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Uma cidade não tão maravilhosa: o jornal A Noite e as políticas oficiais de perseguição aos “súditos do Eixo” durante a ditadura do Estado Novo na cidade do Rio de Janeiro (1942-1943) VANDRÉ APARECIDO TEOTÔNIO DA SILVA* 1 Em janeiro de 1942, foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a III Conferência dos Chanceleres Americanos, evento que contou com a participação de delegações diplomáticas dos países do Continente e que objetivou responder à agressão sofrida pelos Estados Unidos poucos meses antes (ataque à base estadunidense de Pearl Harbor no Havaí, em dezembro de 1941). Após longos debates promovidos pelas comissões, os países americanos se decidiram por acompanhar os EUA, anunciando o rompimento de suas relações diplomáticas com aqueles que compunham o Eixo (Alemanha, Japão e Itália). Durante esse período, vivíamos a ditadura do Estado Novo (1937-1945), regime autoritário liderado por Getúlio Vargas e que construiu considerável sustentação política junto a amplos setores da sociedade brasileira. O Governo Federal, dotado de amplos poderes outorgados pela Constituição de 1937, centralizava em si as decisões políticas e assumia o papel de coordenador da sociabilidade, promovendo, em grande escala, processos de racionalização e burocratização de amplos setores da vida brasileira, sobretudo, controlando os meios de comunicação de massa objetivando a construção de um projeto de comunicação social voltado à divulgação da ideologia estadonovista. Embora as declarações de rompimento diplomático com esses países não tenham ocorrido de modo coletivo a Argentina, por exemplo, não aderiu de pronto , quase todos os estados nacionais americanos se decidiram pelo fim das conversações com Alemanha, Itália e Japão em razão do ataque sofrido pelos EUA. A partir de então, o Estado Novo (1937-1945) * Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo.

Uma cidade não tão maravilhosa: o jornal A Noite e as ...€¦ · ocorrido de modo coletivo – a Argentina, por exemplo, não aderiu de pronto –, quase todos os estados nacionais

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  • Uma cidade não tão maravilhosa: o jornal A Noite e as políticas oficiais de perseguição

    aos “súditos do Eixo” durante a ditadura do Estado Novo na cidade do Rio de Janeiro

    (1942-1943)

    VANDRÉ APARECIDO TEOTÔNIO DA SILVA*1

    Em janeiro de 1942, foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a III Conferência dos

    Chanceleres Americanos, evento que contou com a participação de delegações diplomáticas

    dos países do Continente e que objetivou responder à agressão sofrida pelos Estados Unidos

    poucos meses antes (ataque à base estadunidense de Pearl Harbor no Havaí, em dezembro de

    1941). Após longos debates promovidos pelas comissões, os países americanos se decidiram

    por acompanhar os EUA, anunciando o rompimento de suas relações diplomáticas com aqueles

    que compunham o Eixo (Alemanha, Japão e Itália). Durante esse período, vivíamos a ditadura

    do Estado Novo (1937-1945), regime autoritário liderado por Getúlio Vargas e que construiu

    considerável sustentação política junto a amplos setores da sociedade brasileira. O Governo

    Federal, dotado de amplos poderes outorgados pela Constituição de 1937, centralizava em si as

    decisões políticas e assumia o papel de coordenador da sociabilidade, promovendo, em grande

    escala, processos de racionalização e burocratização de amplos setores da vida brasileira,

    sobretudo, controlando os meios de comunicação de massa objetivando a construção de um

    projeto de comunicação social voltado à divulgação da ideologia estadonovista.

    Embora as declarações de rompimento diplomático com esses países não tenham

    ocorrido de modo coletivo – a Argentina, por exemplo, não aderiu de pronto –, quase todos os

    estados nacionais americanos se decidiram pelo fim das conversações com Alemanha, Itália e

    Japão em razão do ataque sofrido pelos EUA. A partir de então, o Estado Novo (1937-1945)

    * Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo.

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    passou a implantar políticas oficiais de perseguição – policial e econômica – contra os

    imigrantes e seus descendentes dessas nacionalidades, bem como às empresas dos “súditos do

    Eixo”. Criava-se, assim, um protocolo midiático de comunicação que tinha como fim divulgar

    uma campanha de controle e punição desses imigrantes através do jornal A Noite – veículo de

    comunicação que foi encampado pelo regime estadonovista em 1940 -, que serviu, sobretudo,

    como porta voz da política de comunicação social oficial daquela ditadura, com características

    similares presentes noutros órgãos da imprensa brasileira estadonovista, sob censura e

    estímulos diversificados do governo (BAHIA, 1990, p. 208). Desta maneira, formatou-se um

    novo campo comunicacional onde a “[...] política e cultura se mesclam com idéias, imagens e

    símbolos”, surgindo, a partir de então, a propaganda política, veiculada por meio da

    cotidianeidade da notícia, como resultante de práticas comunicacionais enviesadas por

    representações do político (CAPELATO, 2009, p. 36).

    O Estado Novo atribuiu ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) no Rio de

    Janeiro, e aos DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) nos estados -

    auxiliados pela Delegacia de Estrangeiros (DE) do Distrito Federal – a tarefa de promover o

    recadastramento desses grupos, bem como, de aplicar medidas restritivas que afetaram

    diretamente seu cotidiano. Nesse sentido, o DOPS2, compreendido enquanto um braço armado

    do regime, fazia “[...] parte do aparato repressivo do Estado, voltado, essencialmente, para a

    vigilância sobre os considerados ‘suspeitos’ de desordem política e/ou social”. Os “súditos”

    eram considerados pela ditadura estadonovista como elementos impertinentes e vistos como

    2 O DOPS foi criado através do Decreto-Lei nº 2.034, de 30 de dezembro de 1924, e extinto pelo Decreto-Lei

    20.728, de 4 de março de 1983. Sua longevidade deve ser ressaltada, sobretudo, devido à sua ampla versatilidade

    em estabelecer práticas policiais vigilantes e punitivas contra os inimigos internos dos governos dos quais essa

    instituição policial prestou seus serviços (AQUINO et al., 2002, p. 20).

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    um “[...] entrave para o desenvolvimento do país”. A designação “súditos do Eixo” era uma

    “[...] forma pejorativa pela qual os policiais tratavam os cidadãos italianos, alemães e

    japoneses” que, sendo taxados, a priori, como potenciais inimigos internos do Brasil: a

    nacionalidade, a cor da pele, a língua e os costumes eram fatores determinantes na investigação

    policial contra esses estrangeiros pelo simples fato de terem nascido – ou serem descendentes

    de nativos – em países com os quais o Brasil havia finalizado suas relações diplomáticas

    (AQUINO et al., 2002, p. 47). Segundo essa abordagem, também se enquadravam na categoria

    de suspeitos entidades coletivas, empresas e associações culturais e esportivas que tivessem, de

    alguma maneira, ligação com Alemanha, Itália e Japão (Idem, p. 51-52).

    O jornal A Noite participou ativamente dessa campanha oficial, maximizada através de

    sua produção noticiosa, que publicizou não apenas as práticas policiais repressivas, mas,

    sobretudo, elogiou e incentivou a formação de um sentimento Anti-Eixista na época. Aquele

    vespertino, aqui encarado como base para análise das relações de comunicabilidade sobre o

    tema, se constitui, assim, numa importante fonte histórica para a ampliação das abordagens

    sobre a ditadura estadonovista, bem como do próprio uso da imprensa enquanto elemento de

    legitimação de ações oficiais. Assim sendo, objetiva-se problematizar não apenas o jornal

    enquanto subsídio temático e informativo – entendido como base documental histórica – mas,

    sim, proporcionar novas abordagens que problematizem a imprensa como ator político,

    portanto, que intervém na realidade com a qual ele dialoga e dotado de historicidade própria.

    Conforme apontaram Cruz e Peixoto (2007), os meios de comunicação social “não nasceram

    prontos”, mas, são o resultado da “experimentação e da criação social e histórica” da sociedade

    em que atuam, sendo, sobretudo, “[...] negociados social e culturalmente, num espaço de um

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    diálogo conflituoso sobre o fazer imprensa a cada momento histórico” (CRUZ; PEIXOTO,

    2007, p. 259).

    Desta maneira, problematiza-se o papel da imprensa, sobretudo dos jornais diários,

    como suporte para o Ensino de História e sua importância para a ampliação não somente

    temática, mas também, metodológica de procedimentos analíticos das relações entre

    temporalidade e comunicação social. Sem esquecer que posturas preconceituosas dessa

    natureza se manifestaram em diferentes momentos históricos brasileiros, inclusive

    recentemente, articuladas a outros preconceitos de raça, religião, etnia e nacionalidade (SILVA,

    2015). Além disso, também recentemente, a imprensa desempenhou papel estratégico na

    derrubada de Dilma Rousseff, evidenciando seu papel muito ativo daquele campo de

    comunicação na vida política.

    O vespertino A Noite foi encampado pelo Estado Novo em março de 1940 como

    resultado da nacionalização da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande

    (CEFSPRG). Sob a justificativa de assegurar ao Brasil a exploração de setores da economia de

    “interesse nacional”, a ditadura criou as Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional

    (EIPN), instituição pública que foi responsável por administrar as instituições capitalistas

    ligadas à CEFSPRG, dentre elas, o grupo de empresas de comunicação Empresa A Noite.

    Apropriado pelo regime, esse conglomerado midiático era composto, principalmente, pelo

    jornal A Noite e pela Rádio Nacional, dois veículos de comunicação que possuíam grande

    audiência e que, com a encampação, passaram a adotar fazeres jornalísticos que corroboravam

    com a ideologia estadonovista. Assim, o apoio do periódico às campanhas promovidas pelo

    Estado Novo vinha no sentido de reforçar as mensagens que aquela ditadura procurava veicular,

    buscando, sobretudo, a promoção de uma comunidade de consenso ou, como apontou Silvana

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    Goulart, uma “verdade oficial” (GOULART, 1990). Através do jornal, é possível verificar

    como as práticas comunicacionais do Estado Novo se davam, que valores exaltavam e quais

    elementos as compunham, buscando-se, além do mais, problematizar o papel da imprensa

    enquanto fonte histórica. É pertinente ressaltar que a própria Constituição de 1937, a chamada

    “Polaca” – assim designada para evocar a similar nazista polonesa, sem esquecer que a mesma

    palavra designava genericamente prostitutas no Brasil –, atribuía aos meios de comunicação

    social uma função de “caráter público”, transformando-os em “[...] sustentáculo do Estado no

    seu esforço de autojustificação e legitimidade” (Idem, p. 49).

    Sendo assim, as primeiras vítimas dessas políticas de perseguição oficial foram as

    associações culturais ligadas aos países do Eixo. Uma determinação de Filinto Muller, chefe de

    polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, entendeu que, por se tratarem de entidades estrangeiras

    “eixistas”, deveriam ter suas atividades paralisadas pela polícia: o Yacht Club Brasileiro de

    Niterói foi interditado e, segundo o periódico, quando os investigadores do DOPS adentraram

    o recinto, depararam-se com materiais de propaganda nazista diversos (bandeiras, emblemas,

    uniformes etc.). De acordo com a reportagem, o clube havia sido dominado por simpatizantes

    do Nazismo, chegando esses dirigentes a promoverem uma política de expurgo de sócios

    brasileiros, sobretudo os que discordavam da administração dos imigrantes (A Noite, 24 mar.

    1942, p. 2, 1. ed.). Cabe lembrar que a simpatia pelo Nazismo, antes daquela ruptura de relações

    diplomáticas com a Alemanha, não se restringia a esses meios e até podia se fazer presente em

    altos escalões governamentais do Estado Novo.

    O fechamento dessas instituições culturais e beneficentes ligadas aos estrangeiros

    “eixistas” buscava, por outro lado, a aplicação da legislação que impunha o uso da língua

    portuguesa em locais privados e públicos: em fevereiro de 1941, o Estado Novo já havia

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    iniciado um movimento de “nacionalização da língua”, proibindo, inclusive, a publicação de

    livros, revistas e demais bens culturais em idioma estrangeiro (A Noite, 8 fev. 1941, p. 1, 1. ed.).

    A partir do rompimento com o Eixo, as medidas aplicadas contra as sociedades culturais desses

    imigrantes ganhavam força e amparo legal, visto que a ditadura não permitiria, naquele contexto

    bélico, que as instituições compostas por “súditos” – mesmo as beneficentes – continuassem

    suas atividades pois, tratando-se de entidades visando à integração do imigrante, obviamente, a

    língua materna seria a utilizada nesses locais.

    O Estado Novo também voltou suas atenções para regiões onde havia colônias de

    imigrantes alemães, italianos e japoneses, sobretudo de povos germânicos na região Sul: a

    polícia gaúcha, por exemplo, informou a essa população de estrangeiros que antes de realizarem

    viagens para fora de seus municípios residenciais, deveria solicitar um “salvo-conduto”,

    documento emitido pela Delegacia de Estrangeiros que autorizava sua ausência da cidade. Os

    imigrantes do Eixo também foram proibidos de promoverem festas particulares, realizarem

    comentários sobre a guerra, distribuir panfletos ou jornais escritos em suas línguas maternas,

    entoar os hinos de seus países, falar o idioma materno em local público, dentre outras atividades.

    Embora o regime garantisse publicamente que não permitiria “[...] que a honra dos mesmos seja

    ultrajada” (A Noite, 30 jan. 1942, p. 5, 1. ed.), a ditadura nada fez para que os direitos básicos

    desses imigrantes fossem respeitados3.

    O fato de o Estado Novo vir a público afirmar que iria resguardar a integridade física

    dos “súditos”, primeiro, não correspondia à verdade e, segundo, não significava que eles não

    3 O direito ao consumo, restrito devido às leis de racionamento impostas durante a guerra, também constituiu uma

    forma do Estado limitar cada vez mais a vida dessas pessoas: durante uma reunião da Associação Brasileira de

    Imprensa (ABI), a entidade sugeriu ao governo que proibisse a venda de gasolina para esses grupos pois, como

    “súditos” de governos estrangeiros e inimigos, esses estrangeiros deveriam cumprir regras mais rígidas do que as

    que foram impostas aos brasileiros (A Noite, 25 abr. 1942, p. 2, 1. ed.).

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    passariam a ser alvos dos brasileiros. Com a população irada em razão do torpedeamento de

    embarcações nacionais por submarinos alemães, o periódico A Noite incentivava a formação de

    um ambiente de revanchismo ao noticiar, com grande apelo sensacionalista, os ataques contra

    navios como o “Buarque”, o “Olinda”, o “Arabutan” e o “Cairu”.

    O regime, por sua vez, sob pressão popular (induzida) e internacional, passou então a

    reagir: o Decreto-Lei nº 4.166, de 12 de março de 1942, determinou o confisco dos depósitos

    bancários e de propriedades de pessoas e empresas pertencentes aos “súditos do Eixo” que

    ultrapassassem dois contos de réis. A justificativa dada pelo governo foi a de que o Estado

    visava a formar um fundo de indenizações para cobrir os prejuízos causados pelas agressões (A

    Noite, 12 mar. 1942, p. 1-3, 2. ed.). De acordo com o jornal, essas medidas objetivavam dar ao

    Governo Federal “[...] novos meios de ação, em completa consonância com as exigências do

    direito internacional, cujas gravidades transparece nos últimos episódios que estão

    emocionando e alarmando a opinião pública” (A Noite, 12 mar. 1942, p. 1, 2. ed.).

    O ódio da população era alimentado pelas notícias produzidas pela imprensa que,

    através de um discurso de revide, publicizava esses sentimentos coletivos como manifestações

    de patriotismo: um comunicado da Chefatura de Polícia, publicado no jornal, informou que

    “[...] um grupo e pessoas exaltadas percorreu as ruas mais centrais da cidade, depredando

    propriedades de súditos das nações do Eixo”. Embora a nota oficial exortasse a população a não

    participar desses atos violentos, o periódico divulgava cada vez mais notícias sobre a ação

    popular contra símbolos “eixistas” (A Noite, 13 mar. 1942, p. 3, 1. ed.). O vespertino vibrava

    ao noticiar essas manifestações: na Capital Federal, a população retirou as placas de logradouros

    públicos que homenageavam países do Eixo. Segundo o periódico, “[...] esses fatos foram

    praticados sob vivas ao Brasil e com os populares empunhando bandeiras brasileiras” (A Noite

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    14 mar. 1942, p. 2, 2. ed.); ou seja, sob o manto de um discurso nacionalista carregado de rancor,

    as ações populares eram muitas vezes ignoradas pela ditadura que, fazendo vistas grossas,

    deixou que a massa enraivecida escolhesse seus alvos e aplicasse, sob a observação atenta das

    polícias, penalidades contra empresas, pessoas e quaisquer signos que lembrassem os países

    agressores.

    A Noite considerava natural que se promovesse a depredação de propriedades de

    estrangeiros; contudo, o clima de vingança contra prédios e instituições comerciais deu vasão

    a noções distorcidas sobre esses indivíduos pois, além de serem vítimas da população, seus

    filhos, brasileiros, passaram a ser vistos como potenciais criminosos: em reportagem da

    Agência Nacional (AN) – órgão de imprensa oficial do regime -, o jornal denunciou que pais

    “súditos” estariam promovendo a educação de seus filhos na língua materna e sob preceitos da

    nacionalidade às quais pertenciam. De acordo com a publicação, os descendentes dos “súditos”

    “[...] da nacionalidade só se aproveitam para auferir vantagens e exercer direitos. Fora daí,

    renegando a pátria onde nasceram e totalmente devotados à causa política de seus países”, não

    passavam de verdadeiros aproveitadores (A Noite, 12 jun. 1942, p. 1-3, 1. ed.).

    Em vista disso, o Estado Novo compreendia que tanto as medidas policiais como as

    ações restritivas financeiras estavam dando certo, chegando a classificar como “satisfatória” a

    arrecadação referente aos bens dos “súditos do Eixo” (A Noite, 23 jun. 1942, p. 1-3, 2. ed.). Por

    outro lado, os imigrantes tentavam escapar dessas restrições, pleiteando, por exemplo, a isenção

    de tributos ou o bloqueio de processos de expropriação de propriedades, justificando ao governo

    que tinham residência no país há muitos anos ou que possuíam filhos que haviam nascido no

    Brasil; entretanto, a ditadura só abria exceções para casos de estrangeiros naturalizados

    brasileiros (A Noite, 25 jun. 1942, p. 1, 2. ed.). Nesse contexto, o embaixador do México no

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    Brasil, José Maria D´Avila, em entrevista ao jornal, chegou a declarar que essas medidas

    restritivas de cunho econômico eram “[...] enérgicas, porém necessárias e humanas” (A Noite,

    29 jul. 1942, p. 1-7, 2. ed.).

    “Humanidade” não seria a melhor palavra para descrever as medidas: em agosto de

    1942, A Noite chegou a sugerir que “súditos” e estrangeiros naturalizados brasileiros fossem

    submetidos a trabalhos forçados (!) (A Noite, 20 ago. 1942, p. 2, 1. ed.). Seguindo essa linha, o

    vespertino incentivava o clima de desconfiança contra o elemento considerado “suspeito”: os

    brasileiros deveriam ser cautelosos ao lidarem com os “súditos”, sendo um de seus deveres

    cívicos realizar denúncias contra essas pessoas pois, apesar de parecerem ambientados ao

    Brasil, muitos, sobretudo os naturalizados, haviam sido presos sob acusações de terem cometido

    crimes “contra os interesses vitais” do país (A Noite, 3 mar. 1943, p. 2, 1. ed.).

    O Estado Novo, com largo apoio do periódico, passou a instruir a população sobre como

    deveriam ser feitas as denúncias de possíveis atividades “suspeitas”: um despacho emitido por

    Marcondes Filho, ministro da Justiça, orientou os brasileiros no sentido de que, para melhor

    auxiliar as forças policiais no processo investigativo, deveriam juntar provas contra “súditos

    suspeitos” antes de encaminharem as delações ao DOPS (A Noite, 1 dez. 1942, p. 1-3, 1. ed.).

    Através de portaria do DOPS, a ditadura procurou explicar como os nacionais deveriam

    proceder: informar, por escrito, “[...] atitudes, costumes, gestos, atos tomados, adotados ou

    praticados por nacionais dos países com os quais o governo, em sua sabedoria, rompeu

    relações” (A Noite, 7 maio 1942, p. 2, 1. ed.). A postura oficial do regime denota que várias

    dessas denúncias poderiam ser enganosas, levando a crer que muitas pessoas acabavam sendo

    delatadas às autoridades policiais por vizinhos ou colegas de trabalho pelo simples fato de serem

    originários desses países e não apenas em razão de apresentarem qualquer risco real contra a

  • 10

    “segurança nacional”. Por outro lado, rixas, desentendimentos e disputas diversas, acabavam

    sendo resolvidas com uma rápida ligação para o DOPS ou para a DE, configurando-se, assim,

    em práticas perversas e oportunistas de vingança. Além de serem expropriados financeiramente

    pelo regime e terem suas vidas sociais limitadas, esses imigrantes e seus descendentes “súditos

    do Eixo” passaram a ser alvo de uma nova investida estadonovista: a instabilidade do emprego,

    sendo eles vistos pelo Estado Novo como trabalhadores facilmente dispensáveis em razão de

    suas nacionalidades representarem um “risco à segurança nacional”.

    Em agosto de 1942, o Brasil decretou guerra contra Alemanha e Itália (exceto o Japão

    – fato que só iria ocorrer em 1944) em decorrência dos protestos populares contra o

    afundamento de navios nacionais no Oceano Atlântico Sul. Após o Estado de Guerra, a vida do

    “súdito” no Brasil passou a ser cada vez mais dificultada à medida que novas restrições eram

    baixadas pela ditadura. O mundo laboral, por sua vez, também acabou sendo afetado pelas

    medidas oficiais restritivas: por meio do Decreto-Lei nº 4.638, de 31 de agosto de 1942, o

    regime autorizou que empresas e governos estaduais e municipais demitissem, por “justa

    causa”, qualquer trabalhador “súdito do Eixo” que estivesse atuando em setor de “interesse da

    economia nacional”. O decreto só vinha legitimar o que já estava ocorrendo na Capital Federal

    e em boa parte do Brasil: a dispensa indiscriminada de trabalhadores dessas nacionalidades. A

    Prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo, antes mesmo da lei ser baixada, já havia cancelado

    todos os contratos de trabalho de artistas da Alemanha e Itália no meio da temporada lírica do

    Teatro Municipal do Rio de Janeiro (A Noite, 23 ago. 1942, p. 1, 1. ed.). Do mesmo modo,

    empresários brasileiros se orgulhavam ao noticiar no jornal que tinham promovido a demissão

    de empregados “súditos”: a Companhia Internacional de Seguros informou que “[...] os poucos

  • 11

    funcionários súditos do Eixo que prestavam serviços à companhia, foram afastados de seus

    cargos” (A Noite, 29 ago. 1942, p. 4, 1. ed.).

    A autorização do Estado Novo às empresas para demitirem funcionários considerados

    “indesejáveis ao interesse nacional” gerava algumas dúvidas no meio empresarial: a Companhia

    Portland de Cimento solicitou ao Ministério do Trabalho permissão para dispensar dois

    empregados de nacionalidade alemã. Respondendo ao pedido – que era, inclusive, publicado

    pelo jornal -, o ministro Marcondes Filho não apenas autorizou a demissão, como também

    exortou demais capitalistas no sentido de que, se a empresa fosse de “interesse da defesa

    nacional”, essas consultas eram dispensáveis (A Noite, 24 nov. 1942, p. 8, 2. ed.). O jornal

    chegou a comentar que a medida era “justa e humana”, pois não permitia a demissão

    indiscriminada de estrangeiros (A Noite, 28 nov. 1942, p. 2, 1. ed.), fato que não se confirmou

    nem mesmo com o fim da guerra: após a vitória Aliada na Frente Ocidental, os patrões

    brasileiros mantiveram a dispensa de funcionários “súditos” se apoiando no Decreto-Lei nº

    4.638 (A Noite, 1 jul. 1945, p. 4, 1. ed.). Se a guerra estava para acabar, não fazia mais sentido

    continuar a política de perseguição a esses grupos de imigrantes

    Em novembro de 1942, após a criação da Comissão de Defesa Econômica (CDE) –

    órgão responsável pela economia de guerra no Brasil -, a mediação do Ministério do Trabalho

    sobre a dispensa dos trabalhadores “súditos” passou a ser exercida pelo novo colegiado. Deste

    modo, a CDE decidiu que as empresas e os clubes sociais tinham liberdade de despedir

    empregados que se enquadrassem no referido decreto-lei, abrindo-se, portanto, precedentes

    para a demissão indiscriminada de trabalhadores (A Noite, 31 dez. 1942, p. 1-3, 1. ed.). O órgão

    também autorizou, e até incentivou, que os empresários brasileiros delatassem os “sócios

    súditos do Eixo”, visando, sobretudo, à expulsão desses capitalistas das sociedades comerciais.

  • 12

    As ações expropriadas seriam divididas entre os proprietários (brasileiros, é claro) restantes (A

    Noite, 13 jun. 1943, p. 3, 1. ed.).

    Apesar de haver denúncias ao Ministério do Trabalho que denotavam o cometimento de

    abusos por parte dos patrões, o vespertino A Noite ressaltava que a legislação estava sendo

    respeitada pelos capitalistas: o Ministério do Trabalho negou a dispensa de um funcionário

    italiano de uma empresa estadunidense (não cita o nome da instituição) pois considerou que o

    empregado residia no Brasil por décadas, era casado com uma brasileira e tinha ainda filhos

    oriundos desse casamento, fato que, segundo o periódico, denotava que apesar das restrições

    impostas, a resposta de Marcondes Filho representava a “índole do povo brasileiro” e seu “alto

    senso de justiça” (A Noite, 29 maio 1943, p. 2, 1. ed.). De financeiras, as medidas restritivas

    oficiais rapidamente passaram a atingir também as relações de trabalho desses estrangeiros

    para, num terceiro momento, a restrição social passar a ser regra no tratamento dispensado a

    essas pessoas. À medida que o regime se envolvia cada vez mais com a guerra, maiores eram

    as limitações impostas a tais grupos: além da língua silenciada, hábitos cerceados e o sustento

    expropriado, italianos, alemães e japoneses tiveram também suas sociabilidades encurraladas.

    Essas medidas repressivas contra os “súditos” acabaram gerando pânico na comunidade

    de imigrantes que residiam no Distrito Federal e noutras partes do país. Entre os anos de 1942

    a 1943, os estrangeiros no Brasil, de diversas nacionalidades, temendo o aumento da repressão

    governamental, passaram a procurar o Ministério da Justiça solicitando abertura de processos

    de naturalização pois, oficialmente, essa era uma das poucas formas de se escapar da

    perseguição do Estado Novo. Temendo serem presos, torturados, deportados ou mortos, alguns

    “súditos” optaram por não aguardar os tramites legais – considerando que para alemães,

    italianos e japoneses essa tarefa se tornava quase impossível, visto que o regime ou ignorava

  • 13

    ou negava esse direito a tais grupos -, decidindo-se pela tentativa, em muitos casos frustrada,

    de fugirem do Brasil pela fronteira com Uruguai, Argentina e Paraguai (A Noite, 24 ago. 1942,

    p. 1, 1. ed.). A ditadura então começou a promover o que ela chamou de “expulsão de

    indesejáveis”: estrangeiros que, considerados suspeitos pela polícia, eram tratados como

    espiões, sabotadores ou participantes de movimentos quinta-colunistas, ou seja, grupos

    compostos por imigrantes e brasileiros que procuravam, através de ações de sabotagem ou

    espionagem, dificultar o esforço de guerra do Brasil. A Delegacia de Estrangeiros do Rio de

    Janeiro, por exemplo, chegou a solicitar ao Ministério da Justiça a deportação de um húngaro e

    de um alemão que foram classificados como “suspeitos” pelo fato de falarem alemão em local

    público (A Noite, 30 nov. 1942, p. 2, 2. ed.), gesto que de acordo com a legislação

    nacionalizadora vigente na época, era encarado como um crime grave.

    O Estado Novo foi muito além da interdição financeira e laboral, interferindo em amplos

    aspectos da vida social desses imigrantes: patentes industriais que estivessem registradas no

    Departamento Nacional de Propriedade Industrial (DNPI) em nome de “súditos do Eixo” foram

    canceladas pelo regime (A Noite, 3 set. 1942, p. 1-4, 2. ed.), abrindo, assim, possibilidade para

    que industriais brasileiros pudessem se apoderar dos inventos criados por alemães, italianos e

    japoneses. A Companhia Estrada de Ferro Central do Brasil, por sua vez, cassou todas as

    licenças das bancas de jornais nas estações de trem que pertenciam a “súditos”, proibindo,

    ainda, que esses estrangeiros vendessem jornais dentro e no entorno das paradas ferroviárias (A

    Noite, 30 ago. 1942, p. 8, 1. ed.).

    As restrições da vida social do “súdito” não paravam por aí: a polícia carioca chegou a

    impedir que esses imigrantes saíssem da Capital Federal. Caso um estrangeiro de uma dessas

    nacionalidades decidisse fazer uma visita à “Cidade Maravilhosa”, deveria solicitar uma

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    autorização especial junto à Delegacia de Estrangeiros (DE) que, via de regra, negava o pedido

    sob a justificativa de que se tratava de pessoa de nacionalidade oriunda de “país beligerante”

    com o Brasil (A Noite, 25 ago. 1942, p. 1, 2. ed.). Em São Paulo, não foi diferente: “súditos”

    foram proibidos de fixarem residência na capital bandeirante sem que possuíssem autorização

    prévia da polícia (A Noite 9 jul. 1943, p. 1, 2. ed.); do mesmo modo, a interventoria paulista de

    Fernando Costa – ex-ministro da Agricultura no período 1937-1941- organizou o deslocamento

    em massa de grupos de japoneses para o interior do estado, alegando, sobretudo, que a medida

    vinha para garantir maior vigilância sobre essa população (A Noite, 12 jul. 1943, p. 8, 2. ed.);

    O Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP) determinou

    que todos os “súditos” que residissem na cidade portuária de Santos – considerada estratégica

    pelo regime - deveriam ser realocados em municípios do interior (A Noite, 9 jul. 1943, p. 8, 2.

    ed.).

    Quando eventos públicos no Distrito Federal que contavam com grande fluxo de

    pessoas eram realizados, o regime impedia antecipadamente a livre circulação dos “súditos” em

    tais espaços: durante os preparativos para os festejos do 7 de setembro, por exemplo, a

    Chefatura de Polícia do Rio de Janeiro proibiu que alemães, italianos e japoneses participassem

    das comemorações e, sobretudo, que saíssem de suas residências no feriado nacional (A Noite,

    5 set. 1942, p. 1-3, 1. ed.). No carnaval carioca de 1943, por exemplo, alemães, italianos e

    japoneses foram proibidos pelas autoridades policiais de pularem a folia sob risco de detenção;

    ameaça que não impediu que mais de cem alemães, presos pelo DOPS, descumprissem a

    determinação policial (A Noite, 11 mar. 1943, p. 2, 2. ed.).

    O nível de restrições não se limitou à liberdade de ir e vir, mas também de se comunicar:

    o Departamento Nacional de Transportes (DNT) determinou que todos os “súditos” estariam

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    impedidos de possuírem rádios comunicadores instalados em automóveis e caminhões, tendo

    que, ainda, realizar a entrega dos equipamentos porventura em seu poder à DE logo após a

    publicação da portaria federal (A Noite, 3 set. 1942, p. 3, 2. ed.). A ditadura determinou também

    que os aparelhos telefônicos residenciais e comerciais dos “súditos do Eixo” deveriam ser

    apreendidos pela polícia (A Noite, 25 set. 1942, p. 1, 2. ed.).

    A perseguição sistemática aos “súditos do Eixo” colocada em prática pelo Estado Novo

    consistiu em uma política de segurança pública que, composta por práticas de vigilância e

    punição, objetivava o cerceamento econômico e social desses grupos, limitando, portanto, a

    sociabilidade dessas pessoas sob a justificativa da “segurança nacional”. Para o jornal A Noite,

    fiel porta-voz daquela ditadura, essas medidas demonstravam o “caráter humano” do regime

    que, apesar da agressão sofrida pelo Eixo, mantinha sua essência civilizadora e seu pretenso

    compromisso com o humano. Entretanto, essa produção noticiosa indica, antes de tudo, o

    aperfeiçoamento dos processos de perseguição estatal aos “súditos do Eixo” que, contando com

    o apoio irrestrito do jornal, implementou uma raivosa campanha de combate a esses grupos de

    imigrantes considerados como “suspeitos” em razão de suas nacionalidades. Levantando essa

    bandeira comunicacional, o vespertino A Noite contribuiu para que essas políticas oficiais de

    segurança fossem implementadas e aceitas pela população carioca pois, divulgadas como

    imprescindíveis, alimentavam a formação de sentimentos de ódio generalizados e direcionados

    contra esse grupo de estrangeiros.

    A temática “súditos do Eixo” ou mesmo o subtema que a transpassa – a violência estatal

    – surge como possibilidade para o Ensino de História baseado documentalmente na imprensa

    diária escrita. As temporalidades envolvidas nessa abordagem trazem à tona novas formas de

    se ler a imprensa: fugindo de análises que tomam os meios de comunicação social enquanto

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    propagadores do real, busca-se ampliar o papel dessa imprensa – mesmo a censurada – enquanto

    construtora de realidades históricas e políticas. Como apontou Silva (2013, p. 15), é necessária

    uma flexibilização do que seria o Ensino de História pois “[...] o conhecimento histórico, como

    cultura histórica que está presente nas sociedades”, indo muito além da instituição escolar,

    manifesta-se na história pública através de “[...] múltiplos meios de comunicação e em

    diferentes linguagens e suportes, sem ser produzida, necessariamente, por historiadores de

    ofício” (Idem, p. 15-16). Nesse sentido, o jornal, enquanto documento histórico, constrói parte

    da narrativa histórica, mas, ao mesmo tempo, constitui-se também como agente histórico

    possuidor de temporalidade própria. A maximização dessas possibilidades temáticas e

    metodológicas são essenciais tanto para o conhecimento sobre os meios de comunicação – e

    sua historicidade –, quanto para a História e o seu ensino. Já para os “súditos do Eixo”,

    excluídos socialmente pela ditadura e hostilizados pela sociedade brasileira, a classificação de

    sua presença no país como “indesejável” foi construída cotidianamente pelo jornal A Noite.

    Essa produção noticiosa acabou mostrando um outro lado da “cidade maravilhosa”: o Rio de

    Janeiro, para os “súditos” e familiares, não era tão “maravilhoso” como se anunciava e poderia

    supor.

    Referências Bibliográficas

    A Noite. Série documental (1942-1943). Retirado de http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-

    digital/noite/348970.

    AQUINO, Maria Aparecida de. et al. A constância do olhar vigilante: a preocupação com o

    crime político. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial do Estado de São

    Paulo, 2002.

    BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Básica

    Universitária, 1990.

  • 17

    CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena. São Paulo: FAPESP, 2009.

    CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador:

    conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo: PUC/SP, n. 35, p. 253-270,

    dez. 2007.

    GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo.

    São Paulo: Marco Zero, 1990.

    SILVA, Marcos A. da. “Entre o espelho e a janela – Ensino fundamental e Direito à História”.

    Projeto História. São Paulo: PUC/SP, n. 54, p. 139-161, set./dez. 2015.

    SILVA, Marcos Antonio da (org.). História: que ensino é esse? Campinas: Papirus, 2013.

    ___________________________. Ensino de história e poéticas (baseado em fatos irreais ma

    non troppo). São Paulo: LCTE Editora, 2016.