Upload
lamcong
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Um livro mu(n)do: o entrecruzamento de artes e mídias em Pathé-Baby, de
António Alcântara Machado
Lucas da Cunha ZAMBERLAN1
Deivis Jhones GARLET2
Cinematógrafo: nova maneira de escrever, logo de sentir.
Robert Bresson
Resumo
Este trabalho objetiva especificar o fecundo intercâmbio entre diferentes artes e mídias
no livro Pathé-Baby, de António Alcântara Machado. Para tanto, dividimos
metodologicamente o artigo em quatro partes: a) introdução, que apresenta a proposta
de análise; b) uma seção na qual investigamos a natureza do trânsito intermidiático no
livro; c) um olhar sobre a linguagem cinematográfica e a influência do aprimoramento
de técnicas comunicacionais da época na obra; d) por fim, as considerações finais e
sugestões para estudos futuros. Como aporte teórico, buscamos em Clüver e Rajevsky a
sedimentação dos postulados acerca da intermidialidade. Sobre a relação entre literatura
e cinema, lançamos mão, basicamente, de autores como Deleuze, Süssekind, Amiel e
Vieira. Além disso, consideramos a fortuna crítica da obra, nos apontamentos de Gomes
(2008). A partir dos resultados obtidos, conseguimos compreender, em parte, a
complexa imbricação de elementos intermidiáticos em Pathé-Baby, e como esse
produto sígnico mimetiza certos procedimentos operacionais do início do século XX.
Palavras-chave: Intermidialidade; Pathé-Baby; António Alcântara Machado.
Abstract
1 Professor Substituto do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. E-mail:
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em letras pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM). Email: [email protected].
This work aims at specifying the rich exchange between different arts and media in the
book Pathé-Baby, by Antônio Alcantara Machado. Therefore, the article is
methodologically divided into four parts: a) introduction, which presents the proposal
analysis; b) a section that investigates the nature of intermedia traffic in the book; c) a
look at the cinematic language and the influence of improvement of communication
techniques of the time at work; d) finally, the conclusions and suggestions for future
studies. As a theoretical framework, one have searched in Clüver and Rajevsky
consolidation of assumptions about intermediality. On the relationship between
literature and cinema, one has basically used authors such as Deleuze, Süssekind,
Amiel and Vieira. In addition, one considers critical fortune of the work, on the notes of
Gomes (2008). From the results, one can partially understand the complex imbrication
of intermedia elements Pathé-Baby, and how that signic product mimics certain
operating procedures of the early twentieth century.
Keywords: Intermidiality; Pathé-Baby; António Alcântara Machado.
Introdução
Pathé-Baby é um livro publicado em 1926 pelo escritor e jornalista António de
Alcântara Machado. O título da obra constitui-se em uma alusão à câmera
cinematográfica de 9,5mm produzida pela Pathé Brothers Company, empresa de
máquinas e produção cinematográfica, além de produtora fonográfica de maior projeção
no cenário mundial no final do século XIX e início do século XX. Tecido com recursos
estéticos que enfatizam um diálogo fecundo entre texto, imagem e som, o livro consiste
na apresentação das impressões individuais do escritor acerca do universo cosmopolita
europeu. Essa visão subjetiva engendra-se, primeiramente, pela sua sensibilidade de
artista e representa-se por uma técnica narrativa cinematográfica que se formata e se
molda à projeção visual de uma câmera Pathé-Baby.
Considerando esse conjunto de elementos audiovisuais circunscritos em um
produto sígnico complexo – o texto literário em questão – o presente trabalho busca
analisar os mecanismos estéticos utilizados pelo autor e como ele os organiza no corpo
da obra, com a intenção de verificar a natureza híbrida dessa narrativa, aproximando-a,
nos parâmetros dos estudos comparados, dos filmes mudos da década de 1920.
1. Ponto de convergência entre mídias: o cinema com cheiro
Maria Eugênia Boaventura (1997) revela, na apresentação de Memórias
sentimentais de João Miramar, que a obra de Oswald de Andrade havia sido concebida,
originalmente, como um relato de viagens de uma longa incursão do escritor à Europa,
no ano de 1917. O tempo passou e o livro foi remodelado, sendo publicado apenas na
década posterior, em 1924, consagrando-se, assim, como o primeiro romance brasileiro
verdadeiramente modernista (CAMPOS, 1997, p.5).
Entretanto, a ideia da elaboração de um objeto artístico que evidenciasse uma
visão verde-amarela de uma Europa movimentada por grandes transformações culturais
parecia permanecer na intelectualidade dos escritores modernistas brasileiros. Afinal,
dois anos depois, em 1926, o escritor paulistano António Alcântara Machado estreou na
literatura com Pathé-Baby, uma obra singular que apresenta particularidades discursivas
e visuais que remetem, concomitantemente, à reportagem, à crônica de viagem, ao
romance, ao cinema mudo, ao cartaz de propaganda ou, como afirma o próprio Oswald
de Andrade, na ouverture da obra, ao “cinema com cheiro” (ANDRADE, 2002, p.12).
A riqueza de componentes estéticos e extraestéticos, amalgamados ao arcabouço
da obra, possibilita uma abordagem teórica de voga intermidiática, uma vez que a
unicidade de Pathé-Baby só pode ser apreendida a partir do casamento entre os
diferentes recursos que se organizam como partes de uma engrenagem narrativa
formatada pela multiplicidade. Tal possibilidade de análise encontra-se salvaguardada
pela perspectiva de Clüver, pois,
Minhas observações sobre intertextualidade e intermidialidade devem
ter indicado, entre outras coisas, que um texto isolado – seja lá em que
mídia ou sistema sígnico – pode representar um rico objeto de
pesquisa para os Estudos Interartes, da mesma forma que um texto
literário isolado, considerando suas implicações intertextuais, já se
oferece ao comparativista, frequentemente, como objeto de pesquisa
promissor (CLÜVER, 2006, p.16).
Seguindo a visão comparativista de Clüver, o livro de Alcântara Machado
aponta para a manipulação de diferentes estratégias amplamente utilizadas por veículos
de comunicação artística que se mostram de forma ora mais, ora menos evidentes. O
intuito, nessa primeira seção do artigo, é debater justamente a manifestação e fusão
entre as artes/mídias – ou seja, intermídias – ressaltando, notadamente, seus aspectos
audiovisuais.
O primeiro contato interacional que ocorre entre o livro e a obra antecipa, como
uma síntese, o caráter intersemiótico da obra. A capa de Pathé-Baby, em arte de 1926 e
reproduzida em edições fac-símiles posteriores, entrelaça intrinsecamente literatura,
cinema, pintura e música.
Em uma primeira análise, o frontispício, em preto-e-branco (curiosamente, as
iniciais de Pathé-Baby), comunica o nome do escritor, o título do livro e uma estampa
xilogravada com assinatura de Antônio Paim Vieira, artista também vinculado ao
primeiro grupo dos modernistas brasileiros. Sendo assim, nessa soma de elementos,
percebe-se que António Alcântara Machado parece interessado não apenas em fornecer
essas informações essenciais contidas na apresentação da obra, mas também em arranjar
esses dados a fim de relacionar diferentes tipos de arte em: a) uma imagem que contém
palavras; e b) um discurso verbal que traz consigo uma imagem.
O nome do escritor surge, em letras maiúsculas, como informação primeira.
Entre “António de Alcântara Machado” e o nome do livro, a palavra “apresenta”
direciona um entendimento da obra como arte cinematográfica, haja vista que essa
organização (nome do autor + “apresenta” + título) remonta ao começo de uma
narrativa fílmica, o que é reforçado pelo acompanhamento sonoro sugerido pela
orquestra de câmara, desenhada por Paim Vieira. Sob essa ótica, o autor modernista
atuaria como escritor/produtor de um livro/filme. Ademais, outra interpretação se faz
necessária. O retângulo que emoldura as palavras pode ser visualizado como tela de
reprodução de imagens. Dessa forma, as palavras lidas pelo leitor seriam projetadas
cinematograficamente, enquanto que os músicos representariam os responsáveis pelo
andamento sonoro do filme/livro in loco, dividindo o mesmo “espaço” que o espectador.
Nas páginas subsequentes de Pathé-Baby, os capítulos da narrativa se dividem
nas cidades retratadas pelo artista. Com a intenção de apresentá-los, Alcântara Machado
mimetiza um cartaz de um espetáculo. Embora o “Programa” estabeleça a estetização de
um gênero textual que apela mais pelo seu aspecto comercial do que propriamente
artístico (mas sem desconsiderar essas manifestações na esfera das artes antes mesmo de
Pathé-Baby, vide o valor artístico de um Toulouse-Lautrec), os estudos intermidiáticos
estão, cada vez mais, alargando seu escopo. Desenvolve-se, assim, uma preocupação
com a relevância valorativa dessas formas comunicativas:
Intermidialidade no sentido mais restrito de combinação de mídias,
que abrange fenômenos como ópera, filme, teatro, performance,
manuscritos com iluminuras, instalações em computador ou de arte
sonora, quadrinhos etc.; usando-se outra terminologia, esses mesmos
fenômenos podem ser chamados de configurações multimídias,
mixmídias e intermídias. A qualidade intermidiática dessa categoria é
determinada pela constelação midiática que constitui um determinado
produto de mídia, isto é, o resultado ou o próprio processo de
combinar pelo menos duas mídias convencionalmente distintas ou,
mais exatamente, duas formas midiáticas de articulação
(RAJEWSKY, 2012, p. 9).
A articulação a que Rajewsky se refere destaca ainda mais a pluralidade estética
de Pathé-Baby. No cartaz/sumário da obra, encontram-se elementos intercambiantes
que abrem um número ilimitado de vias analíticas pelas quais a intermidialidade assume
um papel fundamental.
O “cartaz” reproduz os programas que comumente eram entregues nas sessões
de cinema na época, com a intenção de orientar o espectador. Além das vinte e três
sessões, subdivididas em acordo com cada cidade, anuncia-se a ouverture de Oswald de
Andrade. Esse termo em francês aponta para um gênero musical, de caráter
instrumental, executado na apresentação de um filme, com o propósito de criar uma
ambientação inicial para a obra.
As sessões, todas elas numeradas, são representadas com fontes e tamanhos
diferentes, acusando a diversidade visual da página. Gomes (2008) observa, em uma
apreciação crítica da obra, que além da visualidade, há um estreitamento dessas sessões
com a Sétima Arte: “Nesse “programa”, é de notar-se a exploração dos recursos gráficos
que lança mão de vários tipos de letras e também da distribuição dos títulos de cada
capítulo/fita pelo espaço da folha” (GOMES, 2008, p.100 – grifo do autor).
Alguns capítulos/fita fazem alusão a procedimentos de projeção de filmes, como
a cidade de Paris, apresentada em “Super especial película de grande metragem” ou
Sevilha, “Super-Produção em 5 partes, com astros e estrelas”. Essa última, ao
propagandear atores para a película, também enriquece o debate intermidiático. Os
“astros” e “estrelas” aos quais o cartaz se refere são atores/personagens de um filme
árabe, rodado pela Paramount Pictures com artistas norte-americanos. O
narrador/diretor os descreve com seus cigarros Ariston, mas não esquece de acompanhar
o trabalho cinematográfico que é realizado pelos profissionais, acarretando em um
processo metalinguístico que se bifurca em duas veredas: um filme que mostra a
realização de um outro filme; e uma narrativa que conta a ação de personagens
representando personagens criadas por um roteiro de cinema:
Nos jardins verdes do Alcázar, a Paramount Pictures fabrica uma
película árabe. Nas janelas do Pabellón de Carlos V sultanas de pele
loira e olheiras azúes fumam Ariston.
Entre as colunas de mármore branco, o diretor toma chá e morde o
cachimbo. Albornozes. Sandálias. Punhais. Véus.
Para duas objectivas, a favorita trai o sultão de barbaças com o jovem
cheik. Mas o espião entra.
O diretor berra:
- No! (MACHADO, 2002, p. 190-191).
Outrossim, chama a atenção, pelos próprios recursos do gênero, as últimas três
linhas da página. Nelas, constam: a) o preço das sessões; b) uma nota restritiva,
suspendendo as entradas de favor; e c) a propaganda do livro de contos Brás, Bexiga e
Barra Funda, obra lançada no ano posterior, que consagrou, definitivamente, o escritor
modernista como o cronista da cidade de São Paulo par excellence. Apesar de esses
elementos estarem em profunda harmonia com os cartazes da época, eles também
oferecem uma pequena demonstração de dois ingredientes estético-culturais
amplamente valorizados pelos primeiros modernistas brasileiros: a mescla de gêneros
(panfleto/propaganda/sumário) e o humor crítico (incluindo o imposto na entrada e
cancelando a entrada sem pagamento).
Além da capa e do sumário, as xilogravuras de Antônio Paim Vieira, já citadas
anteriormente, cumprem uma função intermidiática. Elas funcionam, não só na capa,
mas também ao longo da obra, como um ponto de encontro interartes, aproximando
literatura, pintura e cinema.
A cada capítulo/fita/sessão, encontram-se os intertítulos que demonstram o nome
da cidade a ser projetada pela narrativa. A maneira de construção técnica apreende, mais
uma vez, procedimentos comuns na feitura de películas, como o cutting e o editing,
Em inglês, por exemplo, chama-se cutting a etapa material que
consiste em cortar, e depois colar os pedaços de película (ou, mais
recentemente, em manipular os cursores dos computadores para
montar virtualmente, escolhendo os pontos de corte), é editing, à
concepção geral do alinhamento, à ordenação narrativa, à escolha da
forma global da montagem (AMIEL, 2011, p. 8).
A montagem apresenta, após o nome da cidade, uma estampa. Na parte de cima,
reproduzindo uma tela de cinema, um desenho com características culturais da cidade
representada e, abaixo, novamente a orquestra de câmara que conduz, ritmicamente, a
sonoplastia do livro/filme. Os sons são sugeridos pela presença/ausência dos músicos
nas gravuras. No capítulo Londres, por exemplo, todos os instrumentistas estão
presentes, enquanto que em Milão e Veneza, o violinista desaparece e a pianista
descansa languidamente. Já em Córdoba e Barcelona, só o Violoncelista trabalha.
Dessa maneira, fica explicitada a polivalência dessas estampas inserida no corpo do
Pathé-Baby: da mesma forma que a xilogravura se constitui, per se, uma materialização
da arte pictórica, o seu conteúdo firma laços com a música, mesmo que apenas por
insinuação sensória.
Com isso, o fluxo intermidiático em Pathé-Baby revela-se constante e intenso,
cheio de novidades. Analisar as particularidades de uma obra com essa riqueza estética
torna-se necessário, pois ela possibilita, pela primazia da palavra, uma discussão teórica
de extrema relevância no que concerne aos estudos sobre a literatura, outras artes e
mídias.
2. Linguagem cinematográfica: a mimetização estética das técnicas midiáticas
Pathé-Baby aproxima-se do cinema mudo, principalmente, pelo seu modus
operandi. As imagens xilogravadas, o acompanhamento sonoro, os intertítulos e a
linguagem utilizada pelo autor são imbricadas de modo a fazer com que o leitor se sinta
diante de um filme dos anos 1920. Basta folhear as primeiras páginas para se sentir
inserido na atmosfera das principais cidades europeias. A passagem de uma para outra
ocorre de forma rápida e assim, de chofre, completa-se uma viagem que contempla
vinte e três centros urbanos marcados por profundas matizes identitárias e culturais.
Para Hauser (1995), o cinema, assim como as outras grandes inovações datadas
do final do século XIX e início do século XX reconfiguram a noção de tempo e espaço e
despertam, consequentemente, um fascínio da consciência do tempo presente. Essa
realização dos eventos simultâneos que se multiplicam em tempo real cria uma nova
concepção de tempo que (des)norteia o sujeito e forja as suas relações interpessoais. Na
obra de Alcântara Machado essa nova relação se mostra evidente. Em uma velocidade
ímpar, o leitor/espectador interage com lugares distantes e variados, quase que de forma
simultânea. A despeito de a literatura tradicional permitir esses passeios imaginários
desencadeados pelo discurso, a maneira cinematográfica pela qual Pathé-Baby realiza o
itinerário evidencia a acuidade desse fenômeno característico de uma nova apreensão do
mundo.
Estendendo essa questão espaço-temporal para o âmbito da estética, Pellegrini
afirma que
As profundas transformações efetivadas nos modos de produção e
reprodução cultural, desde a invenção da fotografia e do cinema – que
alteraram, antes de tudo, as maneiras pelas quais se olha e se percebe
o mundo -, estão impressas no texto literário. Tratando-se do texto
ficcional, é a observação das modificações nas noções de tempo,
espaço, personagem e narrador, estruturantes básicos da forma
narrativa, que ajuda a entender um pouco melhor a qualidade e a
espessura dessas modificações. (PELLEGRINI, 2003, p.16).
Além do tempo e do espaço, outra instância narrativa sofre significativa
influência pelos inovadores métodos de produção e reprodução cultural: o narrador. No
capítulo Barcelona, na representação de uma tourada, percebe-se como esse aspecto
formal se articula:
O touro abaixa a cabeça deante do homem azul que caminha. E pula
como um autômato. A capa resvala sobre os chifres.
- Olé!
Vai e vem deante do focinho espumante.
- Olé!
O toucador é um pião roçando a nuca peluda.
- Olé!
O delírio levante vinte e cinco mil entusiasmos. As palmas sacodem o
anfiteatro ondeante (MACHADO, 2002, p.180-181).
O narrador preocupa-se, nessa passagem como em muitas outras, em descrever
um cenário, recrutando os sentidos do narrador. Embora o autor adote um estilo
sincopado, ele não despreza os componentes sinestésicos. A visão é acionada pela ação
plástica do touro, do homem que o enfrenta, da multidão entusiasmada e também pelo
jogo cromático entre o azul do toureiro com o vermelho da sua capa; o tato é despertado
pelos verbos que sugerem movimentos suaves, como o resvalar da capa e o roçar do
toucador; já a audição revela-se nos gritos de olé e nas palmas. Necessário ressaltar, em
adição, que esse pequeno trecho destaca o uso de uma metáfora e uma símile, recursos
que empregam expressividade ao texto literário.
A linguagem cinematográfica é, em verdade, uma técnica narrativa que mimetiza
os procedimentos de captação da realidade (VIEIRA, 2007, p.20-21). O narrador, sob
este ponto de vista, procura registrar cenários e ações com ênfase na visibilidade do
espaço, contudo sem restringir pequenas intervenções de caráter subjetivo – e por vezes
poéticas – que torna essa instância narrativa, com matizes de câmera de cinema, ainda
mais complexa e versátil. Essa técnica, como afirma Gomes,
fornecerá processos de construção atrelados a uma linguagem, a um
estilo, que lançará mão do corte, da montagem, do close de planos de
enquadramento, traços tomados ao cinema e sua linguagem, que são
associados a uma linguagem metonímica (às vezes de feição cubista),
elíptica, sem ligaduras, em processos de síntese proporcionados pela
câmara eye, que associa a visualidade a uma sintaxe que não vem do
ordenamento lógico do discurso, mas da montagem (GOMES, 2008,
p.97-98).
A quebra da sintaxe lógica do discurso, como observa o teórico, registra-se em
frases extremamente sintéticas – por vezes com apenas uma palavra – que, por uma
espécie de montagem narrativa, são conectadas, oferecendo um sentido temporal ao
movimento. Alfredo Bosi vê, nessa sequencialidade cronológica, a natureza mais
genuína do discurso verbal, pois: A expressão verbal em si mesma, ainda quando
reduzida a blocos nominais, atômicos, é serialidade (BOSI, 2000, p.24).
Deleuze (1985) enriquece esse debate sobre o tempo, e o insere na seara do
cinema, ao aprofundar-se nas reflexões do filósofo Henry Bergson, organizando uma
intrincada categorização das imagens cinematográficas. Para ele, a imagem e o
movimento não estão isolados na narrativa fílmica. Elas se coordenam a partir da
ligação íntima que ambas mantêm com o tempo, compondo uma cena marcada pela
integralidade.
No fragmento Paris, por exemplo, é possível identificar adequadamente essas
imagens, evocadas por palavras, que se unem com o intuito de descrever o tumulto
frenético da Place de l’Étoile. O episódio narrado, por sua vez, como afirma Deleuze
(1985), apresenta uma ação onde a imagem e o movimento se fundem, inscrevendo tais
conceitos em um tempo específico, definido por esse discurso preocupado em registrar
todos os detalhes da paisagem dinâmica:
Place de l’Étoile. Em torno do Arco do Triunfo magotes de
automóveis giram. As avenidas são doze bocas de asfalto que comem
gente e veículos, vomitam gente e veículos. Insaciáveis.
Ruído. Pó. E gente. Muita gente. O soldado apita, levanta o seu
bastão, e a circulação para para que se possam passar, tranquilamente,
a ama e seu carrinho(...) Paris que passa (MACHADO, 2002, p. 49).
Os “blocos atômicos” aos quais Bosi faz referência, que nada mais são que a
potência de significação da(s) palavra(s), interligados pela linguagem cinematográfica,
brotam em toda a materialidade de Pathé-Baby. Em Lisboa, encontra-se, talvez, o
capítulo em que essa estética, pautada pela plasticidade e deslocamento, se exibe com
mais nitidez: Lama no Tejo. Manhã horrível de céu cinzento. Chuvinha fina que cai.
Frio. Vento. A lancha pula nas vagas; desce, sobe, desce, sobe. Uma bola de borracha
saltando (MACHADO, 2002, p.29).
Flora Süssekind (2006) entende o fenômeno da estetização da técnica
cinematográfica como uma ocorrência histórica e cultural característica do contexto de
produção da obra. Segundo a autora, a literatura transpôs, para o campo das artes, as
mudanças técnicas trazidas pelos novos meios de comunicação e interação entre as
pessoas. Com isso, o telégrafo, o fonógrafo a fotografia, bem como o automóvel e o
avião constituíram o sujeito que João do Rio, em uma de suas crônicas, datada do ano
de 1909, nomeou de “homem cinematógrafo”. O escritor Mário de Andrade, em
harmonia à constatação de Süssekind e Rio, também assinala essa influência do período
no mundo das artes: “Rapidez e síntese. Congregam-se intimamente. Querem alguns
filiar a rapidez do poeta modernista à própria velocidade da vida hodierna. Está certo”
(ANDRADE, 2010, p.64).
Dessa forma, pelo conjunto dos elementos levantados, constatamos, claramente,
que a linguagem cinematográfica não só integra o arcabouço de Pathé-baby como forma
discursiva que imita os procedimentos técnicos do cinema, mas também se manifesta
como fenômeno cultural que estabelece vínculos análogos aos mecanismos processuais
de outras máquinas e mídias. Elas modificaram a maneira de viver e fizeram o ser
humano enxergar a realidade com olhos de criança.
Considerações finais
A partir dos aspectos que foram trazidos à baila nas duas partes do artigo,
principalmente no que tange ao aporte teórico utilizado, o que fica explicitado como
fundamento incontestável de Pathé-Baby é a exuberância de elementos estéticos, de
cunhos diversos, dispostos na obra. Pela análise que construímos, pelo viés
intermidiático, a literatura, o cinema, a pintura e a música se interligam de forma única,
a conclusão mais evidente, entre muitas possíveis, é a manipulação, por parte do autor,
de artes e mídias, que concorrem com o fito de produzir um produto sígnico híbrido,
irrepetível, que se filia com as novidades mais notáveis de sua época.
Em Pathé-Baby, António Alcântara Machado firma-se, acima de tudo, como
escritor modernista, contemporâneo na acepção mais aguda do termo. Esse estudo é
apenas uma visão da obra. Outras muitas podem e devem ser pensadas. Dentro da
discussão intermidiática, por exemplo, é permitido: traçar paralelos comparativos entre
os mecanismos da obra e os procedimentos técnicos utilizados em determinados filmes
mudos; estudar os cartazes de propaganda da câmera Pathé-Baby e relacioná-los com as
artes visuais encontradas no livro; identificar as diferenças culturais entre as cidades
descritas no livro, confrontando com dados empíricos desses locais naquele período.
Enfim, as possibilidades de abordagens são inesgotáveis. Elas multiplicam-se em
conformidade com a beleza estética dessa obra imprescindível do modernismo
brasileiro.
REFERÊNCIAS
AMIEL, Vincent. Estética da montagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2011.
ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2010.
ANDRADE, Oswald. Carta-oceano. In: MACHADO, António Alcántara. Pathé-Baby:
Edição Fac-Similar comemorativa dos 80 anos da Semana de Arte Moderna (1922-
2002). Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2002.
BOAVENTURA, Maria Eugênia. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais
de João Miramar. São Paulo: Editora Globo, 1997.
BOSI, Alfredo. Imagem, discurso. In: O ser e o tempo da poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias
sentimentais de João Miramar. São Paulo: Editora Globo, 1997.
CLÜVER, Clauss. Inter textus/ Inter artes/ Inter media. Aletria, Belo Horizonte, n. 1,
v.14, p. 1-32, 2006.
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
GOMES, Renato Cordeiro. Dimensões do instante: mídia, narrativas híbridas e
experiência urbana. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 5, n. 12, p.131 –
148, 2008.
MACHADO, António de Alcântara. Pathé-Baby: Edição Fac-Similar comemorativa
dos 80 anos da Semana de Arte Moderna (1922-2002). Belo Horizonte/Rio de Janeiro:
Livraria Garnier, 2002.
PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. IN:
_______. PELLEGRINI, Tânia (org) et al. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo:
Editora SENAC/Itaú Cultura, 2003.
RAJEWSKY, Irina O. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”: uma
perspectiva literária sobre a intermidialidade. In: DINIZ, Thaïs Flores Nogueira (Org.).
Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012.
RIO, João do. Cinematographo. Porto: Chardon/Lello & Irmãos, 2009.
SUSSEKIND, Flora. O cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
VIEIRA, André Soares. Escrituras do visual: o cinema no romance. Santa Maria:
Editora da Universidade federal de Santa Maria, 2007.