27

Click here to load reader

Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

A REFORMA FERNANDO DE AZEVEDO E AS COLMÉIAS LABORIOSAS E HIGIÊNICAS NO DISTRITO FEDERAL DE 1927A 1930.

Sônia [email protected] Educacionais; Fernando de Azevedo; Escola Nova.

Introdução

Os princípios que constituem as linhas diretrizes da reforma importam numa renovação radical de processos, de acordo com os novos fins que a lei fixou, sob a inspiração dos ideais modernos de educação. Adotando por base de todo o ensino a atividade investigadora e experimental do aluno, a reforma não só levou à escola primária os processos do ensino superior, inteiramente apoiado hoje na observação, nas pesquisas e experiências, como transformou a escola (escola do trabalho), em que se aprende trabalhando, em uma colméia de atividades educativas. Ela determina uma transformação total da escola, rejeitando, em nome da educação nova, a instrução abstrata, artificial e verbal, para fazer um apelo ao esforço alegre e a participação efetiva da criança, cultivar-lhe as atividades manuais, intelectuais e sociais (...) (Azevedo,1931, p. 81).

Quando assumiu a Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal em 17 de janeiro de 1927, o educador Fernando de Azevedo mobilizou esforços em torno do projeto de organização de um sistema de ensino que fosse capaz de se constituir parte integrante do projeto da reforma social do Brasil. Durante os três anos que esteve à frente da Diretoria Geral de Instrução Pública, nos anos de 1927 a 1930, tencionou reestruturar a instrução pública estabelecendo, para isto, a renovação interior da escola, na sua organização, nos seus métodos e nos princípios que deveriam instituir a ideia da escola renovada.

A crença no poder da educação moveu Azevedo na elaboração de um corpo sistemático de leis do ensino direcionado a operacionalizar as transformações da gestão administrativa e pedagógica das escolas. Com este intuito, arquitetou procedimentos pedagógicos e educativos das práticas e dos fazeres escolares, concebendo deste modo, a ideia de que as escolas deveriam organizar-se como colméias vibráteis e laboriosas de atividades educativas. A concepção de uma nova organização para a escola sustentava-se nos conhecimentos científicos e na transmissão de valores morais e culturais compatíveis com o escolanovismo predominante no pensamento pedagógico da época.

Por educação nova eram identificados variados planos e experiências em que eram introduzidas ideias e técnicas novas (como os métodos ativos, a adoção dos testes, a adaptação do ensino às fases de desenvolvimento e às variações individuais do aluno) ou que trouxessem, na reorganização das estruturas ou no processo de ensino, o selo da novidade. Assim, a partir da década de 1920, as experiências realizadas pelas Diretorias Gerais de Instrução Pública dos Estados passaram a significar a produção de uma forma nova de educar. Essa se organizava a luz das correntes pedagógicas modernas que firmavam como princípio norteador as necessidades apresentadas pelas crianças, em um

1

Page 2: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

movimento que tendia uniformizar um modelo ideal de educação, de escola e de aluno (Azevedo, 1958, p. 671).

A adoção de princípios e práticas novas no tratamento educacional brasileiro demarcou, nitidamente, um campo de litígio entre o movimento da Escola Nova e os procedimentos adotados, até então, pelo Estado no campo educacional. Quando a isso, afiança Carvalho que, enquanto militante do movimento renovador, Fernando de Azevedo fez uso da expressão educação “nova” em dois momentos distintos. No primeiro, quando esteve à frente das Diretorias de Instrução Pública do Distrito Federal (1927) e de São Paulo (1933) em que atribuiu, a ela, o poder de designação das iniciativas renovadoras de remodelação da escola e de reestruturação do sistema escolar. No segundo, nos escritos produzidos como memória dessa militância em que o termo já havia perdido seu poder de designação, de especificação de práticas concretas, para ser a interpretação do ocorrido, como marcha ascensional, onde as diferenças que antes eram evidenciadas entre velho e novo acabaram sendo relativizadas (Carvalho, 1994, pp. 76-77).

Com o intuito de refletir acerca do projeto de reforma da instrução concebido por Fernando de Azevedo para o Distrito Federal, tencionamos perscrutar os sentidos constitutivos da idéia de educação formulada, por ele, bem como a matriz de intervenção que fundamentou as formas de pensar à escola, à infância e o professor. Neste aspecto, interessa-nos construir alguns entrecruzamentos entre as proposições apresentadas com a reforma e outros vetores sociais, que embora não tivessem como ponto central de atuação a escola, instrumentalizaram a elaboração de iniciativas sobre ela, a exemplo da medicina.

Partindo desse entendimento, esse texto estrutura-se num duplo esforço de reflexão teórico. No primeiro, busca contextualizar a reforma azevediana no quadro das reformas da instrução dos anos de 1920, estabelecendo, para isso, as bases que organizaram o projeto de ampliação do processo de escolarização para o Distrito Federal; no segundo pretende matizar as concepções que orientaram a ação intervencionista de Fernando de Azevedo focalizando as práticas e os fazeres pedagógicos que se instituíram no espaço escolar a partir de interfaces com um pensamento médico em voga, à época. Para isso, selecionamos como corpus documental de análise relatórios, boletins, jornais e livros que nos permitiram enredar uma interpretação acerca do projeto de educação e das redes de sociabilidade que se organizaram em torno da sua elaboração. Nesse cenário, a escola configurou-se como espaço de organização das relações sociais e familiares e, portanto, como peça primordial de progresso e de modernização do país.

As reformas e a causa da educação nacional As reformas passaram a elaborar-se dentro de uma visão de

conjunto, segundo a qual a organização do sistema escolar, orientada para fins claramente definidos estruturada com unidade de concepção e de plano, pudesse atender às necessidades da cultura e da economia nacional e adaptar-se, pela sua maleabilidade, a todas as particularidades locais. A convicção de que não teremos democracia nas instituições políticas, se não a tivermos nas formas da vida social e nos sistemas de educação, nos levou a quebrar as barreiras que separavam, em compartimentos quase isolados, os dois sistemas escolares, prepostos à

2

Page 3: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

formação do povo e à elite; a facilitar o acesso das diferentes classes sociais a todos os graus de hierarquia escolar; e criada, em lugar de uma escola de minorias, a escola para todos, na educação nova, o espírito de individualismo, quase anárquico, e certamente dispersivo, por um sentimento profundo da comunidade e um sentimento vigilante da justiça e serviço social, de solidariedade e de cooperação (Azevedo, 1948, p. 252).

Em meio às Comemorações do Centenário da Independência do Brasil, realizadas em 1922, intelectuais organizaram manifestações, inquéritos e recenseamentos visando promover balanços e propostas acerca dos problemas que afligia o país e sua população. A modernidade proposta fundava-se no retorno ao passado, na afirmação da identidade nacional e na brasilidade como raízes a partir das quais se construiria um projeto “evolutivo” de urbanidade, de nacionalidade e de civilização para o país.

Como parte das estratégias acionadas, a educação foi concebida como instrumento capaz de contribuir na resolução dos principais problemas que assolavam o país - o analfabetismo, a ignorância, a doença e a criminalidade - promovendo, por meio da escola reformada e higiênica, a reeducação da sociedade. A ótica renovadora instituída com as reformas da instrução pública, dos anos de 1920, nos Estados de São Paulo, em 1920; do Ceará, em 1922; do Distrito Federal, em 1924 e 1927; da Bahia, em 1925 e de Minas Gerais, em 1927, firmava-se na idéia de que era preciso fundar uma escola primária integral assentada nos conhecimentos científicos, racionais e técnicos, capaz de promover a escolarização da população como fator de nacionalidade.

Compartilhando da ideia que a educação era um dever supremo da República, Azevedo acreditava poder instituir a prerrogativa da “escola para todos”. Por essa perspectiva, as diferentes instâncias de intervenção, educação e assistência deveriam colaborar na composição de um projeto que facultasse à ampliação da escolarização a população, até então, excluída da escola, bem como na modelação das relações professor-aluno, dos tempos escolares, dos prédios, dos materiais e dos métodos pedagógicos. A escola, deste modo, deveria atuar como centro irradiador de uma obra educativa capaz de realizar a transformação social (Vidal; Paulilo, 2003, pp. 375-376).

É, fato, que os discursos produzidos pelos reformadores sobre a percepção do social não foram construídos de maneira neutra, no entanto, a roupagem construída sobre eles, arqueava-se na prerrogativa da neutralidade assegurada pela presença do intelectual iluminista, missionário e vanguardista à frente do movimento. Assim, visou-se construir a legitimidade de condutas e escolhas promovidas na elaboração de projetos reformadores do social e de “fabricação” de indivíduos desejados, educados e higiênicos. Para Fernando de Azevedo os intelectuais que estiveram à frente dos movimentos reformistas da educação dos Estados, nas décadas de 1920 e 1930, acreditavam poder promover uma verdadeira revolução no sistema educacional. Desse modo, movidos por esse ideal, lançaram-se à obra reformadora com a fé que sua repercussão atingiria a organização de um sistema de ensino e de cultura do país à luz dos princípios da Escola Nova (Azevedo, 1958, p. 676).

A reforma da educação, com que se instituiu escola para todos (escola única), organizada à maneira de uma comunidade e baseada no exercício normal do trabalho em cooperação, implantou no Brasil escolas novas para uma nova civilização. Pondo na base as idéias

3

Page 4: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

igualitárias de uma sociedade, de forma industrial, em marcha para a democracia e na cúspide da pirâmide revolucionária da reforma, os ideais de pesquisa, de experiência e de ação, quis o Estado preparar as gerações não para a vida, segundo uma representação abstrata, mas para a vida social de seu tempo, sob um regime igualitário e democrático em evolução, transmutando a escola popular não apenas num instrumento de adaptação (socialização), mas um aparelho dinâmico de transformação social (Azevedo, 1931, p.17).

Nesse cenário, se por um lado, o escolanovismo fora perspectivado como um

movimento de renovação escolar que se caracterizava pela adesão aos avanços mais recentes da psicologia infantil e da biologia que colocou no centro do seu interesse a criança e o seu processo de desenvolvimento e de aprendizagem, bem como por uma maior liberdade e respeito às características da personalidade de cada uma em suas várias fases de desenvolvimento; por outro, essa foi se constituindo como matriz que organizou formas de intervenção direta do Estado sobre a escola e à família. Esse aspecto provocou novas práticas no espaço da escola e nas relações instituídas entre Estado e escola, escola e sociedade, escola e cidade, escola e família. Estabeleceram-se, assim, outras redes de dependências e de forças no interior da instituição escolar e fora dela. É, portanto, interessante pensarmos que o plano reformador que visou “reorganizar” os comportamentos, as práticas e o pensar educativos estruturou-se a partir de projetos e regulamentações do ensino que se organizaram no entrecruzamento de vários vetores, possibilitando que esse projeto em especial fosse concebido e executado. Para Velho o projeto não deve ser visto como um fenômeno puramente sub-jetivo. Esse deve ser elaborado e executado dentro de um campo de possibilidades, que se constrói histórica e culturalmente. Para viabilizar-se enquanto ação, o projeto deve suplantar os limites entre o que é concebido e o que é realizado, precisa expressar um repertório de preocupações presentes na sociedade e na época de sua elaboração, onde seu elaborador aparece como alguém que capitaneou as aspirações vigentes à época (Velho, 1987, pp. 27-28).

Com efeito, o projeto de reforma elaborado por Fernando de Azevedo deve ser compreendido como produto das interpretações construídas, das instituições existentes que se organizaram como forças atuantes na sua elaboração, das injunções do seu tempo, bem como da rede de sociabilidades1 construída na qual o educador em questão participava, comungava, divergia. No cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo de, John Dewey, Durkheim e, sobretudo, de Kerschernsteiner, interlocutores privilegiados para pensar o sistema escolar adaptado às novas exigências sociais da modernidade na capital do país. Do ponto de vista do nacional, Azevedo identificava na Associação Brasileira de Educação (ABE), criada em 1924 e, em seus membros, os interlocutores por excelência para discutir a educação e os seus problemas, elegendo os aspectos centrais que deveria atacar em seu plano reformador.

A sua inserção política e intelectual em diferentes instituições, a exemplo da (ABE), da Sociedade Brasileira Eugênica de São Paulo2, da Comissão organizadora do Quinto Congresso Americano da Criança, entre outras, possibilita-nos pensar o projeto de reforma do Distrito Federal como um movimento filiado a um grupo intelectual que

4

Page 5: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

se organizava pela prerrogativa de identificar a educação como elemento de higienização, de eugenia e, portanto, de civilização do país. Neste particular, os espaços de congregação, de embates e de circulação de projetos e idéias nacional e estrangeira constituíram-se de fundamental importância na organização das propostas reformadoras da década de 1920 e no aprofundamento dos debates e embates acerca dessas mesmas concepções, especialmente nas conferências educacionais promovidas pela ABE em Curitiba (1927), Belo Horizonte (1928) e São Paulo (1929).

Para o grupo de educadores ao qual Azevedo se filiava era preciso, entre outros aspectos, estabelecer a especificidade do campo educacional, cimentada pela idéia da institucionalização da educação como parte essencial das estratégias do Estado. É importante destacar a centralidade atribuída por Fernando de Azevedo a esta questão, bem como ao papel atribuído ao Estado enquanto instancia responsável na orquestração de um projeto de modernização e integração nacional. No pensamento de Fernando de Azevedo é possível evidenciar a preocupação com a edificação do sentimento de nacionalidade identificado na argumentação construída em torno da necessidade de um projeto nacional de educação, de sistematização de práticas não voluntaristas, na universalização de normas e critérios educacionais, como também na adaptação da escola às condições do país e da civilização.

Se na concepção de Fernando de Azevedo caberia a escola e as instituições educacionais atuar na assimilação, pelas novas gerações, dos princípios fomentadores da identidade nacional; ao Estado caberia, então, submeter a nação à ideia de unidade, realizando a centralização política e a soberania, sem as quais não haveria Estado-nação completo e sem a qual os interesses comuns e os fins coletivos não seriam assegurados. Neste contexto, a escola foi vista pelos educadores como elemento capaz de erradicar os conflitos e consubstanciar a solidariedade entre os homens. A educação que se pretendia instituir não deveria esquecer as necessidades de um povo em formação que exigia uma reforma com bases brasileiras, como força de coesão política e elemento de consolidação da composição étnica heterogênea e de constituição da consciência profunda das necessidades nacionais, sendo o trabalho da escola, para Azevedo o de cimentar a consciência comum da nação.

No Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova redigido em 1932, por Azevedo, as reformas foram apresentadas como “aurora de uma verdadeira renovação educacional” como “berço” de organização de uma “consciência educacional” que fecundou a elaboração do plano integral da educação, expresso na idéia de que era preciso constituir a unidade da educação nacional como parte do projeto republicano de modernização da sociedade brasileira (Azevedo, 2003, p.119). Modernização que se assentava, na concepção expressa por Fernando de Azevedo e, compartilhada pelos signatários do Manifesto, como, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Paschoal Lemme, Afrânio Peixoto, Roquette-Pinto, Noemi da Silveira, entre outros intelectuais como um movimento em defesa da obrigatoriedade, da gratuidade, da laicidade e da co-educação como princípios organizadores da “escola para todos”. Nesse particular, a situação da cidade do Rio de Janeiro como capital do Brasil dava relevo às iniciativas reformadoras desenvolvidas, transformando-as em foco de observação e de disseminação para o país3.

5

Page 6: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

A reforma da educação e a utopia reformadora como espelho para o país

Não se pode desconhecer, certamente, o papel assimilador das cidades, “que dissolvem as diferenças de costumes e de crenças das populações que afluem para elas e que são os centros em que os campos vêm fundir as suas diferenças”. Mas é o Estado e o poder de dominação que se constitui pouco a pouco, que, estabelecendo como uma superestrutura, “se sobrepõe às instituições primárias e locais, para abatê-las ou ao menos limitá-las”; a princípio, pela criação da força (...) e depois pela adesão da consciência pública que transforma a força em direito, é ele que submete a nação à sua unidade, realizando a centralização política da patrimonialidade a que está unido, nas suas origens feudais, se organiza como um serviço, com a função de assegurar os interesses comuns e os fins coletivos (Azevedo, 1948, p.174).

Apresentado no contexto das Comemorações do Centenário da Primeira Lei Geral da Instrução Primária (1827-1927), o projeto de reforma foi iniciado em 1927 e regulamentado a partir do decreto 2.940 de 22 de novembro de 19284. Com o projeto, Fernando de Azevedo previa superar, não somente, a fragmentação e a deficiências do ensino vigente, como também, os interesses predominantes das elites que mantinham na ignorância grande parte da população, transformando a cidade num centro de irradiação do movimento pedagógico escolanovista. Por meio da reestruturação da Diretoria Geral de Instrução Pública esperava alicerçar uma grande campanha em prol da educação. A campanha assentava-se na idéia de que era preciso instituir uma escola capaz de superar os problemas relacionados ao analfabetismo constituindo-se também como meio de regeneração da infância oriunda das classes populares.

Organizado a partir de decretos e regulamentações, o projeto de reforma da instrução configurou-se como um conjunto normativo e prescritivo de transformação da educação a partir de novas finalidades pedagógicas e sociais. Por um lado, a idéia que se pretendia instituir era a de que as - práticas e representações - poderiam ser objetivamente "reguladas" e "regulamentadas" sem que, para isso, fossem produtos de obediência de regras, sem que houvesse necessidade da projeção consciente desse fim ou do domínio das operações para atingi-los, sendo coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um único maestro; por outro, a escola era pensada como aparelho dinâmico, criador e disciplinador de atividades e energias, capaz de transmitir um ideal às novas gerações. Para isso, era preciso um programa que regulamentasse o seu funcionamento e as suas finalidades, colocando como foco os princípios da comunidade, da escola única e da escola do trabalho na reorganização do ensino.

A nova estrutura escolar constituiu-se a partir, de então, por uma rede de escolas organizada com o ensino infantil (jardins de infância), o ensino primário de cinco anos, o ensino vocacional, o ensino profissional e o curso normal. Sob os princípios da escola única (escola para todos), escola do trabalho e escola de trabalho em cooperação, Azevedo e seus colaboradores5 definiram o caráter da escola reformada, moderna, em que os Programas de Ensino apareciam assentados na idéia de se conceber a escola “como “laboratório de saúde da raça” e espaço de formação de hábitos sadios e

6

Page 7: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

desejados para a integração moral e social da criança” (Camara, 2004, p. 164).Nesta perspectiva, assegura Carvalho (1994, p.76) que o Rio de Janeiro foi

cenário de diferentes iniciativas que tinham o intuito de estabelecer a distinção entre o espaço público e privado a serem ocupados pelos sujeitos sociais, transformando a antiga Corte em modelo de civilização. A ideia de modernização associava-se a uma estratégia de grupos políticos identificados com a constituição de um novo bloco de poder republicano. Assim, através da educação pretendia-se instituir novas práticas ordinárias ao viver da população, estabelecendo na cidade-capital a identidade de uma nova geração, transformada pelo peso da assimilação – de valores e de princípios - assente na perspectiva de que era preciso intervir sobre a população em nome do futuro da nação.

A reconstrução da escola passava por uma mudança simbólica, física, mas também pela “formação de valores socialmente úteis”, pela orientação e seleção profissional e pela valorização técnica do elemento humano. A escola deveria desenvolver hábitos novos funcionando como espaço gerador e estruturante das práticas saudáveis, higiênicas e moralizantes, constituindo-se como espaço de socialização dos indivíduos e dos conhecimentos necessários a criança em seu processo de inserção social. Na concepção de Fernando de Azevedo, Numa cidade como o Rio de Janeiro onde o número populacional cresceu rapidamente e de forma desordenada devido ao grande afluxo de correntes migratórias nacionais e estrangeiras era necessário instituir ações formadoras da nacionalidade brasileira e de integração da infância pobre aos valores e princípios saudáveis ao seu desenvolvimento. Para isso, os programas de ensino, os prédios escolares de cunho nacionalista e as novas práticas educativas adotadas nas escolas deveriam estar em consonância com as novas condições econômicas, sociais e culturais do país.

Para isso, a Diretoria Geral da Instrução Pública ficava encarregada em administrar, orientar e fiscalizar o ensino, sendo reorganizada em duas subdiretorias, uma administrativa e, outra, técnica. A atuação das diretorias se realizava através de seus inspetores nos 28 distritos escolares distribuídos pelas zonas: urbana; rural; marítima. A organização das escolas pelos distritos deu visibilidade à situação da instrução, ou seja, o predomínio de escolas pelas áreas centrais da cidade e carência nas áreas suburbanas, rural e marítima.

A educação, embora funcionasse articulada ao meio social como princípio fundamental, tinha a intenção de transformá-lo incidindo, ainda, sobre as formas de organização das famílias. Por meio da criança esperavam transmitir valores, mas também, produzir novos saberes que interferissem no meio social do qual provinha. Conteúdos escolares associados aos usos e práticas cotidianas foram instituídos no sentido de produzir a racionalização de fazeres até, então, naturalmente aprendidos ou praticados no espaço das casas. Foi na cidade que a reforma pretendeu intervir, exibir seus poderes e descortinar outro perfil para o carioca identificado com os princípios fomentadores da nacionalidade. A cidade foi perspectivada como espaço de intervenção, mas também como campo de observação e experiência capaz de proporcionar as crianças um contato com a natureza e com as diversas formas de atividade e produção humana. Desta forma, a cidade foi cortada “em todas as direções por turmas de alunos”, que deixavam as salas de aulas e oficinas a fim de conhecerem, “em suas excursões, a grande oficina, em que se elabora a evolução social e econômica” (Azevedo, 1931, p. 90).

7

Page 8: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

Para levar a termo esse projeto de educação nova, fazia-se necessário difundir junto ao professorado da capital ideias e métodos modernos de ensino. Para isso, a Diretoria de Instrução envidou esforços na organização de cursos e de uma biblioteca de natureza didática e pedagógica contendo volumes que pudessem esclarecer o magistério sobre os princípios da Escola Nova. Em 1928, criou a Cruzada Pedagógica em prol da Escola Nova, com uma Seção Urbana e outra suburbana. Ao professor cabia a “missão social” de ensinar os conhecimentos adquiridos e acumulados, atuando como agente capaz de suscitar na criança valores intelectuais e moralmente úteis. Ponto de apoio, núcleo impulsionador da educação, fonte única de disciplina, o professor era apresentado como “despertador de interesse”, cabendo-lhe, estimular, aconselhar, orientar e conduzir o aluno em suas investigações e experiências. Com esse intuito, a Reforma previa interferir no processo de formação dos professores realizado pela Escola Normal, bem como nas matérias e nos métodos de ensino adotados pelos professores nas escolas (Boletim da Educação Pública, passim).

Quanto às matérias a serem ensinadas, sua sistematização veio com os Programas de Ensino (plano de matérias) e a substituição da divisão tradicional das matérias isoladas pela repartição em complexos correspondentes ao centro de interesse, que passaram a ser agrupados em três grandes partes: a natureza, o trabalho e a sociedade (Frota Pessoa, 1929, p. 13). O plano abrangia do primeiro até o quinto ano da escola primária, sendo o último ano pré-vocacional, com predomínio para os trabalhos manuais e o desenho. O ensino primário passou a ser organizado com as Disciplinas de Observação; as Disciplinas de Expressão; as Disciplinas de Iniciação a Matemática e as Disciplinas de Educação Higiênica (Camara, 1997, p. 151). A adoção desses princípios tinha em vista a finalidade pedagógica e social da escola e os novos fins que apresentava. O ponto de partida era o princípio da observação, da experimentação, sendo a escola apresentada como laboratório de experiências. Instituições foram criadas com o intuito de auxiliar o professor no processo educativo.

Nesta direção, o Periódico Boletim de Educação Pública colocado em circulação a partir de 1930; a literatura pedagógica; as bibliotecas escolares para professores e alunos; os museus escolares; o cinema escolar e o rádio; o escotismo, o pelotão de saúde, a clínica médica e o intercambio interestadual e internacional escolar, foram concebidas como instituições capazes de divulgar idéias e práticas no espaço da escola e fora dela. Como forma de penetrar no sentimento do povo e de sua raça, essas instituições colaboravam para fomentar o patriotismo, o espírito nacional e os hábitos higiênicos como parte da obra de renovação do ensino6.

Desse modo, os fins da educação se constituiriam a partir da adaptação dos indivíduos ao meio social, cabendo a ação educativa integrar e aprofundar as relações existentes entre os indivíduos e as formas de trabalho desenvolvidas na região que habitava. A escola atuaria como elemento de adaptação, de extensão e de integração do individuo ao meio social. Quanto à prerrogativa da escola do trabalho, os Programas elaborados apresentavam-se divididos entre: a escola do trabalho educativo - escolas primárias não destinadas à profissionalização; e a escola do trabalho profissional, destinada a formação profissional diferenciada para meninos e meninas (Programmas Para os Jardins de Infância e Para as Escolas Primárias, 1929).

No que concernia ao ensino profissional este ficou dividido em teórico e prático, sendo ministrado em quatro anos, dos quais o último constituía-se no curso de aperfeiçoamento. A perspectiva apregoada por Azevedo em seus discursos e

8

Page 9: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

pronunciamentos, quanto ao objetivo das escolas “funcionarem” como uma fábrica, toma corpo em dois artigos do Regulamento do Ensino. No artigo 272, em que preconizava que as escolas produzissem como indústrias nos dois últimos anos de escolarização e, em seu artigo 276, quando estabelecia que em todos os institutos profissionais masculinos e femininos promovessem-se exposições permanentes dos produtos fabricados pelos alunos, de acordo com a especificidade de cada estabelecimento (Regulamento do Ensino, 1928).

Entre os temas que circularam e mobilizaram as discussões na Associação Brasileira de Educação (ABE), durante a década de 1920, a questão da organização racional do trabalho e os problemas decorrentes da presença da fábrica e da industrialização do país, assumiram bastante atenção. Estas questões demandaram a formulação de propostas alternativas que não comprometessem o desenvolvimento produtivo do país, ao mesmo tempo em que resguardassem a escolarização das crianças, salvaguardada pela matrícula e permanência na escola. Como revela Carvalho, as medidas de racionalização das atividades do aluno através da rotina escolar e ao lado de dispositivos de moralização dos costumes em comemorações cívicas, traduziam expectativas de operacionalizar a “organização racional do trabalho”, num movimento que visava contribuir no processo de valorização do trabalho como fator de educação, progresso e regeneração da criança e também do país (Carvalho,1986, pp.103-107).

(...) os tempos presentes exigem, cada vez mais, homens que produzam. O

trabalho é condição de vida; ele esta mais do que nunca dignificado e enobrecido. Os parasitas, os desocupados, os ociosos, não podem pretender a consideração da comunidade. O direito à vida pressupõe o dever ao trabalho. Todo o capital da humanidade é obra das gerações que já trabalham e só deve pertencer aquelas que hão de trabalhar (Palmeira, 1930, p. 370).

Em contraposição à ociosidade, encarada como mal que deveria ser excluído da sociedade concebeu a educação e o trabalho como esteios, a partir dos quais, se arregimentariam políticas sociais estatais para a infância pobre. A Reforma propunha a estruturação de determinados conteúdos, métodos de ensino e de práticas educativas nas escolas configurando uma nova cultura escolar e estabelecendo, por conseguinte, um novo padrão de infância moldada aos princípios de higiene e aos referenciais científicos. Parâmetros mentais, físicos e pedagógicos foram definidos à luz da psicologia, da puericultura e da pediatria.

Com estes princípios explicitados no Regulamento do Ensino teceram-se mecanismos de incorporação dos indivíduos a lógica do espaço da fábrica. A prerrogativa de incorporação dos indivíduos não era vislumbrada por Azevedo e seus colaboradores numa visão imediatista de preparação para o trabalho, mas sim enquanto um projeto de construção de um cidadão produtivo, saudável e afeito ao ideal de nacionalidade. A escola deveria funcionar como uma comunidade em miniatura e, como tal envidaria esforços na organização de experiências sociais a exemplo da caixa econômica, das cooperativas escolares, do correio escolar e outros. Essas instituições configuravam-se como “os meios para a escola socializada adaptar-se, cada vez mais, ao fim social que a reforma atribuiu aos seus esforços” (Azevedo, 1931, p. 48).

A reforma procurou realizar uma mudança total da escola rejeitando em nome da Escola Nova a educação abstrata, artificial e verbal para fazer um apelo à participação alegre e efetiva da criança. A escola do trabalho foi proposta como ponto capital para

9

Page 10: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

onde deveriam convergir todas as linhas do novo plano de organização escolar. Através do trabalho procurava-se promover uma educação integral, oferecendo a prática de hábitos higiênicos capazes de despertar e desenvolver o sentido da saúde, da higiene do trabalho e a alegria de viver na criança.

Adjetivações foram propostas mediante as quais as crianças foram pensadas, escutadas, prescritas e silenciadas no espaço da escola e fora dela. Agregando os aspectos psíquicos, sociais, culturais e físicos para reforçar as representações produzidas da criança na sociedade, estabeleceram-se as distinções por sexo, compleição física, normal, anormal e de raça como elementos significativos na configuração da identidade da infância desejada, civilizada e asséptica. Neste aspecto, a escola foi acionada na prevenção e inibição dos perigos provenientes de um cotidiano vicioso e condenável a oferecer toda sorte de perigos às crianças em formação.

As orientações prescritas pelas professoras, diretoras, enfermeiras e inspetores médicos, como também, pelo exame e o controle do corpo da criança, através do servido gráfico mensal de peso e altura em classe e da “ficha do pelotão de saúde” davam indicação sobre a situação de saúde e crescimento da criança, como também dos hábitos higiênicos realizados em casa e com o seu corpo. Estas informações serviam como parâmetro de identificação dos padrões de normalidade e anormalidade, onde os dados coletados acionavam medidas visando defender a implementação de hábitos sadios à formação de uma “infância útil” ao meio escolar e social (Leão, 1926, p. 58).

Nessa direção interpretativa, ressalta Vidal, que fichas de natureza dentária e médica foram instituídas pela Diretoria de Instrução Pública, com o objetivo de efetuar avaliações gerais e sistemáticas sobre as condições de saúde infantil. Além das fichas contendo medidas antropométricas, relato de doenças anteriores, hábitos da criança e da família, antecedentes de alcoolismo, tabagismo, sífilis, foi estabelecido, também o serviço itinerário de inspeção médica que visitando as escolas, identificava os males que assolavam as crianças, indicando o tratamento adequado (Vidal, 1995, p. 48).

Desde a criação da Inspeção Médica Escolar, em 1916, os médicos defendiam como imperioso zelar pela saúde das crianças mantendo as condições higiênicas do meio escolar e difundindo junto às crianças os princípios gerais de higiene, de profilaxia das doenças transmissíveis e evitáveis, bem como da prática da inspeção individual. As preleções sobre temas diversos, nas classes, permitiriam aos alunos fixar orientações voltadas para a preservação da saúde e modelação de práticas higiênicas e assépticas a seus fazeres escolares e familiares. As sugestões visavam “purificar-lhes” as práticas condenáveis que, na concepção dos médicos e dos educadores, caracterizavam o cotidiano das camadas populares, convocando-os, como esclarece Rocha, a aderirem a novos valores, ensinando-os “uma nova moral e uma nova forma de viver” pelo seu ingresso nos rituais de saúde, capazes de redimir das doenças, da pobreza, do atraso e da ignorância (Rocha, 2003, passim).

A preocupação com a saúde dos escolares voltava-se, principalmente, para a tentativa de identificar os espaços destinados as crianças consideradas sãs e as anormais para as quais seriam criadas escolas especiais7, bem como para na aplicação de medidas eficazes no sentido de coibir os avanços das epidemias na cidade o que implicava na incorporação pelas crianças de hábitos higiênicos. Neste sentido, Fernando de Azevedo logo que assumiu a Diretoria Geral de Instrução, anunciou medidas profiláticas que deveriam ser adotadas em nossas escolas em decorrência da possibilidade do avanço da epidemia de tuberculose sobre a cidade.

10

Page 11: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

Não deveis cuspir se puderdes evitar. Não deveis cuspir no chão, na pedra e na calçada; Não deveis pôr os dedos na boca; Não deveis meter os dedos no nariz e nem limpá-lo com a mão ou com a manga do paletot; Não deveis molhar os dedos na boca, quando virardes as folhas do livro; Não deveis pôr os lápis na boca nem molha-los nos lábios; Não deveis pôr dinheiro na boca; Não deveis pôr alfinete na boca; Não deveis pôr coisa alguma na boca a não ser a comida e a bebida; Não deveis utilizar o miolo da maçã, dos doces, das balas, dos alimentos mastigados, dos apitos, das flautas ou de qualquer outra coisa que tenha estado na boca de outra pessoa; (...); Deveis ter limpos o vosso rosto e as vossas mãos com água e sabão antes de cada refeição.8

Em concordância com as medidas defendidas pela Diretoria Geral de Instrução, a professora das escolas normais de Niterói e da capital, Evangelina A. Cruz defendia o princípio de que para a adoção de medidas higiênicas junto aos escolares, cabia à escola e aos professores observarem a higiene dos alunos, obrigando-os a manterem o completo asseio, por meio da inspeção diária da boca, do nariz, das orelhas, dos olhos e de toda pele, mostrando-lhe que “sem uma boa dentadura não se pode fazer uma completa mastigação e sem esta não há boa digestão” (Cruz, 1927, p.269). Em consonância com o pensamento médico, a época, a escola deveria colaborar nos momentos em que a cidade estivesse sob a ameaça de qualquer epidemia, mas também alertando as crianças e aos seus pais para os perigos no uso do fumo e do álcool (Programma para as Escolas Primárias, 1929, p.52).

Além dessas medidas preventivas adotadas, a Diretoria Geral de Instrução, em circular aos inspetores escolares, a partir do início do ano letivo de 1927, determinava a adoção de inspeção do médico escolar sobre as condições de higiene e de lotação das salas de aulas. Ficou estabelecido, ainda, que só seriam matriculadas as crianças que, submetidas a exame médico, não tivessem nenhum problema de retardamento mental e moléstias incuráveis ou contagiosas; as crianças maiores de sete anos9 e as vacinadas. Para obter de forma sistemática essas informações, as fichas de matrícula deveriam conter nome do aluno; idade; nacionalidade; nome do pai, tutor ou responsável e residência; data da matrícula; data da matrícula anterior e a classe que iria cursar (ibidem, p.215).

Além da premissa de higienização dos corpos e normatização das condutas, era freqüente a preocupação com a ordenação dos espaços escolares e da cidade. Em discurso intitulado As Bases e Diretrizes da Reforma, de 8 de setembro de 1927, em almoço oferecido no salão do Jockey Club, Fernando de Azevedo ao tratar da questão da higiene escolar e da higiene física do aluno, traçou um quadro desolador das condi-ções de salubridade da cidade.

Esta questão tão importante que basta enunciar para avaliar o seu alcance, reveste excepcional gravidade, em face da miséria orgânica e social da população da maioria das escolas rurais e suburbanas. Eu falo em nome das crianças dos meios rurais e operários, filhos da rua e da miséria, brotadas em lares onde escasseia o pão e sobram as provações e onde o agasalho do corpo e a própria subsistência não provém do salário certo, mas de expedientes aleatórios. Eu falo em nome dessas crianças enfezadas e anêmicas, quase maltrapilhas que enchem grande número

11

Page 12: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

de escolas públicas, bem perto do bulício e do fausto dos grandes centros da cidade, e trazem, na tristeza apática, nas olheiras fundas e no olhar sem brilho, quando não nas escolioses, e em toda espécie de estigmas, a marca do meio social em que detinham, e todos os sinais de uma debilidade congênita agravada pelas taras hereditárias e pela penúria de meios malsãos, e oferecida como presa fácil à contaminação ambiente. Por menor que pareça, constituem essas pobres crianças quase a metade da população em idade escolar que rumoreja em casarões sombrios ou cochicholos infectos, em que a higiene não pode, pela força irremovível das condições dos prédios, passar do papel, e a própria educação física se ministra nos saguões dos edifícios, nos quintais e em pátios de recreio, inapropriados, sujeitos a emanações insalubres de instalações sanitárias (Azevedo, 1931, p. 50).

O discurso produzido por Fernando de Azevedo traz a intenção de processar uma intervenção no espaço da cidade através da construção de novos prédios escolares em que a saúde das crianças fosse vislumbrada enquanto parte significativa do projeto de reorganização do ensino. Com esse intuito foram construídos os prédios da Escola Uruguai, Escola Argentina (atual Escola Sarmiento), Escola Estados Unidos, Escola de Débeis Físicos (Escola Prado Júnior), Instituto de Educação e os anexos das Escolas Profissionais Femininas Rivadávia Corrêa e Paulo de Frontin.10 A argumentação produzida por Azevedo, aparece como iniciativa que procurava patentear as reivindicações e necessidades das camadas mais pobres da população, representada pelos operários e trabalhadores em geral. Este projeto estava identificado ao intento de se criar modelos a partir dos quais os indiví-duos, através da escolarização, iriam se pautar na condução de suas vidas.

O papel da escola mudou. Se até então era percebida enquanto auditório, onde a criança participava como um mero espectador; a reforma instituiu-a como laboratório onde o mestre ensinava pelo trabalho de que participava, estimulando e orientando as atividades nas quais os alunos passavam a participar integralmente através de experimentação do que antes era apresentado apenas verbalmente pelos professores (Boletim da Educação Pública, 1930, p. 13).

Além das práticas de higiene e do assistencialismo na constituição de corpos e hábitos saudáveis, a escola reformada previa a criação da disciplina de Educação Higiênica a ser oferecida nos cinco anos da escola primária.11 Outra prática valorizada na escola foi à educação física que deveria se constituir como parte integrante da ação moralizante e disciplinar de composição de uma “poesia do corpo”, envolvendo a formação do caráter, do corpo, da mente e do espírito dos futuros cidadãos. Para isso, defendia a necessidade de formação de professores a luz da pedagogia moderna, em que a ginástica escolar assumiria o caráter profilático ou higiênico. Pretendia-se desenvolver resistência e vigor físico, disciplinando o corpo e promovendo a saúde corpórea e mental dos escolares (Azevedo, 1920, p. 30).

Ao instituírem o estatuto de escolar a essas crianças, ingressas na escola, produziram-se representações que implicaram, não somente, na composição de novas formas de comportamentos e tratamentos direcionados às suas práticas cotidianas, mas também determinaram a disseminação e valorização da escola como instância produtora de uma “ortopedia mental”12 capaz de neutralizar os males e perversões adquiridas pelas crianças em suas relações familiares e sociais. Assim, a condição de escolar atribuída à infância sancionava a afirmação de uma identidade própria a ser assumida pela criança

12

Page 13: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

pobre no espaço da escola. Reafirmava-se o papel capilar da escola e da educação na promoção dos indivíduos, mas fundamentalmente na construção do país como nação civilizada e moderna. Ao organizar as finalidades e os conteúdos a serem ensinados na escola reformada, constituíram-se os pressupostos, por meio dos quais, instituíram a caracterização de uma infância desejável e asséptica. Embora não coubesse à escola e à educação, por si sós, fazerem a nação cabia-lhes contribuir para o crescimento da riqueza material e moral do país, despertando na criança a consciência nacional. Por meio do processo de escolarização da criança, esperava-se suprimir a heterogeneidade, transmitindo às tradições morais e os valores culturais de geração a geração.

É plausível inferir que com a Reforma se forjou uma nova representação de criança e de aluno, uma vez que se agregou a sua imagem à mudança de foco da educação. A ela, atribuíram-se novas capacidades negligenciadas, até então, pela escola. Além de observador atento, investigador tenaz, deveria a criança ter consciência nacional, discernimento e iniciativa pessoal, constituindo-se como “(...) ser vivo pensante, como unidade sob o ponto de vista físico, intelectual e moral” (Moraes, 1927, p.615). A imagem idealizada de uma infância transformada pelo bem do país corporificou-se na representação de uma criança forte, saudável, bem-comportada e livre do estigma da pobreza e do atraso.

A ação empreendida pelo reformador durante os anos em que esteve à frente da reforma assentava-se na crença de que através da educação seria possível adequar às classes populares a uma nova lógica de sociedade a se construir. A reforma imprimiu novas finalidades à escola alargando seu raio de ação e a perspectivando como espaço de intervenção no social. Quanto a este aspecto, embora a reforma tenha proposto como princípio fundante a ideia da “escola para todos”, um número expressivo de crianças continuaram fora da escola compondo “dados” de uma estatística que ao tingirem as cores da escola não as perspectivaram como sujeitos de sua educação.

BibliografiaAZEVEDO, Fernando de. Da educação Physica. O que ella é – o que tem sido – o que deveria ser. São Paulo e Rio de Janeiro: Editora Weiszflog irmãos, 1920.__________. Novos Caminhos e Novos Fins. São Paulo: Melhoramentos, 1931.__________. A Educação na Encruzilhada. São Paulo: Edições Melhoramentos, s.d.__________. A Educação e Seus Problemas. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1948.__________. A Cultura Brasileira. São Paulo: Melhoramento, 1958.__________. História de Minha Vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.__________. A Reconstrução Educacional no Brasil. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. In MAGALDI, Ana Maria; GONDRA, José Gonçalves (orgs.) A reorganização do campo educacional no Brasil: manifestações, manifestos e manifestantes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.Boletim do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. 6º Boletim – ( 1921-1922). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1924.Coleção de Leis Municipais e Vetos, Regulamentos do Ensino. Decreto n. 2.940 de 22de novembro de 1928. Regulamenta a Lei n. 3.281 de 23 de janeiro de 1928 que organizou o ensino no Distrito Federal.Boletim da Prefeitura do Distrito Federal. Ano LXV, janeiro/julho de 1927.CAMARA, Sônia. Reiventando a Escola. O Ensino Profissional Feminino na Reforma Fernando de Azevedo de 1927 a 1930. Niterói. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 1997.

13

Page 14: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

____________. A Constituição dos Saberes Escolares e as Representações da Infância na Reforma Fernando de Azevedo de 1927 a 1930. Revista Brasileira da Educação. Sociedade Brasileira de História da Educação, n. 8, julho/dezembro, 2004.CAMPOS, Maria dos Reis. Discurso de Homenagem a Fernando de Azevedo. Arquivos do Instituto de Educação. Secretaria Geral de Educação e Cultura. Prefeitura do Distrito Federal, volume II, n. 4, dezembro de 1945.CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Rio de Janeiro – juntando os pedaços. A propósito de uma tendência recente da produção intelectual sobre esta cidade. Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol.1, n. 2, janeiro/abril, 1986.CARVALHO, Marta Maria de. Molde Nacional e Fôrma Cívica: Higiene e Trabalho no Projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). São Paulo. Tese (doutorado) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986.____________. Fernando de Azevedo, Pioneiro da Educação Nova. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 37, 1994.CRUZ, Evangelina A. A Educação dos Sentidos. In: A Escola. Revista Pedagógica Mensal. Rio de Janeiro, ano IV, n. 46, janeiro de 1927.FROTA PESSOA, José Getúlio da. A reforma do ensino primário: suas características fundamentais. In Revista Sciencia e Educação. Ano I, número 1, fevereiro de 1929.LEÃO, Antonio Carneiro. O Ensino na capital do Brasil. Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Comércio, 1926.MALGADI, Ana Maria Bandeira de Mello. Cera a Modelar ou Riqueza a Preservar: ainfância nos Debates Educacionais Brasileiros. (Anos 1920-30). In: GONDRA, José Gonçalves (org.). História, Infância e Escolarização. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002.MORAES, Deodato. A Escola Nova. In: COSTA, Maria José Franco; SHENA, Denílson Roberto. I Conferência Nacional de Educação. Curitiba 1927, op. cit., p. 615.NUNES, Clarice. A Escola Redescobre a Cidade. Reinterpretação da modernidade pedagógica no espaço urbano carioca/1910-1935. Niterói. Tese de (Professor Titular) em História da Educação - Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 1993.PALMEIRA, Álvares. O Ensino Profissional e a Reforma. Boletim da EducaçãoPública. Publicação Trimestral da Diretoria Geral de Instrução Pública do DistritoFederal. Rio de Janeiro, ano 1, n.1, janeiro/março, 1930.Programmas dos Institutos e Escolas Profissionais. Prefeitura do Distrito Federal. Riode Janeiro: Oficinas Grafícas do Jornal do Brasil, 1929.Programmas Para as Escolas Primárias. Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro:Oficinas Grafícas do Jornal do Brasil, 1929.ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Educação escolar e higienização da infância. Cadernos Cedes 59. Educação Pela Higiene. Histórias de Muitas Cruzadas. Campinas,vol. 23, n. 59, abril, 2003.SIRINELLI, Jean-Francois. Os intelectuais. RÉMOND, René (org.) Por Uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.STEPAN, Nancy Leys. “A Hora da Eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. Rio de janeiro: Zahar, 1987.VIDAL, Diana Gonçalves (org.) Educação e Reforma. O Rio de Janeiro nos anos 1920-1930. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.

14

Page 15: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

____________________; PAULILO, André Luiz. Projetos e Estratégias de Implementação da Escola Nova na Capital do Brasil (1922-1935). In: MAGALDI, AnaMaria; ALVES, Claúdia; GONDRA, José G. (org.) Educação no Brasil: História,Cultura e Política. Bragança Paulista: EDUSF, 2003.

15

Page 16: Uma Cruzada Educativa: a Reforma Fernando de … · Web viewNo cenário internacional, o pensamento social de Fernando de Azevedo encontrou nos teóricos da Escola Nova, a exemplo

1Notas:

Sobre a concepção de rede de sociabilidade cf. SIRINELLI, 2003.2 A Sociedade se definia como organização culta, cientifica e profissional na qual fluiriam estudos científicos, conferências e propagandas sobre o fortalecimento físico e moral da raça brasileira. A principal função da Sociedade consistia em “divulgar a idéia da eugenia e introduzir uma nova linguagem no debate brasileiro”, trazendo temas até, então, tradicionais do campo médico para o debate. Temáticas como, alcoolismo, doenças venéreas, degeneração, fertilidade, natalidade, mortalidade infantil, tuberculose e outras, foram relacionadas à purificação e a eugenização da nação brasileira. Estes temas estiveram presentes no universo de questões acionadas pelos reformadores da educação, a exemplo de Fernando de Azevedo. STEPAN, 2005, p. 56.3 No entanto, não foi sem resistência que a nomeação de Azevedo, pelo Presidente da República Washington Luís, se realizou. O projeto elaborado foi acompanhado de muita polêmica e resistência na imprensa e por parte das lideranças políticas locais. No entanto, os enfrentamentos não se fizeram sem apoio. Articulador político arrojado, Fernando de Azevedo criou condições para realização de seu projeto, negociando quando possível às condições para a sua realização. Por meio de apoios expressos da Associação Brasileira de Educação; do Instituto Central de Arquitetura; da Liga Brasileira de Higiene Mental; da Associação Dentária Infantil; do Jornal do Brasil; do O Jornal; do Jornal O Imparcial; do Jornal A Pátria, bem como do Conselheiro Municipal Maurício de Lacerda, compôs as bases políticas necessárias para vencer as oposições.4 O decreto regulamentou a Lei n. 3.281 de 23 de janeiro de 1928.5 O projeto foi realizado com a colaboração da Comissão de Planejamento e Reestruturação do Ensino e das Escolas. Além dessa, outras comissões foram nomeadas visando organizar os Programas de Ensino e estudar alternativas para a situação da instrução pública. Compondo a equipe de Azevedo, estiveram, entre outros, Frota Pessoa, Jonathas Serrano, Paschoal Lemme, Sud Menoccio, Renato Jardim, Venâncio Filho, Maria dos Reis Campos. As comissões funcionavam na Escola Deodoro, identificada como sede, quartel general da reforma. Cf. Campos, 1945, p. 85.6 Entre as principais obras da Reforma, Carlos Werneck, diretor da Escola Normal da capital, destacava a criação dos cursos vocacionais, vinculados as escolas primárias, aos estabelecimentos de ensino normal e profissional; os círculos de pais, a escola de débeis; o serviço médico, a regeneração do ensino profissional e a instalação da escola comercial no bairro de Botafogo (Boletim da Educação Pública, 1930).7 Com intuito de atender as crianças anormais, Fernando de Azevedo mandou construir na Quinta da Boa Vista a Escola para Débeis físicos, onde as condições de higiene e salubridade foram ressaltadas na arquitetura de Nereu Sampaio. Azevedo, sd, op. cit. , p. 137.8 Essas medidas publicadas no Boletim na parte destinada à Instrução Pública deveriam ser lidas e explicadas três vezes por semana em todos os estabelecimentos de ensino profissional. (Boletim da Prefeitura do Distrito Federal, 1927, p. 215).9 A partir da nova organização escolar ficava estabelecido que só depois do curso primário e complementar (sete anos) se iniciariam as diversificações nas escolas profissionais de acordo com a vocação dos alunos. Boletim de Educação Pública. Ano I, n. 1, op. cit. , p. 22.10 Em estilo neo-colonial os prédios pretendiam atender a uma perspectiva de beleza e higiene e colaborar para a construção de novas práticas escolares. 11 Quanto à discussão sobre a educação higiênica na reforma cf. Camara, 2004.12 Sobre o termo conferir em (Magaldi, 2002, p. 68).