Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
UMA ANÁLISE NEOFORMALISTA DE BATMAN BEGINS E O CAVALEIRO DAS
TREVAS
GONÇALVES, Vilson André Moreira1
RESUMO
O presente artigo se propõe compor uma análise das convenções narrativas dos filmes Batman
Begins (2005) e Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008), de Christopher Nolan, empregando
os pressupostos teóricos expostos pelo teórico neoformalista David Bordwell, especialmente
nas obras Narration in the Fiction Film (1985) e The Way Hollywood Tells It: Story and Style
in Modern Movies (2006). A partir dos conceitos elaborados pelo autor, apresentamos um
exercício de análise formal destes filmes, buscando atingir uma compreensão mais apurada
dos mecanismos que regem a narrativa hollywoodiana pós-clássica.
Palavras-chave: Batman; Christopher Nolan; neoformalismo.
ABSTRACT
This article intends to compose an analysis of the narrative tropes in Christopher Nolan’s
films Batman Begins (2005) and The Dark Knight (2008), employing the theoretical
assumptions exposed by neoformalist theorist David Bordwell, especially in his works
Narration in the Fiction Film (1985) and The Way Hollywood Tells It: Story and Style in
Modern Movies (2006). Starting from the concepts elaborated by the author, we present a
formal analytical exercise of these films, looking to achieve a finer comprehension of the
devices that drive postclassical Hollywood narratives.
Keywords: Batman; Christopher Nolan; neoformalism.
Perspectivas teóricas e Apontamentos iniciais acerca do objeto
O presente artigo se propõe situar os filmes Batman Begins (2005) e Batman – O
Cavaleiro das Trevas (2008)2, ambos dirigidos por Christopher Nolan, a partir da conjuntura
1 Licenciado em Artes Visuais pela UEPG, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Linguagens da UTP, professor do Departamento de Artes da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-
mail: [email protected]. 2 Nos dois filmes, o diretor e co-roteirista Christopher Nolan trata de adaptar para o cinema o universo de
Batman, herói das histórias em quadrinhos da DC Comics. No primeiro, Begins, Nolan constrói uma narrativa de
2
das produções cinematográficas hollywoodianas posteriores à década de 1960, de acordo com
as formulações delineadas por David Bordwell em termos de estilo e estrutura, formulando,
sobretudo, um questionamento a respeito da forma fílmica. Pretendemos discutir o espaço
ocupado pelas obras analisadas dentro do campo de estudos de cinema, a partir de uma leitura
formal que nos permita avaliar sua inserção nos padrões da narrativa ficcional hollywoodiana,
bem como possíveis tensionamentos destes padrões.
Bordwell levanta em seus estudos a questão do estilo, o que, argumenta, é uma
proposta que contrasta com os exercícios interpretativos que se manifestam nos estudos (não
poucos, segundo o autor) que vêem o filme como um texto a ser decifrado, a fim de
comprovar um quadro teórico pré-estabelecido. O que o autor pretende é debruçar-se sobre
filmes, buscando encontrar neles estratégias narrativas que os governem (BORDWELL,
1989).
Para tanto, Bordwell apresenta o conceito de poéticas históricas, em oposição ao que
classifica como Grande Teoria, qual seja, a reunião de propostas de diferentes autores para
uma visão interpretativa do cinema baseada na aplicação de modelos gerais, capazes de
explicar o filme. Tais modelos não seriam “históricos”, pois desconsideram a conjuntura da
produção de um filme, bem como o olhar daquele que o aprecia, produzindo um exercício
carente de contextualização, visando apenas um sentido implícito. O autor situa estas análises
naquilo que chama de teoria SLAB – sigla que se refere aos autores Saussure, Lacan,
Althusser e Barthes.
Ou seja, Bordwell contesta uma espécie de necessidade de uma “grande teoria” que
tudo explicasse e justificasse e que parece ter sido a estrela guia da teoria do cinema
nas últimas décadas. Estes grandes conceitos abstratos – como o de autor, sutura,
dispositivo, identificação, etc – teriam pouca concretude e pecariam por sua
generalização desnecessária. Antagônico ao receituário pós-estruturalista, Bordwell
defende um rigor no conceitual analítico que sirva para enquadrar o cinema em sua
história e no relacionamento com o espectador, partindo da particularidade do filme.
(GOMES, s/d, p. 1144)
origem para o personagem, iniciando por abordar seus traumas de infância, dos quais destaca-se o assassinato de
seus pais. O jovem Bruce Wayne, após este evento, parte numa jornada para compreender a natureza do medo e
das ações criminosas, conhece de perto aspectos íntimos do submundo do crime e é treinado pelos membros da
Liga das Sombras, um grupo de vigilantes que designa a si a tarefa de regular as iniqüidades humanas.
Discordando do código de conduta do grupo, Bruce foge e retorna a sua cidade natal, Gotham, onde assumirá a
persona de combatente do crime.
Já em O Cavaleiro das Trevas, somos apresentados a um universo urbano no qual o Batman já opera há
algum tempo. Nesta realidade é introduzida a figura do antagonista, o Coringa, um vilão que não aparenta
possuir motivações ou planos específicos além do estímulo ao caos. A narrativa, neste caso, trata de uma ruptura
com uma realidade na qual Batman já é um fator certo, introduzindo deste modo a perturbação da ordem
estabelecida.
3
Ainda sobre o conceito de poética histórica, que parte da reflexão acerca da poiêsis ou
“ação criativa”, Bordwell argumenta que este se presta à compreensão dos princípios segundo
os quais um filme é elaborado, bem como dos meios dos quais se utiliza para atingir
determinados propósitos, além de revelar quais as razões destes princípios manifestarem-se
em condições específicas. (BORDWELL, 1989, p. 371)
Aliando o estudo da forma, e para isto buscando referências em conceitos elaborados
pelos formalistas russos3 – como a syuzhet e a fábula –, a uma concepção teórica baseada em
percepção e cognição, o autor utiliza o conceito de schemata (esquemas ou fórmulas), o qual é
baseado nas reflexões de Ernst H. Gombrich sobre o uso das formas nas artes visuais, para
tratar do modo como o espectador do filme narrativo se apropria da narrativa e dela extrai
sentido (SANTIAGO JÚNIOR, 2004, p. 4). Vejamos:
Para Bordwell as narrativas envolvem schematas, mapas mentais para construção de
estórias. Estes nascem do lidar constante e culturalmente difundido de contar,
escutar e ver estórias. Ver filmes, por exemplo, é um processo que manipula uma
série de fatos: 1) capacidades perceptivas; 2) prioridade para o conhecimento e a
experimentação (pois o espectador usa, para ver filmes, conhecimentos que possui
de seu lidar no cotidiano) e 3) material e estrutura dos filmes em si (a organização
do material fílmico para sugerir os processos mentais envolvidos na apreensão de
estórias). O filme narrativo é feito para encorajar o espectador a executar as
atividades de construções de estórias e manipula assim uma compreensão narrativa.
Compreender uma narrativa envolve um esforço por fixar-lhe coerência. O narrativo
organiza o visual mas depende dele. (SANTIAGO JÚNIOR, 2004, p. 4)
Em Narration in the fiction film (BORDWELL, 1985, 31-33), os schemata são
definidos como feixes organizados de conhecimento que conduzem à percepção. Deste modo,
um schema de um objeto é uma estrutura cognitiva antecipatória, um conhecimento prévio
que guia a capacidade do olhar para o reconhecimento do objeto. No caso do filme, como de
qualquer outro fenômeno comunicacional, é essencial que o observador possua conhecimento
prévio das convenções que o estruturam.
What does the viewer do with the schemata? Plainly, many cognitive activities are
performed in making sense out of narrative. The viewer posits a more or less stable
set of assumptions. The spectator assumes, for example, that objects and human
beings persist in space even when they are not on screen; that a character possesses
the same individual identity on successive appearances; that a film in English will
not suddenly lapse into Urdu. We notice such basic assumptions only when a film
violates them, as when the same character is played by two quite different
performers (as in Buñuel’s Obscure Object of Desire). The viewer also makes many
inferences. If our hero bursts into tears, we conclude that he is sad. Like other
inductive inferences, such conclusions are open-ended, probabilistic, and subject to
correction. Maybe our hero is delighted. Memory of course plays a role as well.
3 Em Narration in the fiction film (1985), o autor caracteriza Viktor Shklovsky, Boris Eichenbaum e Yuri
Tyniamov como – à excessão de Henry James – os mais relevantes teóricos da narrativa desde Aristóteles.
Sublinha-se também a existência de escritos formalistas acerca do cinema – a coleção Poetika Kino, de 1927.
4
Again, memory must be seen not as a simple reproduction of a prior perception, but
as an act of construction guided by schemata (as was proposed by Frederic Bartlett
over fifty years ago). There is also the cognitive task of hypothesizing: the spectator
frames and tests expectations about upcoming story information. (BORDWELL,
1985, p. 37)4
No cinema “clássico”, a forma mais básica de estrutura memorável trata do esquema
fundamental usado na compreensão do modo como se estrutura a narrativa, que é composto
por um encadeamento de fases: a apresentação de contexto e personagens, a complicação da
ação, o desenvolvimento, o clímax e o epílogo (BORDWELL, 2006, p. 38).
A apresentação compreende o estabelecimento e introdução ao público dos
personagens e dos elementos básicos que compõe o universo do filme. A complicação da ação
configura-se como uma “contra-apresentação”, na qual se dá uma transformação no cenário
apresentado. No desenvolvimento, temos a jornada do protagonista em busca do propósito a
ser atingido. O clímax é o momento crítico, que aproxima o protagonista de atingir (ou não)
sua meta. A estes momentos, segue-se o epílogo, isto é, a finalização da narrativa, que
consiste na estabilização do universo narrado e no retorno à ordem inicial, precedente à
complicação. A duração do epílogo é, em geral curta em relação à dos outros segmentos
narrativos, mas sua extensão pode variar de filme para filme (BORDWELL, 2006, p. 35-38).
Esta estruturação seria aplicável às produções mais recentes, tanto quanto ao cinema
clássico. De acordo com o filme, estes esquemas se apresentam de modo diverso, pois o
processo narrativo envolve o tratamento de complexidades intrínsecas à narrativa específica,
bem como a construção de fórmulas visuais que, aliadas aos mapas mentais nos quais busca
referência o espectador, compõem o sentido do filme. Bordwell afirma que o estudo das
formas narrativas é o exame do ato da produção de sentido a partir de uma história, de modo
que tratar de estilo e/ou estrutura é tratar de como o espectador converte a visualidade fílmica
em uma unidade de sentido. (BORDWELL, 2006, p. 15-16)
4 O que o espectador faz com os schemata? Essencialmente, muitas atividades cognitivas são executadas para
extrair sentido da narrativa. O espectador posiciona um conjunto mais ou menos estável de suposições. O
espectador assume, por exemplo, que objetos e seres humanos perduram no espaço mesmo quando não aparecem
na tela; que um personagem possui a mesma identidade individual em aparições sucessivas; que um filme em
inglês não cairá repentinamente em urdu. Nós notamos tais suposições básicas quando um filme as viola, como
quando o mesmo personagem é interpretado por dois atores bem diferentes (como em Este Obscuro Objeto do
Desejo de Buñuel). O espectador também faz muitas inferências. Se nosso herói irrompe em lágrimas,
concluímos que está triste. Como outras inferências indutivas, tais conclusões são abertas, probabilísticas, e
sujeitas a correção. Talvez nosso herói esteja encantado. A memória, é claro, também tem seu papel. Novamente,
a memória deve ser vista não como simples reprodução de uma percepção prévia, mas como um ato de
construção guiado pelos schemata (como proposto por Frederic Bartlett há mais de cinqüenta anos). Há também
a tarefa cognitiva da formulação de hipóteses: o espectador enquadra e testa expectativas sobre as informações
que ainda virão história.
5
Dentro da composição narrativa, por sua vez, encontramos os princípios de fábula e
syuzhet, conceitos elaborados pelos teóricos formalistas, aos quais Bordwell acrescenta sua
concepção de estilo. A fábula consiste no encadeamento cronológico de eventos, por vezes
compreendida como a história em si, em sua suposta linearidade; a syuzhet, traduzida como
plot ou trama, é o arranjo elaborado no ato da narração, os fragmentos recortados da fábula
que vemos, na ordem que o filme nos permite vislumbrar; o estilo, que dialoga com a syuzhet
no tratamento da fábula, é o conjunto de técnicas cinematográficas reunido para a construção
visual da obra (BORDWELL, 1985, p. 49-57).
A seguir, nos propomos a delimitar basicamente a problemática do enquadramento da
narrativa hollywoodiana enquanto objeto de análise, tratando de conceitos associados a esta
forma de fazer cinematográfico, procurando estabelecer uma base para a análise subseqüente,
qual seja, a leitura dos filmes mencionados acima – Batman Begins e Batman – O Cavaleiro
das Trevas – a partir dos conceitos aqui apresentados.
Clássico, pós-clássico
Tratando do local ocupado pelos filmes em questão dentro do espectro teórico, deve-se
situá-los em um contexto de produção: a princípio, constituem “megafilmes” ou blockbusters
(BORDWELL, 2006, p. 2), produções caracterizadas por orçamentos elevados, emprego
substancial de efeitos especiais e desdobramentos. Segundo Mascarello (2006, p. 336-338), a
produção proveniente dos estúdios de Hollywood a partir da década de 1970 tem sido
caracterizada por termos como “Nova Hollywood”, cinema “pós-clássico” e high-concept.
Tratam-se de denominações carregadas de teor pejorativo, e que sintetizam a visão de que há,
entre os anos de 1960 e 1970, um “cinema autoral” de Hollywood, o American Art Film,
representado por diretores como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese. Ainda segundo esta
concepção, o filme de arte hollywoodiano perde lugar no campo para o blockbuster, por volta
da metade da década de 70.
Representada por nomes como George Lucas e Steven Spielberg, a Nova Hollywood é
caracterizada pelo filme high-concept. Facilmente sintetizado em uma premissa breve
impactante, o high-concept se presta à expansão de seu conceito nuclear para outros
mercados, que atuam de forma acessória ao dos filmes. Este modelo de produção, portanto,
apresenta certa “horizontalidade” de divulgação midiática: o filme não é uma obra fechada em
si, mas o carro-chefe de uma rede de meios que incorrem no mesmo conteúdo básico, como
DVDs e jogos eletrônicos. Tal concepção está também no cerne do conceito de Nova
6
Hollywood, uma transformação nas condições econômicas e nas formulações estéticas que se
expressa com particular vigor na produção cinematográfica posterior a 1975.
(MASCARELLO, 2006, p. 336)
O conceito de pós-clássico, todavia, afirma Mascarello (MASCARELLO, 2006, p.
336), é controverso, na medida em que lida com a idéia de uma oposição fundamental de dois
momentos na história de Hollywood. Esta controvérsia se dá porque, se por um lado é
raramente contestado o fato de que a Nova Hollywood existe em padrões conjunturais
diferentes da produção anterior, por outro, a superação do classicismo da fase antecedente ao
domínio do blockbuster se apresenta como um argumento menos consistente.
O próprio Bordwell afirma, em The Way Hollywood Tells it, que o cinema “pós-
clássico” não é necessariamente um cinema “anticlássico” (2006, p. 16). A permanência da
divisão por gênero é em si uma das expressões máximas da continuidade do classicismo no
cinema norte-americano. Algo que se deve ressaltar é que, desejando acrescentar caráter mais
experimental ao filme, o cineasta pode por vezes encontrar problemas, se deseja por outro
lado traduzir este experimentalismo para um público habituado aos esquemas clássicos. Ainda
segundo o autor, princípios clássicos são empregados amplamente em filmes recentes, ora de
maneira mais conservadora, ora tensionados e aplicados em formatos mais imaginativos
(BORDWELL, 2006, p. 14). Novamente: a narrativa fílmica desenvolve soluções próprias
para o conjunto de problemas com os quais se defronta.
Dentro desta conjuntura, Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas acompanham uma
forte tendência que se apresentou na primeira década dos anos 2000: o fenômeno das
adaptações de personagens de histórias em quadrinhos para o cinema. Os primeiros passos
rumo à formação de um gênero desta natureza (qual seja, da adaptação dos quadrinhos e HQs)
foram dados por Superman em 1978 e Batman de 1989. Após um intervalo, as adaptações de
quadrinhos ganharam ímpeto a partir de 2000.
Comic-book movies were scarcely a genre in the studio era, but they became a
central one with the arrival of the blockbuster. Before the 1970s nearly all live-
action adaptations of cartoon strips and comic books had been B-pictures. (An
exception is the protocamp Prince Valiant, 1955.) When it became evident that the
audience for megapictures was largely teenagers, major productions began drawing
on comic-book characters, and Superman: The Movie (1978) proved that such
projects could attract large audiences… In earlier decades, virtually no top-drawer
director would make a comic-book movie, but the contributions of Barry Levinson
(Dick Tracy, 1990) and Sam Mendes (Road to Perdition, 2002) testified to the
genre’s triumph as much as the box-office earnings of Batman (1989), Men in Black
7
(1997), Blade (1998), X-Men (2000), and Spider-Man (2002) did (BORDWELL,
2006, p. 54).5
Deste modo, vemos que a estratégia de trazer as narrativas de personagens dos
quadrinhos para o cinema encaixa-se no perfil econômico da Nova Hollywood apresentado
por Mascarello, no qual os discursos convergentes de meios distintos – graphic novel, filme,
jogo eletrônico – reforçam-se mutuamente, em um processo maciço de divulgação dirigido
especialmente ao público mais jovem. Essa dinâmica resulta efeitos na estética do filme, que
se espetaculariza e gera imagens que podem servir como plataformas para produtos derivados.
Ainda segundo Mascarello (2006, p 337-338):
Para grande parte dos autores, é indispensável que se considere a determinação da
forma fílmica (o estético) pela nova paisagem da indústria de entretenimento - a de
integração horizontal (o econômico). Durante os anos 1960, os grandes estúdios ou
majors foram alvo de uma primeira onda de fusões e aquisições, à qual sobreveio
outra, nas décadas de 1980 e 1990. Desde então, as majors atuam como meras peças
(fundamentais, é bem verdade) de enormes conglomerados mídiáticos que abarcam
ainda redes de TV aberta e fechada, cadeias de venda e locação de vídeo,
gravadoras, empresas jornalísticas, editoras, provedores de Internet e fabricantes de
jogos eletrônicos, entre outros. Esses diferentes meios e mercados operam em
intensa "sinergia": se reforçam e retroalimentam em termos de marketing,
multiplicam os espaços (janelas) de venda ou exibição (no caso do cinema,
instituindo os mercados primário, secundário e de negócios conexos, como já vimos)
e operam como anteparos econômicos mútuos para o caso de fracassos pontuais de
seus produtos.
Considerando os caracteres que constituem o contexto de produção e apreciação destas
produções, buscamos enumerar aspectos estruturais nos filmes de Christopher Nolan em
concordância com o viés teórico proposto por Bordwell.
Batman segundo Nolan
Tratando de um filme dirigido anteriormente por Christopher Nolan, Amnésia (2001),
Bordwell comenta que o filme obtém êxito em construir uma trama na qual a ordem dos
eventos é reversa com relação ao convencional, mas que existe de acordo com uma estrutura
clássica. A perda de memória de curto prazo do protagonista de Amnésia leva a uma narrativa
5 Os Comic-book movies mal constituíam um gênero na era dos grandes studios, mas eles tornaram-se uma peça
central com a chegada do blockbuster. Antes dos 1970 quase todas as adaptações de tiras e revistas em
quadrinhos haviam sido filmes-B. (Uma exceção é o protocamp O Príncipe Valente, de 1955.) Quando se tornou
evidente que a audiência dos megafilmes era amplamente composta por adolescentes, grandes produções
começaram a adaptar personagens dos quadrinhos, e Superman: O Filme (1978) provou que tais projetos podiam
atrair grandes públicos … Em décadas anteriores, virtualmente nenhum diretor de primeira linha faria um comic-
book movie, mas as contribuições de Barry Levinson (Dick Tracy, 1990) e Sam Mendes (Estrada para a
perdição, 2002) são testemunho do triunfo do gênero, bem como os ganhos de bilheteria que Batman (1989),
Homens de Preto (1997), Blade (1998), X-Men (2000), e Homem-aranha (2002) obtiveram.
8
caracterizada pela redundância, que complementa a estrutura reversa da syuzhet – exemplo de
mecanismo através do qual a narrativa se constrói em torno da solução de questões internas –,
a qual consegue construir uma atmosfera de suspense, mesmo com o desfecho da história
sendo revelado logo no início do filme. (BORDWELL, 2006, p. 78-79)
Para Bordwell, o filme mencionado acima é um bom exemplo da tendência que a
Nova Hollywood tem de valorizar “intrincadas manobras narrativas”. Isto não implica,
contudo, uma divergência com a narrativa clássica – um anticlassicismo –, mas um
redirecionamento de esforços narrativos, que responde ao posicionamento de problemas
específicos dos meios, quais sejam: questões de mercado, convergência com outras mídias,
apropriações diversas na formação das poéticas dos autores. Ao tensionar ou mesmo subverter
os esquemas canônicos, este cinema trabalha ainda segundo princípios que pautam o filme
clássico.
The classical Hollywood film presents psychologically defined individuals who
struggle to solve a clear-cut problem or to attain specific goals. In the course of this
struggle, the character enters into conflict with others or with external
circumstances. The story ends with a decisive victory or defeat, a resolution of the
problem and a clear achievement or nonachievement of the goals. The principal
causal agency is thus the character, a discriminated individual endowed with a
consistent batch of evident traits, qualities, and behaviors. Although the cinema
inherits many conventions of portrayal from theater and literature, the character
types of melodrama and popular fiction get fleshed out by the addition of unique
motifs, habits, or behavioral tics (BORDWELL, 1985, p. 157).6
Em Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas (Figura 1) encontramos narrativas que
correspondem, em grande parte, a estes parâmetros. Por exemplo, ambas refletem o ponto de
vista do protagonista, o que é mais nítido no primeiro filme, em que todo o arranjo fílmico
trabalha de modo a tratar da jornada pessoal de Bruce Wayne/Batman.
6 O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos psicologicamente definidos que lutam para resolver um
problema bem delimitado ou para atingir metas específicas. No decorrer desta luta, o personagem entra em
conflito com outros ou com circunstâncias externas. A história termina em vitória ou derrota, com a resolução do
problema e uma clara conquista ou não-conquista das metas. O principal agente causal é, portanto, o
personagem, um indivíduo apartado em posse de uma gama consistente de traços evidentes, qualidades e
comportamentos. Embora o cinema herde muitas convenções da representação do teatro e da literatura, os tipos
de personagem do melodrama e da ficção popular são revestidos com a adição de motivos únicos, hábitos, ou
tiques de comportamento.
9
Figura 1: Pôsteres de Batman Begins e Batman: O Cavaleiro das Trevas. Fonte: http://www.imdb.com
Em O Cavaleiro das Trevas isso é menos explícito, em razão da importância que é
dada ao antagonista, o Coringa, criando uma aparente polarização entre os dois personagens
que resultaria num processo de descentralização. Por outro lado, consideramos que é ainda a
partir da perspectiva do protagonista Batman que a fábula chega até o espectador. Isso se
evidencia no fato de que, ao observarmos o filme, nosso nível de compreensão acerca da
natureza da perturbação/desafio – qual seja, a ação do Coringa – é pouco, equivalente ao do
protagonista.
É interessante notar, neste sentido, que o Coringa de O Cavaleiro das Trevas é uma
figura de apreensão problemática. Não é um antagonista com propósitos explícitos – ao
contrário do Ra’s al Ghul, de Begins – e não possui passado definido. Enquanto schema, leva
o espectador a suposições e inferências dificultadas pela repetição do motivo da aleatoriedade,
da incerteza. Isso conduz a trama na direção do imprevisível. Conforme já afirmado, o
espectador compreende pouco acerca da natureza do desafio que é imposto através da figura
do Coringa. A própria denominação do antagonista como “Coringa” é por si mesma
expressiva da aleatoriedade de sua constituição.
10
Já o protagonista é exposto, desnudado ao espectador, definido com riqueza de
detalhes, motivações e maneirismos próprios. É através de seu “olhar” que o espectador
percebe a narrativa. Por exemplo, em Begins, temos um herói que inicia sua trajetória; isso
significa que Bruce Wayne precisa aprender e se adaptar às novas experiências, agora não
mais como Bruce, mas como Batman, de modo que o espectador acompanha seu processo de
aprendizagem e desenvolvimento detalhadamente. Da mesma forma, enquanto recurso
narrativo utilizado para envolver o espectador, em O Cavaleiro das Trevas, figura um Batman
detetive, que investiga e faz suposições acerca do que não conhece, em conjunto com o
espectador, que se encontra na mesma situação.
Ao longo de toda a narrativa, em ambos os filmes, há ainda os personagens do
mordomo Alfred e de Lucius Fox, com os quais Bruce Wayne dialoga de maneira freqüente e
consistente. Os referidos personagens revelam e reforçam aspectos particulares à composição
do protagonista e daquele universo. Outros schemata são exigidos na compreensão do
ambiente e dos personagens apresentados, os quais são estrutura convencionais. Destes
destacamos o interesse amoroso do protagonista, Rachel Dawes, e Gordon, o policial aliado
ao herói (Figura 2), que realiza ações heróicas em cada um dos filmes. Este fornece um
contraste ao protagonista, posto que se identifica mais com um homem comum do que ele,
encontra-se em posição mais vulnerável e, no entanto, suas ações são também fundamentais
para o encadeamento da trama.
Figura 2: Batman, o herói, e seu aliado, Gordon. Fonte: Christopher Nolan, 2005.
11
Além do caráter narrativo voltado ao personagem, há a questão da complicação da
ação, ou seja, o momento em que a narrativa insere um elemento que causa o desequilíbrio,
pondo em xeque uma ordem determinada. Neste quesito, é na syuzhet fragmentada de Begins,
em seu estilo que trabalha com idas e voltas bruscas no tempo, com suas convenções
repetitivas – o morcego, a noite, os contornos urbanos – que vemos um maior tensionamento
do modelo.
No início do filme, a trama conduz o personagem central a dois momentos de ruptura,
quando, ainda criança, cai em um poço e é atacado por morcegos e, posteriormente, quando
testemunha o assassinato dos pais. Segue-se a partir deste momento a jornada pessoal do
herói, que tem seu próprio desenvolvimento – o processo de treinamento com a Liga das
Sombras – e seu próprio clímax – que se inicia com “teste” de Bruce sob os efeitos
alucinógenos da flor azul e prossegue para o confronto com os membros da Liga e o incêndio
de seu santuário. A seguir, quando Bruce reencontra seu mordomo Alfred, no retorno para
Gotham, há um “semi-epílogo”. De certo modo, a primeira metade do filme constitui uma
narrativa à parte.
De forma comparável, a segunda metade de Begins acompanha a apresentação de um
universo onde a persona de Batman se manifesta e age, bem como apresentação de um
mistério, o desenvolvimento da ação e um segundo clímax – o confronto final com a Liga das
Sombras –, que é seguido por um epílogo relativamente breve. A finalização constitui uma
quebra brusca com o clímax, que conduz ainda a um momento instigante, o qual abre espaço
para uma continuidade daquele universo em outro filme.
O Cavaleiro das Trevas, por sua vez, se caracteriza pela ampliação e diversificação do
universo introduzido no primeiro filme, e trata de como este universo reage à existência de
Batman. Nele é aprofundada a figura de Gordon com todos os traços já presentes no primeiro
filme, assim como Lucius, Alfred e Rachel, enquanto é apresentado o personagem de Harvey
Dent, promotor público de Gotham, que tenta agir em conjunto com o Batman para suprimir a
presença do crime organizado na cidade.
É neste contexto que se insere o Coringa, como elemento perturbador, proporcionando
uma mudança de rumo, isto é, a complicação da ação. As ações e reações entre Batman e
Coringa conduzirão a um clímax notavelmente prolongado, que se inicia com a captura do
Coringa e se encerra apenas com a morte de Harvey Dent. De modo semelhante ao desfecho
12
de Begins, o filme termina deixando o espectador em suspenso, após a ruptura – ainda mais
brusca – com o clímax. O epílogo consiste meramente num rápido diálogo entre Gordon e seu
filho, enquanto o Batman foge, com a polícia em seu encalço, novamente oportunizando-se
É válido notar que, afora a carga estendida de tensão, o segundo filme mantém uma
linearidade maior – não há flashbacks alternando linhas temporais distintas, como em Begins.
Ambos, portanto, trabalham dentro dos parâmetros do filme clássico, subvertendo, todavia,
um número de seus meios, cedendo especificidade às narrativas.
A que podemos creditar as aparentes discrepâncias com relação ao estilo canônico no
que toca ao tratamento de personagens e à fragmentação da narrativa no primeiro filme? Não
a um rompimento com o clássico, pois mesmo em sua forma tensionada, os padrões são
mantidos. Em diversos sentidos, preservam a estrutura clássica, todavia, o fazem, como
qualquer obra fílmica, concedendo certo espaço à manifestação de uma poética do autor, a
qual Nolan explorará à sua maneira.
Considerações finais
O método proposto por Bordwell para a análise fílmica revela-se útil para nossos fins
neste artigo, à medida que tira proveito de uma extensa tradição teórica formalista, agregando
a essa tradição conceitos narratológicos substanciais, especialmente no que diz respeito à
análise do cinema hollywoodiano mainstream. Há que se mencionar, certamente, que a
elaboração da estrutura do filme narrativo clássico, acompanhada da reflexão acerca de
permanências classicistas no cinema contemporâneo, fornece um referencial enriquecedor
para qualquer vislumbre que seja lançado sobre o cinema dito “pós-clássico”.
Essa relação é enriquecedora para o presente artigo porque este compreende a análise
de um objeto circunscrito na esfera do cinema comercial, do cinema de grande público,
produto que se espalha, buscando a integração horizontal com outras mídias, consolidando um
local de prevalência no panorama cultural atual. É este o caso da franquia a que pertencem os
filmes dirigidos por Nolan. O conceito de schemata revelou-se particularmente interessante
para a análise de nossos filmes, permitindo uma leitura dos aspectos redundantes da narrativa
que rastreamos na obra de Nolan e dos esquemas recorrentes prevalentes na composição de
sua unidade visual e narrativa.
13
Os filmes de Nolan, como vimos, evidenciam que uma abordagem dita “autoral” não
pode ser de todo excluída do modelo cinematográfico industrial estadunidense a possibilidade
de uma poética, de uma produção consciente, da “mão” do autor, que singulariza sua peça,
tornando-a única. Ao mesmo tempo há que se considerar que a abordagem mais autoral ainda
costuma lidar com os mesmos componentes estruturais básicos, especialmente no que se
refere ao encadeamento narrativo, que um filme considerado descartável por seu foco no
grande público.
Como o próprio Bordwell dá a entender, o espectador de Begins e O Cavaleiro das
Trevas se configura a princípio como um fruidor habituado às estruturas convencionais da
narrativa hollywoodiana, e ainda assim desejoso de variação para a maciça repetição de tropos
característica do blockbuster high-concept. Este fruidor passeia pelos filmes, servindo-se dos
pontos de apoio estéticos e narrativos que já conhece, mas adquirindo conhecimentos e
experiências ao longo do caminho, que acrescentam novas leituras a seu arcabouço e tornam
mais complexa sua apreciação destes produtos. Há ainda, pode-se supor, uma infinidade de
fatores pessoais que interferem nessa apreciação, tornando-a única para cada espectador: a
mesma história pode ser vista de várias formas, dependendo do contexto e dos olhares que a
vislumbram. Em razão dessa dinâmica, simultaneamente constante e variável, a qual justifica
o constante exercício da análise no cinema.
Filmografia
BATMAN Begins. Direção: Christopher Nolan. Warner Bros., 2005. DVD. (140 min.).
BATMAN: O Cavaleiro das Trevas. Direção: Christopher Nolan. Warner Bros., 2008. 1
DVD (152 min.).
Referências bibliográficas
BORDWELL, D. Historical Poetics of Cinema in: PALMER, R. B. The Cinematic Text:
Methods and Approaches. New York: AMS Press, 1989, pp. 369–398.
_________________. Narration in the Fiction Film. Madison: University of Wisconsin Press,
1985.
_________________. The Way Hollywood Tells It: Story and Style in Modern Movies.
Berkeley/Los Angeles/Londres: Univers. California Press, 2006.
14
GOMES, R. Teorias da recepção, história e interpretação de filmes: um breve panorama.
Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/gomes-regina-teorias-recepcao-historia-
interpretacao-filmes.pdf. Acesso em 30/3/2011. pp. 1141-1148.
MASCARELLO, F. Cinema Hollywoodiano Contemporâneo. In: MASCARELLO, F.
História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006, pp.333-359.
NOLAN, C. (Diretor). (2005). Batman Begins [DVD]. Burbank, CA: Warner Bros.
_________________. (2008). Batman – O Cavaleiro das Trevas [DVD]. Burbank, CA:
Warner Bros.
SANTIAGO JUNIOR, F.C.F. David Bordwell: sobre a narrativa cinematográfica. In: X
Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste - SIPEC, 2004. Rio de Janeiro, RJ.