Um olhar sobre o perspectivismo de Nietzsche e o pensamento trágico

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    Revista Trgica - 2 semestre de 2008 - n2 pp.124-142 ISSN 1982-5870

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    Um olhar sobre o perspectivismo de Nietzsche e o pensamento trgico

    Imaculada Conceio Manhes MarinsMestre e Doutora em Filosofia pelo IFCS/UFRJ

    Arte-educadora - SME-RJ

    ... as maneiras de encarar uma mesma coisa so infinitas...

    E so essas diversas estradas que podero nos abrir novas conseqncias.

    B. PASCAL

    O sentido geral da expresso perspectivismo como um modo de se conceber

    criticamente o valor e os domnios do conhecimento j est presente nos primeiros

    escritos de Nietzsche, especialmente nosfragmentos pstumosde 1872/1875 (que deveriam

    constituir O Livro do Filsofo) e no ensaio Verdade e mentira no sentido extra-moral

    (1873). Porm, s a partir da dcada de 1880 o termo aparece explicitamente formulado(sobretudo emA Gaia Cincia, p.ex.: 354 e 374). Em vrios fragmentos dos anos 80, em

    especial os do final de sua vida lcidaNietzsche enlouqueceu em janeiro de 1889 , este

    seu pensamento abordado com grande nfase.

    Perspectiva, pela definio clssica em artes visuais, a constituio (ou

    representao) da imagem de um objeto ou de uma cena em funo do ponto de vista do

    observador. A perspectiva clssica tem por caracterstica um nico focoponto de fuga a

    centralizador do olhar, que traa um horizonte de possibilidades, condicionando umcampo perspectivo. No transcorrer da histria das artes visuais, ora prevaleceu esta

    perspectiva clssica - um olhar central, nico, fixo (p.ex., na pintura renascentista), ora a

    disperso da perspectiva assim entendida - um olhar transversal ou um olhar mvel,

    ondulante (como, p.ex., no Barroco), ora uma ausncia de perspectiva (como, p.ex., nas

    criaes artsticas da Idade Mdia, onde figurava o que podemos chamar de uma

    perspectiva simblica: as figuras e os planos encontram-se dispostos e dimensionados de

    acordo com uma hierarquia estabelecida entre o divino, o humano, o terreno - em vez de

    seguir uma perspectiva linear e ilusionista, tal como a renascentista). At nossa poca

    contempornea explodir de modo radical com tais concepes. Esfacelando a perspectiva,

    fez manifestar uma pluralidade de pseudos-pontos-perspectivos, focos justapostos,

    contrapostos, antepostos, uma rede de olhares entrecruzados em relaes infindveis (como

    - usando aqui os exemplos mais vulgarizados - nas composies cubistas, nas repeties de

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    Ocidente. Perspectiva significa ver atravs. Mas o olhar, a viso, no perspectivismo,

    abarca de modo mais integral todos sentidos (as relaes de foras a que denominamos

    corpo), i.e., no diz s o olhar proveniente do olho (o rgo de viso privilegiado). Em

    Nietzsche, a viso epidrmica, gustativa, olfativa, quando no gastronmica.1

    O perspectivismo nietzschiano reenvia, assim, a dois plos de uma mesma

    metafsica arcaizante que ele intenta superar: de um lado, o realismo - pelo qual conhecer

    apoderar-se do mundo tal qual ele em sua verdade: a convico inabalvel de que o

    pensamento, pelo fio da causalidade, poder penetrar na essncia ntima do Ser, at seus

    abismos mais profundos (NT 15). Por outro, o idealismo - pelo qual o real concorda com

    o pensamento que o produto de um sujeito. Para Nietzsche, no h nem uma realidade

    substancializada, anterior ao sujeito (ao eu) e fora deste, e nem um sujeito anterior (um eusubstancializado), gerador de realidade.

    Fazendo uma rpida e simplificada histria do sujeito, podemos dizer que, at

    pouco antes de Descartes, o sujeito manifestou-se como um dos modos da substncia,

    i.e., um ser do qual se podia predicar algo. O homem, como sujeito, como um ser de

    razo, no era mais do que um modo de existncia (pensante) da Substncia Primeira

    (Deus). A concepo moderna de sujeito (correspondente ao EU do latim, ego, um

    pronome com que o homem se autodesigna) s tornou-se objeto de investigao filosfica

    com o pensamento de Descartes. Porm, para o filsofo das Meditaes Metafsicas, o

    sujeito (o Eu) permanece ainda uma substncia, um ser do qual se afirma alguma coisa:

    um ser que pensa, que duvida, que existe.

    Caber a Kant transformar este EU substancializado de Descartes em um EU

    substancializador, i.e., num eu que traduz o poder sinttico do esprito, introdutor das

    atividades apriorsticas das categorias do entendimento, tais como substancialidade e

    1 Muitas so as metforas nietzschianas com referncia aos rgos que nos conduzem aoconhecimento do mundo e da vida: fui o primeiro a descobrira verdade, ao sentir por primeiro [] aocheirar... Meu gnio est nas narinas... (EH Por que sou um Destino 1). Estes rgos de conhecimento,no entanto, alm de no terem seu privilgio na viso (ocular), sequer se restringem ao habituais rgos dossentidos - todos os rgos do corpo podem trabalhar comofaculdades cognitivas, com destacado relevo paraos rgos digestivoseviscerais: Porque na verdade, meus irmos, o esprito um estmago! (ZA III, Das Novas e Velhas Tbuas, 16). Ou ainda: sua fora digestiva - usando uma imagem - e realmente oesprito se assemelha mais que tudo a um estmago (BM 230). Ainda como exemplo, pode-se ver ocaptulo Porque sou to Inteligente de Ecce Homo, onde Nietzsche metaforiza a relao entre ometabolismo fsico e a atividade espiritual.

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    causalidade2. At o limiar da Modernidade, Deus o correspondente perspectiva geradora

    de realidade, de existncia. Mesmo em Descartes, o sujeito, embora autnomo, ainda

    reflexo de Deus: a finitude presumida da infinitude de Deus, o saber humano da oniscincia

    de Deus, a parte, o limitado da totalidade que Deus Deus quem lhe concede, pela

    razo, a plena e indubitvel certeza de sua existncia e da existncia do mundo3. Com Kant,

    o foco gerador de realidade (e conseqentemente de conhecimento desta) o sujeito

    legislador, o sujeito auto-afirmativo, construtor e esquematizador, arquiteto do real. Para o

    sujeito kantiano Deus que reflexo do homem, apenas uma idia reguladora da razo que

    nos permite pensar a oniscincia, a infinitude e a totalidade, cogitaes necessrias do

    sujeito finito. A concepo kantiana de sujeito o que podemos chamar de sujeito-

    perspectiva, instaurador das leis que regem o real, i.e., os fenmenos 4, derrubando as

    concepes de um realismo substancialista. O sujeito, portanto, como criador, i.e., comofoco estruturador do real fruto da Modernidade (isto, porm, no equivale a dizer que o

    mundo era afirmado como completamente ideal, mas somente que aquilo que se percebe

    como sendo a realidade fsica de fato nossa construo cognitiva dela).

    2 Para Kant, o eu penso, logo sou cartesiano no pode ser determinado como uma certezaindubitvel do esprito humano, pois que este eu, como unidade, instaurado pela sntese originria dasapercepes, sem a qual teria um eu to multicolor e diverso quanto tenho representaes das quais souconsciente (KANT, I. Crtica da Razo Pura: B, 134). certo que, o eu penso (cogito) deve poderacompanhar todas as minhas representaes (apercepo originria: a autoconscincia ver: Crtica

    Razo Pura: B,132), porm este eu s sujeito do pensamento porque j ocorreu uma sntese e umaunificao a priori. No se pode afirmar que este eu , embora necessrio ao pensamento, seja umasubstncia, pois que este s se apresenta a si prprio como fenmeno. Assim, Kant desestabiliza a certezaimediata e indubitvel do conhecimento do prprio eu como a substncia fundamental (no sentidometafsico). A prpria categoria de substancialidade (assim como a de causalidade) j instaurada a prioripelo entendimento e s a conhecemos quando nos dadacomo fenmeno. Tanto o eu (realidade interior)como os objetos da realidade exterior s se apresentam como fenmeno. Escreve Kant: tenho conscincia demim prprio na sntese transcendental do diverso das representaes em geral, portanto, na unidade sintticaoriginria da apercepo [i.e., o cogito], no como apareo a mim prprio [fenmeno], nem como sou emmim prprio [nmeno], mas tenho apenas conscincia que sou. Esta representao um pensamento e nouma intuio. [] Logo, no tenho conhecimento de mim tal como sou [uma substncia que pensa, na

    concepo de Descartes], mas apenas como apareo a mim mesmo. Portanto, eu existo como inteligncia,que consciente meramente do seu poder de conjuno e sntese (Crtica da Razo Pura: B, 157/158).3 Deus desempenha um papel central no sistema filosfico de Descartes. Nas Meditaes, Deusconstitui o absoluto fundamento da evidncia subjetiva ( Eu sou, eu existo) e da prpria objetividade domundo. Nos Princpios da Filosofia (II, 36), Deus ocupa o papel de causa suprema, a causa universal e

    primria da existncia do universo fsico.4 Escreve Kant: as leis universais do entendimento so ao mesmo tempo leis da natureza tomadacomo conjunto dos fenmenos; ou ainda: As categorias so conceitos que prescrevem leis a priori aosfenmenos e, portanto, natureza como conjunto de todos os fenmenos (Crtica da Faculdade do Juzo:Introd. VI e Crtica da Razo Pura: B, 163 - respectivamente).

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    Se at o advento da Modernidade imperou um realismo que impunha um real

    exterior, preexistente ao sujeito do conhecimento um real construdo por um olhar

    superior (Deus), uma perspectiva nica e central a partir de ento (sobretudo com

    Descartes e Kant) nada mudou muito, apenas transferiu-se o ponto perspectivo de Deus

    para o homem: da perspectiva-Deus ao sujeito-perspectiva5. E se com o pensamento

    moderno nasce o sujeito-perspectiva (onde toda a realidade passvel de ser conhecida e

    experienciada uma imposio enFORMAdora das categorias do entendimento e da

    sensibilidade), com Nietzsche, este sujeito-perspectiva ser levado s ltimas

    conseqncias ao ser definido no mais como cogito, conscincia (principalmente

    conscincia de si), mas como corpo. Esta virada da concepo de sujeito para corpo uma

    virada no privilgio concedido razo, conscincia e faculdade responsvel pelo

    conhecimento objetivo: o entendimento (todas estas faculdades lgico-intelectivas doesprito humano, que Nietzsche chama de pequena razo, em contraposio a corpo,

    nossa grande razo, da qual a pequena razo tambm faz parte: O corpo a grande

    razo [...] instrumento de teu corpo , tambm, a tua pequena razo [...] qual chama

    esprito (ZA,I, Dos Desprezadores do Corpo).

    Com Nietzsche, o sujeito se dilui em uma multiplicidade de eu(s), de alma(s)

    vrias almas habitam umamesma alma. Corpo no apenas um foco, uma unidade isolada,

    estancada da vida e do mundo, mas quanta6 de foras dentre uma infinidade de outros

    quanta de fora em relao. O sujeito tal como o mundo, no mais identidades isoladas,

    unitrias, estanques: relao de foras. Tudo est interligado, conectado, como diz

    Pascal: todas as coisas so causadoras e causadas, auxiliadoras e auxiliadas, mediatas e

    imediatas, e todas se acham presas por um vnculo natural e insensvel que nutre as mais

    afastadas e diferentes (PASCAL, Pensamentos., fr.73). O prprio pensamento no mais

    5 Continua sendo sempre a filosofia da representao que, como tal, possui somente um foco

    gerador e construtor de realidade, de pensamento, etc., pois a identidade que define o mundo darepresentao. Escreve Deleuze: A representao tem apenas um centro, uma perspectiva nica e fugidia e,portanto, uma falsa profundidade; ela mediatiza tudo, mas no mobiliza nem move nada. O movimento, porsua vez, implica uma pluralidade de pontos de vista, uma coexistncia de momentos que deformamessencialmente a representao (DELEUZE, 1988, pp.16, 37 e 106 respectivamente). [Chama-serepresentao a relao entre o conceito, que o sujeito atribui, e seu objeto: Sujeito vontade erepresentao [...] A representao o ato de coisificar, i.e., tornar objetivo o mundo, de objetivaro mundoatravs da atividade do sujeito (FINK, 1966, p.203) ]6 Quanta: plural do vocbulo latino quantum que significa quantidade termo utilizado porNietzsche, particularmente nos fragmentos pstumos.

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    o pensamento de um sujeito (particular ou histrico): o pensamento que perpassa o que

    habitualmente denominamos sujeito (identidade pessoal ou histrica): um pensamento

    vem quando ele quer, e no quando eu quero; de modo que um falseamento da

    realidade efetiva dizer: o sujeito eu a condio do predicado penso (BM 17).

    Pensamento tambm relao de foras. relao de foras a perpassar os mltiplos

    modos de manifestao destas relaes (diferentes modos do existir, que o pensamento

    racionalista denomina: identidades).

    Podemos dizer que na obra nietzschiana h duas perspectivas do perspectivismo:

    uma ontolgica (perspectivismo vital) e outra gnosiolgica ou epistemolgica(perspectivismo do conhecimento). Vejamos...

    A razo (ou as faculdades lgico-racionais: o entendimento/o intelecto) se tornou o

    pilar da filosofia e do conhecimento cientfico ocidental. A hipervalorao doconhecimento racional tem sua origem, conforme ressalta Nietzsche em O Nascimento da

    Tragdia(NT 15), na Grcia clssica com Scrates e Plato. o socratismo, com seu

    otimismo lgico, que d origem ao homem terico: o homem que privilegia apenas um

    nico e infalvel modo de conhecer, s denominando conhecimento aquele que derivar da

    mente lgico-racional.

    Em frente ao pessimismo prtico, Scrates o primeiro modelo dootimismo terico, que atribui f na possibilidade de aprofundar anatureza das coisas ao saber e ao conhecimento a virtude de umapermanncia universal e que v no erro o mal absoluto. Penetrar naprofundidade das causas, distinguir do erro e da aparncia o verdadeiroconhecimento, foi para o homem socrtico a vocao mais nobre, a nicadigna da humanidade; e, depois de Scrates, este mecanismo dosconceitos, dos juzos e silogismos foi tido por um dom valiosssimo, umpresente admirvel da natureza, muito mais apreciado do que todas asoutras faculdades. (NT 15)

    Essa hipervalorao do conhecimento lgico-racional (oriundo do que ele chama em

    Assim Falou Zaratustrade a pequena razo) s foi obtida graas (hiper)desvalorizao

    de nosso saber esttico (sensvel), instintivo, corporal. Para Nietzsche, a perspectiva do

    corpo(do esttico), nossa grade razo da qual faz tambm parte a pequena razo ,

    aquela que melhor traduz a perspectiva da vida. Concebendo o conhecimento em um

    sentido mais amplo do que o (de)limitado pelo saber racionalistacientfico ou filosfico

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    , Nietzsche confere a este uma destinao de experincia esttica de mundo, denominado

    por ele: conhecimento trgico (NT 15).

    A questo do trgico (e do dionisaco) trabalhada pelo filsofo j em seus

    primeiros escritos, como no supracitado O Nascimento da Tragdia, e retomada em seus

    ltimos papis, em especial nos fragmentos pstumos. Em Tentativa de Autocrtica,

    prefcio para O Nascimento da Tragdia, escrito dezesseis anos depois desta, ele indaga:

    O que o dionisaco? afirmando ser esta uma questo fundamental em todo seu

    percurso filosfico e que tem seu incio questionador nesta sua primeira obra publicada. O

    problema aqui consiste na definio da natureza do trgico. Para se compreender preciso

    levar em conta a anttese Apolo-Dionsio que Nietzsche traz dos dois deuses gregos

    protetores das artes. Apolo simboliza o instinto plstico. Ele o deus da clareza, da luz, da

    medida, das formas, das composies belas e harmoniosas. Em contrapartida, Dionsio odeus grego do caos, do desmedido, do disforme, do devir da vida, o deus da noite, da

    fora sexual, deus da msica, libertadora das paixes, embriagadora e extasiante. Apolo e

    Dionsio so, portanto, representaes simblicas de instintos estticos da natureza -

    antagnicos, porm, complementares. No fenmeno do trgico percebe-se a verdadeira

    natureza da realidade (vida), que o socratismo, isto , o esprito racional, tentar sobrepor.

    Vida em Nietzsche o caos trgico da existncia: No se compreende o seu conceito da

    vida escreve Fink se no se conhecer o seu conceito-chave do trgico, entendido

    como contraste entre Apolo e Dionsio, em que ele v os poderes fundamentais da realidade

    do mundo (FINK,A Filosofia de Nietzsche, p.20).

    O mundo e a vida traduzem o jogo trgico da existncia. O que Scrates o pai do

    homem terico e da posterior soberania do pensamento racional conseqentemente,

    do conhecimento racionalsobre todos outros modos e possibilidades de pensamento e de

    conhecimentonos incute a aceitar como natural que a vida indigna de ser desejada tal

    como ela por si mesma, em toda sua amplitude, ou seja, em tudo o que h de mal e

    obscuro: a aparncia enganadora, o caos, os nefastos acasos, a imprevisilibidade dos

    acontecimentos, o devir incessante, a impermanncia de todas as coisas, o sofrimento

    dilacerante, a finitude irredutvel da existncia, a morte... Na viso trgica do mundo

    encontram-se confundidas a vida e a morte, a ascenso e a decadncia de tudo quanto

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    finito. [...] O sentimento trgico da vida antes aceitao da vida, a jubilosa adeso tambm

    ao horrvel e ao medonho, morte e ao declnio (FINK,A Filosofia de Nietzsche, p.18).

    Porm, o trgico no como muitos traduzemum pessimismo, mas um pensar

    nossa misria, nossa condio de humanidade, nossa condio de ser pensante. O homem

    trgicocomo diz Conche no nem otimista nem pessimista (CONCHE, Orientao

    filosfica, p.144): o que ele quer apenas um sentido: Porque sofrer, gozar ou no gozar,

    ter tido xito ou no, ser estimado, amado ou no, etc., so coisas secundrias quando

    podemos dizer que sabemos qual o sentido de nossa vida (Ibidem, p.133). Torne-se o

    que s! (Ecce Homo: Como algum se torna o que ). preciso, portanto, no confundir o

    sentido trgico da vida com um pessimismo. Como escreve Jean-Pierre Miquel a propsito

    da filosofia trgica de Nietzsche:

    A tragdia o contrrio do pessimismo e no tem por origem o medo, aresignao e o fatalismo. Os personagens trgicos tentam transcender odrama. Eles buscam um crescimento de fora que tende a se expandir e seexteriorizar. O que um heri trgico busca um adversrio [...]. E esteadversrio, que o nico a lhe opor resistncia, pode ser chamado destino.O heri trgico vai ultrapassar este obstculo e no apenas se contentarem lament-lo. O heri trgico recusa toda passividade e toda renuncia.(MIQUEL,Pour lpanouissement de la tragdie, p.35)

    O trgico a transfigurao do sofrimento: um modo de intensificao da vida. E

    aquele que cr na vida no de modo algum um pessimista! E se o trgico no um

    pessimismo porque o sentimento trgico da vida antes a aceitao da prpria vida em

    tudo o que ela tem, como dissemos, de medonho, de decadente, de perecvel, de podrido e

    morte, mas tambm de sedutor, de pulsante, delirante, de divino... Vida e morte so uno,

    todos os opostos so uno; esta pelo menos a concluso a que Nietzsche chegar atravs

    da evoluo de seu pensamento, quando os conceitos de apolneo e dionisaco ainda

    como opostos complementares neste seu primeiro livro O Nascimento da Tragdia

    sero, em suas ltimas obras, diludos um no outro, ou seja, o conceito de trgico serabsorvido no de apolneo e o apolneo, integrado ao dionisaco (FINK, A Filosofia de

    Nietzsche, p.19).

    A essncia do trgico a afirmao mltipla, diversificada da vida, da existncia

    Dionsio, o Deus trgico, a dilacerao da identidade, a afirmao do devir, o poder das

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    metamorfoses do caos originrio. Dionsio ensina-nos a danar, nos concede o instinto do

    jogo. A existncia, isto , a vida se torna leve. Em toda sua tragicidade original ela no

    algo que deva ser corrigido (afinal, o caos, entre outras configuraes da vida, no precisa

    transformar-se na ordem, o mltiplo no uno, na identidade, e assim por diante...). A

    metafsica dogmtica sempre colocara a existncia como algo faltoso, culpado, injusto, algo

    que deveria ser justificado e redimido consertado. A vida, para este pensamento,

    assim pura aparncia, onde a verdade sub-existe (substncia). A vida, para o pensamento

    racional/metafsico, no A Verdade, mentira, aparncia velao da verdade que

    precisa ser desvelada, desocultada. Mentira a ser desmascarada pela luz das Idias, pelos

    conceitos. Este mundo glido da Idias e dos conceitos, trazidos pela racionalidade, passam

    a se sobrepor vida (em seu sentido originrio): a convico inabalvel de que o

    pensamento, pelo fio de Ariadne da causalidade, poder penetrar at os abismos profundosdo Ser, de que o pensamento poder no s conhecer mas tambm corrigir a existncia.

    Esta nobre iluso metafsica resulta do instinto prprio da cincia (NT 15).

    A realidade, para a lgica, para a razo, para a consc incia racional, deve

    conformar-se ao conceito, portanto, deve ser sempre una e imutvel. Os conceitos, devido a

    sua rigidez categorial, so os que melhor conseguem se adequar fixidez da verdade

    (metafsico-dogmtica). Entretanto, a realidade (enquanto vida e no mera conceituao)

    superior lgica, ao uso (enFORMAdor) dos conceitos. Para Nietzsche, a realidade no

    mero conceito, a vida no um argumento; esta, portanto, deve se sobrepor (em vez de se

    deixar submeter) a razo determinante, categorizante. O princpio de identidade e a lei de

    no-contradio no se aplicam realidade efetiva, mas apenas a uma realidade

    conceituvel, uma realidade j logicizadaisto , uma realidade j disciplinada, ordenada,

    enformada pelos conceitos lgicos e categorias do entendimento humano. A caracterstica

    do conceito reside em que ele deve ser uma representao isolada: ele deve exprimir to

    somente uma coisa ou um aspecto da coisa, um estado, um elemento. O conceito aquilo

    que e outra coisa no pode ser. Da a importncia do princpio de identidade e do

    princpio de no-contradio. Algo no pode ser e no-ser ao mesmo tempo no

    conceito. Para que o pensamento conceitual possa ser uma representao da realidade,

    necessrio que a realidade seja constituda segundo o mesmo modelo, isto , feita de

    elementos estveis, bem distintos uns dos outros, sem comunicao entre si (desconectado,

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    sem uma inter-relao), que apresentem o mesmo carter contnuo e ordenado

    (causalidade), concludo (finalidade), estanque, separado, uno (identidade).

    A generalidade sempre permanece generalidade. O Universal, a Verdade etc. (Idias

    ou conceitos universais) so generalizaes to abstratas que apenas tangenciam a vida com

    toda sua riqueza de singularidades. A vida apresenta um carter bem diverso deste: ela

    descontnua, mltipla, misturada isto , tudo que vive est inter-relacionado entre si ,

    encontra-se em constante transformao (devir), etc. Os conceitos so (tradicionalmente)

    algo de estvel. Para exprimir o movimento, p.ex., preciso decomp-lo em situaes e

    transform-lo em algo fixo. Assim, o pensamento lgico-conceitual processa apenas

    superficialmente, sendo incapaz de traduzir toda a riqueza da expressividade da vida em

    toda sua intensidade: pulsante, viva... como escreve Heidegger, invocando uma metfora

    de Hegel:

    Hegel menciona, uma vez, o seguinte exemplo para caracterizar ageneralidade do geral: algum deseja comprar frutas num mercado. Pedefrutas. Estendem-lhe mas, pras, exibem-lhe pssegos, cerejas, uvas.Mas o comprador recusa o que lhe apresentado. A todo custo ele querconseguir frutas, mas no obstante, se constata: No h frutas paracomprar. (HEIDEGGER, A Constituio Onto-teo-lgica da Metafsica,p.94)

    Para Nietzsche, a Idade do homem-terico, Idade da Razo e do pensamento-lgico, deve ser combatida pela ressurreio da arte trgica e do trgico como forma de

    pensamento e concepo de mundo. Pois, enquanto a metafsica dogmtica e o

    racionalismo foram ineficazes em expressar o mundo e a vida em sua tragicidade original

    , a arte e o pensamento trgicos, por seu lado, nos possibilitam o acesso a questes

    fundamentais da existncia. Como escreve Fink, o tema esttico adquire a condio de um

    princpio ontolgico fundamental; a arte, a poesia trgica, torna-se para ele a chave que lhe

    abre a vida essencial do mundo (FINK,A Filosofia de Nietzsche, p.17). A arte um acesso

    ao conhecimento do mundo e da vida. Uma nova modalidade do saber. O fenmeno da

    arte colocado no centro [da filosofia de Nietzsche]: nele e a partir dele que deciframos o

    mundo (Ibidem, p.18). A arte possui assim um valor superior cincia e ao conhecimento

    lgico-racional, pois se encontra mais perto da vida do que a razo e seu saber

    correspondente. Mas a vida mesma supera a arte, pois a vida , para o filsofo, a forma

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    suprema de artecriao e destruio permanenterecriaoo jogo ldico e criativo das

    foras eterna transformao. Assim, dezesseis anos aps o Nascimento da Tragdia,

    escreve Nietzsche no prefcio para o livro: ante um olhar mais velho, cem vezes mais

    exigente, porm de maneira alguma mais frio, nem mais estranho quela tarefa que este

    livro temerrio ousou pela primeira vez aproximar-sever a cincia com a tica do artista,

    mas a arte, com a da vida (NT,Tentativa de Autocrtica, 2).

    Percebemos assim que conhecer, para Nietzsche, no pode ser compreendido

    somente como uma teoria da concordncia entre verdade e realidade (realismo), ou entre as

    categorias da subjetividade e os objetos do mundo (racionalismo); mas, por conhecer faz-se

    necessrio dizer um modo de ser no mundo. E ser no mundo para o filsofo estar na

    perspectiva da vida, portanto, naperspectiva do esttico, do sensvel, do corpo... Conhecer

    pra Nietzsche ser-no-com-para-o-mundo-a-vida... Conhecer uma experincia de mundo,um domnio de realidade e uma estruturao de vida.

    O carter perspectivstico da vida ( perspectivismo ontolgico ou perspectivismo

    vital7) diz assim a interpretao nietzschiana de Ser, que no nunca entendido por ele

    dentro das categorias ontolgicas mantidas e privilegiadas pela tradio filosfica ocidental

    com sua origem em Plato/Scrates e Aristteles: unidade, imobilidade, permanncia,

    imutabilidade, onde o movimento, a multiplicidade e a mudana so meros acidentes ou

    iluses dos sentidos. Ao contrrio, sua concepo de Ser o heraclitiano: fluxo vital,

    devir, jogo de foras em relao, etc. Uma interpretao que se manteve margem da

    metafsica do Ocidente. Para Nietzsche, a vida no estvel, mas sim processo e

    constituda por foras inter-relacionadas. Cada possibilidade de existncia se encontra

    condicionada a sua respectiva intensidade de fora, ao seu ngulo de atuao e

    interpretao, ao seu foco gerador de informaes etc. embora esses centros, pontos

    perspectivos interajam entre si, de acordo com a quantidade e a intensidade de fora em

    jogo: no existem coisas, mas quanta dinmicos, que se encontram numa relao de

    tenso com todos os outros quanta, cuja prpria essncia reside nessas relaes... 8 O

    7 A expresso perspectivismo vital nos apropriamos de GRANIER, Le Probleme de la Vrit dansla Philosophie de Nietzsche, p.ex., p. 365.8 Vontade de Potncia, III, 628. Nas citaes acompanhadas da sigla VP, utilizamos os fragmentosparticularmente selecionados para a controvertida edio pstuma de A Vontade de Potncia (VP) -atualmente em desuso nos meios acadmicos, desde que G. Colli e M. Montinari realizaram, para a ediocrtica, a organizao definitiva destes fragmentos, utilizando como critrio apenas a datao.

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    perspectivismo vital traduz a definio de perspectivismo como sendo a condio

    fundamental da vida (p.ex.: Alm do Bem e do Mal, Prefcio). E a partir da afirmao

    do carter perspectivstico da vida, da existncia (GC 374)9 - esta interpretada como

    vontade de potncia/poder, i.e., como jogo ou relao de foras que Nietzsche ir

    questionar a noo metafsica substancialista de realidade e afirmar o Ser-relao

    estrutura ontolgica de seu pensamento (de inspirao heraclitiana).

    Quanto ao carter gnoseolgico/epistemolgico do perspectivismo, ao contrrio

    do que pode parecer primeira vista, este no pretende afirmar ser uma pretenso de

    Nietzsche a instaurao de uma nova teoria do conhecimento10ou de um conhecimento-

    perspectivo, i.e., simplesmente um novo modo (lgico-racional) de conhecer (por

    exemplo: a possibilidade de conhecer levando-se em conta a multiplicidade de pontos-de-

    vista sobre um assunto, ou a aplicao de uma multiplicidade estratgica para a composiodo pensar, etc.). Ao contrrio, afirmando o perspectivismo do conhecimento Nietzsche

    defende um pluralismo relacional ontolgico gerador das construes (inter)relacionais e

    pluralistas de conhecimentosou domnios de realidade(s) - possveis. O homem apenas

    fora entre outras no interior da vida, portanto, suas possibilidades de conhecer e de se

    relacionar na e com a vidavo estar ligadas s suas possibilidades ontolgicas (vitaisno

    vocabulrio de Nietzsche). E a poro vontade de potncia/poder manifesta no s no

    homem, como em todo servivente, existenteque ir delinear o conhecimento humano,

    construir nossa realidade e instaurar toda obsessiva vontade de verdade (ou vontade de

    conhecimento): A medida da necessidade de conhecer escreve Nietzschedepende da

    9 Por exemplo: -nos impossvel mudar o ngulo de nossa observao: curiosidade sem xito aquelade procurar saber que outras espcies de intelectos e perspectivas ainda podem existir [...]. Espero, entretanto,que atualmente estejamos suficientemente afastados dessa ridcula falta de modstia de querer decretar, donosso ngulo, que apenas dele se pode ter o direitode ter perspectivas (GC 374).10 preciso antes lembrar que Nietzsche nunca chegou a uma teoria formal do conhecimento, i.e., a

    uma epistemologia (ver, p.ex., MARQUES, A. Sujeito e Perspectivismo: pp.40-45). A Nietzsche interessaanalisar NO qual a aplicabilidade ou quais aspossibilidades ou quais os limites do conhecimento racionalpelas categorias e conceitos do entendimento, mas a interrogao sobre a (hiper)valorao da causalidade, daidentidade, da substancialidade, etc., como modo privilegiado de conhecer. A questo : que vontade es sa(sujeito) que valoriza, exclusivamente, o modo lgico-racional de estruturar (arquitetar) a realidade, deconhec-la? Que tipo de pensamento usa, com obsessiva prioridade, o conceito objetivamente, estruturando,assim, uma realidade objetivante e substancializada, enFORMAda pelas categorias (conceitos puros) doentendimento? Nietzsche, como j mencionamos, denomina esta razo (o entendimento lgico-categorial ou aconscincia-racional ou o esprito consciente) de pequena razo em relao a nossa grande razo (ocorpo, da qual apequena razo tambm faz parte).

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    medida do crescimento na vontade de potncia da espcie. Uma espcie se apodera de uma

    quantidade de realidade para tom-la a seu servio.11

    Observemos que os dois aspectos conferidos ao perspectivismo, um ontolgico,

    perspectivismovital, e outro gnoseolgico, perspectivismo do conhecer, nada mais so,portanto, do que perspectivas doperspectivismo de que ns aqui s fizemos uso por

    motivos estratgicos. Estes aspectos esto, na verdade, interligados na obra de Nietzsche;

    uma vez que, para o filsofo, o homem no se distingue da vida, no est separado desta, o

    homem no um sujeito separado de seu objeto (o mundo). O homem apenas perspectiva,

    quantarelacional de foras dentre uma multiplicidade de foras que constituem a vidado

    mundo. Conhecer no um ato separado de ser, e ser homem sempre implica

    modos de conhecer.

    Conhecer criar realidades em uma relao interativa com a prpria vida: Operspectivismo necessrio por meio do qual todo o centro de fora e no somente o

    homem constri, partindo de si mesmo, todo o resto do mundo12 e no somente

    controlar realidades, como acontece dom o conhecimento lgico-racional ao reduzir o

    real (a vida em devir) s suas categorias e conceitos determinantes. Conhecer criar

    realidades: isto significa que todo conhecerdiz um domnio (criador) de realidades. E por

    esta perspectiva, todas as modalidades do conhecer so criadoras de realidade(s), incluindo

    ( preciso frisar) at mesmo o saber racionalista predominante na filosofia e nas cincias

    do Ocidente, que ele tanto critica. O que Nietzsche contesta o fato desta forma de domnio

    de realidade ter se tornado uma obsessiva busca de controle e cerceamento do real,

    sobretudo atravs de seu pretenso carter Universal. Uma universalidade que excluiu, por

    um longo perodo de nossa histria, outras formas de domnios de realidades, de

    conhecimento, de saberes. Com o apoio da Razo, baniram-se as possibilidades

    diversificadas de construo de realidade(s). Tal aspecto de controle e cerceamento da

    realidade manifestou-se no homem como uma vontade irrestrita de conhecer e dominar, ou

    melhor, de controlar a verdade. Mas, como a tal verdade, obsessivamente procurada, de

    alguma forma j estava previamente dada (a priori, pelas categorias do sujeito do

    11 VP III, 475. Ver nota 812 VP III, 629. Ver nota 8.

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    conhecimento), nada de novo podia da derivar: O homem no encontra nas coisas seno o

    que ele mesmo ps nelas.13

    Tal caracterstica, tpica do conhecimento cientfico-filosfico ocidental, a

    traduo da vontade de potncia/poder manifesta em seu aspecto decadente, doentio,fraco.

    A vontade de potncia/poder como conhecimento em seu aspecto nobre corresponde a uma

    faculdade plstica, que no uma mera faculdade do esprito, mas corpo. Ser corpo

    vivenciar-se naperspectiva da vida, experienciar-se quantarelacional de foras da vida.

    Certo, Nietzsche nunca buscou uma nova faculdade, alis, ele at mesmo debocha da

    obsessiva preocupao, ps-Kant, em se perseguir sempre novas faculdades: a formao

    e o rpido florescimento da filosofia alem dependeram desse orgulho e da ardorosa disputa

    dos mais jovens em descobrir, se possvel, algo de que se orgulhar mais ainda novas

    faculdades [...] todos buscavam faculdades (BM 11). De qualquer modo, poranalogia s faculdades racionais, podemos interpretar seu conceito de corpo como uma

    faculdade esttica, criadora de novos modos de experienciar realidade(s) e de novas

    maneiras de pensar.

    Nietzsche afirma como nossa nica realidade o corpo. O corpo tudo: tanto o

    sensvel quanto o esprito. Encontram-se no corpo entendido como uma faculdade

    estticae no pensamento dionisaco saber trgicoa soluo sugerida por Nietzsche ao

    conhecimento que assume seu carter nobre, criador de realidades uma vontade de

    domnio que no se traduz por uma mera vontade de controlar realidades. O saber trgico

    uma modalidade de conhecimento muito mais relevante para o homem em sua finitude,

    porque diz sua experincia esttica de mundo, uma experincia nica e singular, como a

    vida de cada vivente. O conhecimento trgico no diz propriamente um ultrapassar limites

    (do conhecimento lgico-racional, cientfico ou filosfico, ou seja, ele no vem para

    substituir esses), mas um aceitar a condio finita, limitada, sensvel do homem em sua

    criadora singularidade, com uma alegria dionisaca do participar da vida em toda sua

    tragicidade originria. O homem do pensamento trgico aquele que aceita o carter

    perspectivstico da vida, portanto, aquele que no se destaca do (per)curso da vida e do

    mundo. aquele que no se concebe como um-separado: como um sujeito (unidade)

    separado do objeto (mundo/vida); pois vivencia-se como quantum de foras, dentre uma

    13 VP III, 598. Ver nota 8.

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    multiplicidade de foras coesamente inter-relacionadas, no fluxo da vida em seu devir.

    pelo que ele chama saber trgico que Nietzsche nos (re)lembra o importante papel da

    filosofia como pensamento esttico.

    Ainda umas palavras para concluir...

    Dissemos que Nietzsche desconstruiu uma certa noo de perspectiva (clssica

    metafsica, substancialista, universal...) ao lanar seu perspectivismoabrindo desse modo

    um leque de novas possibilidades. E iniciamos o texto fazendo um paralelo com as artes

    visuais. Nietzsche, de fato, faz freqentes analogias, atravs do uso de metforas visuais ou

    de apologias a modalidades artsticas, como pretexto para construir suas questes

    filosficas. Quando o filsofo se refere perspectiva, ele utiliza como parmetro a noo deperspectiva clssica, para ento perverter e transformar seu sentido. Mas esta perverso

    no fruto de alguma simpatia de Nietzsche por movimentos artsticos das artes visuais de

    vanguarda (que tm seu incio em fins do sc. XIX e encontravam-se ainda muito

    marginais). Pelo contrrio, sua preferncia pessoalquanto s artes visuais pela arte

    clssica. Porm, como j mencionamos anteriormente, se por um lado ele elogia a

    visualidade clssica, por outro ele contesta o pensamento clssico, i.e., o racionalismo, a

    metafsica racionalista.

    14

    interessante observar ainda que esta mesma desconstruo de perspectiva

    (entendida como o privilgio de um foco ou ngulo de observao, seja este fixo ou

    ondulante) que prope o perspectivismo de Nietzsche e as artes visuais presenciaram no

    nascimento de sua contemporaneidadetomou conta de todas as esferas de nossa realidade

    contempornea: afinal, a realidade que agora vivenciamos no se manifesta como uma rede

    de conexes mediticas e de interligaes informacionais? At nas cincias habita esta

    realidade, como, por exemplo, os cdigos de informaes genticas, na biologia, ou as

    teorias de interconexes quntica, na fsica subatmica (teorias que nos indicam que o

    mundo no consiste de coisas e sim de interaes, uma rede inseparvel de relaes

    infinitas que se condicionam mutuamente. No entanto, bom lembrar que, para Nietzsche,

    14 Escreve Raynaud, em relao viso da arte em Nietzsche, o estilo clssico que deve serpreservado, mas a metafsica racionalista, que historicamente o acompanha, no pode ser mantida(RAYNAUD, 1993, p. XVI).

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    a Fsica apenas uma interpretao e uma disposio de mundo... e no uma explicao

    do mundo (BM 14). A realidade contempornea, certo, no se reduz ao que aqui

    ilustramos; esta noo desconstruda de perspectiva apenas uma de suas muitas faces e

    mscaras, pois que em nossa atualidade coexistem, no uma, mas vrias noes de

    perspectivasincluindo at as ditas superadas, como a clssica, por exemploembora

    tal afirmao seja tambm uma afirmao perspectivista...

    Seria sem dvida um exagero afirmar que o perspectivismo do conhecer e da

    realidade que nosso tempo tem vivenciado se deve a Nietzsche, mas certo que, ao menos

    sob o aspecto terico, esta uma afirmativa de todo pertinente, afinal os vrios pensadores

    da desconstruo, da suspeita, do pluralismo, da diferena, do simulacro etc. respiraram o

    pensar nietzschiano: Heidegger, Deleuze, Foucault, Baudrillard, Klossowski, Derrida... e

    seus herdeiros... a lista de perder de vista (isto sem contar com os no-nietzschianos que,para serem contrrios a seu pensamento, tiveram inevitavelmente de comer do mesmo prato

    ou respirar o mesmo ar)! No que Nietzsche tenha sido um visionrio, no sentido vulgar

    desta palavra, mas ao vivere ao se deter(i.e., ao pensar) de modo radical (comprometido) o

    seu prprio tempo, ele (sua obra) se fez preldio de um novo tempo; pois cada momento

    histrico traz inscrito em si todo o seu passado e todo o seu futuro, tal como as vises de

    Zaratustra da cobra da existncia a morder seu prprio rabo: o grande anel do eterno

    retorno. Eis o pensamento redentor anunciado por Nietzsche pela boca de seu famoso

    profeta: o Eterno Retorno... do diferente! (completar Deleuze!). Afinal... as maneiras de

    encarar uma mesma coisa so infinitas... E so essas diversas estradas que podero nos

    abrir novas conseqncias (PASCAL, Traits des ordres numriques, p.65).

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