [...] O álbum foi dado com amor a uma moça chamada Carlita. Ou seria velha, a Carlita? Provavelmente moça. Por causa da dedicatória de 11 amigas, no primeiro dia de julho de 1955. [...] Carlita parece que se esvai, desmancha-se em outra vida. A de um espanhol chamado Angel Santos. Seu marido, é possível. Talvez o homem moreno que olha para a câmera quando ela olha para ele. (BRUM, 2006, p. 154-157).

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Percebe-se nesta passagem que o texto é escrito com elegância

estabelecendo a arte também como um processo de comunicação. Como seres

humanos, observa-se que as personagens, segundo E.M. Forster, citado por Brait

(apud Coimbra, 1993, p. 72), são anáforas porque somente consegue compreendê-

las no contexto em que se encontram, ou seja, pela exposição e pelos

questionamentos que a autora faz quanto ao conteúdo do álbum. Isto remete-se ao

narrador onisciente intruso de acordo com Norman Friedman (apud Leite, 1997, p.

26), pois Eliane perpetua através da sua escrita suas próprias interpretações e

percepções em relação ao objeto. Estas suposições que a jornalista faz dão um

toque de beleza ao texto, transmitindo informações interessantes sobre as

personagens que neste caso se encontram dentro de um álbum de fotografias

abandonado.

A matéria pode ser considerada, segundo Coimbra (1993, p. 166) uma

reportagem narrativa devido ao estilo de apuração através das interpretações

seguindo o fluxo da ação confusa que o álbum apresenta entre o antes e o depois,

principalmente na seguinte passagem: “É um álbum desordenado todo ele. Como

são as vidas. [...] É por isso também que esse é um álbum estranho. Não apenas

porque foi atirado à morte, mas porque é fiel à desordem da existência.” (BRUM,

2006, p. 158). Mas também é uma crônica-comentário, segundo as definições de

Coutinho (1971, p. 68), em razão das indagações opinativas da autora, como nas

frases “O álbum foi dado com amor a uma moça chamada Carlita. Ou seria velha, a

Carlita?” e “Carlita parece que se esvai, desmancha-se em outra vida. A de um

espanhol chamado Angel Santos. Seu marido, é possível.” (BRUM, 2006, p. 157).

Bem como também pode ser entendida como uma crônica-conto, de acordo com

Moisés (1979, p. 245), pois a jornalista consegue se aproximar do conto chamando a

atenção do leitor para o fato de o álbum ter sido “atirado às traças”, mas aparecendo

em alguns trechos como quem narra sem contestar o assunto, como na frase

“Embrulhado para presente em papel-manteiga, o álbum que alguém não quis foi

despachado para a vida que ninguém vê.” (BRUM, 2006, p. 155). Logo, estas

sutilezas da escrita se situam nessa cumplicidade com a arte. Como diz Fernando

Pessoa: “a arte tendo sempre por base uma abstração da realidade tenta reaver

essa realidade idealizando-a.” (1988 p. 30). É o que Eliane descreve, na prática,

através de suas interpretações da realidade contida num objeto.

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É um álbum desordenado todo ele. Como são as vidas. Essa é, em parte, a diferença entre a vida e a literatura, onde os personagens, por mais irreverentes, têm todas as saídas e as entradas em cena calculadas, fazem todos um sentido na trama. Na vida, não. Rostos somem e outros aparecem, e outros que sumiram reaparecem mais tarde, e outros nunca mais. E poucas vezes esse entra-e-sai faz algum sentido, porque na vida tudo é caos e descaminho, tudo é encontro e desencontro. É por isso também que esse é um álbum estranho. Não apenas porque foi atirado à morte, mas porque é fiel à desordem da existência. Seja de quem for a mão que o reescreveu por último, obedecia a uma lógica diferente da que move a maioria dos humanos, porque não tentou ordenar o caos de sua própria vida. (BRUM, 2006, p. 158).

Entende-se que a crônica-reportagem citada faz as palavras “colarem” no

corpo e na memória do leitor. A polissemia e a pluralidade de sentidos que

propiciam, revelam a beleza que o texto jornalístico pode atingir, a imensidão de

reações que ele pode provocar no leitor. É nessa margem que se atinge o sublime, o

belo no cotidiano humano.

A beleza e a arte, como não poderiam deixar de ser, são encontradas nesta

crônica-reportagem pela riqueza dos detalhes e pela poesia que, contendo

simplicidade, encanta. A beleza é uma arma para capturar o leitor na primeira linha e

levá-lo até a última e isto pode-se afirmar sobre as matérias de Eliane Brum. A

jornalista, apesar de não achar que se enquadra na “turma” do Jornalismo Literário,

consegue reproduzir um cotidiano e transformá-lo em arte. Percebe-se claramente o

cotidiano literalizado no livro.

A última crônica-reportagem desta análise chama-se Depois da filha, Antonio

sepultou a mulher (Brum, 2006, p 165). O calvário de Antonio iniciou quando ele

enterrou a filha. “‘– Esse é o caminho do pobre’. Antonio sabia o que estava dizendo.

Mas não tinha idéia de o quanto a frase se revelaria ao mesmo tempo sentença e

profecia.” (BRUM, 2006, p. 165). Cinco dias após a morte da criança, outra tragédia

abateu-se sobre a família dele. Lizete, sua esposa de 26 anos, também morrera,

vítima do descaso do poder público com a saúde da população carente. Dois dos

quatro filhos do casal estavam internados com pneumonia em cidades diferentes,

Butiá e Porto Alegre. As duas crianças sofriam de paralisia cerebral decorrente de

problemas relativos aos partos. Lizete estava na quinta gestação quando faleceu

num leito de hospital. Bruno de três anos pedia pela mãe. Fernando, de oito, ajudava

o pai em silêncio. Fernanda teve alta em Butiá, mas ainda não se sabia o destino da

criança. Uma conselheira tutelar estava empenhada em evitar que a menina fosse

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enviada à unidade especial da Febem. Em Porto Alegre, Luiz Oscar respirava com a

ajuda de aparelhos. A saga de Antonio é voltar a descascar eucaliptos para a

sobrevivência dos que ficaram.

Era a quinta gestação de Lizete. A conselheira conta que não sabia sobre a gravidez. Antonio afirma que a mulher estava no oitavo mês. No encaminhamento da paciente, recebido pelo Fêmina, o médico de Butiá informava que Lizete tinha três meses de gestação. O diretor do Fêmina acredita, pelo peso do bebê, que Lizete estaria no sexto mês. Enquanto cuidava de Luiz Oscar, Lizete foi chamada às pressas pela conselheira para atender Fernanda, que havia piorado. Como o Hospital de Butiá exige acompanhante permanente, Lizete ficou ao lado da filha. Por volta da meia-noite daquela sexta-feira, sentiu-se mal, foi ao banheiro e descobriu que estava com hemorragia. Às 2h de sábado, chegou em casa sangrando muito. Acabava de caminhar os dois quilômetros que separam o hospital da casinha alugada na Vila Julieta. Disse a Antonio que pediu socorro no hospital, mas que não a ajudaram. Em lugar de assistência, contou que recebeu apenas uma outra calça e uma camiseta para botar entre as pernas. Deitou-se e disse ao marido que fosse ao hospital porque a menina não podia ficar sozinha. Ao amanhecer, Antonio voltou para casa. Lizete só gemia. Apavorado, pediu a um vizinho que lhe desse uma carona até o hospital porque a mulher não conseguia caminhar. No hospital, Antonio conta que o médico olhou e disse: – Isso não é comigo. Tem de ir a Porto Alegre. Como a ambulância demorava, Antonio ameaçou: – Vocês vão deixar ela morrer só porque eu sou moreno? Se demorarem mais um pouco, eu vou chamar a polícia. Às 12h33, a ambulância de Butiá descarregou Antonio e Lizete no pátio do hospital Fêmina, onde foi constatado o deslocamento prematuro de placenta. Ela já estava anêmica devido à prolongada hemorragia. O bebê ainda estava vivo. Às 13h15 foi feita a cesariana. O coração da menina de 960 gramas já havia parado de bater, vencido pela asfixia. [...] Antes de perder a consciência, Lizete agarrou a sua mão e fez com que prometesse que manteria os filhos unidos (BRUM, 2006, p. 166-169).

Nesta crônica-reportagem a repórter é onisciente neutra, de acordo com as

classificações propostas por Norman Friedman (apud Leite, 1997, p. 26). A jornalista

embrenha-se no desenrolar dos acontecimentos por meio da apuração dos fatos

através das entrevistas com as fontes, mas não interfere na história, apenas relata o

que aconteceu. Já as personagens, conforme a terminologia criada por E.M. Forster,

citado por Brait (apud Coimbra, 1993, p. 72), se encaixam na categoria da

personagem redonda porque aparecem marcadas pelas bruscas transformações de

ordem social, o que demonstra os traumas e a complexidade do ser humano.

Entende-se a partir destas caracterizações que o objetivo é revelar por meio da

reportagem documental, tal qual expõem Sodré e Ferrari (1986, p. 45) nos tipos de

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reportagens, como se configura o tema da matéria, onde o protagonista e as demais

personagens esclarecem o fato ocorrido.

O estudo da crônica neste contexto entende-se como sendo, de acordo com

as definições de Luiz Beltrão (1980, p. 55), local, uma vez que aborda a partir da

natureza do tema, um assunto que se vê praticamente todos os dias nos jornais.

Mas também pode ser entendida quanto ao tratamento que a autora oferece ao

texto, como uma crônica sentimental, já que comove e sensibiliza o leitor como se

fosse um romance. Por outro lado também pode ser percebida, de acordo com

Moisés (1979, p. 245), como uma crônica-conto, já que a narradora se posta neutra

e apenas relata os acontecimentos. Verifica-se que as características da crônica

acopladas às da reportagem, como foi demonstrado neste trabalho, evidenciam a

deflagração das fronteiras entre a crônica e a reportagem.

Constata-se também que esta narrativa é muito mais descritiva e se

assemelha muito ao conto em conformidade com o que Sodré e Ferrari (apud

TORRES, F., 2007) afirmam, não no sentido ficcional, mas no sentido descritivo,

pois a descrição neste texto representa a particularização das personagens que

estão submersas ao contexto da história. Percebe-se então, que a jornalista trata

das personagens principais minuciosamente, revelando os aspectos físicos e

emocionais. O que designa também ao que Guimarães (apud Coimbra, 1993, p. 19)

elucida a respeito da narrativa descritiva.

Em primeiro lugar, Elisa Guimarães diz que um tema chave enuncia a

seqüência descritiva. Nesta crônica-reportagem de Brum o tema chave é a morte de

Lizete. Em seguida, Guimarães aponta uma série de subtemas, que no texto da

jornalista vão se desvendando através da captação das informações com as fontes e

pela observação, como por exemplo: as gestações complicadas; os filhos internados

em hospitais de diferentes cidades; o motivo pelo qual Lizete veio a falecer; a

desconfiança de racismo; a morte do bebê. E o terceiro ponto proposto por

Guimarães são as expansões predicativas respectivas aos subtemas. Brum

caracteriza os subtemas exemplificados através dos verbos de significação que os

qualificam. Esta afirmação pode ser verificada com base na frase: “Às 12h33, a

ambulância de Butiá descarregou Antonio e Lizete no pátio do hospital Fêmina, onde

foi constatado o deslocamento prematuro de placenta.” (BRUM, 2006, p. 167).

Neste contexto, além de ser uma reportagem documental, ela também pode

ser compreendida como uma reportagem descritiva, conforme Coimbra (1993, p.

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166). A repórter vai a fundo para captar informações, entrevista várias fontes para

interpretar um fato social, mas tem na narração descritiva o ponto forte da matéria.

Nesse tipo de reportagem, o texto fica no limiar entre o jornalismo e a literatura, o

que mais uma vez comprova a eficácia entre crônica e reportagem como gêneros

que se entrelaçam e juntos formam uma única feição artística, a crônica-reportagem.

Todas as crônicas-reportagens de A Vida que Ninguém Vê renderiam livros

específicos sobre suas histórias. Tanto é que os fragmentos das histórias anônimas

que a jornalista Eliane Brum descobriu transferiram-se da coluna do jornal ao livro-

reportagem, lhe rendendo um dos mais importantes prêmios em jornalismo. No

geral, o livro A Vida que Ninguém Vê até pode ser representado quanto à linha

temática pelo livro-reportagem-antologia conforme Lima (1995, p. 45) por apresentar

variados assuntos em suas reportagens, sobretudo porque já foram divulgadas na

imprensa diária, contudo tem-se a intenção de ratificar que uma nova variedade

pode ser inserida no conjunto das classificações, porque além de reportagens os

textos também são crônicas.

Segundo Luiz Carlos Santos Simon, deve-se considerar que, nas últimas

décadas, o espaço reservado nos jornais a contos, romances ou poemas é muito

menor do que aquele garantido regularmente pela crônica. “Cabe registrar uma

espécie de ambivalência da crônica que se distingue das notícias jornalísticas mais

convencionais, porém não se desvencilha inteiramente da matéria cotidiana que

orienta todas as manifestações da imprensa.” (2004, p. 55). O que mais uma vez

confirma a prática do que se chama crônica-reportagem.

Contudo, como se percebeu ao longo da análise das cinco crônicas-

reportagens do livro A Vida que Ninguém Vê, de Eliane Brum, a jornalista opta pela

narrativa extensa e detalhada presente nas grandes reportagens. Em termos gerais

ela utiliza-se, na maioria dos textos, da reportagem de ação para caracterizar a

movimentação e também da reportagem documental por valer-se das fontes como

critério para o esclarecimento dos fatos. Já as crônicas, prevalecem as locais e as

que se aproximam do conto. A autora se posta, principalmente, como narradora

onisciente intrusa por expor, através de sua sensibilidade de repórter, seu juízo em

relação aos acontecimentos e utiliza-se das personagens redondas pela

complexidade do ser humano e das anáforas porque o leitor passa a compreendê-

las justamente pelo contexto que estão inseridas no texto.

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Neste sentido os livros são vistos como novos veículos que se integram aos

meios de comunicação, criando novos espaços de mídia para o Jornalismo Literário.

Diante disso, acredita-se que se deve marcar aqui a ênfase em uma

operação: a hibridez. Ou seja: é necessário valorizar a noção de uma convivência

simultânea entre aspectos dos dois gêneros. A idéia de hibridez parece válida e

preciosa exatamente porque reconhece uma escrita em que os termos do realismo

social oriundos do jornalismo e das interpretações subjetivas provenientes da

literatura não se separam. Logo, a união da crônica com a reportagem, evidenciada

nesta monografia, se baseia no trabalho de apuração dos acontecimentos, ao

mesmo tempo em que convive com procedimentos próprios da representação

literária, ou seja, a arte. Sendo assim, a crônica-reportagem tem todas as qualidades

e competências necessárias para ser reconhecida como um subgênero do

jornalismo moderno.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reportear o que acontece no mundo tornou-se indispensável na sociedade da

informação. E quando se tem o privilégio de descobrir “mundos” paralelos, que estão

à mercê da realidade e ao mesmo tempo encontram-se trancafiados e esquecidos

na chamada “vida que ninguém vê”, distantes dos holofotes dos massantes eventos

tradicionais, o jornalismo atravessa as barreiras de suas técnicas lingüísticas e

transforma-se em algo superior, mágico e sublime. Foi neste contexto que se

constatou a possibilidade de misturar dois gêneros. A subjetividade da crônica aliada

à objetividade da reportagem, ou seja, a fusão de duas técnicas do Jornalismo

Literário destaca o que se pretendeu evidenciar como crônica-reportagem.

Para tanto, utilizou-se como objeto de referência para esta análise, o livro A

Vida que Ninguém Vê, da jornalista Eliane Brum. Nos textos selecionados foi

apurada a presença da crônica e da reportagem como gêneros passíveis de

hibridez. Também se levou em consideração, no estudo, as características

importadas da literatura e do jornalismo na obra da autora.

Primeiramente fez-se uma pesquisa de caráter bibliográfico sobre as técnicas

que envolvem literatura e jornalismo, na qual pôde se perceber a lacuna teórica que

há sobre a aliança entre a crônica e a reportagem. Depois, através do método

analítico-comparativo, analisou-se o estilo que a jornalista adotou utilizando a

crônica e a reportagem ao mesmo tempo e nos mesmos textos.

É neste contexto que a estrutura dos capítulos se justifica. O primeiro revelou

que literatura e jornalismo foram se entrelaçando com o desenvolvimento da

imprensa no Brasil e como a cultura de uma área aperfeiçoou a outra. No segundo

foi proposta uma fusão entre crônica e reportagem apresentando as especificidades

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de cada gênero. E o terceiro destinou-se à análise do objeto relacionando-o com as

teorias.

Contudo, constatou-se, a partir da fundamentação teórica, das entrevistas e,

sobretudo com a relação destas com a análise, que os textos da jornalista Eliane

Brum podem ser vistos como crônicas-reportagens porque a autora mescla

características dos dois gêneros em suas matérias.

Além da narrativa extensa e detalhada que aparece nas grandes reportagens,

percebeu-se que ela se utiliza do jogo estabelecido entre literatura e jornalismo para

que o componente noticioso, o registro do acontecimento na reportagem, se

amplifique e se enriqueça. Assim, o breve registro factual, o mero anúncio do

acontecido, parece ceder espaço para uma forma mais atraente de noticiar: através

da crônica. É, pois, como explicou Wolfe (2005, p. 28), admissível no jornalismo usar

qualquer recurso literário, dos diálogos ao fluxo de consciência, como se viu no texto

O gaúcho do cavalo-de-pau e valer-se do recurso do ponto de vista para instigar

tanto intelectual como emocionalmente o leitor, como em O álbum, por exemplo.

Portanto, revelou-se mais um indício de que existe uma conexão entre crônica

e reportagem, já que a crônica moderna configura-se como gênero híbrido entre os

dois grandes campos explorados nesta monografia. Algumas características

fundamentais que se verificou são: a lealdade ao cotidiano, pela vinculação temática

e analítica que estabelece ao que está ocorrendo; a captação das informações; e

também a crítica social que corresponde à interpretação do significado dos atos e

sentimentos do homem. Todas estas peculiaridades da crônica também são

evidenciadas na grande reportagem. O que mais uma vez remete à idéia de fusão

entre elas.

É o que Eliane Brum fez em seus textos. Misturou dois gêneros, duas

particularidades, duas especialidades. Talvez a autora não tenha pensado nesta

possibilidade de união ao redigir suas reportagens, mas neste trabalho seus textos

foram compreendidos como tal, pela simplicidade que marca a beleza e a

subjetividade da crônica se relacionando com a astúcia e a objetividade que a

reportagem precisa ter.

Verificou-se, ao longo da análise dos textos do livro, que a autora preferiu

utilizar a reportagem de ação para caracterizar a movimentação existente nos fatos,

iniciando sempre pelo fato mais encantador, para ir desencadeando os

acontecimentos aos poucos na exposição dos detalhes, de tal modo que o leitor se

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envolve com a história através da imaginação que ele mesmo cria das cenas

descritas. Ao mesmo tempo ela também optou pela reportagem documental por

valer-se das fontes como critério para o esclarecimento e fundamentação dos fatos.

Já as crônicas utilizadas por Eliane, predominaram as locais, pelo fato dos temas

serem urbanos e às crônicas conto, porque a autora narra os acontecimentos

provocando a atenção do leitor como se fosse uma novela. Brum se postou,

especialmente, como narradora onisciente intrusa por expor, através de sua

sensibilidade de repórter, seu juízo em relação aos acontecimentos e, além disso,

utilizou-se das personagens redondas, pois estas permanecem como elemento para

a averiguação da complexidade do ser humano. Também se percebeu o uso das

personagens anáforas para deixar claro ao leitor sobre a história de quem se está

contando, já que o leitor só consegue compreendê-las justamente pelo contexto em

que estão inseridas no texto.

Logo, as crônicas-reportagens de Eliane Brum podem estar inseridas, entre

os textos responsáveis pela consolidação dessa vertente jornalística, que recebeu o

nome de Jornalismo Literário e que hoje é identificada também como narrativa de

não-ficção, adaptada às narrativas da vida real por justamente conseguir transformar

suas reportagens inserindo técnicas literárias aos fatos, dando-lhes uma visão mais

humanitária. Aliás, foi por causa desse tesouro de palavras que se utilizou de

algumas citações do livro para inspirar e embelezar os títulos deste trabalho.

Pode-se inferir que o Jornalismo Literário está se aperfeiçoando. Adquirindo

maior autoconsciência. Mais que uma técnica narrativa, o Jornalismo Literário é

também um processo criativo, onde aparecem de modo conjunto a questão do real e

do sublime. São esses fatores que o projetam para o principal resultado à que se

chegou neste trabalho: que novos subgêneros do Jornalismo Literário estão em

expansão, como a crônica-reportagem, que existe, é praticada e ainda não é

amplamente abordada pela crítica e também pela teoria.

Portanto, o trabalho se justificou pelo interesse ao tema e justamente para

preencher uma lacuna existente na fundamentação teórica relacionada à crônica-

reportagem. E também para deixar uma prudente sugestão quanto às novas

classificações de livro-reportagem, uma vez que Edvaldo Pereira Lima disse que

novas variantes podem surgir. O livro A Vida que Ninguém Vê além de se enquadrar

no modelo de livro-reportagem-antologia, contudo também pode ser estudado como

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uma nova categoria de livro-reportagem, como por exemplo, livro-reportagem-

crônica, que teoricamente ainda não foi abordado.

Não se pode negar que o livro é um dos grandes desenvolvimentos de

investigação jornalística e inclusive é um instrumento perfeitamente adaptável ao

uso que se pretende dele, justamente pela profundidade das informações e pela

liberdade de estilo. A idéia de abrir mais espaço para os jornalistas que procuram

colocar em seus textos um pouco mais de arte na informação é positiva porque a

notícia deixa de ser fria e sensacionalista, e se transforma em crônica-reportagem,

fruto do bom e velho Jornalismo Literário. Buscar ferramentas alternativas, de

realizar um texto atraente, sem a fidelidade total às regras jornalísticas

padronizadas, é uma experiência valorativa; e o livro-reportagem, alicerçado em

gêneros híbridos, se consagra plenamente nestas tarefas.

Ratifica-se também que se pretende continuar estudando esta questão da

crônica-reportagem num futuro curso de mestrado.

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ANEXOS

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ANEXO A – Entrevista Eliane Brum Entrevista: Jornalista, repórter especial da Revista Época e autora do livro A Vida que Ninguém Vê, Eliane Brum Data: 27 de setembro de 2007 1) A crônica-reportagem pode ser um novo gênero do jornalismo literário? R: Quando começamos a publicar a coluna fixa, chamada A Vida Que Ninguém Vê, em 1999, acabamos chamando de crônica-reportagem essa proposta de escrever sobre o cotidiano e com uma liberdade de estilo que nem sempre era possível na cobertura diária. Acho que foi o diretor de Redação da Zero Hora, Marcelo Rech, que deu esse nome. Não sou uma estudiosa do assunto, não sei se esse nome já existia, se já era um gênero... Acredito que, no caso de A Vida Que Ninguém Vê, tenha sido mais uma forma de enfatizar que estávamos propondo algo diferente do que a construção de um conceito, mas teria de perguntar ao Marcelo, que foi o idealizador desse espaço. Antes de A Vida Que Ninguém Vê eu já escrevia muitas matérias desse mesmo jeito e depois dela eu continuei escrevendo, como escrevo até hoje. Mas é verdade que na coluna tinha mais espaço, inclusive interno, para ousar mais. Acho que cada história de A Vida Que Ninguém Vê é uma pequena reportagem. Não há invenção, ficção. São informações apuradas, cada uma delas deu muito trabalho na apuração dos detalhes. Apenas na história do álbum é que eu faço mais suposições, conto a história que eu vejo a cada página, mas vou fazendo as minhas reflexões, minhas interpretações sobre elas e sobre como o álbum foi montado. Fico de certa forma, tentando entrevistar as imagens. E tentando entender como e por que ele foi parar no lixo - e por que veio parar justamente na minha mão. Tem a da estátua do Conde de Porto Alegre, que também não fala, mas fiz pesquisas em arquivos, conto o que foi acontecendo com a estátua pelos fatos relatados por outros e a partir daí construo a “fala”, a “vida” da estátua. As demais histórias partem de pessoas - ou da história de animais contadas por pessoas. Acredito que o bom texto jornalístico depende do rigor e da profundidade da apuração, da quantidade de detalhes que se conseguiu apurar, para que o texto tenha cheiro, sabor, textura, além de quem disse o quê. Senão o leitor sente que está capenga, que há um excesso de adjetivos para encobrir a falta de substantivos. Pra mim, são boas reportagens com bons textos jornalísticos. Eu tenho certos problemas com classificações... Resumindo: pra mim é reportagem. 2) Em sua opinião, quais as principais características e peculiaridades da crônica-reportagem? R: Acho que já respondi, em parte. Na prática, é só uma desculpa para ter mais liberdade na forma de contar uma história real. E talvez a clareza com que o jornalista se coloca no texto. Toda notícia que se escreve é mediada, obviamente, pelo olha de quem escreve. No jornalismo mais tradicional, esse olhar é encoberto por uma suposta objetividade, mascarado por um jeito impessoal de escrever. Eu sempre procurei deixar claro que sou eu que escrevo, que apurei exaustivamente,

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mas sou uma pessoa que está refletindo sobre aquilo. Não confundir com opinião. É olhar. 3) O que João do Rio fazia no jornalismo no início do século já pode ser considerado crônica-reportagem. Quem mais você acha que faz isso hoje no jornalismo brasileiro? R: Acho que deve ter muita gente que eu não conheço por esse Brasil afora. O Ruy Castro, eu acho. O Fred Melo Paiva, no caderno Aliás, do Estadão de domingo, às vezes conta umas histórias nesse estilo. O Xico Sá, antes. 4) A linguagem literária pode alterar a qualidade da informação transmitida num texto de jornal? R: O que altera qualidade de informação é apuração ruim, apuração preguiçosa. Eu não sei exatamente o que chamam de linguagem literária, pra mim existe texto bom e texto ruim, no jornalismo ou na literatura. Mas contar a história do melhor jeito, respeitando radicalmente a apuração, os fatos, é obrigação. Tem de pegar o leitor pelo pescoço na primeira frase. Isso não significa inventar nada. Pelo contrário. Em geral, texto ruim é o que tem informação de má qualidade. Não há texto que salve uma apuração capenga. 5) Em que medida o embelezamento literário do texto jornalístico muda para melhor a qualidade do que esta sendo veiculado? R: Acho que já respondi. Eu fico muito orgulhosa quando me classificam como jornalismo literário porque, em geral, estão me elogiando. E também porque estou em ótima companhia na história. Mas essa é uma classificação externa a mim. Eu não acho que embelezo nada, só tento fazer bem o meu trabalho. E meu trabalho é dar ao leitor o melhor texto possível com a melhor apuração. Algumas pessoas usam esse jargão - literário - para desqualificar. O “embelezamento” colocado pela sua pergunta conteria, nesse caso, uma idéia capciosa: o sentido de “invenção”, “embelezamento da realidade”, “tornar a realidade melhor do que é”. Texto bom - ou o que chamam de jornalismo literário - é melhor porque ele dá mais informação ao leitor. Para se escrever um texto assim é preciso mais do que uma sucessão de aspas. É preciso ter apurado gestos, o cheiro do lugar, as ranhuras dos móveis, os sons que não são palavras, os não-ditos. É preciso trabalhar muito, suar, preencher muitos bloquinhos, fazer a apuração pessoalmente. Então, é bom porque dá uma informação mais abrangente, mais complexa e completa do mundo. Apenas um exemplo que gosto de usar. Na história de “Enterro de Pobre”, eu conto que o sabiá deixou de cantar. Eu não inventei um sabiá. Tinha um sabiá. E ele parou de cantar naquele momento. Eu prestei atenção nos detalhes, anotei no meu bloquinho: “o sabiá parou de cantar na hora que...”. Se eu fosse fazer ficção, jamais usaria um sabiá, porque é muito clichê. 6) Como o jornalista pode saber o que se passa no intimo das personagens de seus textos?

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R: Perguntando pra elas, pra começar. E observando muito. Ele pode chegar perto, mas tem de deixar claro que essa é a sua percepção da intimidade de alguém a partir de fatos, de falas, de observações. Se fôssemos escrever sobre nós mesmos chegaríamos apenas perto da verdade, chegaríamos apenas a uma versão da nossa verdade. Não há verdade absoluta, obviamente. Às vezes um entrevistado te conta coisas incríveis e às vezes não é a verdade nem toda a verdade. Às vezes ele nem sabe que é quase uma mentira. Quanto mais claro isso é explicitado, esse processo é explicitado, mais honesto estamos sendo com o leitor. Eu procuro deixar claro pela minha escrita que esse é o meu olhar sobre tal pessoa, sobre tal acontecimento. Não um olhar descuidado ou preguiçoso. Um olhar de quem pesquisou muito, investigou muito, apurou muito, mas que é apenas uma pessoa humana tentando escrever sobre outro ser humano, sobre acontecimentos humanos. Ou seja, uma pessoa limitada, falha, incompleta. 7) O que representa para você o ato de contar histórias? R: É como eu dou sentido a minha vida. O vazio da vida, a certeza da morte, é tão terrível pra mim que só vejo essa forma de preencher meu horror. Contando histórias de outros, tecendo essa escrita de outras vidas, consigo não mergulhar no caos da minha própria vida.

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ANEXO B – Entrevista Moacyr Scliar Entrevista: Dr. em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, colunista dos Jornais Zero Hora e Folha de São Paulo e Membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar Data: 26 de setembro de 2007 1) A crônica-reportagem pode ser um novo gênero do jornalismo literário? R: não sei se é um gênero novo, porque tem elementos do “New Journalism” americano, no qual, à semelhança do que acontece na crônica, a subjetividade no texto era admitida e até cultivada. Mas, de qualquer modo, é inovador. 2) Em sua opinião, quais as principais características e peculiaridades da crônica-reportagem? R: É a mistura da objetividade do repórter com a subjetividade do cronista. 3) O que João do Rio fazia no jornalismo no início do século já pode ser considerado crônica-reportagem. Quem mais você acha que faz isso hoje no jornalismo brasileiro? R: Sim, João do Rio pode ser um precursor do gênero. Eu não saberia citar outros nomes. 4) O que você pensa sobre o estilo da jornalista brasileira Eliane Brum? Os textos dela podem ser reconhecidos como crônica-reportagem? R: Acho a Eliane uma talentosa jornalista e creio que sim, que seus textos misturam crônica e reportagem.

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ANEXO C – Entrevista Moisés Mendes Entrevista: Jornalista e repórter do Jornal Zero Hora, Moisés Mendes Data: 2 de outubro de 2007 1) A crônica-reportagem pode ser um novo gênero do jornalismo literário? R: Não é novo. Tem todos os tantas vezes citados e que tu deves ter escutado em aula. Se fores olhar nos arquivos de jornais do Museu Hipólito da Costa, vais encontrar preciosidades lá, de coisas nossas, do Estado. Esse tal de jornalismo literário é pré anos 40 e 50. E só para citar de novo o exemplo mais citado no Brasil, A milésima segunda noite da Avenida Paulista, do Joel Silveira, é dos anos 40. Podem dizer: mas é uma reportagem do jornalismo literário, não é uma ''crônica''. Por que não? É uma crônica, no sentido de que informa e reflete sobre o que revela. Ou a crônica é menor e traz mais a voz do autor do que dos personagens? Na verdade, vai e volta e voltamos a falar de jornalismo literário, talvez até em conseqüência da transição do atual jornalismo para algo que não se sabe o que vai ser agora com a mídia on-line. Nunca se deixou de fazer o que se chama de jornalismo literário no Brasil e no mundo, tendo todas as referências que tu já deves ter estudado principalmente dos norte-americanos. Tem uma nova onda aí, parece que precisa ser investigada. Como não sou teórico de comunicação, não sei o que dizer além do que já disse. 2) Em sua opinião, quais as principais características e peculiaridades da crônica-reportagem? R: Não sei mesmo. Se pegares o exemplo da Eliane Brum, citada numa pergunta, e de tantos outros, alguém pode dizer que há uma característica fundamental. Exemplo: a Eliane escrevia A vida que ninguém vê, em ZH, contando o que viu e ouviu sem dar, formalmente, a fala dos personagens. A voz dos personagens estava dentro do texto, sem citações entre aspas ou travessões. Seria assim uma crônica-reportagem clássica? Não sei. 3) O que João do Rio fazia no jornalismo no início do século já pode ser considerado crônica-reportagem. Quem mais você acha que faz isso hoje no jornalismo brasileiro? R: Está consagrado que sim. É um formato antigo, do início do século passado. Há relatos realistas aqui mesmo do Rio Grande do Sul, do início da ocupação, que são extremamente literários. Uma observação minha: acho que muitas vezes enquadra-se um texto em jornalismo literário porque tem lirismo, é poético. Mas e o jornalismo mais naturalista, digamos assim, não é literário? Os Sertões não é literário? Aí tu pegas João do Rio e admite que é crônica-reportagem porque trata de costumes, do cotidiano. E elimina outros porque são mais realistas ou naturalistas? Quem faz reportagens com síntese, economia de texto e informação direta, inspirado em Hemingway, por exemplo, não faz jornalismo literário? Tem uma figura esquecida da

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literatura brasileira, o João Antônio, que fazia ficção como reportagem. Ele era originalmente jornalista. Pergunta para o teu professor sobre ele. João Antônio invertia tudo. Escrevia ficção com alguns cacoetes de jornalismo. E aí entra sociologia, antropologia e etc., que estão presentes em tudo. 4) O que você pensa sobre o estilo da jornalista brasileira Eliane Brum? Os textos dela podem ser reconhecidos como crônica-reportagem? R: A Eliane é a melhor repórter da geração dela no Brasil. E descobriu um jeito de contar histórias que é único. Ela é quem melhor faz hoje o que se chama de crônica-reportagem. Mas só consegue isso porque leu muito. Quem não leu Nelson Rodrigues, Joel Silveira, Euclides da Cunha ou os sempre citados Capote e Joseph Mitchell não vai conseguir nunca, só pra ficar em alguns exemplos sempre lembrados.

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ANEXO D – Entrevista Edvaldo Pereira Lima Entrevista: Jornalista e Dr. em Ciências da Comunicação, Edvaldo Pereira Lima Data: 16 de setembro de 2007 Dr. Edvaldo, gostaria de esclarecer uma dúvida: se existe ou pode haver uma classificação chamada crônica-reportagem na linha do livro-reportagem, ou até mesmo se um novo conceito possa surgir da união dessas duas ferramentas? R: Carolina desconheço a existência de uma classificação assim. Mas certamente a Eliane a criou, na prática, com alguns de seus textos no livro.