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Uma cidade não tão maravilhosa: o jornal A Noite e as políticas oficiais de perseguição
aos “súditos do Eixo” durante a ditadura do Estado Novo na cidade do Rio de Janeiro
(1942-1943)
VANDRÉ APARECIDO TEOTÔNIO DA SILVA*1
Em janeiro de 1942, foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a III Conferência dos
Chanceleres Americanos, evento que contou com a participação de delegações diplomáticas
dos países do Continente e que objetivou responder à agressão sofrida pelos Estados Unidos
poucos meses antes (ataque à base estadunidense de Pearl Harbor no Havaí, em dezembro de
1941). Após longos debates promovidos pelas comissões, os países americanos se decidiram
por acompanhar os EUA, anunciando o rompimento de suas relações diplomáticas com aqueles
que compunham o Eixo (Alemanha, Japão e Itália). Durante esse período, vivíamos a ditadura
do Estado Novo (1937-1945), regime autoritário liderado por Getúlio Vargas e que construiu
considerável sustentação política junto a amplos setores da sociedade brasileira. O Governo
Federal, dotado de amplos poderes outorgados pela Constituição de 1937, centralizava em si as
decisões políticas e assumia o papel de coordenador da sociabilidade, promovendo, em grande
escala, processos de racionalização e burocratização de amplos setores da vida brasileira,
sobretudo, controlando os meios de comunicação de massa objetivando a construção de um
projeto de comunicação social voltado à divulgação da ideologia estadonovista.
Embora as declarações de rompimento diplomático com esses países não tenham
ocorrido de modo coletivo – a Argentina, por exemplo, não aderiu de pronto –, quase todos os
estados nacionais americanos se decidiram pelo fim das conversações com Alemanha, Itália e
Japão em razão do ataque sofrido pelos EUA. A partir de então, o Estado Novo (1937-1945)
* Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo.
2
passou a implantar políticas oficiais de perseguição – policial e econômica – contra os
imigrantes e seus descendentes dessas nacionalidades, bem como às empresas dos “súditos do
Eixo”. Criava-se, assim, um protocolo midiático de comunicação que tinha como fim divulgar
uma campanha de controle e punição desses imigrantes através do jornal A Noite – veículo de
comunicação que foi encampado pelo regime estadonovista em 1940 -, que serviu, sobretudo,
como porta voz da política de comunicação social oficial daquela ditadura, com características
similares presentes noutros órgãos da imprensa brasileira estadonovista, sob censura e
estímulos diversificados do governo (BAHIA, 1990, p. 208). Desta maneira, formatou-se um
novo campo comunicacional onde a “[...] política e cultura se mesclam com idéias, imagens e
símbolos”, surgindo, a partir de então, a propaganda política, veiculada por meio da
cotidianeidade da notícia, como resultante de práticas comunicacionais enviesadas por
representações do político (CAPELATO, 2009, p. 36).
O Estado Novo atribuiu ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) no Rio de
Janeiro, e aos DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) nos estados -
auxiliados pela Delegacia de Estrangeiros (DE) do Distrito Federal – a tarefa de promover o
recadastramento desses grupos, bem como, de aplicar medidas restritivas que afetaram
diretamente seu cotidiano. Nesse sentido, o DOPS2, compreendido enquanto um braço armado
do regime, fazia “[...] parte do aparato repressivo do Estado, voltado, essencialmente, para a
vigilância sobre os considerados ‘suspeitos’ de desordem política e/ou social”. Os “súditos”
eram considerados pela ditadura estadonovista como elementos impertinentes e vistos como
2 O DOPS foi criado através do Decreto-Lei nº 2.034, de 30 de dezembro de 1924, e extinto pelo Decreto-Lei
20.728, de 4 de março de 1983. Sua longevidade deve ser ressaltada, sobretudo, devido à sua ampla versatilidade
em estabelecer práticas policiais vigilantes e punitivas contra os inimigos internos dos governos dos quais essa
instituição policial prestou seus serviços (AQUINO et al., 2002, p. 20).
3
um “[...] entrave para o desenvolvimento do país”. A designação “súditos do Eixo” era uma
“[...] forma pejorativa pela qual os policiais tratavam os cidadãos italianos, alemães e
japoneses” que, sendo taxados, a priori, como potenciais inimigos internos do Brasil: a
nacionalidade, a cor da pele, a língua e os costumes eram fatores determinantes na investigação
policial contra esses estrangeiros pelo simples fato de terem nascido – ou serem descendentes
de nativos – em países com os quais o Brasil havia finalizado suas relações diplomáticas
(AQUINO et al., 2002, p. 47). Segundo essa abordagem, também se enquadravam na categoria
de suspeitos entidades coletivas, empresas e associações culturais e esportivas que tivessem, de
alguma maneira, ligação com Alemanha, Itália e Japão (Idem, p. 51-52).
O jornal A Noite participou ativamente dessa campanha oficial, maximizada através de
sua produção noticiosa, que publicizou não apenas as práticas policiais repressivas, mas,
sobretudo, elogiou e incentivou a formação de um sentimento Anti-Eixista na época. Aquele
vespertino, aqui encarado como base para análise das relações de comunicabilidade sobre o
tema, se constitui, assim, numa importante fonte histórica para a ampliação das abordagens
sobre a ditadura estadonovista, bem como do próprio uso da imprensa enquanto elemento de
legitimação de ações oficiais. Assim sendo, objetiva-se problematizar não apenas o jornal
enquanto subsídio temático e informativo – entendido como base documental histórica – mas,
sim, proporcionar novas abordagens que problematizem a imprensa como ator político,
portanto, que intervém na realidade com a qual ele dialoga e dotado de historicidade própria.
Conforme apontaram Cruz e Peixoto (2007), os meios de comunicação social “não nasceram
prontos”, mas, são o resultado da “experimentação e da criação social e histórica” da sociedade
em que atuam, sendo, sobretudo, “[...] negociados social e culturalmente, num espaço de um
4
diálogo conflituoso sobre o fazer imprensa a cada momento histórico” (CRUZ; PEIXOTO,
2007, p. 259).
Desta maneira, problematiza-se o papel da imprensa, sobretudo dos jornais diários,
como suporte para o Ensino de História e sua importância para a ampliação não somente
temática, mas também, metodológica de procedimentos analíticos das relações entre
temporalidade e comunicação social. Sem esquecer que posturas preconceituosas dessa
natureza se manifestaram em diferentes momentos históricos brasileiros, inclusive
recentemente, articuladas a outros preconceitos de raça, religião, etnia e nacionalidade (SILVA,
2015). Além disso, também recentemente, a imprensa desempenhou papel estratégico na
derrubada de Dilma Rousseff, evidenciando seu papel muito ativo daquele campo de
comunicação na vida política.
O vespertino A Noite foi encampado pelo Estado Novo em março de 1940 como
resultado da nacionalização da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande
(CEFSPRG). Sob a justificativa de assegurar ao Brasil a exploração de setores da economia de
“interesse nacional”, a ditadura criou as Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional
(EIPN), instituição pública que foi responsável por administrar as instituições capitalistas
ligadas à CEFSPRG, dentre elas, o grupo de empresas de comunicação Empresa A Noite.
Apropriado pelo regime, esse conglomerado midiático era composto, principalmente, pelo
jornal A Noite e pela Rádio Nacional, dois veículos de comunicação que possuíam grande
audiência e que, com a encampação, passaram a adotar fazeres jornalísticos que corroboravam
com a ideologia estadonovista. Assim, o apoio do periódico às campanhas promovidas pelo
Estado Novo vinha no sentido de reforçar as mensagens que aquela ditadura procurava veicular,
buscando, sobretudo, a promoção de uma comunidade de consenso ou, como apontou Silvana
5
Goulart, uma “verdade oficial” (GOULART, 1990). Através do jornal, é possível verificar
como as práticas comunicacionais do Estado Novo se davam, que valores exaltavam e quais
elementos as compunham, buscando-se, além do mais, problematizar o papel da imprensa
enquanto fonte histórica. É pertinente ressaltar que a própria Constituição de 1937, a chamada
“Polaca” – assim designada para evocar a similar nazista polonesa, sem esquecer que a mesma
palavra designava genericamente prostitutas no Brasil –, atribuía aos meios de comunicação
social uma função de “caráter público”, transformando-os em “[...] sustentáculo do Estado no
seu esforço de autojustificação e legitimidade” (Idem, p. 49).
Sendo assim, as primeiras vítimas dessas políticas de perseguição oficial foram as
associações culturais ligadas aos países do Eixo. Uma determinação de Filinto Muller, chefe de
polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, entendeu que, por se tratarem de entidades estrangeiras
“eixistas”, deveriam ter suas atividades paralisadas pela polícia: o Yacht Club Brasileiro de
Niterói foi interditado e, segundo o periódico, quando os investigadores do DOPS adentraram
o recinto, depararam-se com materiais de propaganda nazista diversos (bandeiras, emblemas,
uniformes etc.). De acordo com a reportagem, o clube havia sido dominado por simpatizantes
do Nazismo, chegando esses dirigentes a promoverem uma política de expurgo de sócios
brasileiros, sobretudo os que discordavam da administração dos imigrantes (A Noite, 24 mar.
1942, p. 2, 1. ed.). Cabe lembrar que a simpatia pelo Nazismo, antes daquela ruptura de relações
diplomáticas com a Alemanha, não se restringia a esses meios e até podia se fazer presente em
altos escalões governamentais do Estado Novo.
O fechamento dessas instituições culturais e beneficentes ligadas aos estrangeiros
“eixistas” buscava, por outro lado, a aplicação da legislação que impunha o uso da língua
portuguesa em locais privados e públicos: em fevereiro de 1941, o Estado Novo já havia
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iniciado um movimento de “nacionalização da língua”, proibindo, inclusive, a publicação de
livros, revistas e demais bens culturais em idioma estrangeiro (A Noite, 8 fev. 1941, p. 1, 1. ed.).
A partir do rompimento com o Eixo, as medidas aplicadas contra as sociedades culturais desses
imigrantes ganhavam força e amparo legal, visto que a ditadura não permitiria, naquele contexto
bélico, que as instituições compostas por “súditos” – mesmo as beneficentes – continuassem
suas atividades pois, tratando-se de entidades visando à integração do imigrante, obviamente, a
língua materna seria a utilizada nesses locais.
O Estado Novo também voltou suas atenções para regiões onde havia colônias de
imigrantes alemães, italianos e japoneses, sobretudo de povos germânicos na região Sul: a
polícia gaúcha, por exemplo, informou a essa população de estrangeiros que antes de realizarem
viagens para fora de seus municípios residenciais, deveria solicitar um “salvo-conduto”,
documento emitido pela Delegacia de Estrangeiros que autorizava sua ausência da cidade. Os
imigrantes do Eixo também foram proibidos de promoverem festas particulares, realizarem
comentários sobre a guerra, distribuir panfletos ou jornais escritos em suas línguas maternas,
entoar os hinos de seus países, falar o idioma materno em local público, dentre outras atividades.
Embora o regime garantisse publicamente que não permitiria “[...] que a honra dos mesmos seja
ultrajada” (A Noite, 30 jan. 1942, p. 5, 1. ed.), a ditadura nada fez para que os direitos básicos
desses imigrantes fossem respeitados3.
O fato de o Estado Novo vir a público afirmar que iria resguardar a integridade física
dos “súditos”, primeiro, não correspondia à verdade e, segundo, não significava que eles não
3 O direito ao consumo, restrito devido às leis de racionamento impostas durante a guerra, também constituiu uma
forma do Estado limitar cada vez mais a vida dessas pessoas: durante uma reunião da Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), a entidade sugeriu ao governo que proibisse a venda de gasolina para esses grupos pois, como
“súditos” de governos estrangeiros e inimigos, esses estrangeiros deveriam cumprir regras mais rígidas do que as
que foram impostas aos brasileiros (A Noite, 25 abr. 1942, p. 2, 1. ed.).
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passariam a ser alvos dos brasileiros. Com a população irada em razão do torpedeamento de
embarcações nacionais por submarinos alemães, o periódico A Noite incentivava a formação de
um ambiente de revanchismo ao noticiar, com grande apelo sensacionalista, os ataques contra
navios como o “Buarque”, o “Olinda”, o “Arabutan” e o “Cairu”.
O regime, por sua vez, sob pressão popular (induzida) e internacional, passou então a
reagir: o Decreto-Lei nº 4.166, de 12 de março de 1942, determinou o confisco dos depósitos
bancários e de propriedades de pessoas e empresas pertencentes aos “súditos do Eixo” que
ultrapassassem dois contos de réis. A justificativa dada pelo governo foi a de que o Estado
visava a formar um fundo de indenizações para cobrir os prejuízos causados pelas agressões (A
Noite, 12 mar. 1942, p. 1-3, 2. ed.). De acordo com o jornal, essas medidas objetivavam dar ao
Governo Federal “[...] novos meios de ação, em completa consonância com as exigências do
direito internacional, cujas gravidades transparece nos últimos episódios que estão
emocionando e alarmando a opinião pública” (A Noite, 12 mar. 1942, p. 1, 2. ed.).
O ódio da população era alimentado pelas notícias produzidas pela imprensa que,
através de um discurso de revide, publicizava esses sentimentos coletivos como manifestações
de patriotismo: um comunicado da Chefatura de Polícia, publicado no jornal, informou que
“[...] um grupo e pessoas exaltadas percorreu as ruas mais centrais da cidade, depredando
propriedades de súditos das nações do Eixo”. Embora a nota oficial exortasse a população a não
participar desses atos violentos, o periódico divulgava cada vez mais notícias sobre a ação
popular contra símbolos “eixistas” (A Noite, 13 mar. 1942, p. 3, 1. ed.). O vespertino vibrava
ao noticiar essas manifestações: na Capital Federal, a população retirou as placas de logradouros
públicos que homenageavam países do Eixo. Segundo o periódico, “[...] esses fatos foram
praticados sob vivas ao Brasil e com os populares empunhando bandeiras brasileiras” (A Noite
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14 mar. 1942, p. 2, 2. ed.); ou seja, sob o manto de um discurso nacionalista carregado de rancor,
as ações populares eram muitas vezes ignoradas pela ditadura que, fazendo vistas grossas,
deixou que a massa enraivecida escolhesse seus alvos e aplicasse, sob a observação atenta das
polícias, penalidades contra empresas, pessoas e quaisquer signos que lembrassem os países
agressores.
A Noite considerava natural que se promovesse a depredação de propriedades de
estrangeiros; contudo, o clima de vingança contra prédios e instituições comerciais deu vasão
a noções distorcidas sobre esses indivíduos pois, além de serem vítimas da população, seus
filhos, brasileiros, passaram a ser vistos como potenciais criminosos: em reportagem da
Agência Nacional (AN) – órgão de imprensa oficial do regime -, o jornal denunciou que pais
“súditos” estariam promovendo a educação de seus filhos na língua materna e sob preceitos da
nacionalidade às quais pertenciam. De acordo com a publicação, os descendentes dos “súditos”
“[...] da nacionalidade só se aproveitam para auferir vantagens e exercer direitos. Fora daí,
renegando a pátria onde nasceram e totalmente devotados à causa política de seus países”, não
passavam de verdadeiros aproveitadores (A Noite, 12 jun. 1942, p. 1-3, 1. ed.).
Em vista disso, o Estado Novo compreendia que tanto as medidas policiais como as
ações restritivas financeiras estavam dando certo, chegando a classificar como “satisfatória” a
arrecadação referente aos bens dos “súditos do Eixo” (A Noite, 23 jun. 1942, p. 1-3, 2. ed.). Por
outro lado, os imigrantes tentavam escapar dessas restrições, pleiteando, por exemplo, a isenção
de tributos ou o bloqueio de processos de expropriação de propriedades, justificando ao governo
que tinham residência no país há muitos anos ou que possuíam filhos que haviam nascido no
Brasil; entretanto, a ditadura só abria exceções para casos de estrangeiros naturalizados
brasileiros (A Noite, 25 jun. 1942, p. 1, 2. ed.). Nesse contexto, o embaixador do México no
9
Brasil, José Maria D´Avila, em entrevista ao jornal, chegou a declarar que essas medidas
restritivas de cunho econômico eram “[...] enérgicas, porém necessárias e humanas” (A Noite,
29 jul. 1942, p. 1-7, 2. ed.).
“Humanidade” não seria a melhor palavra para descrever as medidas: em agosto de
1942, A Noite chegou a sugerir que “súditos” e estrangeiros naturalizados brasileiros fossem
submetidos a trabalhos forçados (!) (A Noite, 20 ago. 1942, p. 2, 1. ed.). Seguindo essa linha, o
vespertino incentivava o clima de desconfiança contra o elemento considerado “suspeito”: os
brasileiros deveriam ser cautelosos ao lidarem com os “súditos”, sendo um de seus deveres
cívicos realizar denúncias contra essas pessoas pois, apesar de parecerem ambientados ao
Brasil, muitos, sobretudo os naturalizados, haviam sido presos sob acusações de terem cometido
crimes “contra os interesses vitais” do país (A Noite, 3 mar. 1943, p. 2, 1. ed.).
O Estado Novo, com largo apoio do periódico, passou a instruir a população sobre como
deveriam ser feitas as denúncias de possíveis atividades “suspeitas”: um despacho emitido por
Marcondes Filho, ministro da Justiça, orientou os brasileiros no sentido de que, para melhor
auxiliar as forças policiais no processo investigativo, deveriam juntar provas contra “súditos
suspeitos” antes de encaminharem as delações ao DOPS (A Noite, 1 dez. 1942, p. 1-3, 1. ed.).
Através de portaria do DOPS, a ditadura procurou explicar como os nacionais deveriam
proceder: informar, por escrito, “[...] atitudes, costumes, gestos, atos tomados, adotados ou
praticados por nacionais dos países com os quais o governo, em sua sabedoria, rompeu
relações” (A Noite, 7 maio 1942, p. 2, 1. ed.). A postura oficial do regime denota que várias
dessas denúncias poderiam ser enganosas, levando a crer que muitas pessoas acabavam sendo
delatadas às autoridades policiais por vizinhos ou colegas de trabalho pelo simples fato de serem
originários desses países e não apenas em razão de apresentarem qualquer risco real contra a
10
“segurança nacional”. Por outro lado, rixas, desentendimentos e disputas diversas, acabavam
sendo resolvidas com uma rápida ligação para o DOPS ou para a DE, configurando-se, assim,
em práticas perversas e oportunistas de vingança. Além de serem expropriados financeiramente
pelo regime e terem suas vidas sociais limitadas, esses imigrantes e seus descendentes “súditos
do Eixo” passaram a ser alvo de uma nova investida estadonovista: a instabilidade do emprego,
sendo eles vistos pelo Estado Novo como trabalhadores facilmente dispensáveis em razão de
suas nacionalidades representarem um “risco à segurança nacional”.
Em agosto de 1942, o Brasil decretou guerra contra Alemanha e Itália (exceto o Japão
– fato que só iria ocorrer em 1944) em decorrência dos protestos populares contra o
afundamento de navios nacionais no Oceano Atlântico Sul. Após o Estado de Guerra, a vida do
“súdito” no Brasil passou a ser cada vez mais dificultada à medida que novas restrições eram
baixadas pela ditadura. O mundo laboral, por sua vez, também acabou sendo afetado pelas
medidas oficiais restritivas: por meio do Decreto-Lei nº 4.638, de 31 de agosto de 1942, o
regime autorizou que empresas e governos estaduais e municipais demitissem, por “justa
causa”, qualquer trabalhador “súdito do Eixo” que estivesse atuando em setor de “interesse da
economia nacional”. O decreto só vinha legitimar o que já estava ocorrendo na Capital Federal
e em boa parte do Brasil: a dispensa indiscriminada de trabalhadores dessas nacionalidades. A
Prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo, antes mesmo da lei ser baixada, já havia cancelado
todos os contratos de trabalho de artistas da Alemanha e Itália no meio da temporada lírica do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro (A Noite, 23 ago. 1942, p. 1, 1. ed.). Do mesmo modo,
empresários brasileiros se orgulhavam ao noticiar no jornal que tinham promovido a demissão
de empregados “súditos”: a Companhia Internacional de Seguros informou que “[...] os poucos
11
funcionários súditos do Eixo que prestavam serviços à companhia, foram afastados de seus
cargos” (A Noite, 29 ago. 1942, p. 4, 1. ed.).
A autorização do Estado Novo às empresas para demitirem funcionários considerados
“indesejáveis ao interesse nacional” gerava algumas dúvidas no meio empresarial: a Companhia
Portland de Cimento solicitou ao Ministério do Trabalho permissão para dispensar dois
empregados de nacionalidade alemã. Respondendo ao pedido – que era, inclusive, publicado
pelo jornal -, o ministro Marcondes Filho não apenas autorizou a demissão, como também
exortou demais capitalistas no sentido de que, se a empresa fosse de “interesse da defesa
nacional”, essas consultas eram dispensáveis (A Noite, 24 nov. 1942, p. 8, 2. ed.). O jornal
chegou a comentar que a medida era “justa e humana”, pois não permitia a demissão
indiscriminada de estrangeiros (A Noite, 28 nov. 1942, p. 2, 1. ed.), fato que não se confirmou
nem mesmo com o fim da guerra: após a vitória Aliada na Frente Ocidental, os patrões
brasileiros mantiveram a dispensa de funcionários “súditos” se apoiando no Decreto-Lei nº
4.638 (A Noite, 1 jul. 1945, p. 4, 1. ed.). Se a guerra estava para acabar, não fazia mais sentido
continuar a política de perseguição a esses grupos de imigrantes
Em novembro de 1942, após a criação da Comissão de Defesa Econômica (CDE) –
órgão responsável pela economia de guerra no Brasil -, a mediação do Ministério do Trabalho
sobre a dispensa dos trabalhadores “súditos” passou a ser exercida pelo novo colegiado. Deste
modo, a CDE decidiu que as empresas e os clubes sociais tinham liberdade de despedir
empregados que se enquadrassem no referido decreto-lei, abrindo-se, portanto, precedentes
para a demissão indiscriminada de trabalhadores (A Noite, 31 dez. 1942, p. 1-3, 1. ed.). O órgão
também autorizou, e até incentivou, que os empresários brasileiros delatassem os “sócios
súditos do Eixo”, visando, sobretudo, à expulsão desses capitalistas das sociedades comerciais.
12
As ações expropriadas seriam divididas entre os proprietários (brasileiros, é claro) restantes (A
Noite, 13 jun. 1943, p. 3, 1. ed.).
Apesar de haver denúncias ao Ministério do Trabalho que denotavam o cometimento de
abusos por parte dos patrões, o vespertino A Noite ressaltava que a legislação estava sendo
respeitada pelos capitalistas: o Ministério do Trabalho negou a dispensa de um funcionário
italiano de uma empresa estadunidense (não cita o nome da instituição) pois considerou que o
empregado residia no Brasil por décadas, era casado com uma brasileira e tinha ainda filhos
oriundos desse casamento, fato que, segundo o periódico, denotava que apesar das restrições
impostas, a resposta de Marcondes Filho representava a “índole do povo brasileiro” e seu “alto
senso de justiça” (A Noite, 29 maio 1943, p. 2, 1. ed.). De financeiras, as medidas restritivas
oficiais rapidamente passaram a atingir também as relações de trabalho desses estrangeiros
para, num terceiro momento, a restrição social passar a ser regra no tratamento dispensado a
essas pessoas. À medida que o regime se envolvia cada vez mais com a guerra, maiores eram
as limitações impostas a tais grupos: além da língua silenciada, hábitos cerceados e o sustento
expropriado, italianos, alemães e japoneses tiveram também suas sociabilidades encurraladas.
Essas medidas repressivas contra os “súditos” acabaram gerando pânico na comunidade
de imigrantes que residiam no Distrito Federal e noutras partes do país. Entre os anos de 1942
a 1943, os estrangeiros no Brasil, de diversas nacionalidades, temendo o aumento da repressão
governamental, passaram a procurar o Ministério da Justiça solicitando abertura de processos
de naturalização pois, oficialmente, essa era uma das poucas formas de se escapar da
perseguição do Estado Novo. Temendo serem presos, torturados, deportados ou mortos, alguns
“súditos” optaram por não aguardar os tramites legais – considerando que para alemães,
italianos e japoneses essa tarefa se tornava quase impossível, visto que o regime ou ignorava
13
ou negava esse direito a tais grupos -, decidindo-se pela tentativa, em muitos casos frustrada,
de fugirem do Brasil pela fronteira com Uruguai, Argentina e Paraguai (A Noite, 24 ago. 1942,
p. 1, 1. ed.). A ditadura então começou a promover o que ela chamou de “expulsão de
indesejáveis”: estrangeiros que, considerados suspeitos pela polícia, eram tratados como
espiões, sabotadores ou participantes de movimentos quinta-colunistas, ou seja, grupos
compostos por imigrantes e brasileiros que procuravam, através de ações de sabotagem ou
espionagem, dificultar o esforço de guerra do Brasil. A Delegacia de Estrangeiros do Rio de
Janeiro, por exemplo, chegou a solicitar ao Ministério da Justiça a deportação de um húngaro e
de um alemão que foram classificados como “suspeitos” pelo fato de falarem alemão em local
público (A Noite, 30 nov. 1942, p. 2, 2. ed.), gesto que de acordo com a legislação
nacionalizadora vigente na época, era encarado como um crime grave.
O Estado Novo foi muito além da interdição financeira e laboral, interferindo em amplos
aspectos da vida social desses imigrantes: patentes industriais que estivessem registradas no
Departamento Nacional de Propriedade Industrial (DNPI) em nome de “súditos do Eixo” foram
canceladas pelo regime (A Noite, 3 set. 1942, p. 1-4, 2. ed.), abrindo, assim, possibilidade para
que industriais brasileiros pudessem se apoderar dos inventos criados por alemães, italianos e
japoneses. A Companhia Estrada de Ferro Central do Brasil, por sua vez, cassou todas as
licenças das bancas de jornais nas estações de trem que pertenciam a “súditos”, proibindo,
ainda, que esses estrangeiros vendessem jornais dentro e no entorno das paradas ferroviárias (A
Noite, 30 ago. 1942, p. 8, 1. ed.).
As restrições da vida social do “súdito” não paravam por aí: a polícia carioca chegou a
impedir que esses imigrantes saíssem da Capital Federal. Caso um estrangeiro de uma dessas
nacionalidades decidisse fazer uma visita à “Cidade Maravilhosa”, deveria solicitar uma
14
autorização especial junto à Delegacia de Estrangeiros (DE) que, via de regra, negava o pedido
sob a justificativa de que se tratava de pessoa de nacionalidade oriunda de “país beligerante”
com o Brasil (A Noite, 25 ago. 1942, p. 1, 2. ed.). Em São Paulo, não foi diferente: “súditos”
foram proibidos de fixarem residência na capital bandeirante sem que possuíssem autorização
prévia da polícia (A Noite 9 jul. 1943, p. 1, 2. ed.); do mesmo modo, a interventoria paulista de
Fernando Costa – ex-ministro da Agricultura no período 1937-1941- organizou o deslocamento
em massa de grupos de japoneses para o interior do estado, alegando, sobretudo, que a medida
vinha para garantir maior vigilância sobre essa população (A Noite, 12 jul. 1943, p. 8, 2. ed.);
O Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP) determinou
que todos os “súditos” que residissem na cidade portuária de Santos – considerada estratégica
pelo regime - deveriam ser realocados em municípios do interior (A Noite, 9 jul. 1943, p. 8, 2.
ed.).
Quando eventos públicos no Distrito Federal que contavam com grande fluxo de
pessoas eram realizados, o regime impedia antecipadamente a livre circulação dos “súditos” em
tais espaços: durante os preparativos para os festejos do 7 de setembro, por exemplo, a
Chefatura de Polícia do Rio de Janeiro proibiu que alemães, italianos e japoneses participassem
das comemorações e, sobretudo, que saíssem de suas residências no feriado nacional (A Noite,
5 set. 1942, p. 1-3, 1. ed.). No carnaval carioca de 1943, por exemplo, alemães, italianos e
japoneses foram proibidos pelas autoridades policiais de pularem a folia sob risco de detenção;
ameaça que não impediu que mais de cem alemães, presos pelo DOPS, descumprissem a
determinação policial (A Noite, 11 mar. 1943, p. 2, 2. ed.).
O nível de restrições não se limitou à liberdade de ir e vir, mas também de se comunicar:
o Departamento Nacional de Transportes (DNT) determinou que todos os “súditos” estariam
15
impedidos de possuírem rádios comunicadores instalados em automóveis e caminhões, tendo
que, ainda, realizar a entrega dos equipamentos porventura em seu poder à DE logo após a
publicação da portaria federal (A Noite, 3 set. 1942, p. 3, 2. ed.). A ditadura determinou também
que os aparelhos telefônicos residenciais e comerciais dos “súditos do Eixo” deveriam ser
apreendidos pela polícia (A Noite, 25 set. 1942, p. 1, 2. ed.).
A perseguição sistemática aos “súditos do Eixo” colocada em prática pelo Estado Novo
consistiu em uma política de segurança pública que, composta por práticas de vigilância e
punição, objetivava o cerceamento econômico e social desses grupos, limitando, portanto, a
sociabilidade dessas pessoas sob a justificativa da “segurança nacional”. Para o jornal A Noite,
fiel porta-voz daquela ditadura, essas medidas demonstravam o “caráter humano” do regime
que, apesar da agressão sofrida pelo Eixo, mantinha sua essência civilizadora e seu pretenso
compromisso com o humano. Entretanto, essa produção noticiosa indica, antes de tudo, o
aperfeiçoamento dos processos de perseguição estatal aos “súditos do Eixo” que, contando com
o apoio irrestrito do jornal, implementou uma raivosa campanha de combate a esses grupos de
imigrantes considerados como “suspeitos” em razão de suas nacionalidades. Levantando essa
bandeira comunicacional, o vespertino A Noite contribuiu para que essas políticas oficiais de
segurança fossem implementadas e aceitas pela população carioca pois, divulgadas como
imprescindíveis, alimentavam a formação de sentimentos de ódio generalizados e direcionados
contra esse grupo de estrangeiros.
A temática “súditos do Eixo” ou mesmo o subtema que a transpassa – a violência estatal
– surge como possibilidade para o Ensino de História baseado documentalmente na imprensa
diária escrita. As temporalidades envolvidas nessa abordagem trazem à tona novas formas de
se ler a imprensa: fugindo de análises que tomam os meios de comunicação social enquanto
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propagadores do real, busca-se ampliar o papel dessa imprensa – mesmo a censurada – enquanto
construtora de realidades históricas e políticas. Como apontou Silva (2013, p. 15), é necessária
uma flexibilização do que seria o Ensino de História pois “[...] o conhecimento histórico, como
cultura histórica que está presente nas sociedades”, indo muito além da instituição escolar,
manifesta-se na história pública através de “[...] múltiplos meios de comunicação e em
diferentes linguagens e suportes, sem ser produzida, necessariamente, por historiadores de
ofício” (Idem, p. 15-16). Nesse sentido, o jornal, enquanto documento histórico, constrói parte
da narrativa histórica, mas, ao mesmo tempo, constitui-se também como agente histórico
possuidor de temporalidade própria. A maximização dessas possibilidades temáticas e
metodológicas são essenciais tanto para o conhecimento sobre os meios de comunicação – e
sua historicidade –, quanto para a História e o seu ensino. Já para os “súditos do Eixo”,
excluídos socialmente pela ditadura e hostilizados pela sociedade brasileira, a classificação de
sua presença no país como “indesejável” foi construída cotidianamente pelo jornal A Noite.
Essa produção noticiosa acabou mostrando um outro lado da “cidade maravilhosa”: o Rio de
Janeiro, para os “súditos” e familiares, não era tão “maravilhoso” como se anunciava e poderia
supor.
Referências Bibliográficas
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digital/noite/348970.
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crime político. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial do Estado de São
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CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador:
conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo: PUC/SP, n. 35, p. 253-270,
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GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo.
São Paulo: Marco Zero, 1990.
SILVA, Marcos A. da. “Entre o espelho e a janela – Ensino fundamental e Direito à História”.
Projeto História. São Paulo: PUC/SP, n. 54, p. 139-161, set./dez. 2015.
SILVA, Marcos Antonio da (org.). História: que ensino é esse? Campinas: Papirus, 2013.
___________________________. Ensino de história e poéticas (baseado em fatos irreais ma
non troppo). São Paulo: LCTE Editora, 2016.