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Uma Duzia de Tchekhov Contos Revisado

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 Uma Dúzia de Tchekhov - Contos

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No mar da CriméiaAs trevas tornam-se cada vez mais densas. A noite

esce. Gusief, antigo soldado, agora em baixaefinitiva, incorpora-se na sua rede e diz baixinho:

— Escuta, Pavel Ivanytch: um soldado me contouue o barco dele chocou-se, no Mar da China, comm peixe que era do tamanho de uma montanha.erá verdade?avel Ivanytch permanece calado, como se não

vesse ouvido nada.O silêncio volta a reinar. O vento zune por entre asnxárcias. As máquinas, as ondas e as redesroduzem monótono ruído. Mas quem tem ouvido habituado há já muito tempo, quase nãoercebe dir-se-ia, mesmo, que tudo ao redor está

mergulhado em profundo sono.O tédio gravita sobre os passageiros que sencontram na enfermaria. Dois soldados e um

marinheiro voltam doentes da guerra. Passaram oia inteiro jogando e agora, cansados, deitam-se eormem.

O mar torna-se um tanto agitado. A rede na quaGusief está deitado ora sobe, ora desce, lentamente,

omo um peito arquejante. Algo fez ruído ao cair aoolo; talvez uma caneca.

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— O vento partiu as suas correntes e está a corrermar — diz Gusief prestando atenção aos rumores

ue vêm do convés.Desta vez, Pavel Ivanytch tosse e exclama com voz

rritada:— Meu Deus! Que idiota que você é! Quando não seõe a dizer que um barco se despedaçou dencontro a um peixe, diz que o vento partiu asorrentes, como se fosse uma de carne e osso...

— Não sou eu quem diz isso, são as pessoas de bem.— São todos uns ignorantes como você. É precisoaber ter a cabeça no lugar e nãoacreditar em todass bobagens que se contam pelo mundo. É precisoefletir bem, antes de aceitar uma idéia alheia.avel Ivanytch é sensível ao enjôo. Quando o navioomeça a jogar, fica de mau humor e pôr qualqueroisa se irrita. Gusief não compreende pôr que oizinho de enfermaria se enerva tanto. Não há nada

e extraordinário no fato de um barco se despedaçare encontro a um peixe, havendo, como há, peixesmaiores do que montanhas e de pele mais dura que

gelo. É muito natural, também, que o vento rompas suas cadeias. Há muito tempo contaram a Gusie

ue lá longe, no fim do mundo, há enormesmuralhas de pedra, às quais estão presos os ventos;s vezes eles partem as correntes e lançam-se

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través dos mares, uivando como cães loucos. Porutra parte, se não fosse verdade que estãocorrentados, onde se escondem quando o mar estáalmo?

Gusief fica a pensar longamente nos peixes doamanho de montanhas, e nas pesadas cadeiasecobertas de ferrugem. Depois aborrece-se disso eassa a pensar na sua aldeia, para onde, agora,egressa, depois de cinco anos de serviço no

xtremo Oriente. Sua imaginação evoca um vastoique, recoberto de gelo e de neve. Numa das suas

margens ergue-se uma fábrica de louças, construídaom tijolos vermelhos, de cuja alta chaminé saemegros rolos de fumaça. Na margem oposta estãospalhadas as casas da aldeia.

Gusief imagina que está vendo sua casa. Seu irmãoAlexey, que na sua ausência se tornou o chefe damília, sai do pátio num trenó, acompanhado de

eus dois filhos, Vânia e Akulka, ambos com grossasotas; Alexey está um tanto bêbedo. Vânia ri,Akulka traz um xale que quase lhe oculta o rosto.— Pobres crianças, que frio devem sentir! — pensaGusief. Virgem Santa, protegei os coitadinhos!

O marinheiro estendido ao lado de Gusief tem oono muito agitado e começa a sonhar em voz alta.

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— É preciso mandar pôr meia-sola nas botas —xclama. Se não é melhor jogá-las fora.

A aldeia natal desaparece da mente de Gusief, seusensamentos tornam-se desconexos. Vê a seguir

ma enorme cabeça de boi, sem olhos; trenós,avalos envoltos num espesso halo... Recorda,orém, embora vagamente, ter visto os seus, e isso

he provoca uma alegria tão intensa que elestremece da cabeça aos pés.

— Vi a minha gente! Vi a minha gente! — murmuraonhando, com os olhos bem fechados.

No mesmo instante incorpora-se bruscamente, abres olhos e pede um copo de água. Depois de beber,orna-se a deitar e os sonhos retornam.

assim até raiar o sol.A escuridão vai diminuindo e a cabina ilumina-se. A

rincípio vê-se um círculo azul; é o postigo. LogoGusief começa a distinguir o vizinho de maca, Pavel

vanytch, o qual dorme sentado porque estendidoufocaria. Tem o semblante acinzentado, o narizontiagudo e os olhos muito aumentados pelaorrenda magreza, vincadas as frontes, melenas

ongas... Pelo aspecto não se lhe adivinharia a

ategoria: intelectual, negociante ou clérigo? Pelasnhas do semblante e pela guedelha, parece umoviço de qualquer convento; porém, quando fala,

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erifica-se que não é frade. Aniquilado pela tosse,elo calor e pela doença, respira a muito custo eara falar precisa fazer grande esforço. Notando que

Gusief o observa, volve a cabeça e diz:

— Começo a compreender... Agora, sim,ompreendo tudo, perfeitamente bem!— Como, Pavel Ivanytch?— Olhe... Parecia-me estranho que vocês, tão

oentes, estivessem aqui, num barco em terríveis

ondições higiênicas, respirando numa atmosferampura, exposto ao enjôo,ameaçados a todo

momento pela morte. Agora já não estranho isso. Éma peça de mau gosto que os médicos vosregaram. Meteram vocês neste barco para sevrarem de vocês. Estavam fartos de vocês. Alémisso, não lhes interessa tratar de doentes dessa laia,ois vocês não pagam. E não queriam que

morressem no hospital, pois isso sempre causa má

mpressão. Para se desembaraçarem de vocês,astava, em primeiro lugar, não possuir consciênciaem sentir amor à humanidade; depois, é sónganar o comandante do navio. Quanto aorimeiro ponto, nem é preciso falar; somos, a esse

espeito, artistas; e, com alguma prática, o segundoá sempre bom resultado. Ninguém nota a falta deuatro ou cinco doentes entre quatrocentos soldados

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marinheiros em perfeita saúde. Embarcados, vocêsão postos no meio dos saudáveis; contados defogadilho e na confusão da partida, nada se vê denormal. Inicia-se a viagem, percebem, como é

atural, que todos vocês são paralíticos euberculosos de último grau, a se arrastarem....Gusief não compreende Pavel Ivanytch . Supondo

ue Pavel está desgostoso com ele, diz paresculpar-se:

— Não tenho culpa. Deixei que me embarcassemlegrando-me muito pelo fato de poder voltar parasa.

— Oh! É revoltante — continuou Pavel Ivanytch.rincipalmente porque eles bem sabem que vocêsão podem suportar esta longa travessia.

Admitamos que vocêscheguem até o Oceano Índico.depois? ... É terrível pensar nisso!... Eis a

ecompensa de cinco anos de fiel e irrepreensível

erviço!— Os jornais deveriam contar essas sujeiras! Serima boa lição para esses canalhas!avel Ivanytch, com expressão de ira e vozufocada, diz:

Os dois soldados e o marinheiro doente acordaram euseram-se a jogar baralho.

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O marinheiro está meio sentado na maca; osoldados, perto dela, sobre a ponta, em posiçãoncômoda. Um tem o braço enfaixado e o pulsonvolto num verdadeiro monte de pensos, de tal

maneira que se vale da flexão de cotovelo paraegurar as cartas.O barco baloiça violentamente, o que impede que

ente se levante para tomar chá.— Você era ordenança? — pergunta Pavel Ivanytc

Gusief.— Justamente.— Meu Deus! Meu Deus! — levanta-se Pavelvanytch. Arrancar um homem do seu ninho,brigá-lo a fazer quinze mil verstas e apanhar auberculose, para... para que pergunto-lhes eu?...ara dele fazer a ordenança do capitão Kopeikine oue um porta-bandeira Durka... Haverá lógica nisso?

— O trabalho não é difícil, Pavel Ivanytch. É só

evantar cedo, engraxar as botas, arrumar osuartos, e nada mais. O meu oficial ficava a traçarrojetos o dia todo, eu podia dispor do meu tempo,odia ler, passear, conversar com os amigos.rancamente, não posso queixar-me.

— Sim, de fato; o tenente esboçava plantas e vocêcava a se aborrecer a quinze mil verstas da sua

erra, desperdiçando os melhores anos da sua vida.

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raçar plantas!... Não se trata de plantas mas daida humana, meu caro. E o homem só tem umida; devemos poupá-la.

— Realmente, é verdade, Pavel Ivanytch — continu

Gusief que mal entende o raciocínio do vizinho. —Um pobre diabo não é bem tratado em partelguma, nem em casa, nem no serviço. Mas se aente cumpre sua obrigação, como eu, não tem nadtemer, que necessidade haverá de maltratá-los? Os

hefes são pessoas instruídas e compreendem asoisas... Eu, em cinco anos, nunca estive preso e,uanto a ser espancado... não o fui — se Deus não

me tolhe a memória — senão uma vez...— E por quê?— Por uma rixa. Tenho a mão pesada, Pavelvanytch. Quatro chineses, se bem me lembro,ntraram no pátio da casa. Acho que procuravamrabalho. Pois bem, para passar o tempo comecei a

ar neles. O nariz de um dos réprobos sangrou... Oenente, que tudo vira da janela, me deu uma boação.

— Meu Deus! Que imbecil que você é! — murmuravel Ivanytch. Você não compreende nada!

Completamente aniquilado pelo balanço do barco,le fecha os olhos. A cabeça ora se lhe inclina par

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rás, ora sobre o peito. Tosse cada vez mais. Depoise curta pausa, diz:

— Por que é que você espancou aqueles coitados?— À toa. Estava muito aborrecido.

Reina de novo o silêncio. Os dois soldados e omarinheiro passam horas e horas a jogar, por entrelasfêmias e insultos. Mas as oscilações acabam poratigá-los. Acabam a partida e deitam-se. Mal fechs olhos, Gusief revê o grande lago, a fábrica, a

ldeia... sua aldeia, com seu irmão e seus sobrinhos.Vânia recomeça a rir e a tola da Akulka, pondo as

ernas fora do trenó, exclama: “Olhe, ó gente, asminhas botas são novinhas e não como as deVânia!”— Ela vai para os seis anos — delira Gusief — einda não tem juízo. Em vez de mostrar as botas,evia trazer água para o titio soldado! Depois, dar-

he-ei bombons.

Depois avista seu amigo Andron, pederneira aracolo. Carrega uma lebre que matou. Issaitchik,udeu, segue-o a propor-lhe a troca da lebre por umedaço de sabão. Ali, à porta da cabana, há umovilha negra. Eis que surge Domna, sua esposa,

ue costura uma camisa e chora. Por que chorala?... E eis, de novo, a cabeça de boi sem olhos e aumaça preta.

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Adormece, mas um ruído no tombadilho o desperta.Alguém, lá em cima, está a gritar; acorrem diversosmarinheiros. Parece que alguma coisa enorme e

esada foi levada à ponte ou, então, aconteceu

ualquer coisa inesperada. Acorrem mais homens...erá sucedido alguma desgraça?! Gusief ergueabeça, espreita e vê que os dois soldados e o

marinheiro recomeçaram o jogo. Pavel Ivanytch,entado, move os lábios como se quisesse falar; mas

ão diz nada. Todos ofegam, sufocam, têm sede; oalor continua. Gusief tem a garganta a arder, mas agua morna causa-lhe repugnância. E o barcoontinua a dançar.

De repente, algo de anormal acontece a um dosoldados que jogam. Ele confunde o naipe de copasom o de ouros, erra na conta e deixa cair as cartas.

Depois, olha em torno de si com um sorrisoediondamente alvar.

— Voltarei logo, camaradas... Esperem... eu... eu... —estende-se no pavimento.Os companheiros interrogam-no, estupefatos; ele

ão responde.— Stepan! Sente-se mal? — pergunta-lhe o soldado

o braço ferido. Hein? Quer que chame o padre,im?

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— Stepan, beba água, beba, camarada, beba! — diz-he o marinheiro.

— Mas por que você lhe empurra a caneca à boca?— exclama Gusief, irritado. Não vês, então, seu

diota?...— Como?...— “Como?..” — repete Gusief arremedando; — eleá não respira... está morto. E ainda perguntas:Como?” Que idiota, meu Deus!

Cessa o baloiço. Pavel Ivanytch está de novo alegre,ão se irrita mais por qualquer coisa. Tornou-se atéanfarrão, escarnecedor. Tem o ar de quem desejontar uma história tão engraçada que provoqueor de barriga.elo postigo aberto, uma brisa suave passa sobreavel Ivanytch. Ouvem-se vozes; os remos ferem agua compassadamente... Sob o postigo, alguémegouga; talvez um chinês que se tenha aproximado

um bote.— Sim — diz Pavel Ivanytch, sorrindo zombeteiro— eis-nos no ancoradouro. Um mês mais, estaremos na Rússia. Sim, cavalheiros, estamoshegando. Os soldados são muito acatados, sim

enhor. Chegando em Odessa, seguirei para Carcov,nde tenho um amigo escritor a quem direi:Vamos, amigo, deixa pôr um minuto os teus

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scabrosos temas relacionados com mulheres e commor; deixa de cantar as belezas da natureza erocura divulgar as sujeiras dos seres de duas patas.rago-te esplêndidos temas...”

Depois de ter pensado um minuto em qualqueroisa, torna:— Gusief, você sabe como os enganei?— A quem?— Aos que mandam no navio...Compreende? Na

mbarcação não há senão duas classes: a primeira eterceira. De terceira só viajam os mujiks, também

hamados broncos. Se você tiver um jaquetão e umerto ar de cavalheiro ou de burguês, é obrigado aiajar de primeira. Dir-lhe-ão: “ Arranje-se comouder, mas deve pagar quinhentos rublos”. “Qualazão desse regulamento? Quererá o senhor elevarom isso o prestígio dos intelectuais russos?”Absolutamente, não. Não lhe permitimos viajar de

erceira pelo simples motivo de que não convém àsessoas distintas; passa-se bem mal e é repugnante”.Muito agradecido, prezado senhor, pela suaolicitude para com as pessoas distintas! Mas, comouer que seja, não disponho de quinhentos rublos.

Não fiz negócios escuros, não roubei o Estado, nãoxerci contrabando, não fiz morrer ninguém sob oçoite. Como posso ser rico? Ora, pense bem. Tenho

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u o direito de estabelecer na primeira classe e,obretudo, insinuar-me entre os intelectuaisussos?” — Dado, porém que não é possível vencê-os pelo raciocínio, recorre-se a um ardil. Visto o

apote e calço as botas altas; tomando um ar deêbedo dirijo-me ao bilheteiro:— Excelência, desejo uma passagem de terceira e

ue Deus o abençoe.— Qual é a sua profissão? — pergunta-me o

uncionário.— Sou do clero. Meu pai foi um “pope” honesto.Muito sofreu pôr dizer sempre a verdade aos

oderosos deste mundo. Eu também sempre digo aerdade...

— Sim, sempre digo a verdade sem rebuço... Nãoemo coisa alguma nem ninguém. Nesse ponto, hántre mim e vocês considerável diferença. Vocês nãonxergam nada. Ignorantes, cegos, esmaga-os o peso

a própria inferioridade. Acreditam que o ventostá amarrado com correntes e outras bobagens.Vocês beijam a mão que vos fere. Um espertalhão

ualquer, vestido de peliça, rouba tudo que vocêsêm e depois vos atira quinze kopeks de gorjeta, e

ocês dizem:— “Dê-me, Excelência, a honra de lhe beijar a mão”.

árias, asquerosos... Quanto a mim, sou bem

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iferente. Levo uma vida consciente. Vejo tudo,omo a águia ou o abutre que se eleva muito acimaa terra. Compreendo tudo. Sou a encarnação dorotesto. Protesto contra o arbitrário, contra o beato

ipócrita, contra os suínos triunfantes. E soundomável. Nem mesmo a Inquisição espanhola mebrigaria a calar. Sim... Se me arrancassem a língua,

minha mímica protestaria. Lancem-me numubículo, tranquem a porta: bradarei tão fortemente,

ue serei ouvido a uma versta de distância; ountão, me deixarei morrer de fome para queôbrega consciência dos carrascos sinta um peso a

mais. Todos os conhecidos me dizem:— “Pavel Ivanytch, na verdade você énsuportável!” Mas eu me orgulho dessa reputação.nfim, que me matem! Minha sombra voltarterradoramente. Prestei três anos de serviço noxtremo Oriente, e lá deixei uma reputação par

em, porque me incompatibilizei com todo mundo.Os amigos escrevem-me: “Não apareça!”, poisonhecem meu caráter belicoso. E eu embarco! eolto a despeito dos seus avisos!... Sim, essa é a vidaue eu compreendo. Isso sim é que se pode chamar

vida.Gusief deixa de escutar e olha através do postigo.Uma canoa oscila sobre a água transparente, cor de

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urquesa pálida, banhada em cheio pelo soeslumbrante e abrasador. Nela, de pé e nus, algunshineses oferecem gaiolas de canários e gritam:

— Canta bem! Canta muito bem!

Outra canoa bate contra a primeira: passa ummbarcaçãozinha a vapor. E eis ainda outra canoa,m que se vê um gordo chinês, que come arroz comauzinhos. A água gorgulha preguiçosamente; haivotas brancas voando com indolência.

— Oh! aquele gorducho... — pensa Gusief. Seriozado dar uns sopapos nesse animal de carmarela.avel Ivanytch cansa-se de falar; respira comificuldade. Mas prossegue: Dormindo em pé,parece-lhe que toda a natureza cabeceia com sono.

O tempo corre veloz. O dia se escoa sem que se dêôr isso e do mesmo modo a noite vem chegando...

O barco desamarrou e prossegue para destino

gnorado.assaram-se os dias. Pavel Ivanytch já não estáentado, mas curvado. Tem os olhos fechados e oariz afinou-se ainda mais.

— Pavel Ivanytch! — grita-lhe Gusief. Ouviu, Pave

vanytch?— Como é? Isso vai ou não vai?

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— Assim, assim... — responde Pavel Ivanytch,rquejante. Ao contrário, vai até melhor... Olhe,asso até deitado... A coisa vai melhorando.

— Então, que Deus seja louvado!

— Sim, estou melhor. Quando me comparo a vocês,into compaixão...Tenho os pulmões fortes; a tosseme vem do estômago... Sou capaz de suportar onferno. Por que falar no mar Vermelho? Além do

mais, considera a minha doença e os remédios do

onto de vistacrítico... e vocês são uns pobresiabos... É terrível para vocês... muito, muito

errível. Tenho verdadeira pena de vocês.As ondas já não fazem o barco jogar, mas atmosfera é cálida e pesada como um barco a vapor.

Gusief apóia a cabeça nos joelhos e põe-se a pensara sua aldeia. Com o calor que faz, é um prazerensar na aldeia, completamente coberta de neveesta época do ano. Sonha que está passeando de “

roika “ através dos campos gelados. Os cavalosspantados sem motivo, correm como loucos etravessam o dique num único salto. Os camponesesrocuram detê-los, mas Gusief pouco se importa.ente-se possuído pôrintensa alegria. É com prazer

ue recebe no rosto e nas mãos a glacial carícia doento, e a neve a lhe cair pelo cabelo, pelo pescoço eelo peito o imunda de felicidade.

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Não se sente menos contente quando, em dadomomento, o carro vira, atirando-o na neve. Levanta-e satisfeito, coberto de neve da cabeça aos pés, eca a se sacudir entre gostosas gargalhadas. Ao

edor, os camponeses também soltam risadas e osachorros, nervosos, ladram. Realmente formidável.avel Ivanytch entreabre um olho, fita Gusief eergunta:

— Teu oficial roubava?

— Não sei Pavel Ivanytch. Essas coisas não são deossa conta.

Volta a reinar profundo silêncio. Gusief mergulhoue novo nos seus sonhos. De quando em quando

oma um pouco de água. O calor é tão forte que eleão tem vontade nenhuma de falar nem de ouvir, e

eme que a qualquer momento alguém lhe dirijaalavra.

Uma, duas horas transcorrem. À tarde sucede

oite; mas Gusief parece não ter notado nada;ontinua na mesma posição, a fronte nos joelhos, aensar na sua aldeia, no frio, na neve.

Ouvem-se passos, vozes. Ao cabo de cinco minutosudo volta a cair no silêncio.

— Que a terra lhe seja leve! — murmura o soldadoo braço ferido. Era um homem que deixava a genteervoso.

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— Quem? — pergunta Gusief esfregando os olhos.— De quem é que estás falando?— Ora, de quem? De Pavel Ivanytch! Morreu.

evaram-no para cima.

— Como? — murmura Gusief como se nãoompreendesse. Fica longo tempo a meditar e porm, com um suspiro, diz: — Então tudo se acabou!

Que Deus o perdoe!— O que é que você acha? — pergunta o soldado.

ocê acha que ele será admitido no Paraíso?— Ele quem?— Pavel Ivanytch, homem!— Ah!... Creio que sim. Sofreu muito. Além disso,ra do clero. Seu pai era “pope” e rogará a Deuselo filho.

O soldado senta-se na cama de Gusief e olhando-oxamente, diz em voz baixa:

— Também você, Gusief, não há de viver muito.

Não voltará a ver a sua terra.— Quem disse isso!? O médico? O enfermeiro?— Ninguém, mas a gente vê logo. Percebe-se muito

em quando uma pessoa está para morrer. Você nãoome, emagrece dia a dia... causa medo. Enfim, é

uberculose. Não digo isso para o assustar, maspenas no seu próprio interesse. Deveria receber os

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acramentos... Além disso, se você tem dinheiroeve deixá-lo com o comissário do navio...

— Nem escrevi para minha gente — suspira Gusief.Morrerei e eles não saberão de nada.

— Como não saberão? Quando você morrer elesscreverão para as autoridades militares de Odessa,ue, por sua vez, avisarão sua família.

Gusief está profundamente perturbado. Vagosesejos o afligem. Toma um pouco de água, volta a

erscrutar o mar através do postigo, porém nadaonsegue acalmá-lo. Nem mesmo a lembrança daldeia consegue, agora, tranqüilizá-lo. Temmpressão de que se permanecer mais um minuto nnfermaria cairá sufocado.

— Estou muito mal, meus irmãos — diz baixinho.Não posso continuar aqui... Quero ir lá para cima.Quem quer ajudar-me?— Bom — diz o soldado. Vou acompanhá-lo, já que

ão pode ir só. Apoie-se no meu ombro.Gusief obedece. O soldado segura-o com a sua mãoã e ambos sobem vagarosamente a escada queonduz ao convés.m cima, o tombadilho está cheio de marinheiros e

e soldados deitados no chão. São tantos que éifícil abrir caminho.

— Sente-se — diz o soldado. Eu o seguro.

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Não se vê muito bem. Não há luz no tombadilho,em nos mastros, nem no mar. Uma sentinela, de péa extremidade do navio, está tão imóvel que parecedormecida. Dir-se-ia que o barco se encontr

bandonado ao seu próprio destino e que ninguéme importa em lhe dar um rumo.— Vão atirar Pavel Ivanytch ao mar — murmura ooldado. Vão costurá-lo num saco e atirá-lo àsndas.

— Sim — responde Gusief suavemente. É doegulamento.

— É melhor morrer em terra. De vez em quandomãe da gente vem chorar junto ao túmulo, ao passo

ue aqui...— Sim, eu também preferiria morrer na minha casa,

a aldeia...enosamente, os dois se erguem e começam a andar.m certo trecho sente-se pronunciado cheiro de

orragem e de esterco: vem de um curramprovisado no tombadilho, onde se encontram oitoacas. Um pouco mais adiante, há um potromarrado. Gusief estende a mão para acariciá-lo,

mas o cavalo sacode furiosamente a cabeça e mostr

s dentes, com eloqüente intenção de mordê-lo.— Bicho do inferno! — protesta Gusief.

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le e o soldado apoiam-se na balaustrada e ficamlhar em silêncio ora o mar, ora o céu. Sobbóbada celeste, calma e muda, reinamnquietação e as trevas. As ondas se entrechocam

uidosamente. Cada uma procura erguer-se mais doue a outra e se atropelam, e se Empurram, furiosasdisformes, coroadas de branca espuma.

O mar é impiedoso. Se o navio não fosse tão grandetão sólido, as ondas o destroçariam sem piedade,

ragando cruelmente todos quantos viajam nele, semistinguir os bons dos maus. O próprio barco não é

menos cruel. Semelhando um estranho monstro,orta com a quilha milhões de ondas. Não teme nemnoite, nem o vento, nem o espaço infinito, nem a

olidão. Se a superfície do mar estivesse cheia deeres humanos, cortá-los-ia da mesma maneira, semampouco, fazer distinção entre os bons e justos e osecadores.

— Onde estamos agora? — pergunta Gusief.— Não sei. Acho que no oceano.— Não se vê terra...— Que dúvida! Antes de oito dias não veremos nemombra de terra!

Ambos continuam perscrutando a espuma branca eosforescente, mergulhados no mais completo

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ilêncio. Cada um parece perdido em remotosensamentos. Gusief é o primeiro a falar:

— Eu não tenho medo do mar. É lógico que, deoite, a gente não vê bem. Mas mesmo assim, se

gora me mandassem, num bote, a pescar a cemuilômetros daqui, iria com muito gosto. Ou, se porxemplo, tivesse que salvar alguém que tivesseaído na água, eume atiraria sem vacilar. Isto é, casoe tratasse de um cristão. É claro que eu não

rriscaria a vida por um turco ou por um chinês.— Não tem medo da morte?— Tenho sim, principalmente quando penso nminha casa. Sem a minha presença tudo irá por águbaixo. Meu irmão é uma verdadeira calamidade,m beberrão que bete na mulher todo o santo dia eão respeita os pais. Sim, sem mim tudo irá mal.

Minha gente ver-se-á obrigada, talvez, a pedirsmolas para não morrer de fome.

Cala-se por alguns instantes e por fim conclui:— Vamos para baixo. Não posso mais suster-me emé. Além disso, a atmosfera está muito pesada... Já éora de dormir.

Gusief desce para a enfermaria e deita-se. Vagos

esejos, cuja natureza não pode precisar, continuamatormentá-lo. Sente um peso no peito; dói-lhe a

abeça. Sua boca está seca que sente dificuldade em

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mover a língua. Cai em profunda sonolência e logoepois, esgotado pelo calor e pela atmosferarregada, adormece. Os mais fantásticos sonhosoltam a repetir-se!!!

Dorme, assim, dois dias seguidos. Ao cair da tardeo terceiro, os marinheiros vêm buscá-lo e levam-noara o convés.

Costuram-no num saco, no qual introduzem,ambém, para torná-lo mais pesado, dois enormes

edaços de ferro. Metido no saco Gusief parece umaenoura: volumoso na cabeça e afinado nas pernas.

Ao pôr do sol colocam o cadáver sobre uma pranchaue tem uma das extremidades apoiada nalaustrada e a outra num caixão de madeira. Aoedor enfileiram-se os soldados e os marinheirosodos de gorro na mão.

— Bendito seja Deus todo-poderoso pelos séculosos séculos — diz com tom solene o sacerdote.

— Amém! — respondem os marinheiros.odos fazem o sinal-da-cruz e ficam a olhar asndas. É algo estranho ver um homem metido numaco e a ponto de ser lançado ao mar. No entanto, éma coisa que pode suceder a qualquer um de nós!

O sacerdotes deixa cair um pouco de terra sobreGusief a faz profunda reverência. A seguir, canta-se

Ofício.

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O oficial de plantão soergue um dos extremos darancha. Gusief desliza de cabeça para baixo, dáma volta no ar e cai na água. Por alguns instantesca a boiar, coberto de espuma, como se estivesse

nvolto em rendas; por fim, desaparece.ubmerge rapidamente. Chegará ao fundo?egundo os marinheiros, a profundidade do marestas paragens alcança quatro quilômetros.

Após fazer vinte metros, começa a descer mais

entamente. O cadáver vacila, como se hesitasse emontinuar a viagem. Finalmente, arrastado pelaorrente, prossegue a marcha diagonalmente.

Não demora em tropeçar com um cardume deeixinhos — dos chamados “pilotos”, os quais, aoivisarem o enorme vulto, estacam assombrados e,omo se obedecessem a uma ordem, voltam-se,odos ao mesmo tempo, e, como minúsculas flechas,tiram-se a Gusief.

Minutos depois aproxima-se uma enorme massascura: um tubarão. Lentamente, com fleuma, comoe não notasse a presença de Gusief, coloca-se sob oaco de maneira a dar a impressão de que o cadáverstá de pé sobre o seu ombro. Visivelmente

atisfeito, o tubarão dá, depois várias voltas na águ, sem se apressar, escancara a enorme boca, armade duas fileiras de dentes. Os “pilotos” estão

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ncantados. Mantêm-se um pouco afastados edmiram o espetáculo atentamente.

Depois de brincar um pouco com o corpo de Gusief,tubarão crava os dentes de mansinho, no tecido da

mortalha, a qual no mesmo instante abre-se de cimabaixo. Um pedaço de ferro tomba no lombo doubarão, assusta os “ pilotos” e desce rapidamente.nquanto isso, lá no alto, no céu, onde o sol poucoouco se oculta, as nuvens vão-se acumulando.

Uma delas parece um arco-de-triunfo, outra umeão; outra ainda uma tesoura. Através de uma dasuvens projeta-se até o centro da abóbada do céum amplo raio verde. Ao lado dele surge, poucoouco, um colorido de lilás bem pálido. Sob estesplêndido céu, o oceano torna-se a princípiobscuro; logo, porém, passa, por sua vez, a tingir-see cores tão suaves, alegres e belas que a línguaumana é incapaz de descrevêlas.

VarkaAnoitece. Varka balança com o pé um berço ondehora uma criança, cantarolando monotonamente:

— Bain bainscki bain...

Uma lâmpada verde brilha diante de uma imageme santo. Um par de grandes calças negras pende dema corda. A lâmpada projeta uma mancha verde

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obre as coisas e as calças fazem dançar sombras narede e no berço. A chama vacila como tocada peloendo. O ar é sufocante, impregnado de um odor deapatos, de couro, de tinta.

O menino chora. Não cessa de chorar e de gemer;stá extenuado, sua vozinha tornou-se rouca; masle chora ainda, sem parar.

Varka tem sono. Seus olhos fecham-se, sua cabeçanclina-se para o peito. Mal pode abrir os olhos tanto

he pesam as pálpebras.— Bain bainscki bain... — murmura com vozxtinta, — bain bain...

Um grilo estridula numa frincha do chão. Noposento vizinho, ouve-se a máquina do sapateiro.

O berço range lamentosamente. Varka cantarola, eudo se confunde num doce murmúrio que convidao sono. Mas não se deve dormir! Varka resiste aoorpor que a invade, porque, se por desgraça

dormecer, o patrão bater-lhe-ia. A chama daâmpada vacila. A mancha verde e a sombra negrançam diante dos olhos fixos que Varka se esforçor conservar abertos. Sonhos indistintos vagam noeu cérebro amodorrado. Ela vê nuvens negras que

e perseguem, gritando com voz infantil. As nuvense desfazem e Varka divisa uma estrada, longa,egra e lamacenta. Filas de carros avançam

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entamente; homens caminham vagarosamente,ombras se agitam aqui e acolá! Através de umaévoa cinzenta e fria ela entrevê os albergues, dosois lados da estrada. As sombras se alongam, os

iajantes perdem-se na estrada lamacenta.— Por quê? — pergunta Varka.— Para dormir, para dormir...— Bain bainscki bain... — canta Varka, e, súbito,cha-se numa mísera isba negra, acanhada e

ufocante. Não é aquele seu pai, Efim Stepanov, queli jaz por terra e seestorce em sofrimentos atrozes?la vê, mas não ouve os gemidos. É a sua hérnia queatormenta. A dor é tão forte que ele não pode

alar; respira penosamente, com um gargarejoontínuo:

— Groo... groo... groo...is a mulher, Pelágia, que se precipita para fora da

sba, para dizer ao patrão que Efim é moribundo.

Quando voltará? Saiu já há muito tempo e Varkspera-a. Varka está acordada perto do fogão, masão dorme e escuta o ofegar do moribundo:

— Groo... groo... groo...inalmente, um rumor de rodas que se dirige para a

sba. Um médico vem visitar o doente. Entra nouarto. A escuridão é tanta que Varka não o vê, masuve a sua voz.

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— Dê-me uma luz! — exclama ela. A mãe acendema vela. Efim sufoca.

— Que tem? pergunta o médico curvando-se sobrele.

— Que tenho? Morro. Está acabado.— Ainda não. Salvar-te-emos. Havemos de curar-te.— Se vossa senhoria acha, agradeço-lhe muito. Mase a morte está aqui, paciência. O médico examinavdoente. Os minutos corriam.

— Não posso fazer nada — disse —, é precisomandá-lo para o hospital para ser operado;mas isto

epressa, sem perder um minuto. É tarde, e noospital devem todos estar recolhidos, mas eu darem bilhete de recomendação para o diretor.

Compreendeu?— Mas ele não pode andar, senhor! Nós não temosavalo! — gemeu a mãe.

— Mandarei buscá-lo — disse o médico, e foi-se, e a

ela apagou-se e Varka ouve novamente:— Groo... groo... groo...Alguns instantes depois páram carro à porta. Recebe Efim e parte...É dia. O

empo está alegre. A mãe vai ao hospital saberotícias. E volta. Entrando na isba, faz o sinal-da-

ruz e chora.— Operaram-no, e a princípio estava melhor, mas

epois, pela madrugada, morreu. Que Deus o tenha

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m sua paz. Disseram que era muito tarde, queeveríamos tê-lo mandado mais cedo para oospital.

dormem um sono de chumbo, profundamente,

nquanto sobre os fios telegráficos corvos gritam,om voz infantil, para acordar aqueles homens...is Varka no meio do bosque. Caminha ao lado d

mãe, e chora, chora amargamente.De repente ela recebe uma pancada na cabeça, tão

iolenta que cai e bate com a cabeça numa árvore.Abre os olhos e vê o patrão, o sapateiro:— Que fazes, preguiçosa?! — grita ele. — O meninohora e tu dormes?

puxa-lhe as orelhas; ela recomeça a balançar oerço, cantarolando:

— Bain bainscki bain...A mancha verde e a grande sombra negra dançam

a parede, e o cérebro dela se entorpece. Ei-la

ovamente na grande estrada lamacenta. Osiajantes dormem profundamente. Varka tem sonoambém, tem tanto sono e seria tão feliz se pudesseormir... Mas sua mãe caminha sempre e arrasta-aela mão. Dirigem-se à cidade em busca de trabalho.

— Uma esmola, pelo amor de Deus! — mendigamãe durante todo o caminho. Tende piedade...

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— Depressa, dá-me o menino! — responde uma vozonitruante — dá-me o menino! Tu dormes, canalha!

— grita a voz irritada e rude.Varka levanta-se, estremunhada. Sim, compreende:

ão mais a longa estrada, os viajantes,a imagem damãe. É a patroa que aparece no meio do quarto, queem aleitar o menino. Aquele era o passado de

Varka, visto em sonho; este é o presente.nquanto a gorda patroa aleita o menino,

rocurando adormecê-lo, Varka, de pé, lança oslhos pela janela. O céu empalidece, a sombra e

mancha verde estão quase desvanecidas: dentro emouco será dia.

— Toma, segura o menino! — ordena a patroa,botoando a camisa no peito. Ele chora sempre. Tuom certeza o maltrataste!

Varka torna a deitar o menino e recomeça a embalá-o. Que sono terrível! Os olhos se fecham, a cabeça

esa-lhe como chumbo.— Varka, é tempo de acender o fogão — brada a vozo patrão.

preciso levantar-se e trabalhar. Varka larga oerço e vai buscar a lenha. Está contente de poder

mover-se, andar, espantar aquele sono tremendo.stá pronto o fogo. Suas idéias aclaram-se, seu rostoistende-se.

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— Varka! o samovar! depressa! — grita a patroa.Varka apronta o samovar e recebe nova ordem.— Varka, vai limpar as botas do patrão!

ela acocora-se para limpar as botas. Ah! como

eria bom meter a cabeça dentro de uma daquelasotas e dormir! Varka escancara os olhos e sacode-seigorosamente.

— Varka, vai lavar a sala! Está que é uma vergonha!os fregueses não tardam!

Varka lava rapidamente o chão, varre tudo, limpaudo, acende o outro fogão! O tempo urge: não hm momento a perder.

O dia passa. Varka vê com alegria a noite que chega.O ar fresco da noite promete-lhe um longo e

rofundo sono. Mas, quando a noite chega, chegamisitas.

— Varka! — grita a patroa — depressa, o samovar!O samovar é pouco, e Varka deve ferver mais água,

nquanto os patrões e os visitantes abancam-se emorno da mesa.— Varka corre a buscar três garrafas de cerveja!Varka, os copos! Varka! Vão-se finalmente os

isitantes. Apaga-se a luz; os patrões vão deitar-se.

— Varka! vai embalar o menino! — dizem eles.

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O grilo canta, a mancha verde e a sombra negrgitam-se novamente ante os olhos sonolentos entorpecem-lhe o cérebro.

— Bain bainscki bain...

O menino grita... Varka revê a estrada lamacenta, osiajantes, a sua mãe Pelágia, seu pai Efim...Reconhece-os perfeitamente, mas não pode ver omonstro que a tortura, que a tem amarrada de pés emãos, que a sufoca, que a impede de viver.

Volve a cabeça de todos os lados e procura aquelenimigo infernal, para libertar-se. Em um esforçoupremo, abre os olhos, vê a mancha verde, aombra negra que se agita, quando, de súbito, umrito do menino fere-lhe os ouvidos.inalmente! Varka encontrou o inimigo que

mpede de viver. É aquele menino o seu inimigompiedoso! E ela ri, espantada de o não haverescoberto antes. Que estúpida! A mancha, a

ombra, o grilo, tudo ri com ela, tão estúpidos comola. Uma idéia luminosa passa-lhe no cérebroesado. Levanta-se vagarosamente do escabelo emue está sentada, com um claro sorriso no rostombrutecido, e dá alguns passos. A idéia de libertar-

e do menino aparece-lhe mais viva. Libertar-seaquele que a impede de viver! Precisa matá-lo, eepois dormir, dormir, dormir...

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orrindo, rindo e piscando os olhos para a manchaerde, Varka avizinha-se do berço, curva-se sobre o

menino: e sufoca-o. Depois estende-se rapidamenteo chão, sorrindo de alegria ao pensamento de que

nalmente poderá dormir. E adormece logo.Varka dorme um sono profundo e pesado como amorte.

O vingador

ogo depois de haver surpreendido sua mulher emagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na

oja de armas de Schmuks e Cia, a escolher oevólver que melhor lhe pudesse servir. Seu rostoxpressava ira, dor e decisão irrevogável.Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando osundamentos de uma família são profanados, eonra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu,omo cidadão e como homem honrado, devo ser o

ingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amantefinalmente suicidar-me-ei”.Não havia ainda escolhido o revólver e nem sequerssassinara alguém, mas na imaginação já se lhepresentavam três cadáveres ensangüentados, de

rânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho,uído de curiosos e autópsia.

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ossuído pela insensata alegria do homemfendido, calculava o horror dos parentes e doúblico, a agonia da traidora e até lhe parecia poder

er em pensamento os artigos da primeira página, a

omentarem a decomposição dos fundamentos daamília.O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de

entre pequeno e colete branco, apresentava-lhe osevólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo

espeitosamente:— Eu aconselharia a Mousieur que levasse estemagnífico modelo do sistema Smith &Wesson. É a

ltima palavra na ciência das armas. Possui trêsropulsores e pode-se dispará-lo a uma distância deeiscentos passos. Chamo também a atenção de

Mousieur para a limpeza do acabamento. Seuistema é que está mais em moda. Vendemosiariamente dezenas deles, que são utilizados contr

s bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro éreciso e forte, alcança distâncias enormes e mata,travessando-os, a mulher e o amante. Quanto aosuicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhoristema.

o empregado, apertando e soltando o gatinho,oprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pel

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xpressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensarue ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro nesta, se possuísse uma arma tão maravilhosauanto aquela.

— E qual o preço? — perguntou Sigaev.— Quarenta e cinco rublos, Mousieur.— Hum! É muito caro, para mim.— Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algomais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de

xaminar. Temos estoque variado e de todos osreços... Este, por exemplo, do sistema Lefrauché,ue custa somente 18 rublos. Porém... — ompregado fez um muxoxo de pouco caso — é umistema, Mousieur, demasiadamente antiquado.

Quem o compra são os pobres de espírito e ossicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulherom um Lefauché é considerado atualmente de mauosto. O bom-tom admite somente uma Smith &

Wesson.— Não necessito matar-me ou a alguém — mentiu,om acento sombrio, Sigaev. Compro-oimplesmente para a minha casa de campo... Parssustar os ladrões.

— Não nos interessa o seu motivo —sorriu ompregado, baixando modestamente os olhos. Se,m cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos

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er fechado a loja. Para espantar os corvos,Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído

m tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistolaMortimer, das chamadas para duelos.

E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pelaabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honraemasiada. A essas bestas, devemos matá-las, comoachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em

equenos passos, sem deixar de sorrir e deonversar, apresentou-lhe todo o monte deevólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto maisólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas

mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. Amaginação desenhava-o destroçando um crânio, oangue a escorrer como um rio sobre o tapete e ossoalho, a traidora, moribunda, agitando um péonvulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco.

O quadro de sangue, os soluços e o estupor não oatisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mimm seguida, porém ela... deixaria viver. Que morrao arrependimento e do desprezo dos que a cercam!

ara natureza tão nervosa quanto a sua, serámartírio maior que a morte!”

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Começou a imaginar o próprio funeral: ele, ofendido, estendido no ataúde, com um sorrisoondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelosemorsos, caminhando atrás do féretro, como uma

Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos eniquiladores, lançados pela multidão indignada...— Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith &Wesson — comentou o empregado, interrompendo

devaneio. Se o acha muito caro, posso fazer uma

edução de cinco rublos, embora tenhamos outrosmais baratos.A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre

s próprios tacões e alcançou na prateleira outrúzia de estojos com revólveres.

— Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos.Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e

ue os direitos alfandegários sobem cada dia mais...uro-lhe, Mousieur, que sou conservador, porém j

omeço a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifaa alfândega são o motivo de que somente os ricosossam adquirir armas! Para os pobres nada maisesta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armase Tula são uma desgraça! Se alguém pretender

isparar uma arma de Tula sobre a própria mulher,penas consegue atingir a própria omoplata...

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Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéie morrer e não contemplar os sofrimentos da

raidora. A vingança unicamente é doce quandoxiste a possibilidade de ver e tocar seus frutos.

ois, que sentido encontraria em estar deitado notaúde, se nada poderia perceber?!E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, verudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes donterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem...

O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu...nquanto não decorra um certo tempo, não me

matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terecasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestareclarações, terei possibilidade de demonstrar, ante

poder e a sociedade, toda a baixeza do seuomportamento. Se eu morresse, ela, com seuaráter desavergonhado e embusteiro, jogariaulpa sobre mim, e a sociedade acabaria por

bsolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, seontinuo a viver... Então....”Um minuto depois, pensava:Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhose eu me matar... E, depois, para que suicidar-me?

sso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio éovardia. Então, o que farei será matá-lo, deixá-laiver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e el

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gurará como testemunha... Veremos seuobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar

meu advogado! Por certo que as simpatias doribunal, do público e da imprensa estarão ao meu

ado!...”nquanto assim devaneava, o empregadoontinuava a expor a mercadoria e considerava deeu dever, entreter o comprador.

— Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que

ecebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur,e que todos os sistemas empalidecem diante domith & Wesson. Por certo, terá lido, há poucosias, acerca de um militar que comprara um Smit

& Wesson em nossa casa, e que o usou contra omante... E que imagina tenha acontecido? A baltravessou primeiro o amante, alcançou, depois obajur de bronze, em seguida o piano de cauda eeste, como uma carambola, matou um cachorro

equinês e roçou a esposa... As conseqüências foramrilhantes e honraram nossa firma. O militar estáreso agora... Por certo o condenarão a trabalhos

orçados!... Em primeiro lugar, porque temos leismuito antiquadas , em segundo, porque já se sabe

ue o tribunal sempre toma o partido do amante.or quê? Muito simples, Mousieur. Porque tambémjurado, os juízes, o procurador e o advogado de

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efesa se entendem com esposas alheias e maisranqüilos estão quando sabem de que um maridoá na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o

Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de

ajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor imaginarindignação que me desperta este desmoronar dosostumes morais contemporâneos!... Nestes tempos,ortejar mulheres alheias causa tanto prazer quantolar cigarros os outros ou pedir livros emprestados!

Cada ano que passa, o nosso comércio declina,orém não significa que haja menos amantes...ignifica que os maridos reconciliam-se comituação e temem os trabalhos forçados — e ompregado, olhando em torno de si, sussurrou: Euem é o responsável, Mousieur? O Governo!Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não,ão é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenamos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à

minha mulher a possibilidade de casar-se outra vezde enganar também ao segundo marido. O lucroerá todo dela! O que farei então será isto: deixá-laiver, não me matar e nem matar a ele... Devo

maginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-

os-ei com meu desprezo e encetarei escandalosorocesso de divórcio...”

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— Aqui está, Mousieur, um sistema novo —omentou o empregado, recolhendo de outrrateleira mais uma dúzia de revólveres. —

Chamou-lhe a atenção para o mecanismo origina

o cão...orém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev nãomais necessitava de revólver. Em compensação, ompregado, cada vez mais inspirado, não cessava de

mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido

fendido envergonhou-se de que, por sua causa, oujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-sea perder tempo.

—Bem — balbuciou. — Será melhor que eu voltemais tarde ou mande alguém...Conquanto não visse a expressão do rosto dompregado, compreendeu que, para suavizariolência da situação, não havia outra saída queomprar algo. Porém, o que? Seus olhos

ercorreram as paredes da loja, em busca de umaoisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde,endurada junto à porta.

— E isso? Que é isso? — perguntou.— É uma rede para caçar codornas.

— Qual o preço?— Oito rublos.— Pois pode mandar embrulhar.

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O marido ofendido pagou os oito rublos, passoumão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido,aiu da loja.

Um caso médicoUm telegrama enviado da fábrica dos Lialikov pediao professor que viesse o mais depressa possível.

A filha da Senhora Lialikov, que devia ser aroprietária da fábrica, estava doente; era tudo o

ue se podia perceber num longo telegrama maedigido. Por isso o professor não esteve para sencomodar; contentou-se em enviar, para oubstituir, o seu ajudante Koroliov. Tinha que seescer na terceira estação para lá de Moscovo endar em seguida, de carro, quatro «verstas». Nastação, esperava o ajudante um carro de trêsavalos. O cocheiro tinha um chapéu de penas deavão e, com voz vibrante, como um soldado,

espondia sempre a todas as perguntas: «De modolgum!» ou «Exactamente!».ra num sábado de tarde. Punha-se o Sol. Da fábricara a estação vinham grupos de operários queumprimentavam para o carro onde seguia o

médico. Aquele fim de dia, os palacetes senhoriais es casas de verão, dos dois lados da estrada, osmieiros, a calma impressão que de tudo se exalava,

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a hora em que, já quase a repousarem, os campos,s bosques e o Sol pareciam preparar-se paraescansar e talvez até para rezar ao mesmo tempoue os operários — tudo isto encantava Koroliov.

Nascido e educado em Moscovo, o médico nãoonhecia o campo e nunca se tinha interessado pelasábricas; nunca tinha visitado nenhuma; mas, depoiso que tinha lido sobre este assunto, tinha-lhecontecido estar em casa de proprietários e falar

om eles. E, quando via de longe ou de perto umaábrica, pensava que por fora tudo parecia calmo eacífico, mas que lá dentro deviam reinar

mpenetrável ignorância e o egoísmo obtuso dosroprietários, o trabalho aborrecido e insalubre dosperários, e as intrigas, e o «vodka» e a bicharia...agora, à medida que se afastavam do carro com

espeito e medo, lia no rosto do operário, nos bonés,o andar, a porcaria, o alcoolismo, o enervamento, o

tordoamento em que viviam.ntrou pelo portão grande da fábrica. Aparecerame ambos os lados as pequenas casas dos operários,guras de mulher, e, às cancelas da entrada, rouparanca e mantas. O cocheiro, sem segurar os cavalos,

ritava: «Cuidado!».Num pátio grande, sem o mínimo sinal de erva,evantavam-se cinco grandes corpos de edifícios

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om altas chaminés, afastados uns dos outros, comrmazéns e alpendres, tudo mergulhado numaspécie de neblina cinzenta, como uma flor deoeira. Aqui e além, como os oásis no deserto, havia

ns jardinzitos enfezados e os telhados verdes eermelhos das casas da Administração. O cocheiro,ofreando de repente os cavalos, parou diante dumaasa que fora há pouco pintada de cinzento. Oslases do jardim estavam cobertos de poeira, e o

órtico, pintado de amarelo, cheirava fortemente anta.

— Faça favor de entrar, Senhor Doutor — disseramozes de mulher à porta da entrada e no limiar dantecâmara.

Ouviram-se depois suspiros e murmúrios.— Faça favor de entrar... Estamos à sua espera já háanto tempo... Foi mesmo uma desgraça. Por aqui,aça favor...

A Senhora Lialikov, já de idade e corpulenta, vestidae seda negra e com mangas à moda, mas, pelo quearecia, simples e pouco instruída, olhava para ooutor com receio, sem se atrever a estender-lhe a

mão; não ousava fazê-lo.

erto dela, encontrava-se uma criatura de cabelosurtos, magra e já nada nova, que trazia uma blusaolorida e usava luneta. Os criados chamavam-lhe

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Cristina Dmitrievna e Koroliov adivinhou serovernante. Como era a única pessoa instruída daasa, tinham-na sem dúvida encarregado de receber

médico, porque logo se apressou a expor, com

ormenores de todo inúteis, as causas da doença,mas sem dizer quem estava doente nem de que seratava. Koroliov e a governante falavam sentados,nquanto a dona da casa esperava, Imóvel, junto daorta. No decurso da conversação, veio Koroliov a

aber que a doente era uma rapariga de vinte anos,isa, filha única da Senhora Lialikov. Estavanferma há muito tempo e já a tinham tratado vário

médicos. Na noite anterior, sentira, desde a tarde,ais palpitações que ninguém em casa tinhormido; chegara-se a recear que morresse.

— Ela, na verdade, tem sido doentinha desderiança — contava Cristina Dmitrievna com umaoz cantada e limpando ininterruptamente os lábios

om a mão. — Os médicos dizem que são nervos,mas ainda em pequena meteram-lhe para dentro osumores frios, e daí é que vem todo o mal, acho eu.assaram ao quarto da doente. Já mulher, alta, bem

eita, mas feia, parecida com a mãe, com os mesmos

lhitos e a parte inferior do rosto larga exageradamente desenvolvida, despenteada, osobertores puxados até ao queixo, a rapariga deu de

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rincípio a Koroliov a impressão de uma pobreriatura, enferma, recolhida por piedade. Ninguémcreditaria que fosse a herdeira dos cinco enormesdifícios da fábrica.

— Venho tratar de si — disse Koroliov. — Bom dia,Menina. Disse o nome e apertou-lhe a mão, mãorande, feia e fria. Ela soergueu-se e, já muitocostumada aos médicos, indiferente à nudez dasspáduas e dos braços, deixou-se auscultar.

— Sinto umas palpitações — disse ela. Toda aoite... foi uma coisa terrível... julguei que morria de

medo. Dê-me qualquer coisa, a ver se isto acaba.— Não tenha receio, vou já receitar.Koroliov examinou-a e encolheu os ombros.— O coração está bom — disse ele —, tudo vai bem,stá tudo em ordem. Os nervos talvez um poucobalados... mas é também coisa vulgar. A crise jáassou, parece. Deite-se e veja se dorme...

Neste momento trouxeram um candeeiro. A doenteiscou os olhos e, de repente, pousando a cabeça nasmãos, pôs-se a chorar.

a impressão dum ser infeliz e feio desapareceu.Koroliov já não dava pelos olhos pequeninos nem

ela parte do rosto anormalmente desenvolvida. Viama suave expressão de sofrimento, muitoomovedora e espiritual, e a rapariga, no conjunto,

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pareceu-lhe elegante, feminina e simples. E já aueria acalmar, não por medicamentos ouonselhos, mas por uma simples palavra graciosa. A

mãe puxou a si a filha e beijou-lhe a testa. E n

xpressão da face, quanta tristeza, quanto desgosto!inha criado e educado a filha sem se poupar aada; tinha posto todo o cuidado em lhe mandarnsinar francês, música e dança. Tinha-lhe dadoma dúzia de mestres, tinha chamado os melhores

médicos, tomado uma governante — e nãoompreendia donde vinham aquelas lágrimas eantos sofrimentos! Não compreendia, atrapalhava-e e tinha uma expressão de culpabilidade; e andavaesolada, inquieta, como se tivesse esquecidolguma coisa de muito urgente, como se tivesse tidolguma negligência, como se não tivesse chamadolguém. Quem? Não sabia...

— Lisaunka — disse ela, apertando a filha ao peito -,

minha querida, minha pomba, minha filhinha, queens tu? Diz à mãezinha... Tem pena de mim... Diz...Ambas choravam amargamente. Koroliov,entando-se na borda da cama, pegou na mão deisa.

— Vamos, não chore mais — disse-lhe ele com umom de carícia. Há lá razão para isso... Não há nad

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o mundo que seja digno dessas lágrimas. Vá, nãohore mais. Assim não pode ser...pensou:

— Já era tempo de a casar...

— O médico da fábrica dava-lhe brometos — disseovernante — mas notei que só lhe faziam mal. Eucho que para o coração o bom são umas gotas... ai,squece-me o nome... Junquilho, hem?recomeçou com os seus pormenores. Interrompia

Koroliov, impedia-o de falar e lia-se-lhe no rosto oormento que lhe causava pensar que, sendo a

mulher mais instruída da casa, devia falar semnterrupção com o médico — e falar de medicina,laro.

Koroliov estava embaraçado.— Não acho nada de especial — disse ele à mãe aoair do quarto. Como o médico da fábrica tratou sulha, pode continuar. O tratamento que lhe deu até

qui foi bom; nãovejo que seja preciso mudar. Paruê? É uma doença vulgar; não tem nada de grave...alava sem pressa e ia calçando as luvas; a Senhorialikov olhava-o de lágrimas nos olhos, imóvel.

— Ainda tenho meia hora até o comboio das dez;

erei tempo de apanhá-lo, não...?

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— O Senhor Doutor não desejaria ficar? —erguntou a mãe, e de novo as lágrimas lheorreram pela cara.

Custa-me tanto incomodá-lo; mas, pelo amor de

Deus — continuou, a meia voz e voltando-se para aorta -, faça-me esse favor. Só tenho esta filha...Assustou-nos tanto a noite passada... Nem estouinda em mim... Pelo amor de Deus, não se vámbora!

Koroliov ainda quis dizer que tinha muito que fazerm Moscovo, que a família estava à espera, que lhera muito difícil passar uma tarde e uma noite fora clínica; olhou para ela: suspirou e pôs-se aescalçar as luvas, silencioso.

Acenderam todas as velas e todos os candeeiros daala e da saleta; sentado junto do piano de cauda,

Koroliov folheou a música, depois foi contemplar osuadros e os retratos. Os quadros, com suas

molduras douradas, eram vistas da Crimeia, ummar encapelado com um barquito, um mongeatólico com um cálice de licor — tudo pobre,ambido, sem talento... Nos retratos, nenhumagura bela, interessante: faces largas, olhos

spantados. Lialikov, o pai de Lisa, tinha a testaixa e um ar satisfeito; o uniforme ficava-lhe comoma espécie de saco sobre o corpo grande e vulgar;

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o peito uma medalha e a insígnia da CruVermelha. Cultura estreita, luxo de ocasião, um luxo

ue não tinha motivos nem vinha a propósito —omo aquele uniforme. O brilho dos soalhos irrita, o

ustre também; e pensa-se, nem se sabe porquê, naistória do comerciante que ia tomar banho demedalha de honra ao pescoço... Na antecâmara

avia murmúrios e alguém ressonava suavemente.De súbito, no pátio, ressoaram uns sons agudos,

acudidos, metálicos, que Koroliov nunca tinhuvido e não soube explicar. Ecoaram na sua almaum modo bem desagradável e estranho.

— Acho que não ficava aqui por nada deste mundo— pensou ele.— Senhor Doutor, pode vir jantar...?

tornou a folhear a música.A governante entrou e chamou a meia voz: Korolioeguiu-a.

A mesa, grande, estava coberta de aperitivos e deinhos; mas só havia duas pessoas: ele e CristinDmitrievna. Ela bebia madeira, comia depressa ealava contemplando-o pela luneta.

— Os operários estão muito satisfeitos connosco.

odos os invernos dão nesta fábrica espectáculos emue eles próprios representam. Há também,aturalmente, conferências com projecções, uma

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ala de chá magnífica; e tudo o mais... Têm muitaedicação por nós; quando souberam queisaunka estava pior, mandaram fazer umas rezas.ão pouco instruídos mas têm muito bons

entimentos.— Parece que não há nenhum homem em casa, não?— Nenhum. Piotre Nikanorytch morreu há ano emeio e ficámos sozinhas. Vivemos astrês, no Verãoqui, no Inverno em Moscovo. Já estou nesta casa h

nze anos. É como se estivesse em minha casa.erviram esturjão, croquetes de frango e umaompota. Os vinhos eram caros, vinhos de França.

— Faça favor, Senhor Doutor... Não façerimónias... Coma — dizia Cristina Dmitrievnomendo e limpando a boca à mão (via-se questava realmente à vontade). Faça favor de comer.

Depois do jantar, levou o médico a um quarto ondehe tinham preparado uma cama. Mas não tinh

ono; o quarto era quentíssimo e cheirava a tintas;estiu o sobretudo e saiu.ora, havia fresco. Já havia um prenúncio delvorada e, no ar húmido, desenhavam-se os cincodifícios, com as chaminés, os barracões e os

rmazéns. Como era domingo, não se trabalhava; asanelas estavam escuras e só duas, num dos edifíciosnde ainda estava aceso um forno, pareciam

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ncendiadas; de quando em quando, saía lume pelhaminé, de mistura com o fumo. Ao longe, para láo pátio, coaxavam rãs e um rouxinol cantava.

Ao olhar os casarões da fábrica e as barracas dos

perários, Koroliov voltou aos seus pensamentos doostume. Tinham-se instituído espectáculos para osperários, projecções, médicos privativos, todaspécie de melhoramentos: mas os operários que eleira de tarde, na estrada, em nada diferiam dos que

nha visto na sua infância, quando não havia parles nem espectáculos, nem melhoramentos.ra médico e tinha sido obrigado a fazer uma ideiaxacta das doenças crónicas, cuja causa inicial éncompreensível e incurável; considerava do mesmo

modo as fábricas como um equívoco cujas causasão também obscuras e inelutáveis. Todos os

melhoramentos da sorte dos operários não lhepareciam, claro, como supérfluos, mas comparava-

s ao tratamento das doenças incuráveis.— Há certamente um engano nesta coisa toda... —ensou olhando as janelas purpúreas. Mil euinhentos ou dois mil operários trabalham semescanso, num ambiente insalubre, para fabricarem

éssima chita. Vivem na fome e só de tempos aempos a taberna os liberta do pesadelo. Umaentena de pessoas vigia-lhes o trabalho e a vida

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estes contramestres passa-se a aplicar multas,roferir injúrias e a cometer injustiças. E só duas ou

rês pessoas, chamadas patrões, aproveitam com osucros, apesar de não trabalharem e de terem

esprezo pela chita ordinária. Mas que lucros! E deue maneira os aproveitam! A Lialikov e a filha sãomas infelizes e mete pena vê-las. Só a solteirona,stúpida Cristina Dmitrievna vive à vontade! Erabalha-se numa fábrica destas, com cinco oficinas,

vende-se má chita nos mercados do Oriente, paraue uma Cristina Dmitrievna possa comer esturjão eeber madeira.

De repente, repetiram-se os sons estranhos queKoroliov tinha notado antes do jantar. Perto de um

os edifícios, alguém batia numa placa metálica eogo amortecia a ressonância, de modo que os sonsram breves, ásperos, mal definidos, qualquer coisomo «dê... dê.. dê...». Depois, meio minuto de

ilêncio. E, perto do outro edifício, outros sonsacudidos, mas mais baixos, graves: «dran... dran...ran...».

Repetiram-nos onze vezes. Eram, evidentemente, osuardas a darem as onze horas. Junto do terceiro

difício, ouviu-se: «jak... jak... jak...». A mesma coisiante de cada um dos edifícios, depois por detrásas barracas e às portas.

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arecia que, na calma da noite, os sons eramroduzidos por um monstro de olhos de púrpura: oróprio Diabo, que era aqui o senhor de patrões e deperários e que a uns e outros enganava.

Koroliov saiu para os campos.— Quem está aí? — gritaram-lhe, com voz grosseira.— Exactamente como numa prisão — pensou ele.

não respondeu nada.ora, ouviam-se melhor os rouxinóis e as rãs. Sentia-

e o cheiro da noite de Maio. Da estação vinhamuídos de comboios; para outro lado, cantavamalos sonolentos; contudo, a noite estava calma:atureza dormia pacificamente.

No campo, não longe da fábrica, erguia-se osqueleto duma casa de toros; ao lado,ncontravam-se materiais de construção. Korolioentou-se numas tábuas e continuou a pensar.

— Só a governante vive aqui a seu gosto e a fábrica

rabalha para a satisfazer. Mas é apenas umaparência; é uma personagem imaginária: o patrãoara quem tudo se faz aqui é o Diabo.

pensava no Diabo em que não acreditava. Eoltava-se para as duas janelas que o lume

uminava.arecia-lhe que, por estes olhos de púrpura, oróprio Diabo o olhava: numa palavra, a força

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esconhecida que estabeleceu as relações entre osracos e os fortes, o errogrosseiro que nada agorode emendar. É necessário que o forte impeça o

raco de viver: tal é a lei da natureza. Mas isto não é

ompreensível e não entra facilmente no espíritoenão à luz dum artigo de jornal ou dum manual.No tumultuar da vida quotidiana e no entrelaçar deodos os nadas de que se entretecem as relaçõesumanas, não parece uma lei; é um absurdo lógico,

o qual o forte e o fraco são vítimas das suaselações mútuas e se submetem involuntariamente ama força condutora desconhecida, que reside fora vida e é estranha ao homem.

Assim pensava Koroliov, sentado sobre as tábuas,nvadido pouco a pouco pela impressão de que essorça desconhecida e misteriosa estava realmenteerto dele e o contemplava.ntretanto, o céu a leste empalidecia; os minutos

recipitavam-se. Os cinco edifícios da fábrica e ashaminés tinham, sobre o fundo cinzento damadrugada, nessa hora em que não se via alma

iva, em que tudo parecia morto, — os edifícios e ashaminés tinham um aspecto especial, diferente do

e dia. Esquecia-se por completo que houvesse láentro motores a vapor, electricidade e telefones;

mais depressa se pensava nas habitações lacustres e

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a cidade de pedra; sentia-se a presença de umorça grosseira, inconsciente...

de novo se ouviu:— Dê... dê... dê... dê...

Doze vezes.Depois o silêncio — meio minuto de silêncio -, e, nautra extremidade do pátio:

— Dran... dran... dran...— É bem desagradável, esta coisa... — pensou

Koroliov.— Jak... jak... jak...— Jak... jak...Para dar a meia-noite foram precisos

uatro minutos.Depois, silêncio completo. E, deovo, a impressão de que tudo estava morto àolta.Koroliov, depois de estar ainda algum tempoentado, voltou para casa. Mas ficou ainda

muito tempo sem se deitar.Nos quartos vizinhosonversava-se. Ouvia-se o perpassar de pantufas e

e pés descalços.— Será uma crise? — pensou o médico.aiu para ir ver a doente. No quarto havia lá muitlaridade; na parede da sala tremia um fraco raio deol, através do nevoeiro da manhã. A porta estava

berta e Lisa sentara-se numa poltrona perto doeito, de roupão, envolta num xale e com os cabelosaídos. Os estores das janelas estavam corridos.

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— Como se sente? — perguntou-lhe Koroliov.— Obrigada...

omou-lhe o pulso, depois arranjou-lhe os cabelosue tinha sobre a testa.

— Não dorme? Está um tempo limpo, érimavera... Lá fora cantam os rouxinóis, e a Meninaca aí sentada, às escuras, a pensar não se sabe emuê...la escutava-o e olhava-o. Tinha uns olhos tristes,

nteligentes e via-se que queria dizer qualquer coisa.— Isto dá-lhe muitas vezes? — perguntou ele. Elamexeu os lábios e respondeu:— Muitas vezes... Quase todas as noites me sintomal. Neste momento, os guardas, no pátio,omeçaram a dar as duas horas.

Ouviu-se: «Dê... dê...» Lisa teve um sobressalto.— Estes sons incomodam-na? — perguntou omédico.

— Não sei... — respondeu ela, reflectindo — aquudo me incomoda, tudo me aborrece. Sintoompaixão na sua voz; pareceu-me desde o primeiro

minuto, não sei porquê, que consigo podia falar deudo...

— Fale, faça favor.— Vou dar-lhe a minha opinião. Parece-me que nãostou doente, mas atormento-me e tenho medo

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orque isto tem que ser assim e não pode ser deutra maneira. O ser mais saudável não pode deixare inquietar-se quando um bandido lhe ronda aorta. Têm todos os cuidados comigo — continuou

aixando os olhos e sorrindo timidamente. Estoumuito reconhecida e não contesto a utilidade damedicina; mas desejaria falar, não com um médico,mas com alguém que estivesse perto do meuspírito: um amigo que me compreendesse e me

emonstrasse que tenho ou não tenho razão.— Não tem amigos?— Sinto-me só... Tenho minha mãe e gosto dela.Mas sinto-me só. Calhou assim a minha vida...Quem está só lê muito, mas fala pouco e ouve poucoambém; a vida é-lhemisteriosa. É-se místico e vê-se

Diabo onde ele não está; a Tamara de Lermontora só e via o Demónio.

— Lê muito?

— Muito. Tenho todo o tempo livre, de manhãoite. De dia leio, à noite tenho a cabeça vazia; emugar de ideias, passam-me vagas sombras...

— Vê qualquer coisa de noite? — perguntouKoroliov.

— Não... mas sinto.logo ouviu, num terceiro lugar:

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O ruído era sacudido, áspero, exactamente como sestivesse aborrecido.orriu de novo e levantou os olhos para o médico. Oeu olhar era cheio de melancolia e cheio de

nteligência. Pareceu a Koroliov que Lisa tinhonfiança nele, lhe queria falar sinceramente e tinhaensamentos semelhantes aos seus. Mas ela calara-e e esperava talvez que ele falasse.

sabia bem o que tinha a dizer-lhe. Era evidente

ue se tornava necessário que ela abandonasse omais depressa possível os cinco edifícios da fábrica e

seu milhão, se acaso o tinha, e deixasse aqueleDiabo que de noite a olhava. Era igualmente claro

ara Koroliov que ela também o pensava e quesperava que lho dissesse alguém em quem elavesse confiança.

Mas o médico não sabia por onde começar... Comoavia de ser?... É difícil perguntar aos condenados

or que razão os condenaram; e é tambémborrecido perguntar aos ricos por que motivo têmecessidade de tanto dinheiro; por que fazem tão

mau uso da sua riqueza, por que não a deixam,mesmo quando vêem que aí reside a sua

nfelicidade... E se se começa a falar disto aonversação é geralmente embaraçada e longa.

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— Como hei-de dizê-lo? — pensava Koroliov. E seráreciso?

— A Menina está descontente da sua situação deroprietária de fábrica e de herdeirarica; não

credita nos seus direitos e não dorme. Éeguramente melhor do que se estivesse satisfeita eormisse profundamente pensando que tudo vaem. A sua insónia é respeitável e, seja o que for, éom sinal. Com seus pais seria impossível uma

onversa semelhante àquela que hoje temos aqui. Deoite, não conversavam, dormiam profundamente;

mas nós, os desta geração, dormimos mal.reguiçamos, falamos muito, e consideramosontinuamente se temos ou não temos razão. Para osossos filhos e para os nossos netos já essa questãostará resolvida. Verão mais claro do que nós.

Dentro de cinquenta anos, a vida será bela; é penaue não possamos viver até lá. Devia ser bem

nteressante...— Que farão então os nossos filhos e os nossosetos? — perguntou Lisa.

— Não sei... Talvez deixem tudo e partam...— Para onde?

— Para onde? Mas para onde quiserem — disseKoroliov a rir-se. Há poucos lugares para onde

ossa ir um homem bom e inteligente?

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Olhou para o relógio.— Já nasceu o Sol. É tempo que durma. Dispa-se eepouse à vontade. Tenho muito prazer em a teronhecido — disse-lhe ele, apertando-lhe a mão. É

nteressante e simpática. Boa noite!disse o que queria, não directamente, mas comns desvios: Voltou para o quarto e deitou-se.

No dia seguinte de manhã, quando trouxeram oarro, toda a gente veio acompanhar o médico à

orta. Lisa, de vestido branco como num dia deesta, tinha uma flor nos cabelos. Pálida, lânguida,ontemplava Koroliov, como de noite, com ar tristeinteligente. Sorria e falava sempre com a mesma

xpressão de lhe querer dizer alguma coisa dearticular, de grave, alguma coisa que fosse só parale. Ouviram-se as cotovias cantar, os sinosocavam. As janelas da fábrica brilhavamlegremente. Ao atravessar o pátio e enquanto o

onduziam à estação, Koroliov já não pensava nosperários nem nas habitações lacustres, nem noDiabo. Pensava no tempo, já talvez próximo, em que

vida seria tão luminosa e alegre como essa manhãalma de Maio. E pensava em como era agradável,

m semelhante manhã de Primavera, viajar numom carro, com os seus três cavalos, e aquecer-se aool.

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AngústiaCom quem a dor partilharei?...”

Anoitece. A neve graúda e úmida girareguiçosamente ao redor dos lampiões recém

cesos e deita-se em placas macias e finas noselhados, nos lombos dos cavalos, nos ombros, nosorros. O cocheiro Iona Ptápov está todo branco,omo um fantasma. Está sentado na boléia, curvado,ão curvado quanto é possível curvar-se um corpo

ivo, e não se mexe. Se toda uma avalanche seespencasse sobre ele, nem assim, ao que parece, elecharia necessário sacudir a neve... A sua eguazinhambém está branca e imóvel. Pela sua imobilidade,uas formas angulosas e as pernas retas como paus,té de perto ela parece um cavalinho de pão-de-mee um copeque. Ao que tudo indica, ela está

mergulhada em meditações. Quem foi arrancado dorado, das costumeiras paisagens cinzentas, e

tirado aqui, neste atoleiro, cheio de luzesmonstruosas, zoeira incessante e gente apressada,ste não pode deixar de meditar...ona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz

muito tempo. Saíram do pátio ainda antes do

lmoço, porém não fizeram nem uma corrida. Masis que a sombra da noite desce sobre a cidade. A

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uz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e oulício das ruas torna-se mais ruidoso.

— Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona.Cocheiro!

ona estremece e, através dos cílios grudados peleve, vê um militar de capote e capuz.— Para Viborgskaia! — repete o militar. Mas tustás dormindo, heim? Para Viborgskaia!m sinal de assentimento, Iona puxa as rédeas, em

onseqüência do que, placas de neve caem dos seusmbros e do lombo do cavalo. O militar tomssento no trenó. O cocheiro estala os lábios, estica oescoço à maneira de um cisne, soergue-se e, maisor hábito que por necessidade, brande o chicote. Aguazinha também estica o pescoço, arqueia asernas magras e, insegura, põe-se em movimento.

— Por onde te metes, lobisomem! — ouve Iona,ssim que sai, gritar de dentro da massa escura que

alança para diante e para trás. — Aonde te carregadiabo? Para a dirr-reita!— Não sabes dirigir! Agüenta a direita! — ralha omilitar.Um cocheiro de carruagem particular pragueja ao

ruzar e um transeunte, que atravessara a ruaorrendo e batera com o ombro no focinho da égua,lha furioso e sacode a neve da manga. Iona se

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ontorce na boléia como se estivesse sentado emlfinetes, joga os cotovelos para os lados, e seuslhos correm como possessos, como se ele nãoompreendesse quem é e por que está aqui.

— Como todos são canalhas! — zomba o militar. Sórocuram abalroar-te ou se jogardebaixo do teuavalo! É que estão todos de conluio contra ti!ona olha para trás, para o passageiro, e move osábios... Vê-se que quer dizer alguma coisa, mas da

ua garganta não sai nada, a não ser um somutural.

— O que é? — pergunta o militar.ona torce a boca num sorriso, força a garganta eouqueja:

— É que... patrão... coisa... o ... meu filho... se finousta semana.

— Hum!... E de que foi que ele morreu?ona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e

ala:— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre... Ficou trêsias no hospital e se finou... É a vontade de Deus.

— Vira, demônio! — soa na escuridão. Estás tonto,u o quê, cachorro velho? Toca para a frente!

O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se,randindo o chicote com graça pesada. Depois, porárias vezes, ele se volta para o passageiro, mas este

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echou os olhos e, pelo visto, não está disposto ascutar. Deixando-o na Viborgskaia, Iona páraiante de um botequim, dobra-se na boléia e torna acar imóvel... De novo a neve úmida tinge de

ranco a ele e a sua égua. Passa uma hora, outra...elo passeio, pisando ruidosamente com as galochasaltercando, passam três rapazes; dois deles são

ltos e magros, o terceiro é baixo e corcunda.— Cocheiro, para a ponte Policial! — grita o

orcunda com voz de tremolo. Nós três por vinteopeques!ona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinteopeques não é preço justo, mas ele não está paraensar em preço... um rublo ou cinco copeques, parle dá na mesma agora — haja passageiros... Os

moços, aos empurrões e palavrões, vêm para o trenósobem no assento todos ao mesmo tempo! Começdiscussão do problema: quais os dois que irão

entados, e qual o terceiro que irá de pé? Apósongos debates, bate-boca e acusações, eles chegamecisão de que deve viajar de pé o corcunda, por sermenor.

— Anda, toca! — range o corcunda, firmando-se e

afejando na nuca de Iona. Descansa o cavalo! Masue gorro o teu, heim, mano! Pior não se acha emoda Petersburgo!...

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— Hehe... hehe... — gargalha Iona. É o que é...— Anda, tu aí, “é o que é”, toca pra frente! É assim

ue vais andar o caminho inteiro? E que tal umescoção?

— A cabeça me estala... — diz um dos compridos.Ontem na casa dos Dukmássov nós dois, o Vaska eu, limpamos quatro garrafas de conhaque.

— Não entendo por que mentir! — enfeza o outroomprido.

— Mentes que nem um animal!— Que Deus me castigue se não é verdade...— É tão verdade quanto um piolho tossir.— He... he... — ri Iona. Os senhores alegres...— Arre, que os diabos te carreguem!... — indigna-se

corcunda. Vais andar, carcaça velha, ou não? Isto émaneira de dirigir? Chicote nela! Upa, diabo! Upa!Dá-lhe rijo!ona sente atrás das costas o corpo irrequieto e

ibração da voz do corcunda. Ouve os insultos quehe são dirigidos, vê a gente, e o aperto da solidãoouco a pouco começa a afrouxar no seu peito. Oorcunda continua a imprecar até que engasga numalavrão de seis andares e desanda a tossir. Os dois

ompridos põem-se a conversar sobre uma certaNadejda Petrovna. Iona olha para eles por cima do

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mbro. Escolhendo um momento propício, volta-seovamente e balbucia:

— E eu nesta semana...coisa... finou-se meu filho!— Todos vamos nos finar... — suspira o corcunda,

nxugando os lábios depois do acesso de tosse.Anda, toca, toca! Deus meu, palavra que nãogüento mais viajar assim! Quando é que nós vamoshegar?

— Você poderia animá-lo um pouquinho — n

uca!— Estás ouvindo, traste velho? Vou te encher de

escoções! Se a gente começa a fazer cerimônia comtua laia, acaba andando a pé! Estás ouvindo,

Dragão Gorinitch? Ou não te importa o queizemos?

Iona ouve, mais do que sente, o ruído doescoção.

— Heehe... — ri ele. Que senhores alegres... benza-

s Deus!— Cocheiro, és casado? — pergunta um dosompridos.

— Eu, é? Hehe... alegres senhores! Eu agora só tenhoma mulher — a terra úmida... Hehe... hoho... A

epultura, é o que é!... O filho, este morreu... e eustou vivo... Coisa esquisita, a morte errou deorta... Em vez de vir me buscar, foi ao filho...

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Iona volta-se para contar como morreu seu filho,mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que,

raças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendoecebido os vinte copeques, Iona finca longamente o

lhar no encalço dos farristas, que desaparecemum portão escuro. Outra vez ele está só, e outrez o silêncio cai sobre ele... A angústia, quemainara um pouco, surge de novo e oprime o peitoom força maior ainda. Os olhos de Iona correm

flitos e martirizados pelas turbas que se agitam dembos os lados da rua: não haverá no meio dessas

milhares de pessoas ao menos uma que quisesseuvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem ale, nem à sua angústia... Angústia enorme, que nãoonhece limites. Se estourasse o peito de Iona e angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o

mundo inteiro — e no entanto, ela é invisível. Elonseguiu aninhar-se numa casca tão ínfima, que

ão se pode enxergá-la nem com lanterna à luz dool...ona vê um zelador de prédio com um saco na mãodecide falar com ele.

— Mano, que horas serão? — pergunta ele.

— Passa das nove... E por que ficas parado aqui? Vandando!

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ona afasta-se alguns passos, dobra o corpo entrega-se à angústia... Dirigir-se aos homens ele jáonsidera inútil. Mas não passam nem cinco

minutos e ele se endireita, sacode a cabeça como se

entisse uma dor aguda e puxa as rédeas... Ele nãogüenta mais.Para casa — pensa ele. Para casa!”

a eguazinha, como que adivinhando-lhe oensamento, põe-se a correr a trote miúdo. Cerca de

ora e meia depois, Iona já está sentado junto a umastufa grande e suja. Em cima da estufa, nos bancos,o chão, homens estão roncando. O ar está denso ebafado... Iona olha para os dorminhocos, coça-se, eamenta que voltou para casa tão cedo.Não ganhei nem para a aveia”, pensa ele. “É porsso que estou aflito. Um homem que entende doeu trabalho... que está de barriga cheia e o cavaloambém, este está sempre sossegado...

Num dos cantos, acorda um cocheiro moço,igarreia e estende a mão para o balde de água.— Deu vontade de beber? — pergunta Iona.— De beber, pelo visto!— Pois é... Bom proveito... Pois eu, mano... morreu

meu filho... Soube? Esta semana, no hospital... Queistória!

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ona olha para ver o efeito que produziram suasalavras, mas não vê nada. O moço puxou a cobertor cima da cabeça e já dorme. O velho suspira e seoça. Assim como o moço tinha vontade de beber,

le tem vontade de falar. Logo vai fazer umemana que o filho morreu, e ele ainda nãoonversou direito com ninguém... É precisoonversar comvagar, com calma... É preciso contaromo o filho ficou doente, como sofreu, o que

isseantes de morrer, como morreu. É precisoescrever o enterro e a viagem ao hospital parauscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou umlha, Aníssia... Também dela é preciso falar... H

anta coisa de que poderia falar agora... O ouvinteeve gemer, suspirar, compadecer-se... Melhorinda seria falar com mulheres. Elas podem serurras, mas põem-se a chorar à segunda palavra.Vou ver o cavalo — pensa Iona. “Sempre tere

empo para dormir... Dormirei até que chegue...”ona se veste e vai para a cavalariça, onde está a suagua. Ele pensa na aveia, na palha, no tempo... Nolho, quando está sozinho, ele não consegue pensar.alar com alguém a respeito do filho, isso ele

oderia, mas pensar sozinho e imaginá-lo é-lhensuportável e assustador...

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— Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-he os olhos brilhantes. Mastiga, anda, mastiga... Seão ganhamos para a aveia, comeremos palha... Pois... Já estou velho para este trabalho... O filho é que

evia trabalhar, e não eu... Aquele sim é que eraocheiro de verdade... Se ao menos vivesse...ona cala-se um pouco, depois continua:

— Assim é, mana egüinha... Não temos mais Kusmaonitch... Foi-se desta para melhor... Pegou e

morreu, à toa... Agora, imagina tu, por exemplo —u tens um potrinho, e tu és a mãe desse potrinho...

de repente, imagina, esse mesmo potrinho seespacha desta para melhor... Dá pena ou não dá?

A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seuafo as mãos do dono...ona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo...

O bispo

Na véspera do Domingo de Ramos celebraram-se osltimos ofícios divinos, no Mosteiro de Staro-etrovsky. Quando distribuíam os ramos, já eramuase dez horas, as luzes baixavam, os paviosueimavam — e tudo parecia envolto em bruma. Na

enumbra da igreja, a multidão ondulava como ummar e Monsenhor Piotr, doente há três ou quatro

ias, tinha a impressão de que todos os rostos — dos

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elhos, dos jovens, dos homens, das mulheres — sessemelhavam; de que os olhos de todos quantos seproximavam para receber o ramo eram iguais, emua expressão. A semi-escuridão impedia-o de

istinguir a porta, a multidão continuava a desfilar,ir-se-ia que interminavelmente. Um coro demulheres cantava. Uma religiosa lia os cânones.

ufocava-se. Que calor! E como fora longo o ofício!Monsenhor Piotr estava fatigado, respiração

fegante, curta, seca, ombros doendo de cansaço, asernas trêmulas. Enervava-se com as exclamaçõesos homens simples. Subitamente, como em sonho,u em delírio, pareceu-lhe ver sua mãe, que não viaá nove anos, destacar-se da multidão e aproximar-e... sua mãe, ou uma mulher parecida com ela, que,epois de receber o ramo de suas mãos, afastou-se,ão sem olhá-lo alegremente, como seu bom eadioso sorriso... até perder-se no meio do povo. E,

em poder conter-se, lágrimas correram pelo seuosto.ua alma estava em paz, tudo corria bem, ele olhavaxamente o coro da esquerda, onde limam osânones, sem poder reconhecer ninguém, na

enumbra, e chorava — as lágrimas brilhando emua barba e em todo o rosto. Alguém começou ahorar, não muito longe, depois mais alguém; pouco

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pouco a igreja encheu-se de soluços contidos... atéue, minutos depois o coro do convento entoou umino, os prantos cessaram e tudo voltou ao normal.

O ofício terminou. Enquanto o bispo tomava assento

m seu carro, para voltar à casa, em todo o jardimuminado pelo luar ressoaram o belo e sonoroarrilhão e os pesados e preciosos sinos. As paredesrancas, as cruzes brancas sobre os túmulos, asétulas brancas projetando sombras negras, a lua

ongínqua, no céu, bem sobre o mosteiro, tudoarecia viver, no momento, uma vida singular¸

misteriosa — mais próxima, porém, do homem.Abril começava, o dia fora tépido e primaveril,omeçava a gelar, levemente, embora se sentisse, natmosfera doce e fresca, o sopro da primavera. Astrada que levava à cidade era arenosa, precisava-e andar lentamente os peregrinos ladeando aarruagem, sob a claridade e a maciez do luar.

odos calados, recolhidos; tudo, em torno,colhedor, jovem, fraterno — árvores, céu, a própriua. E era bom sonhar que seria sempre assim.

A carruagem chegou, enfim, à cidade e tomou a rurincipal. As lojas já estavam fechadas, salvo a de

rakine, o milionário, onde se experimentava auminação elétrica, muito tremulante, ainda, em

orno da qual as pessoas se agrupavam. Em seguida,

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travessou ruas longas e sombrias, ruas desertas;epois, a estrada construída pelo zemstvo —lcançando, enfim, o campo, de onde emanava odor dos pinheiros. Subitamente, erguida diante de

eus olhos, uma muralha branca, ameada, fazendoundo para um alto campanário inundado de luz, eara cinco cúpulas douradas, resplandecentes: o

Mosteiro de São Pancrácio, morada de Monsenhoriotr. Sobre a qual, também, muito alta e

ominando o convento, pairava a lua, tranqüila eonhadora. A carruagem transpôs o portão, fazendoanger a areia. Aqui e ali, ao luar, passavamugitivas silhuetas negras de monges, os passosessoando nas lajes de pedra.

— Monsenhor, sua mãe chegou, em sua ausência —nunciou um irmão leigo, quando o bispo entrou.

— Mamãe? Quando? Antes dos últimos ofícios.erguntou logo onde estava o senhor. Depois, fo

ara o convento das freiras.— Então, foi ela mesma que vi na igreja. Ah! Senhor!o bispo riu de alegria, enquanto o irmão leigo

ontinuava:— Madame mandou dizer que voltará amanhã.

rouxe com ela uma menina... deve ser sua neta.Desceu no Albergue de Ovsiannikov.— Que horas são?

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— Mais de onze.— Que pena!O bispo ficou um instante no salão, meditativo,omo se duvidasse de que fosse tão tarde. Sentou-se,

s pernas e os braços cansados, a nuca dolorida.entia calor, certo mal-estar. Após curto repouso,etirou-se para seu quarto, onde ainda ficou sentadom instante, pensando na mãe. Ouviu distanciarem-e os passos do irmão leigo e a tosse do padre Sissol,

trás do tabique. O relógio soou meia hora.O bispo mudou de roupa e pôs-se a dizer as velhas

reces que conhecia há muito tempo, pensando emua mãe. Nove filhos e quase quarenta netos. Emutros tempos morava com o marido, diácono deeu distrito, uma pobre aldeia onde vivera durante

muito tempo, dos dezessete aos sessenta anos.embrava-se dela desde a mais remota infância,esde os três anos. Amava-a muito. Doce, querida,

nolvidável infância! Por que esse tempo se forara sempre? Assim distante, sem retorno, pareciamais radiosa, mais bela e mais rica do que naealidade. Quando, menino ou adolescente, adoecia,omo sua mãe sabia ser terna, sensível! E, agora,

uas preces misturavam-se às recordações que seeacendiam, como uma chama cada vez mais viva,ue não o impedia de pensar em sua mãe.

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erminada a oração, deitou-se: no escuro, reviu seuai e sua mãe, Lessopolia e sua cidade natal. Aoangidos das rodas, os balidos dos carneiros, oarrilhão da igreja nas claras manhãs de verão, os

iganos mendigando às janelas... ah! Como era doceecordar! Lembrou-se do padre de Lessopolia, padreimeon, um homem terno, tranqüilo, benevolente.ra baixo, magro, mas seu filho seminarista erorpulento, voz forte de baixo. Um dia, o filho do

ope irritou-se com a cozinheira e injuriou-a:Jumenta de Zegouldil!” O Padre Simeon nadisse, mas corou de confusão, porque não conseguiaecordar-se da passagem da Sagrada Escritura, quealava nessa jumenta. Seu sucessor, em Lessopolia, oadre Demiani, bebia até ao delírio, quando via “er pente verde” — o que lhe valeu o apelido de

Demiane da Serpente. O professor de Lessopolia erantigo seminarista Matvei Nicolaitch, homem

xcelente, nada tolo, mas bêbado, também. Nãoatia nos alunos, mas pendurava, diariamente, narede da sala de aula, um apanhado de varas deétula, sobre o qual lia-se uma inscrição em latim,ealmente assombrosa: Betula kinderbalsamica

ecuta. Possuía um cão negro e crespo, chamadointaxe. E o bispo ria, à recordação disso tudo.

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A oito verstas de Lessopolia, situava-se a aldeia deObnino, onde existia um ícone miraculoso. No

erão, levavam-no, em procissão, pelos lugarejosizinhos — e, à sua passagem, os sinos repicavam.

Monsenhor tinha a impressão de que o ar palpitave alegria e ele seguia o ícone de cabeça e pés nus,om ingênua fé, sorriso devoto, infinitamente feliz.m Obnino, lembrava-se, havia sempre muita gentepadre do lugar, padre Aleixo, para ter tempo de

hegar ao ofertório, fazia ler por seu sobrinhoHilarion, que era surdo, os papeizinhos e os nomesscritos nos pães de consagração... “pela saúdee...”, “pelo repouso de...” Para lê-los, Hilarioecebia de cinco a dez copeques por missa. Já era umomem grisalho e calvo, sua juventude já passara,uando descobriu um papel em que haviam escrito:Como podes ser tão tolo, Hilarion?” Pelo menos atéos quinze anos, monsenhor, a quem, então,

hamavam Popaul, era muito atrasado e trabalhavamuito mal, em aula. Tão mal que haviam pensadom retirá-lo do seminário e colocá-lo em uma loja. Eavia, ainda, aquele dia em que, indo buscar asartas no correio, observara longamente os

mpregados e lhes perguntara: “Permitam-mendagar como são pagos... Por mês, ou por dia?”

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Monsenhor benzeu-se e, voltando-se para outroado, fugindo a recordar, adormeceu. Ainda teveempo de pensar e de sorrir: “Mãe chegou...”

A lua entrava pela janela, iluminando o assoalho e

ovoando-o de sombras. Um grilo cantava. Atrás doabique, no compartimento vizinho, o Padre Sissooncava e seu roncar de velho tinha qualquer coisae solitário, de repousado, talvez mesmo deagabundo. Em outros tempos, Sissol havia sido

cônomo da diocese — e era agora chamado de “ex-adre ecônomo”. Tinha setenta anos, morava emm convento a dezesseis verstas da cidade. Trêsias antes, chegara ao Convento de São Pulcrácio,nde monsenhor o retivera para, nas horasossíveis, conversar com ele sobre seu tempoerdido, sobre negócios e hábitos locais...

A uma hora e meia soaram as matinas. Ouviu-se oadre Sissol tossir, resmungar, erguer-se e passear

escalço de um quarto a outro. Monsenhor chamou:— Padre Sissol!issol voltou ao seu quarto e apareceu, poucoepois, já de botas calçadas, com uma vela na mão.

Vestira a batina sobre a camisola e trazia, à cabeça,

m velho solidéu desbotado. Sentando-se na cama,monsenhor disse:

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— Não consigo dormir. Devo estar doente... sei lá oue tenho. Estou com febre.

— Deve Ter sido a friagem, monsenhor. Precisaazer uma fricção com sebo...

sperou ainda um instante. Bocejou...— Senhor, perdoai a este pobre pecador!Acrescentou:— Instalaram eletricidade, hoje, em casa de Ekarine.

uma coisa que não me agrada.

O Padre Sissol já era idoso. Muito magro, curvado,empre descontente, olhar colérico, olhosroeminentes como os dos caranguejos. Repetiu,etirando-se:

— Não me agrada, mesmo. Não me agrada,bsolutamente!

No dia seguinte, Domingo de Ramos, monsenhorelebrou a missa, na catedral, dirigindo-se, depois, àasa do bispo da diocese e, em seguida à de uma

elha generala, muito doente. Voltou à casa e, a umaora, estava sentado à mesa, em companhia de duasisitantes, muito caras a seu coração: sua velha mãe

sua sobrinha Katia, menina de uns oito anos.Durante a refeição, um, sol primaveril iluminou a

anela, resplandeceu sobre a toalha branca e sobre osabelos ruivos de Katia. Através dos duplos

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aixilhos, ouvia-se o crocitar dos corvos e o cantoos estorninhos, no jardim. A velha senhora dizia:

— Há exatamente nove anos que não nos vemos.Ontem, no convento, o que senti quando o vi, meu

Deus! Não mudou em nada, apenas emagreceu umouco e sua barba está mais longa. Rainha do Céu,Mãe Nossa! Não pude deixar de chorar... ninguém

ôde deixar de chorar, quando oficiou as completas.Não sei por que, bruscamente, pus-me achorar... por

uê? Nem eu mesma o sei... É a vontade divina!A despeito do tom carinhoso com que falava, sentia-e que não estava à vontade, não sabendo se deveriaizer-lhe tu, ou vós, rir, ou não — muito maissposa de diácono, do que mãe de bispo. Semestanejar, Katia fixava monsenhor seu tio, como serocurasse adivinhar que homem era ele. Cabelosenteados em forma de auréola, presos por uma

ravessa e por uma fita de veludo, nariz arrebitado,

lhos astuciosos — e tão inquieta que, antes deentar-se à mesa, quebrara um copo. Agora,nquanto falava, sua avó ia afastando dela ora umopo de vinho, ora um pequeno cálice. Monsenhoruvia sua mãe e lembrava-se de que, outrora, h

muitos anos, ela o levava e a seus irmãos à casa dosarentes que considerava ricos. Naquele tempo,

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reocupava-se por seus filhos... Hoje, por seusetos... E havia trazido Katia...

— Sua irmã Varia tem quatro filhos. Katia é a maiselha. Ivan, meu genro, caiu doente, antes da

Assunção, só Deus sabe de quê, e morreu, em trêsias. Agora, minha Varia é obrigada a mendigarelas ruas.

— E Nicanor? — perguntou monsenhor, referindo-e a seu irmão mais velho.

— Não vai mal, graças a Deus. Digo que não vai maagradeço a Deus, porque tem do que viver.

omente meu neto Nicolai não quis ser padre; estáa faculdade, estudandopara médico. Acha que ser

melhor... mas quem sabe? É a vontade de Deus.— Nicolai corta cadáveres — disse Katia,

erramando água sobre os joelhos.Calmamente, a avó disse, tirando-lhe o copo dasmãos:

— Fica quieta, pequena. Reza, enquanto comes.Acariciando ternamente o ombro e o braço da mãe,monsenhor disse:— Há quanto tempo não nos vemos! Senti muitasaudades suas, no estrangeiro, mamãe. Muitas,

mesmo.— Obrigada.

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— À noite, sentava-me junto à janela, sozinho,uvindo a música lá fora. Então, subitamente,ostalgia tomava-me de assalto... e eu creio que teriaado tudo para poder voltar a vê-la.

la sorriu, seu rosto iluminou-se. Mas logo retomouseu ar sério e disse:— Obrigada.Repentinamente, o humor do bispo transformou-se.Olhava sua mãe, sem poder compreender de onde

inha aquela expressão respeitosa, tímida em seuosto e em sua voz. Não a reconhecia. Sentiu-seriste. Depois, como na véspera, sua cabeça tornou-e pesada, suas pernas começaram a doer... o peixeareceu-lhe insípido... não conseguia acalmar aede...

Após o jantar, recebeu a visita de duas senhoras,icas, proprietárias, que se demoraram mais de umaora, em silêncio, pesando no ambiente, com seus

ostos alongados; do arquimandrita, homemaciturno e surdo, que fora tratar de negócios. Asésperas soaram, o sol escondeu-se atrás da florestao dia terminou. Regressando da igreja, monsenhor

ez apressadamente suas orações e meteu-se na

ama, agasalhando-se muito.O peixe do almoço lhe deixara uma sensação

esagradável. O luar o incomodava. Ouviu vozes:

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m um outro compartimento, no salão,rovavelmente o Padre Sissol conversava sobreolítica.

— Os japoneses estão em guerra. Estão se batendo.

Os japoneses, minha cara senhora, são a mesmaoisa que os montenegrinos... são da mesma raça.stiveram juntos sob o jugo turco...

Ouviu a voz da mãe:— Então, depois de termos feito nossas orações,

epois de bebermos chá, fomos à casa do Padreegor, em Novokhatnoia..., a cada cinco minutos, repetiu: “depois de

omarmos chá...” Dir-se-ia que, em toda a sua vida,la só aprendera a tomar chá. Lentamente,agamente, voltavam à memória do monsenhor oequeno e o grande seminário. Por mais de trêsnos, fora professor de grego... já não podia ler semculos... Quando recebeu a tonsura, foi nomeado

nspetor. Em seguida, defendeu tese. Aos trinta eois anos, era diretor do seminário. Já sagradorquimandrita. A vida tornou-se, então, de ta

maneira fácil e agradável, tão longa que parecia nãoer fim. Foi quando caiu doente. Emagreceu muito,

cou quase cego e, a conselho médico, abandonouudo e partiu para o estrangeiro.

Na sala vizinha, Sissol perguntou:

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— E depois?— Depois, bebemos chá — respondeu sua mãe.— Meu pai, sua barba é verde! — disse,ubitamente,Katia.

embrando-se de que, realmente, a barba grisalhao Padre Sissol tinha reflexos verdes, monsenhorôs-se a rir.

Ouviu a voz colérica do Padre Sissol:— Meu Deus, que maldição de criança! Como é mal-

ducada! Fica quieta!Monsenhor reviu a igreja branca, novinha, onde

ficiava no estrangeiro... Recordou o ruído do marranqüilo. Seu apartamento constituía-se de cincoeças, altas e claras. Em seu gabinete de trabalho,avia uma escrivaninha nova e uma biblioteca; elescrevia e lia muito. Lembrou-se de sua nostalgia dentão; de um mendigo cego que, diariamente,antava, sob suas janelas, canções de amor,

companhadas de guitarra, e de que, cada vez que ouvia, pensava no passado. Mas oito anos haviamecorrido, ele fora chamado à Rússia e, agora, erispo sufragâneo — todo seu passado desaparecido

muito longe, na bruma, como um sonho...

Com uma vela na mão, Padre Sissol entrou nouarto. Espantou-se:

— Já está dormindo, monsenhor?

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— Que tem isso?— É muito cedo, ainda... Comprei uma vela de sebo

gostaria de friccionar suas costas...— Estou com febre. E muita dor de cabeça.

videntemente, é preciso fazer alguma coisa —isse monsenhor, sentando-se.issol tirou-lhe a camisa e fez-lhe uma fricção noeito e nas costas, com sebo.

— Assim... assim... Senhor Jesus! ... Assim... Hoje

stive na cidade, em casa de... como se chamamesmo ele...? Em casa do Arquiprior Sidonski...

omei chá com ele... Não simpatizo com ele...enhor Jesus... Assim... Assim... Pois é, nãoimpatizo com ele...

O bispo da diocese, homem idoso e obeso, vencidoelo reumatismo, ou pela gota, não se levantava daama há mais de um mês. Monsenhor Piotr visitava-

diariamente e dava audiência, em seu lugar.

Agora, que também sofria, pensava, chocado, noazio e na pequenez de tudo quanto lhe pediam, deudo por que se lamuriavam os que iam procurá-lo.

A timidez e o atraso dessas pessoas o irritavam.odas as frivolidades, todas as coisas ociosas o

smagavam: tinha a impressão de que, enfim,ompreendia o bispo titular que, outrora, em suauventude, escrevera um Tratado do Livre Arbítrio,

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parecia-lhe que, agora, sua personalidade seonstituía apenas de detalhes, que tudo esquecera,ue não pensava mais em Deus. No estrangeiro,esacostumara-se da vida russa — e agora sentia

muito seu peso. Chocava-se com a grosseria doovo, com os pedidos tolos dos que apelavam a seuuxílio, com a incultura dos seminaristas erofessores, autênticos selvagens, na maioria dasezes. O correio que enviava, ou recebia, existia n

roporção de dez para mil — e que correio! Oseãos de todas as dioceses davam notas à condutos padres, jovens e velhos, a suas mulheres, a suasrianças e era preciso comentar tudo isso, escreverartas sérias a respeito, ler. Não lhe restava,ositivamente, um só minuto de liberdade, seuspírito sempre inquieto, só sentindo tranqüilidadea igreja.ambém não conseguia acostumar-se ao medo que

nspirava, involuntariamente, apesar de sua doçurade sua discrição. Todos os habitantes da paróquiacavam intimidados, contritos em sua presença —umildes e assustados. Mesmo os velhosrquimandritas anulavam-se diante dele — e, bem

ecentemente, uma solicitante, a velha esposa de umope de província, sentira tanto medo, ao defrontá-

o, que não pudera articular uma só palavra e

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artira sem nada lhe solicitar. E ele que, em seusermões, jamais pudera ser severo, que jamaisirigira, a quem quer que fosse, uma censura, poisentia piedade, perdia a linha, encolerizava-se e

tirava todos os pedidos no chão. Desde quehegara, ninguém lhe havia falado sinceramente,umanamente, com simplicidade. Sua própria mãeão era a mesma. Por que falava sem cessar e ri

anto com Sissol, enquanto com ele, seu filho, era tão

rave, tão taciturna, tolhida por umonstrangimento que não combinava com ela? Anica pessoa que sentia à vontade, em sua presença,izendo tudo o que queria dizer, era o velho Sissol,ue durante toda a sua vida servira a bispos, dosuais já enterrara onze. E também ele, monsenhor,entia-se à vontade com ele, embora fosse,ncontestavelmente, um homem difícil e ardiloso.

Na terça-feira, depois da missa, ao receber os

olicitantes, no bispado, monsenhor agitou-se,xaltou-se. Ao entrar em casa, sempre indisposto,esejava deitar-se. Mal chegou, porém, anunciaram-

he o jovem solicitante Erakine, generoso benfeitoras boas obras, que lhe pedia audiência, para tratar

e um assunto muito importante. Não pôde recusar-e. Erakine demorou perto de uma hora; falava alto,

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uase aos gritos — e monsenhor custara a entenderque dizia.

Ao sair, disse:— Deus permita que assim seja! É absolutamente

ecessário! De acordo com as circunstâncias,Reverendíssima Excelência! Desejo ardentementeue assim seja!

Após Erakine, recebeu a madre superiora de umongínquo convento. E quando ela se retirou,

oaram as vésperas; teve que voltar à igreja.À noite, os monges entoaram um canto harmonioso

inspirado. Um jovem monge, de barba negra,ficiava. E monsenhor, ouvindo os versos sobre osposo que veio à meia-noite e, encontrando a casanfeitada, não sentia arrependimento de seusecados, nem aflição, mas sim calma e paz interior,eixou seu pensamento voar para um distanteassado — sua infância e sua juventude, quando se

antava também esse esposo que chega à meia-noiteessa casa adornada. Agora, esse passado parecia-he vivo, magnífico, radioso, como talvez nunca ovesse sido. Quem sabe, em outro mundo, em outrida, também recordemos nosso longínquo passado

nossa vida terrena, sentindo-os, assim, vivos eróximos... quem sabe?

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stava escuro. Sentado perto do altar, monsenhoreixava correr suas lágrimas, sonhando que atingir

tudo que era acessível a um homem de suaosição. Tinha fé. Mas nem tudo estava claro,

altava-lhe qualquer coisa, não queria morrer: essaualquer coisa que lhe faltava era, talvez, o essenciale sua vida, com o que confusamente sonhara,utrora. No presente, a mesma esperança em umuturo, acompanhando-o, desde o seminário, desde

ue estivera fora de seu país.pensava, ouvindo atentamente os cânticos:

— Como estão cantando bem, hoje! Como cantamem!

Na quinta-feira, oficiou na catedral e também nerimônia de lava-pés. Quando o serviço terminou es fiéis se retiraram, fazia sol, o tempo estavauente, alegre, a água murmurava nos riachos — eos arredores, vindo do campo, soava o canto

ninterrupto das andorinhas, um canto pleno deernura, convidando ao repouso. As árvores,espertas, pareciam sorrir gentilmente e o céu

nsondável, ilimitado, perdia-se muito longe, sóDeus saberia onde.

m casa, Monsenhor Piotr tomou chá, mudou deoupa e deitou-se, pedindo ao irmão leigo queechasse as janelas. A escuridão invadiu o quarto.

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Mas que cansaço, que dor nas pernas e nas costas,ue sensação de peso, de frio, que zoada nosuvidos! Fazia muito tempo que não dormia

ongamente. Tinha a impressão de que o que o

mpedia de adormecer era um quase nada que serguia em seu cérebro, logo que fechava os olhos.Como na véspera, chegavam-lhe, deompartimentos vizinhos, através dos tabiques,ozes, ruídos de copos, de colheres... Sua mãe

ontava, alegremente, uma estória pitoresca,emeada de provérbios. Padre Sissol respondia, comoz sombria e descontente:

— Ah! Que gente! Que coisa! Ainda esta!monsenhor sentia-se novamente contrariado,

mortificado, porque sua velha mãe se mostravaatural e simples, com os estranhos, enquantoiante dele, seu filho, intimidava-se, pronunciandoaras palavras, que não correspondiam a seus

ensamentos. Até mesmo... pelo menos lhearecera... até mesmo procurava pretextos para seevantar, quando ele estava presente, constrangida,vitando ficar sentada em sua presença. E seu pai?em dúvida, se fosse vivo, também não poderia

alar, diante dele...No quarto vizinho, um objeto caiu ao chão e

uebrou-se. Teria sido obra de Katia, deixando cair

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ma xícara, ou um pires, pois logo se ouviu a voz doadre Sissol, irritado:

— Maldita menina! Senhor, perdoa-me estasalavras de pecador! Que flagelo!

Depois, fez-se silêncio. Ouviam-se, apenas, os ruídosindos de fora. Quando monsenhor reabriu oslhos, viu Katia, observando-o, imóvel. Com seusabelos ruivos, levantados por uma travessa emorma de auréola — como sempre. Perguntou-lhe:

— És tu, Katia? Quem está a todo instante abrindo eechando lá em baixo?

— Não ouço nada — respondeu Katia.— Alguém acaba de passar.— É em sua barriga, tio.— Então, teu primo Nicolai corta cadáveres? —

erguntou, depois de um curto silêncio.— Sim... Está estudando.— Ele é gentil?

— Muito. Só que tem que beber, É terrível.— E teu pai? De que morreu?— Papai era muito fraco... magro... magro... Deepente, ficou atacado da garganta. Eu e meu irmãoambém adoecemos... meu irmão Fiodor, sabe?

odos ficaram doentes da garganta. Pai morreu, tio,mas nós todos ficamos bons.

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eu queixo começou a tremer, lágrimas brotaram deeus olhos, rolaram pelo rosto. Disse, com voz fraca,horando agora amargamente:

— Monsenhor, mamãe e eu somos tão desgraçadas...

Dê-nos um pouco de dinheiro... Faça-nos estaaridade, querido tio!Monsenhor sentiu, também, lágrimas brotando emeus olhos. A emoção o impediu, por um momento,e falar. Depois, acariciou, mais uma vez, a cabeça

a menina, bateu-lhe carinhosamente nas costas eespondeu:

— Bem... bem, minha querida. Está chegando o diaa Páscoa... Voltaremos a falar neste assunto. Voujudá-las, sim... vou ajudá-las...

Viu a mãe entrar, timidamente, para uma oraçãoiante do ícone. Notando que ele não dormia,erguntou-lhe:

— Quer tomar uma sopinha?

— Não, obrigado. Estou sem fome.le riu e acariciou-lhe a cabeça.—Está muito abatido... mas também como não ficar

oente? Os dias inteiros sem repousar... meu Deus,ó de olhá-lo sinto pena! Felizmente, a Semana Santa

stá próxima e, se Deus quiser, poderá descansar eoderemos conversar. Agora, não quero incomodá-

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o com as minhas tagarelices. Vem, Katia... Deixmonsenhor dormir um pouco.

embrou-se de que, quando era pequeno, há muitosnos, sua mãe falava ao deão no mesmo tom, ao

mesmo tempo brincalhão e respeitoso... Somenteeus olhos, extraordinariamente bondosos, o olharmido, preocupado, que ela lhe lançara, ao sair,eixavam transparecer que era sua mãe. Fechou oslhos. Mas não adormeceu. Ouviu, por suas vezes, o

elógio soar — e a tosse do Padre Sissol, atrás doabique. Uma carroça, ou uma caleça, a se julgarelo ruído, aproximou-se da escadaria. Umancada súbita, uma porta batendo... O irmão leigontrou:

— Monsenhor!— Sim?— Os cavalos estão prontos: já é hora do ofício da

aixão.

— Que horas são?— Sete e quinze.— Vestiu-se e dirigiu-se à catedral. Durante a leitura

os evangelhos, era obrigado a fica de pé, imóvel,o meio da igreja. O primeiro evangelho, o mais

elo e o mais longo, ele próprio o dizia. Sentiu-seovamente forte e bem disposto.

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sse primeiro evangelho — “Glória a Ti, ó Filho doHomem” — ele sabia de cor. Às vezes, enquanto oecitava, olhava em torno e via um mar de olhos. Euvia o crepitar dos círios. Mas não lhe pareciam os

mesmos fiéis dos anos precedentes, nem mesmo oseconhecia... Eram as mesmas gentes dos tempos deua infância e de sua juventude, que seriam sempres mesmas a cada ano que passasse... Até quando?ó Deus o sabia.

eu pai era diácono, seu avô padre, seu bisavôiácono... toda a sua ascendência, talvez, depois davangelização da Rússia, pertencera ao clero — e omor de seu ministério, do sacerdócio, do carrilhão,ra, nele, inato, profundo, desenraizável. Era nagreja, sobretudo quando oficiava, que se sentia maistivo, disposto, feliz. E era o que lhe acontecia,aquele instante.omente depois da leitura do oitavo evangelho,

entiu que sua voz enfraquecera, nem mesmo suaosse se ouvia, a cabeça doendo-lhe terrivelmente:eve medo de cair. Com efeito, suas pernas estavamompletamente entorpecidas, a ponto de, pouco aouco, não mais as sentir. Não compreendia como e

obre que se sustentava, por que não caía...erminado o ofício, faltavam quinze para meia-oite. Voltando à casa, trocou de roupa e deitou-se

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mediatamente, sem mesmo dizer suas orações. Nãoodia falar, sentia-se incapaz de manter-se em pé. E

oi exatamente enquanto se cobria que um súbitoesejo de partir o dominou... partir para o

strangeiro, uma irresistível vontade... Parecia-lheue teria dado sua vida para não mais ver aquelesorríveis postigos, aqueles tetos baixos — e não

mais sentir o pesado cheiro do convento. Se aomenos existisse um homem a quem pudesse falar,

brir sua alma!Ouviu por muito tempo passos no quarto vizinho,em conseguir lembrar-se de quem eram. Por fim, aorta abriu-se e o Padre Sissol entrou com uma velatrazendo-lhe uma xícara de chá.

— Já está deitado, monsenhor? Vim fazer-lhe umaricção, com vodca e vinagre. Uma boa fricçãoempre faz bem. Senhor Jesus! Estou acabando dehegar de nosso convento... Ele não me agrada, não

me agrada! Vou-me embora amanhã, Excelência...Não desejo ficar nem mais um dia. Senhor Jesus...ronto!

O Padre Sissol não gostava de permanecer pormuito tempo em um lugar e já estava com a

mpressão de que passara o ano inteiro em Sãoancrácio. Além disso, ouvindo-o, era difícil sabernde ficava sua casa, se ele amava alguém, ou

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ualquer coisa, se acreditava em Deus... Ele próprioão compreendia por que era monge... Aliás, ele nãoensava mais nisso, há muito tempo se apagara, emua memória, qualquer recordação da época em que

ecebera a tonsura... parecia-lhe que já nasceramonge.— Parto amanhã. Estou me despedindo de tudosso.

— Gostaria de conversar com o senhor... Mas nunca

ouve ocasião — disse monsenhor, em voz baixa,enosamente. — Não conheço ninguém aqui... nãostou a par de nada...

— Pois ficarei até Domingo, se quiser. Mas não aléme Domingo... Ah! Não!

Monsenhor prosseguiu, em voz baixa:— Que espécie de bispo sou eu? Deveria Ter sido

ope, de aldeia, diácono... ou simples monge... Tudosso me acabrunha... me acabrunha...

— Como? Senhor Jesus, que idéia! Vamos, durma,monsenhor... Que estranha idéia! Boa noite!

A noivaram dez da noite, e a lua cheia iluminava o jardim.

m casa dos Chumin acabara, há pouco, o serviçotúrgico encomendado pela avó, Marf

Mikhailovna, e agora Nadia, que saíra um momento

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ara o jardim, via lá dentro, porem a mesa na sala eavó, no seu pomposo vestido de seda, andar a

reocupada. O arcipreste Andrei, da Catedral, diziaualquer coisa a Nina Ivanovna, mãe de Nadia, que

ista através da janela, à luz artificial, pareciastranhamente jovem. Junto a eles, encontrava-seAndrei Andreitch, filho do padre Andrei, ouvindoom atenção o que os outros diziam.

O jardim, silencioso, respirava frescura; sombras

stendiam-se, quietas, pelo chão. Ao longe, talvezora da cidade, ouvia-se o coaxar das rãs. A brisa de

Maio — delicioso Maio! — fazia-se sentir em tudo.Respirava-se a plenos pulmões, e parecia quelgures, sob o céu, por sobre as árvores, muito aléma cidade, nos campos e bosques, brotava a vidarimaveril, misteriosa, bela, efervescente e sagrada,

nacessível à compreensão dos homens, seres fracospecaminosos. Dava vontade de chorar, não se

abia porquê.Nadia tinha já vinte e três anos. Desde os dezesseisnos que desejava ansiosamente casar, e agora ernalmente noiva de Andrei Andreitch, aquele quee via na sala. O homem agradava-lhe, o casamento

á estava marcado para sete de Julho. No entanto,Nadia não se sentia alegre, dormia mal, andava

esalentada... Do pavimento inferior, onde ficava a

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ozinha, chegavam pela janela aberta sinais dosreparativos do jantar: barulho dos talheres, o batera porta, o cheiro a peru assado e compota deerejas. E parecia que toda a vida seria assim, sem

lterações nem fim!Alguém saiu de casa e deteve-se à entrada. EraAleksandr Timofeitch ou, simplesmente, Sacha, deMoscovo, que ali se hospedara há dez dias. Houve

ma altura em que uma parente afastada de Marf

Mikhailovna — uma viúva fidalga, mas arruinada,aixinha, franzina e doentia — vinha pedir ajuda. Aiúva tinha um filho chamado Sacha. Dizia-se quele prometia vir a ser um bom pintor, e quando

mãe morreu, Marfa Mikhailovna enviou-o, poraridade, para um colégio técnico em Moscovo. Doisnos depois, entrou para a Escola de Belas Artes,ue freqüentou quase quinze anos, tendo-secenciado, a muito custo, em arquitetura, e

rabalhava numa litografia de Moscovo. Quaseodos os anos, no Verão, passava uns tempos naasa dos Chumin, para descansar e restabelecer-se.stava de casaca abotoada, calças de cotim, puídas eisadas em baixo, e camisa amarrotada. Aliás, todo

aspecto dele era o de um amarrotado.scanzelado, olhos grandes, dedos compridos e

magros, barba e cabelos negros, era, apesar de tudo,

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astante belo. Habituara-se aos Chumin, que se lheornaram próximos, e sentia-se ali como em suaasa. O quarto que ocupava era, desde há muito, oquarto de Sacha”.

Viu Nadia e aproximou-se dela.— Está-se bem aqui.— Claro que está. Deveria ficar connosco até aoOutono.— Sim, parece que é isso que vou fazer. É possíve

ue fique até setembro.le riu-se, sem qualquer razão aparente, e sentou-seo pé dela.

— Estou a observar a mamã — disse Nadia. — Vistaaqui, parece tão jovem! — E, após uma pausa,crescentou:— Claro que tem as suas fraquezas, masrealmente uma mulher extraordinária.

— Sim, uma boa mulher — concordou Sacha. — Éerto que a sua mãe é uma mulher bondosa e

impática, à sua maneira, mas... como hei-de dizer-he? Hoje, de manhã cedo, passei pela cozinha encontrei lá quatro criadas a dormir na chão. Nãoêm camas, só trapos fedorentos com percevejos earatas... Precisamente como há vinte anos atrás,

ada mudou. Quanto à avó, ainda se compreende,ois é uma pessoa idosa, mas a mamã, que fala

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rancês, representa em espetáculos de amadores,everia ser mais compreensiva.

Quando falava, Sacha erguia diante do interlocutorois dedos magros e compridos.

— Por falta de hábito, tudo aqui me parece bárbaro— prosseguiu ele. — Diabos! Ninguém fabsolutamente nada. A mamã passa o dia a passear,omo se fosse uma duqueza; a avó não faz coisenhuma, e a Nadia também não. Andrei Andreitch,

seu noivo, também nada faz.Nadia ouvira já tudo isto no ano anterior e mesmontes, e sabia que Sacha não podia raciocinar doutraorma. Outrora, em ocasiões daquelas, apetecia-lheir, mas agora sentiu-se enfadada.

— Não são coisas novas o que diz, estou farta deuvi-las — disse ela, levantando-se. Arranje algo

mais original.le riu-se, pondo-se também de pé, e ambos se

irigiram para casa. Alta, airosa e esbelta, Nadiarecia ao lado dele vistosa e plena de saúde. Elaabia isso, tinha pena de Sacha e, por uma razãoualquer, sentia-se embaraçada.

— Tem o mau hábito de falar a despropósito —

isse ela. Por exemplo, referiu-se há bocado ao meuAndrei, se bem que não o conheça.

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— “Ao meu Andrei!” Pouco me importo com o seuAndrei. Tenho pena é da sua juventude.Quando entraram na sala, estavam já todos sentados

mesa de jantar. A avó — ou a avozinha, como er

ratada em casa — , muito redonda, feia, deobrancelhas espessas e buço, falava alto, e pela suaoz e maneira de falar via-se que era ela quem

mandava em casa. Possuía tendas na feira e umaasa antiga com colunas e jardim; porém, todas as

manhãs rezava para que Deus a salvasse da ruína ehorava. A nora, Nina Ivanovna, mãe de Nadia,ma mulher loura, de cintura muito estreita, comince-nez e anéis de brilhantes em cada dedo da

mão; o padre Andrei, um velho magro, desdentado,om ar de quem quer contar qualquer coisa muitongraçada, e o filho dele, Andrei Andreitch, o noivoe Nadia, um janota gorducho, de cabeloncaracolado, de aparência própria de um actor ou

intor — , todos os três falavam de hipnotismo.— Aqui, numa semana pões-te bom — disse avozinha, dirigindo-se a Sacha — , mas tens queomer mais. Vê a tua figura! Ela suspirou. Mete dóer-te! Um filho pródigo, é o que és.

— Esbanjou os bens do progenitor — disse o padreAndrei com voz pausada e olhos risonhos — , e fo

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astar bolotas com um rebanho de porcosnsensatos...

— Gosto do meu pai — disse Andrei Andreitch,assando a mão pelo ombro do pai. Um velho

izarro, uma jóia de velho.odos se calaram. De repente, Sacha soltou umaisada e tapou a boca com o guardanapo.

— Então, a senhora acredita em hipnotismo? —erguntou o padre Andrei a Nina Ivanovna.

— Não posso afirmar, evidentemente, que acredito— respondeu esta, tomando um ar muito sério,

uase severo. Mas reconheça que, na Natureza, hmuitas coisas misteriosas e incompreensíveis.— Plenamente de acordo, mas sou de opinião queé reduz, em grande medida, o domínio do

misterioso.erviram um peru, grande e muito gordo. O padre

Andrei e Nina Ivanovna continuavam a conversar

Os anéis brilhavam nos dedos de Nina Ivanovna, eos seus olhos brilhavam lágrimas de emoção.— Não me atrevo a contestá-lo — disse ela — , masonvenhamos que, na vida, há muitos enigmasndecifráveis.

— Nem um só, asseguro-lhe.Depois do jantar, Andrei Andreitch tocou violino,companhado ao piano por Nina Ivanovna. Há

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erca de dez anos formara-se na faculdade de Letras,mas não se empregara, não tinha nenhuma

cupação definida e só, de vez em quando,articipava em espetáculos de beneficência. Na

idade, chamavam-lhe artista.Andrei Andreitch tocava e todos escutavam emilêncio. Na mesa fervia, surdo, o samovar. Só Sachomava chá. Já depois da meia-noite, uma corda doiolino partiu, todos riram, alvoroçaram-se e

omeçaram a despedir-se.Depois de acompanhar o noivo à porta, Nadia fo

ara o andar de cima, que habitava com a mãe (ondar de baixo era ocupado pela avó). Em baixo, nala, apagavam as luzes, mas Sacha deixou-se aindacar aí a tomar chá. Bebia sempre demoradamente,mas sete chávenas, à maneira dos moscovitas.

Depois de se ter despido e deitado, Nadia ouviuinda durante muito tempo a criadagem arrumar a

ala e a avó ralhar com alguém. Por fim, tudo ficouilencioso. Só de vez em quando, em baixo, nouarto de Sacha se ouviam tossidelas roucas.

Nadia despertou aproximadamente às duas damanhã. Começava a alvorecer. Algures, ao longe, o

uarda batia com a matraca. Nadia não tinha sono, aama era demasiado fofa, incômoda. Como emodas as anteriores noites de Maio, sentou-se na

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ama e pôs-se a pensar. Os pensamentos eram osmesmos da noite passada, monótonos, inúteis,

bsessivos. Recordava como Andrei Andreitcomeçara a cortejá-la e lhe fizera a proposta de

asamento, como ela tinha aceite e como, com oempo, passara a estimar esse homem bondoso enteligente. Mas agora, quando faltava só um mêsara o casamento, começou a sentir medo ensiedade, como se a esperasse algo incerto e

enoso.Tic-toc, tic-toc”, batia preguiçosamente o guarda.Tic- toc!”ela janela grande vê-se o jardim, arbustos de lilasesm flor, modorrentos e murchos de frio. A névoa,ranca e espessa, aproxima-se de mansinho doslases, para envolvê-los. Ao longe, nas árvores,rocitam gralhas ensonadas.

— Ó meu Deus, porque estou eu tão aflita?

xperimentarão todas as noivas o mesmo nasésperas do casamento? Quem sabe! Ou seresultado da influência de Sacha? Mas já há anoseguidos que Sacha repete a mesma coisa, palavraor palavra, e enquanto fala parece tão ingênuo e

stranho. Mas porque Sacha não me sai da cabeça?orque?

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O guarda deixou há muito tempo de matracar. Osássaros armaram uma grande algazarra sob a

anela e, no jardim, a névoa dissipou-se e um sol derimavera iluminou tudo em volta como um sorriso.

ouco depois, todo o jardim, acalentado e acariciadoelo sol, acordou e as gotas de orvalho cintilaramas folhas como diamantes. O velho jardim,bandonado há muito, parecia aquela manhã muito

ovem e lindo.

A avó despertou já. Ouviu-se a tosse áspera deacha. Ouvia-se, na andar de baixo, servirem chá e

mexerem cadeiras.As horas arrastavam-se. Há muito que Nadia seevantara e passeava pelo jardim, mas ainda er

manhã.Apareceu Nina Ivanovna com os olhos vermelhos

e chorar, com um copo de água mineral na mão.la dedicava-se ao espiritismo, à homeopatia, lia

muito, gostava de falar das suas dúvidas e tudo issoarecia, aos olhos de Nadia, encerrar um sentidorofundo e misterioso. Nadia beijou a mãe e pôs-secaminhar ao seu lado.

— Porque choraste, mamã?

— Ontem à noite li uma novela em que se falava dem velho e da filha. Aconteceu que o chefe da

nstituição onde o velho trabalhava se enamorou da

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lha. Ainda não cheguei ao fim, mas há umaassagem que não é possível ler sem chorar —espondeu Nina Ivanovna, bebendo um gole degua mineral.

— Ando deprimida desde há algum tempo — disseNadia, após um momento de silêncio.— Porque será que não consigo dormir de noite?— Não sei, querida. Quando não tenho sono, fecho

em os olhos, assim, e imagino Anna Karenina, o

eu modo de andar, de falar, ou então qualquerpisódio da história, da antigüidade...

Nadia sentiu que a mãe não a compreendia, nemeria capaz de a compreender. Percebeu-o pelarimeira vez na vida, e teve medo. Quis esconder-sefoi para o quarto.

Ás duas da tarde, todos se reuniram para o almoço.ra quarta-feira, dia magro, por isso a avó comiama sopa de couve e peixe com papas.

ara arreliá-la, Sacha comeu tanto a sopa de carneomo a sopa magra. Motejou durante toda aefeição, mas os seus ditos saíam-lhe pesados, com oheiro a ensinamentos morais, e não tinha graçaenhuma quando erguia os dedos compridos e

escarnados como os dum morto. Isto fazia lembrarue ele estava gravemente doente, que talvez nãourasse muito, e dava muita pena.

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Depois do almoço, a avó foi descansar para o seuuarto. Nina Ivanovna demorou-se mais umocado, a tocar piano, e depois também saiu.

— Oh, querida Nadia — começou Sacha a su

abitual história de tarde —, quem me deraonvencê-la, quem me dera!De olhos cerrados, ela escutava, aconchegada numa

oltrona antiga, enquanto Sacha passeavaagarosamente pela sala dum canto para outro.

— Oh, se fosse estudar! — dizia ele. Só as pessoasultas e puras são interessantes, só elas sãoecessárias. Quanto mais gente dessa houver, maisedo chegará à Terra o reino de Deus. Com o tempo,a sua cidade não restará uma só pedra, tudo seráirado de avesso, tudo se transformará como porncanto. Aparecerão enormes e magníficos edifícios,

maravilhosos jardins, admiráveis fontes, excelentesessoas... Mas não é isso o essencial. O mais

mportante é que não haverá gentalha no sentidoctual da palavra. Este mal deixará de existir,orque cada homem terá fé e consciência daquiloara que vive, vencerá o instinto gregário. Vá,

minha boa Nadia, decida-se! Mostre a todos que est

arta desta vida estagnada, vazia, abjecta. Ao menos,mostre-o a si própria.— Não posso, Sacha. Estou para casar.

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— Deixe-se disso! Casar para quê?aíram para o jardim e deram um passeio.

— Seja lá como for, querida Nadia, mas tem o devere tomar consciência e ver até que ponto é

esonesta e imoral esta sua vida ociosa —rosseguiu Sacha. Vejamos: se você, a sua mãe evozinha não fazem nada, isso quer dizer quelguém trabalha por vós, que estais a consumiridas alheias. E não é isso sórdido, torpe?

Nadia quis responder que isso era verdade, que elompreendia, mas não pôde: as lágrimasnundaram-lhe de repente os olhos, murchou,etraiu-se e foi para o seu quarto.

À noite, chegou Andrei Andreitch e, como deostume, tocou violino durante muito tempo. Emeral, era pouco falador e, talvez gostasse de tocariolino precisamente para que isso o libertasse daecessidade de falar. Por volta das onze, quando ia

air, já com o casaco vestido, abraçou Nadia pelintura e começou a beijar-lhe avidamente o rosto,s ombros, as mãos.

— Querida, minha jóia, minha bela!... — balbuciavle. Como estou feliz! Sinto-me louco de prazer.

Nadia teve a impressão de ter já ouvido ou lido, hámuito, aquelas palavras, talvez num romance velho,

asto pelo uso, esquecido num canto qualquer.

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Na sala, sentado à mesa, Sacha tomava chá por umires pousado nas pontas dos dedos abertos. Avozinha fazia uma paciência com as cartas. Ninavanovna lia. A chama da lamparina crepitava, e

odo o ambiente era sereno e reconfortante. Nadiaeu as boas-noites, subiu para o seu quarto, deitou-e e adormeceu logo. Porém, como na noite anterior,espertou ao romper da manhã. Não tinha sono,entia-se inquieta e oprimida. Sentada com a cabeç

poiada nos joelhos, pensava no noivo, no seuasamento... Lembrou-se de que a mãe não amara oalecido marido, e estava agora sem quaisquer

meios, na mais completa dependência da sogra, avozinha. Por mais que reflectisse nisso, Nadia nãoonseguia explicar a si própria como podia ter visto,a sua mãe, algo de especial, de extraordinário, semotar que era uma mulher simples, banal e infeliz.

No andar de baixo, Sacha também não dormia: ela

uvia-o tossir. Um homem estranho, ingênuo —ensava —, os seus devaneios sobre osmaravilhosos jardins e as admiráveis fontes são umbsurdo. Contudo, aquela sua ingenuidade e até osevaneios ridículos não deixam de ter o seu lado

elo. Bastou que ela pensasse em estudar e logoxperimentou um arrepio de êxtase, e o peitoncheu-se-lhe de alegria e deleite.

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— É melhor não pensar nessas coisas, é melhor nãoensar... — murmurava. Não devo pensar nisso.Tic-toc...”, matracava o guarda ao longe. “Tic-oc...tic-toc...”

Nos meados de Junho, sentindo-se enfadado, Sachaomeçou a preparar a partida para Moscovo.— Não posso viver nessa cidade — dizia com araciturno. Nem água, nem esgotos! É um nojo comerqui: a cozinha está incrivelmente suja...

— Espera ai, filho pródígo! — insistia a avó,ochichando. No dia sete é a boda.

— Não quero esperar.— Mas querias ficar até setembro!— Antes queria, agora não. Tenho que trabalhar!Com efeito, o ambiente convidara ao trabalho: oempo estava húmido e frio, o jardim, com asrvores molhadas, tinha um aspecto sombrio eriste. Por toda a casa ouviam-se vozes de mulheres

, no quarto da avó, matraqueava uma máquina deostura: o dote da noiva era preparado a toda aressa. Só pelicas, eram seis, e a mais barata, acreditar na avó, custava trezentos rublos! Estazáfama irritava Sacha, que não saia do quarto e se

borrecia. Contudo, convenceram-no a ficar e elerometeu que não partiria antes de um de Julho.

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O tempo corria veloz. No dia de São Pedro, à tarde,Andrei Andreitch foi com Nadia à rua Moskovskaia

ara apreciar, uma vez mais, a casa alugada para oovem casal e já há tempos preparada para o receber.

ra uma moradia de dois pisos, mas, por enquanto,ó estava mobilado o de cima. O soalho do salão,om um desenho imitando tacos, reluzia: viam-seadeiras, um piano de cauda e uma estante paraautas de música. Cheirava a tinta. Pendurado

uma parede havia um quarto grande a óleo, nummoldura dourada, representando uma dama nuunto a um vaso lilás de asa partida.— Um quarto excelente — disse Andrei Andreitcom um suspiro de veneração. É de

Chichmatchevski.assaram, em seguida, para a sala de estar, ondeavia uma mesa redonda, um sofá e poltronasorradas de pano azul-vivo. Em cima do sofá, via-se

ma grande fotografia do padre Andrei com ohapéu de clérigo e ordens ao peito. Entraram naala de jantar e depois no quarto de dormir,

mergulhado na penumbra, onde estavam, uma aoé da outra, duas camas. Pelos vistos, quem

mobilara o quarto, pensara que ali se estaria sempremuito bem, e nem poderia ser de outra maneira.Andrei Andreitch mostrava a Nadia as divisões,

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braçando-a sempre pela cintura. Ela sentia-se fracaculpada, odiava todos aqueles aposentos, camas,

oltronas. A dama nua do quadro metia-lhe nojo.stava certa que deixara de amar Andrei Andreitc

u que, talvez, nunca o tivesse amado. Mas nãoabia como, a quem e para que dizê-lo, apesar de terensado nisso durante dias e noites... Ele continuavaabraçá-la pela cintura, falava-lhe com carinho e

ecato, tão feliz andando por aquela casa que era

ua, ao passo que ela via em tudo apenasulgaridade, ingênua e insuportável vulgaridade. A

mão que lhe cingia a cintura parecia-lhe dura e friomo uma argola. Apetecia-lhe fugir, romper emoluços ou atirar-se da janela abaixo. Andre

Andreitch levou-a à casa de banho, abriu umaorneira fixa à parede e correu água.

— Que te parece? — indagou ele, rindo. Mandeinstalar um grande tanque no sótão, e assim temos

gua em casa.Atravessaram o pátio, chegaram à rua e tomaramma carruagem. A poeira volteava no ar em nuvensspessas, e parecia que de um momento para outro começaria a chover.

— Não tens frio? — perguntou Andrei Andreitch,echando os olhos por causa da poeira.la não respondeu.

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— Ontem Sacha — lembras-te? — censurou-me poru não fazer nada, disse Andrei Andreitch, apósma pausa. Bom, ele tem razão. Carradas da razão!

Não faço nada, nem posso fazer nada. Porquê,

uerida? Porque repugna a idéia de, um dia, vestirma farda e ir para o serviço? Porque me basta verm advogado ou um professor de latim ou um

membro da administração para sentir mal-estar? AiRússia minha, quantos homens inúteis e ociosos

inda suportas no teu seio! Quantos homens comou aumentam os teus sofrimentos!

Apresentava a ociosidade dele como um fenômenoeneralizado, um sinal dos tempos.

— Depois do casamento vamos para a aldeia,rabalharemos lá! — prosseguiu Andrei Andreitch.

Compraremos uma nesga de terra com pomar e rio eamos trabalhar, observar a vida. Será maravilhoso!irou o chapéu e os cabelos ondularam-lhe ao vento.

la escutava-o, dizendo para si: “Céus! Quandocabará isto? “ Já quase a chegar, ultrapassaram oadre Andrei.

— Ai vem o meu pai! — alegrou-se AndreAndreitch, acenando-lhe com o chapéu. Quero-lhe

— disse, enquanto pagava ao cocheiro. Um velho àsireitas.

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Nadia entrou em casa aborrecida, mal disposta,ensando que, toda a noite, teria que tolerar osonvidados, entretê-los, sorrir, escutar o violino eoda a espécie de asneiras, e ouvir falar apenas do

asamento. A avó, imponente e majestosa no seuestido de seda, com aquele ar altivo que assumiempre que recebia visitas, estava sentada diante doamovar. O padre Andrei entrou, com o sorrisostuto de sempre.

— Tenho o prazer e a feliz consolação de a encontrare boa saúde — disse à avó, num tom que não davaara entender se falava a sério ou estava a brincar.

O vento assobiava, nas janelas e no telhado, earecia que um duende rugia na chaminé, entoandoma plangente e melancólica canção. Passava da

meia-noite. Já se haviam deitado todos, masinguém dormia. Nadia tinha a impressão de queo andar de baixo, tocavam violino. Ouviu-se uma

orte pancada — o vento devia ter arrancado umortada. Passado um minuto, entrou Nina Ivanovnam camisa de noite e uma vela na mão.

— Que foi aquilo, Nadia? — perguntou.De cabelos entrançados e um sorriso tímido, a mãe

arecia naquela noite de temporal mais velha, maiseia e pequena. Nadia lembrou-se que ainda houco considerava a mãe uma mulher invulgar, e

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scutava com orgulho o que ela dizia. Agora,orém, não conseguia recordar as palavras dela, e

udo o que lhe vinha à memória não passava derases frouxas e inúteis.

Na chaminé parecia cantar com vozes de baixo, e atée distinguia: “Ó-o, meu De-eus!” Nadia sentou-sea cama e, de súbito, agarrou com força os cabelos eesatou a chorar.

— Mãe, querida, se soubesses o que se passa

omigo! Peço-te, rogo-te, deixa-me partir! Rogo-te!— Para onde? — indagou Nina Ivanovna semompreender, sentando-se na cama. Partir parande?

Nadia chorou um bom bocado, incapaz de articularalavra.

— Deixa-me partir daqui! — pronunciou por fim.Não pode haver, não haverá casamento nenhum.Não gosto daquele homem...Detesto até o falar dele.

— Não, minha filha, não — disse rapidamente Ninvanovna, muito assustada. Acalma-te, é que tensndado mal-humorada. Isso há-de passar. São coisasue acontecem. Deves ter tido qualqueresentendimento com Andrei Andreitch, mas isso

ão arrufos de namorados.— Deixa-me, deixa-me, mãe — voltou a soluçarNadia.

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— Sim — disse Nina Ivanovna, após um silêncio.Ainda há pouco eras uma criança, uma menina, egora és noiva. Na natureza tudo se sucede, tudo seeproduz. Assim sem dares por nada, também se

ornarás mãe, vais ficar velha e terás uma filholuntariosa como a minha.— Mãe, querida, és boa, inteligente, mas infeliz —

isse Nadia —, muito infeliz. Então, para que dizesrivialidades? Para quê?

Nina Ivanovna queria dizer mais alguma coisa, masão conseguiu, retirou-se soluçando. Saídas dahaminé ouviram-se outra vez assustadoras vozese baixo. Assustada. Nadia saltou da cama e correuara o quarto da mãe. Nina Ivanovna, com a car

molhada de lágrimas, estava deitada, com um livroas mãos e coberta com uma manta azul.

— Tenho uma coisa a dizer-te, mãe — pronunciouNadia. Suplico-te que reflictas bem nisso e me tentes

ompreender. Quero que percebas até que ponto émesquinha e vexatória a nossa vida. Sabes, abriram-e-me os olhos, agora vejo tudo. Como é esse Andre

Andreitch? Um homem falho de inteligência! Oh,meu Deus! Sim, mãe, ele é tão estúpido!

Nina Ivanovna sentou-se bruscamente na cama.— Tu e a tua avó atormentam-me! — disse com umoluço. Quero viver! Viver! — exclamou dando

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murros no peito. Quero ser livre. Ainda sou jovem,uero viver, e vós fazeis de mim uma velha!

Chorando amargamente, deitou-se e enrolou-se sobcobertor. Parecia agora tão pequena, tolinha, digna

e lástima. Nadia voltou para o quarto dela, vestiu-e e, sentada à janela, pôs-se a esperar o amanhecer.assou assim toda a noite a pensar, enquanto lá foralguém batia na portada e silvava, sem parar.

Na manhã seguinte, a avó queixou-se de que o

ento tinha atirado ao chão todas as maças euebrado uma velha ameixeira. O dia estavainzento, desolador e tão sombrio que era caso paracender as luzes. Toda a gente se queixava do frio, ahuva tamborilava nas janelas. Depois do chá,

Nadia foi ter com Sacha. Sem dizer nada, ajoelho-seo canto ao pé da poltrona e tapou o rosto com as

mãos.— O que tem? — perguntou Sacha.

— É insuportável... — respondeu ela. — Como pudeu viver aqui até hoje? Não percebo. Detesto o meuoivo, detesto-me a mim própria, detesto toda estaida ociosa e fútil.

— Ora, ora... — pronunciou Sacha, ainda sem

ompreender o que se passava. Isso nãoé nada. É atéom.

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— Estou farta desta vida — prosseguiu Nadia. Nãogüento aqui nem mais um dia. Parto amanhã

mesmo. Leve-me daqui por amor de Deus!Durante um minuto Sacha contemplou-a com

ssombro: por fim, compreendeu e deu largas ao seuegozijo infantil. Levantou os braços e pôs-se aapatear, dançando de alegria.

— Óptimo! — exclamava ele, esfregando as mãos.— Magnifico!

la fitava-o sem pestanejar com os seus olhosrandes, apaixonados, como enfeitiçada, esperandoue ele lhe dissesse, naquele preciso instante, algoe significativo, algo de extrema importância. Eleão disse nada, mas a Nadia parecia que se abriamerante ela novos e vastos horizontes que antesesconhecera. Olhava para Sacha cheia desperanças e disposta a tudo, mesmo a morrer seosse preciso.

— Amanhã parto — disse ele, depois de reflectir ummomento —, a Nadia acompanha-me à estação.evo as suas coisas na minha mala, pago-lhe aassagem e, ao terceiro sinal, entra no vagão eronto, vamos embora. Acompanha-me até

Moscovo e, depois, vai sozinha para Petersburgo.em os documentos em ordem?

— Tenho, sim.

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— Juro que não vai lamentar nem se arrependerá —isse Sacha, entusiasmado. Sairá daqui, irá estudar;resto, é com o destino. Logo que der um novo

umo à vida, tudo mudará. O essencial é uma

essoa dar um novo rumo à vida, o resto nãomporta. Então, partimos amanhã, não é assim?— Sim! Leve-me, por amor de Deus!Nadia tinha a impressão de estar perturbada e

eprimida como nunca, julgava que, até ao

momento da partida, teria que suportar o tormentoe penosas hesitações, mas quando subiu para ouarto e se deitou, adormeceu logo e dormiu a sonoolto até à tarde, com a cara molhada de lágrimas em sorriso nos lábios.

Mandaram buscar uma carruagem. Nadia já dehapéu e sobretudo, foi ao andar de cima dar altima olhadela àquilo que lhe era tão familiar.

Deixou-se ficar algum tempo no seu quarto ao lado

a cama ainda quente, olhando demoradamente áolta; depois, devagarinho, passou ao quarto damãe. Ali tudo estava silencioso, Nina Ivanovna

ormia. Nadia beijou-a, ajeitou-lhe o cabelo e ficou alhá-la uns dois minutos... Depois desceu sem

ressa.á fora chovia a cântaros. A carruagem, com aapota levantada, aguardava diante do portão.

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— Não cabem os dois, Nadia — disse a avó, quandos criados começaram a arrumar asmalas. Que teeu para acompanhá-lo com um tempo destes! É

melhor que fiques em casa. Olha como chove!

Nadia quis dizer qualquer coisa, mas não pôde.acha ajudou-a a subir para a carruagem e cobriu-he os pés com uma manta. Feito isso, sentou-se aoado dela.

— Boa viagem! Deus te acompanhe! — gritou a avó

a porta. Escreve de Moscovo, Sacha!— Está bem. Adeus, avozinha!— Que a Virgem Santíssima te guarde!— Raio de tempo! — disse Sacha.

ó agora Nadia começou a chorar. Estava agorerta de que partiria, se bem que, ainda há pouco, aoespedir-se da avó e ao dar um beijo à mãe, nãocreditasse nisso. Adeus cidade! Num instanteecordou tudo: Andrei Andreitch, o pai deste, a casa

lugada, a dama nua junto ao vaso. Tudo aquilo jáão a assustava nem a oprimia, e até se lhefigurava ingênuo, mesquinho e cada vez maisemoto. Quando ela e Sacha ocuparam os seusugares no vagão e o comboio se pôs em

movimento, o passado, tão longo e tão grave,ontraiu-se para ficar reduzido a uma bagatela,nquanto o futuro, até então pouco visível, se abria,

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norme e vasto. A chuva batia nas janelas dosagões: lá fora, via-se apenas o descampado verde,ostes telegráficos ficando rapidamente para trás eássaros pousados nos fios. De súbito, Nadia sentiu

ue a alegria lhe cortava a respiração: lembrou-se deue ia ao encontro da liberdade, ia estudar, o quera o mesmo que receber carta de alforria. Ria,horava e rezava ao mesmo tempo.

— Isto vai bem! — dizia Sacha, a sorrir.

assou o Outono, depois o Inverno. Nadia tinha jámuitas saudades da família e todos os dias pensava

a mãe, na avó, e também em Sacha. As cartas queecebia de casa eram meigas e benévolas; pareciaue tudo estava já perdoado e esquecido. Em Maio,epois dos exames, bem disposta e alegre, partiuara casa. Na passagem, deteve-se em Moscovo,ara ver Sacha. Encontrou-o de aspecto como noerão passado: barbudo, cabelos soltos, o mesmo

asaco e calças de cotim e os mesmos olhos grandesbelos. Mas tinha um ar doentio, cansado; pareciamais velho, mais magro e tossia amiúde. Por umaazão qualquer, Nadia achou-o insípido erovinciano.

— Céus, Nadia aqui! Minha querida Nadia! —xclamou ele, rindo de alegria.

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Durante algum tempo, conversaram na litografiande pairava um cheiro forte, sufocante, a tabaco e antas; depois, foram para o quarto dele, sujo e

mpregnado de fumo de cigarros. Na mesa, ao lado

o samovar frio, estava um prato partido com umedaço de papel. Na mesa e no soalho, viam-semuitas moscas mortas. Tudo indicava que Sacha nãouidava da habitação, vivia ao Deus-dará,esprezando por completo as comodidades e se lhe

alassem da sua felicidade pessoal, da sua vidarivada, do amor, não compreendia nada e punha-e a rir.

— Sabe, tudo correu bem — contava Nadiapressadamente. No Outono, a mãe foi ver-meetersburgo. Disse que a avó não estava zangada,

mas que entra no meu quarto e faz o sinal da cruzirada para a paredes.acha estava com ar jovial, porém, tossia e falav

om voz rouca. Nadia observava-o com atenção,em perceber se ele estava de facto gravementeoente ou era apenas imaginação sua.

— Sacha, querido, vejo que esta doente, muitooente!

— Não é nada. Só um pouco achacado...— Oh, meu Deus — alvoroçou-se Nadia. Porque

ão se trata, porque não cuida da sua saúde? Meu

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aro, querido Sacha — disse ela, e as lágrimasieram-lhe aos olhos. Sem saber porquê, viu

mentalmente Andrei Andreitch, a dama nua juntoo vaso, todo o seu passado, agora tão longínquo

omo a infância. Chorava porque Sacha não se lhefigurava tão original, inteligente e interessanteomo o ano passado.

— Querido Sacha, está muito, muito doente. Comoostava que estivesse menos pálido e menos magro.

Devo-lhe tanto! Não imagina quanto fez por mim,meu caro Sacha. No fundo, agora é a pessoa mais

róxima de mim.Conversaram algum tempo. Depois do Inverno

assado em Petersburgo, Sacha, as suas palavras, oeu sorriso e toda a sua figura evocavam a Nadialgo fora de moda, antiquado, arcáico, talvez até

morto.— Depois de amanhã vou para o Volga e dali para o

ul — disse Sacha. Penso curar-me com kumis (leitee égua). Vou com um amigo que leva a mulher. Elauma pessoa admirável. Ando a convencê-la para

ue estude. Quero que ela dê um novo rumo à vida.oram ambas à estação e, no bufete, Sacha pediu chá

maçãs. Quando o comboio se pôs em movimento,le agitou o lenço em sinal de despedida, e mesmo

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elos seus pés se notava que estava gravementeoente e não duraria muito.

Nadia chegou à sua cidade ao meio-dia. O caminhoa estação para casa deixou-lhe a impressão de que

s ruas eram muito largas e as casas pequenas echatadas. Não havia gente nas ruas; cruzaram-sepenas com um afinador de pianos, um alemão deobretudo cor de cenoura. Dir-se-ia que todas asasas estavam cobertas de poeira. A avó, velha de

odo, gorda e feia como antes, abraçou Nadia ehorou muito, incapaz de afastar o rosto encostadoo ombro dela. Nina Ivanovna também estavaisivelmente mais velha e mais feia, como quencolhida, mas continuava com a cintura fina e anéisom brilhantes nos dedos.

— Minha querida! — exclamava ela, tremendo toda.— Minha querida!As três ficaram algum tempo chorando em silêncio.

Notava-se que tanto a avó como a mãe sentiam quepassado estava perdido para sempre,rremediavelmente; já não gozavam a consideraçãoe antes, não tinham a mesma posição social nem oireito a receber visitas. O mesmo se sente quando

ma casa, em que se levava uma vida fácil eespreocupada, é invadida de noite por policiaisue revistam tudo, descobrindo-se então que o dono

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avia desviado fundos ou falsificado dinheiro, eronto — adeus vida fácil e despreocupada!

Nadia subiu ao andar de cima e viu a mesma cama,s mesmas janelas com simples cortinas brancas, lá

ora o mesmo jardim inundado de luz, alegre eussurrante. Passou a mão pelo tampo da sua mesa,entou-se e ficou pensativa. Havia almoçado bem eomado chá com natas, gordas e saborosas, masentia falta de qualquer coisa; os quartos pareciam-

he vazios e os tectos muito baixos. Quando, à noite,e deitou, metendo-se por baixo do cobertor,areceu-lhe estranhamente engraçado estar naquelaama quente e muito fofa.

Nina Ivanovna entrou e sentou-se com timidez eautela, como se se sentisse culpada de algumoisa.

— Então, Nadia, estás satisfeita? — perguntou, apósm silêncio. Muito satisfeita?

— Sim, mãe.Nina Ivanovna levantou-se e benzeu Nadia.— Tornei-me religiosa, como vês — disse ela. —

abes, dedico-me à filosofia, passo o tempoensar. Agora vejo claro muitas coisas. Creio que o

ssencial é que toda a vida passe como através dem prisma.

— Como vai a saúde da avó?

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— Menos mal. Quando leu o telegrama que enviasteepois de partires com Sacha, desmaiou e ficou trêsias de cama sem se mexer. Passou muito tempo ahorar e a dizer orações, mas já se restabeleceu.

Nina Ivanovna deu alguns passos pelo quarto.Tic-toc...”, matracava o guarda. “Tic-toc, tic-toc...”— O essencial é que a vida passe como que por um

risma — repetiu Nina Ivanovna. Por outrasalavras, a consciência deve decompor a vida em

lementos básicos, assim como um prismaecompõe a luz em sete cores, e cada elemento deveer estudado separadamente.

Nadia não soube que disse mais Nina Ivanovna,em quando saiu, pois adormeceu logo.assou Maio, entrou Junho. Nadia habituara-seovamente à casa. A avó lidava com o samovar,uspirando fundo. Nina Ivanovna expunha, à noite,

sua filosofia. Vivia ali como uma comensal, e

empre que precisava de dinheiro, pouco que fosse,ia-se obrigada a pedir à avó. A casa estava cheia demoscas, e os tectos pareciam cada vez mais baixos.A avó e Nina Ivanovna quase nunca saíam, temendoruzar-se com o padre Andrei ou Andrei Andreitch.

Nadia passeava pelo jardim, pelas ruas, observavas casas, os tapumes cinzentos, com a impressão deue tudo na cidade envelhecera, caducara,

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sperando apenas o fim ou, pelo contrário, orincipio de algo novo, diferente. Como ansiava porssa vida nova, pura, uma vida que permitisse olharberta e diretamente o rosto do destino, ter a certez

e estar no seu direito, mostrar-se alegre e gozar aberdade! E essa vida havia de chegar, tarde ouedo! Chegaria o tempo em que a casa da avó, ondeuatro criadas viviam comprimidas num quartinho

mundo da cave, desapareceria sem deixar rasto, e

inguém mais se lembraria dela. Nadia distraía-sepenas com os miúdos da vizinhança: enquanto elaasseava pelo jardim, eles batiam na cerca e

roçavam entre gargalhadas: “A noiva! A noiva”!acha escreveu-lhe de Saratov. Com a sua letrgeira e saltitante, dizia-lhes que a viagem pelo

Volga correra bem, mas que em Saratov se sentirm pouco mal, perdera a voz e há duas semanasue estava no hospital. Nadia, dominada por um

ressentimento ou, antes, por uma triste certeza,ompreendeu o que aquilo significava.Desagradava-lhe o facto desse pressentimento e amagem de Sacha não a comoverem como antes.

Desejava apenas e ardentemente viver, regressar

etersburgo, e a amizade com Sacha parecia-lhe jertencer ao enternecedor mas longínquo passado.

Não dormiu toda a noite e, de manhã, sentou-se

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anela, esperando. Em baixo ouviu rumores, a avónterrogou alguém à pressa com voz perturbada ,epois um choro... Quando Nadia desceu, a avóezava num canto, com a cara molhada de lágrimas.

obre a mesa estava um telegrama.Nadia andou muito tempo pela sala dum canto parautro, ouvindo a avó chorar. Depois pegou noelegrama e leu-o. Dizia que, na manhã do dianterior, falecera em Saratov, tuberculoso,

Aleksandr Timofeitch ou simplesmente, Sacha.A avó e Nina Ivanovna foram à igreja tratar damissa. Pensativa, Nadia continuou a andar pelasa. Tinha plena consciência de que a sua vidomara um novo rumo, como Sacha queria, que emasa estava só, estava a mais, como uma estranha, eue nada a prendia ai. Rompera já com o passado,ue ardeu, e as cinzas levou-as o vento. Entrou nouarto de Sacha e deixou-se ficar ai algum tempo.

Adeus, querido Sacha!”— pensou. Entretanto,mentalmente via abrir-se diante de si uma vidaova, ampla extensa, e essa vida, ainda indistinta,heia de mistérios, atraia-a e chamava por ela.ubiu ao andar de cima e começou a arrumar as

uas coisas. Na manhã seguinte, depois de seespedir dos familiares, bem disposta e alegre,artiu da cidade. Supunha que para sempre.

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O caçadorUm meio-dia quente e sufocante. No céu, nem uma

nica nuvem... As ervas, queimadas pelo sol,presentam um aspecto triste e desolado: já não

ecuperarão mais o seu viço, mesmo que chova... Aoresta queda-se muda, imóvel, parecendo que asopas das árvores observam qualquer coisa ao longeesperam.ela orla do bosque caminha, preguiçoso e gingão,

m homem de uns quarenta anos, alto, de ombrosstreitos, camisa vermelha, botas altas e calçaserdadas do patrão, já cobertasde remendos.

Arrasta-se ao longo da estrada. À direita, verdeja amoita; à esquerda, ocupando todo o espaço até ao

orizonte, estende-se um mar dourado de centeiomaduro... O homem está vermelho e transpira. Naua cabeça bonita, de cabelos louros, leva um bonéosto à banda, branco e de pala direita, de jóquei,

rovavelmente oferecido por algum jovem ricaçoum arroubo de generosidade. Ao ombro leva umornal, com um tetraz aí metido às três pancadas.

Nas mãos, uma espingarda de dois canos,ngatilhada, e não desprende o olhar do velho e

scanzelado cão que corre às frente, farejandorbustos. Em volta, apenas o silêncio... Todos oseres vivos fugiram do calor para os esconderijos.

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— Egor Vlassitch — ouve subitamente pronunciar,m voz baixa.obressaltado, olha à roda e fica de cenho carregado.em diante de si, como que caída do céu, um

amponesa dos seus trinta anos, de tez pálida e comma foice na mão, que lhe procura ver o rosto eorri timidamente.

— Ah, es tu, Pelagueia! — diz o caçador, detendo-sedesengatilhando a arma. Hum!... O que andas a

azer por aqui?— Estou aqui a ceifar com as da nossa aldeia...Andamos à jorna.— Pois é... — resmunga Egor, e põe-se de novo andar com lentidão.elagueia segue-o. Dão, em silêncio, uns vinteassos.

— Há já muito que não o vejo, Egor Vlassitch... —iz Pelagueia, acompanhando com um olhar

fetuoso os movimentos dos ombros e das costas doomem. Desde aquele dia, na Semana Santa, que fonossa casa pedir um copo de água, nunca mais lheusemos os olhos em cima Entrou só e saiu, e aindassim... muito borracho... Armou uma bulha, deu-

me uma sova e foi-se embora... E eu que o espereanto, a olhar a todo o instante para a janela, a ver se

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parecia... Ai, Egor Vlassitch, Egor Vlassitch! Porue não quer dar um salto a casa?

—Para fazer o quê?— Nada, é claro, mas aquilo sempre é propriedade

ua... Podia dar uma olhadela, ver como é quendam as coisas. O dono é você... Ena! Matou umetraz! Por que não se senta e descansa um bocado?

Ao dizer isto, Pelagueia ri, feita uma parva,rguendo os olhos para o rosto de Egor Vlassitch. A

ua cara respira felicidade.— Pois bem, descansemos... — anuiu o caçador emom indiferente e escolhendo um lugar entre doisbetos. Por que estás aí de pé? Senta-te também.elagueia senta-se um pouco afastada ao sol, e,nvergonhada da sua alegria, tapa com a mão a bocaorridente.

— Se ao menos passasse um dia pela casa — diz emoz baixa.

—Para quê? — Egor suspira, descobrindo-se empando a testa vermelha a uma manga.— Não há necessidade. Se fico uma hora ou duas, é

erder tempo e desarranjar-te, e quanto a fixar-meara sempre na aldeia, isso é-me insuportável. Sabes

ue sou um homem mimado. Quero ter cama, bomhá, trato delicado e tudo o mais, e lá na tua aldeió há miséria, imundície... Não agüento ali nem um

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ó dia. Se me obrigassem, pela força, a viver contigo,u pegava fogo à casa ou suicidava-me. Sou assime pequeno, buliçoso. Não tem cura.

— E onde é que mora agora?

— Em casa do patrão, Dmitri Ivanitch, comoaçador. Levo caça para a cozinha dele... Mas é antesor prazer que me mantém.

— Não é séria a sua ocupação, Egor Vlassitch... Pars outros, é um divertimento, para ti, é como um

fício... um verdadeiro emprego...— Não compreendes nada, pateta — diz Egor,

xando no céu um olhar sonhador. Nuncompreendeste e nunca compreenderás que espéciee homem sou eu... Na tua opinião, sou umstroina, um desatinado, mas, para quem sabe, sou o

maior atirador de todo o concelho. Os senhores queme conhecem sentem-no, e até referiram o meu

ome numa revista. Não há quem se compare

omigo na arte da caça... Se não aceito a vossa labute campo, não é por leviandade, nem por orgulho.abes, desde criança que não conheço outra coislém da espingarda e dos cães. Se me tiravam aspingarda, pegava na cana de pesca, se me tiravam

cana, servia-me das mãos. Quando tinha “massa”,ambém me metia em negócios de cavalos, corria aseiras. Sabes, o camponês que se dedicar ao ofício de

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açador ou se ocupar de cavalos já não pega mais norado. Se um homem ganhou o gosto pela liberdade,

á ninguém lho tira. Assim como o senhor quenvereda pela carreira de ator ou artista, sei lá,

unca mais será funcionário ou rendeiro. E tu, ques uma pacóvia, não tens cabeça para compreenderstas coisas.

— Eu compreendo, Egor Vlassitch.— Se compreendesses, não estavas agora quase

horar.— Não, não choro — retorquiu Pelagueia, voltando

cabeça. Mas assim não dá, Egor Vlassitch. Secasses comigo pelo menos um dia... Há já dozenos que nos casamos e ainda nem uma só vezemos amor... Não, não, estou a chorar.

— Qual amor! — resmunga Egor, coçando umamão. Não pode haver amor nenhum entre nós.

omos um casal só no papel, mas corresponde isso à

ealidade? Tu achas-me um selvagem, e eu acho-tema simplória sem entendimentos. Como podemosar-nos? Sou um homem livre, mimado, folgazão, e

u és uma jornaleira, uma campônia, vives na lama,rabalhas de sol a sol. Considero-me um caçador

em igual, e tu lastima-me... Diz-me, que raio deasal é o nosso?

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— Mas sempre estamos unidos pelo casamento!... —ontrapõe Pelagueia num soluço.

— Não por nossa vontade... Ou já te esqueceste? Aulpa foi tua e do conde Serguei Pavlovitch. O

onde, que tinha inveja de não saber atirar tão bemomo eu, andou um mês a encher-me de vinho, e am bêbado é fácil casá-lo, ou até convertê-lo a outr

é. Pois então desforrou-se, casando-me contigo...Um caçador com uma ordenhadora! Ora, se vias

erfeitamente que eu estava bêbado, por que não tepuseste? Não és servanenhuma, ninguém te podiaorçar! É claro que, para uma ordenhadora, casarom um caçador é a sorte grande, mas também, éreciso pôr a cabeça a trabalhar. Agora estás aqui aofrer as conseqüências, a verter lágrimas. O condei-se e tu choras, martirizaste...ilêncio. Três patos bravos aparecem e sobrevoam a

moita. Egor segue-os com o olhar até que eles se

ransformam em três pontos quase invisíveis eousam muito para além da floresta.— De que vives?—pergunta ele, passando os olhos

os patos para Pelagueia.— Agora, ando à jorna, no inverno costumo ir ao

rfanato buscar um bebê e criá-lo em casa a biberão.agam um rublo e meio por mês.

—Pois...

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Outra pausa. Do campo de centeio chegam sonsuma canção, que logo se interrompe. O calor nãoeixa cantar.

— Ouvi dizer que construiu para Akulina uma casa

ova —diz Pelagueia.gor não responde.— Sendo assim, gosta dela...— Bom, é assim a tua sina! Paciência, órfã — diz oaçador, espreguiçando-se. Pronto, já me demoraste

muito na cavaqueira. Antes que anoiteça, tenho questar em Boltovo...gor ergue-se, espreguiça-se e põe a arma ao ombro.elagueia levanta-se também.

— Quando passa então pela aldeia? — perguntaixinho.

— Para quê? Se não estiver com pinga, nunca lá vou,bêbado em nada te serei útil. A bebida torna-me

aivoso. Adeus!

— Adeus, Egor Vlassitch...gor enfia o boné na cabeça e, assobiando ao cão,õe-se novamente a caminho. Pelagueia fica no

mesmo sítio, a observá-lo pelas costas. Enquantoontempla os ombros e o pescoço forte de Egor, que

e afasta num passo preguiçoso e lasso, os seuslhos irradiam tristeza e carinho. O seu olharcaricia, afaga toda a figura do marido, alto e

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magro. Ele parece sentir esse olhar, pois detém-se eolta a cabeça... Embora continue calado, vê-se pelaua cara e ombros alteados que quer dizer algumoisa. Pelagueia aproxima-se timidamente e fita-o

om um olhar implorador.— Toma! — diz Egor, sem olhar para ela estendendo uma nota de um rublo, muito usada. E,fasta-se a passo rápido.

— Adeus, Egor Vlassitch! —diz ela, aceitando

maquinalmente a nota. Ele vai caminhando pelastrada comprida e reta como um cinturão. Pálida emóvel como um monumento, Pelagueiacompanha com o olhar os passos dele. Por fim, oermelho da camisa de Egor acaba por fundir-seom o cinzento das calças, os passos tornam-semperceptíveis e é já impossível distinguir o cão dasotas. Vê-se apenas o boné. De repente, Egor voltaireita, mete pela moita dentro e o boné desaparece

ntre a verdura.— Adeus, Egor Vlassitch! — murmura Pelagueia,ondo-se nos bicos dos pés e procurando avistar,inda uma vez mais, o boné branco.

O monge negroAndrey Vasilievich Kovrin, Magister, esgotara-se arabalhar e tinha os nervos desarranjados. Não

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zera qualquer esforço para se tratar comegularidade; só uma vez, por acaso, enquanto bebiama garrafa de vinho, conversara com um amigo

médico que o aconselhara a ir para o campo durante

Primavera e o Verão. Entretanto, recebeu umarta de Tania Pesotzky, convidando-o a passar umemporada em casa do pai dela, em Borisovka. Eesolveu partir.

Mas, primeiro (estava-se em Abril), dirigiu-se às

uas propriedades, em Kovrinka, onde nascera, e alicou três semanas sozinho; só quando veio o bom

empo é que encetou a viagem para casa do seuntigo tutor e segundo primo, Pesotzky, célebreorticultor russo. De Kovrinka a Borisovka, aistância era de umas setenta verstas e, naonfortável caleche, por aquele tempo primaveril, aornada prometia ser agradável.A casa de Borisovka era grande, tendo na frontaria

ma fila de colunas adornadas comestátuas deeões, cujo gesso estava a cair aos pedaços. À portancontrava-se um criado de libré. O parque antigo,ristonho e severo, desenhado à inglesa, com umersta de comprido, estendia-se da casa até ao rio, e

erminava ali numa margem argilosa e alcantilada,oberta de pinheiros, cujas raízes descarnadasembravam garras aduncas. Lá em baixo cintilava o

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io deserto; no céu, as narcejas voavam em círculos,oltando pios melancólicos. Numa palavra, tudoonvidava o visitante a sentar-se e a escrever umalada. Porém os jardins e os pomares que,

untamente com a horta, ocupavam uma extensão deitenta hectares, inspiravam sentimentos totalmenteiversos. Mesmo sob o mau tempo eram risonhos e

nspiravam alegria. Kovrin nunca vira tão belasosas, tantos lírios e camélias, túlipas tão raras, uma

nfinidade de flores de toda a espécie e dos maisariados tons, desde o branco puro ao negro dauligem. Uma riqueza floral que constituía umaovidade para Kovrin. Estava-se apenas no início darimavera e as maiores raridades encontravam-seinda abrigadas por vidros. No entanto muitasoriam já nas alamedas e nos canteiros, a ponto deonstituírem um reino de delicados coloridos. Eudo isto era ainda mais belo às primeiras horas da

manhã, quando as gotas de orvalho cintilavam sobres folhas e corolas.Na infância, a parte decorativa do jardim,lassificada com desprezo por Pesotzky comoinútil», produzira em Kovrin uma impressão

abulosa. Que milagres da arte, quemonstruosidades estudadas, que escárnios da

atureza! Espaldares feitos com árvores de fruto,

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ma pereira em pirâmide, do feitio dum choupo,arvalhos e tílias arredondados, casas formadas por

macieiras, arcos, monogramas, candelabros, atémesmo a data de 1862 feita em ameixieiras, para

omemorar o ano em que Pesotzky começara aedicar-se à jardinagem. Havia ali árvoresmponentes e simétricas, de troncos erectos como osas palmeiras, mas que eram, afinal, groselhas.orém o que mais animava o jardim, emprestando-

he um tom festivo, era o movimento constante dosardineiros de Pesotzky. Desde a madrugada atéltas horas, junto das árvores, dos arbustos, naslamedas, sobre os canteiros, afadigavam-se osomens, quais abelhas diligentes, com os carrinhose mão, as enxadas e os regadores.

Kovrin chegou a Borisovka às nove da noite, indoncontrar Tania e o pai num grande susto. A noitelara e cheia de estrelas fazia prever geada, e o chefe

os jardineiros, YvanKarlich, fora à cidade, nãoavendo portanto ninguém em quem se pudesseonfiar. À ceia só se falou na ameaça da geada ecou decidido que Tania não iria deitar-se a fim de

nspeccionar os jardins à uma hora, para ver se

stava tudo em ordem, ao passo que Yegoremionovich se levantaria às três horas, ou antesinda.

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Kovrin ficou junto de Tania todo o serão e depois dameia-noite acompanhou-a ao jardim. Pairava já nor um forte cheiro a queimado. No pomar grande,hamado o «pomar comercial», que todos os anos

endia a Yegor Semionovich milhares de rublos,dejava, junto ao chão uma espessa nuvem de fumocre que iria envolver as folhas novas e salvar aslantas. As árvores estavam dispostas em linha rectaomo filas de soldados; e esta regularidade

studada, bem como a altura uniforme das casas,ornava o jardim monótono e até enfadonho. Kovri

Tania caminhavam ao longo das alamedas,bservando as fogueiras de esterco, palha e lixo;

mas era raro avistarem os trabalhadores, quendavam pelo meio do fumo como sombras. Só asmeixieiras e algumas raras macieiras estavam já emor, mas todo o jardim se encontrava envolvidoelo fumo e só quando chegaram aos alfobres é que

Kovrin conseguiu respirar.— Lembro-me de que, em pequeno, o fumo fazia-me espirrar — declarou ele, encolhendo os ombros.— Mas até hoje ainda não consegui descobrir como

que ele salva as plantas da geada.

— O fumo é um bom substituto quando não huvens — respondeu Tania.

— Mas para que querem vocês as nuvens?

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— Com o tempo enevoado não há geada pelmanhã.— Ah, sim? — exclamou Kovrin.Riu-se e pegou na mão de Tania. A cara da rapariga,

muito séria e apreensiva; as suas sobrancelhasegras e espessas; a gola direita do casaco que ampedia de mover livremente o pescoço; a saiarregaçada por causa do gelo; toda a sua figursbelta e aprumada lhe agradava.

Santo Deus! Como ela cresceu!» — disse consigo.declarou em voz alta:

— A última vez que aqui estive eras ainda umariança. Magra, de pernas compridas, descuidada,e saias curtas, e eu costumava arreliar-te. Que

mudança nestes cinco anos!— Sim, cinco anos! — suspirou Tania. Muitas coisasmudaram desde então. Diz-me sinceramente,Andrey — pediu ela, fitando-o, prazenteira -, achas

ue perdeste o à-vontade connosco? Mas para queergunto eu isto? És um homem, tens uma vidheiade interesses, possuis... É natural que te sintasstranho. Mas, seja ou não assim, Andriusha, queroue nos consideres como tua família. Temos esse

ireito.— Mas é assim que vos considero, Tania!— Palavra de honra?

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— Palavra de honra!— Admiras-te de termos cá tantos retratos teus. Mas

em sabes como o meu pai te adora,como te quer. Ésm sábio e não um homem vulgar; tens feito uma

arreira brilhante e está firmemente convencido deue isso se deve ao facto de haveres sido educadoor ele. Cá por mim não lhe tiro as ilusões.

Deixemo-lo acreditar!ra já madrugada. O céu clareava. A folhagem e as

uvens de fumo começavam a ver-se maisistintamente. O rouxinol cantava e, nos campos,uvia-se o grito dos esquilos.

— São horas de irmos para a cama; e está a ficar frio!— exclamou Tania. Pegou na mão de Kovrin: —Obrigada por teres vindo, Andriusha. Nós temos

ma praga de amigos enfadonhos e, mesmo esses,ão são muitos. Aqui reina a jardinagem,

ardinagem e nada mais. Troncos, madeiras — ria ao

izer isto -, pêros, maçãs reinetas, florescimento,oda, limpeza. enxertos... Toda a nossa vida gira emolta dos pomares, não sonhamos com outra coisaue não sejam maçãs e pêras. Claro que tudo isto é

muito bom e muito útil, mas às vezes não posso

mpedir-me de suspirar por uma mudança. Lembro-me de quando vinhas visitar-nos ou passar aqui asérias; toda a casa se me afigurava mais alegre e

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nimada, como se alguém houvesse retirado asoberturas à mobília. Era então uma rapariguita,

mas já compreendia...ania falou durante algum tempo animadamente.

Nesta altura veio à ideia de Kovrin que, durante oVerão, podia suceder-lhe ficar preso a estriaturinha frágil, miúda e faladora, que podiaeixar-se atrair, apaixonar-se... naquelas condiçõesue havia de mais natural? Esse pensamento

gradou-lhe, divertiu-o e, enquanto se curvava pararostozinho amável e perturbado, cantarolou o

erso de Pushkine:Onegin, não posso esconderQue amo Tania a valer...Quando chegaram a casa, já Yegor Semionovicstava levantado. Kovrin não sentia vontade deormir; pôs-se a conversar com o velhote e voltouom ele para o jardim. Yegor Semionovich era alto,

argo de ombros e forte. Sofria de falta de ar, masaminhava tão apressadamente, que se tornavaifícil acompanhá-lo. A sua expressão era semprereocupada, irrequieta, e parecia imaginar que tudoe perderia se chegasse um segundo atrasado.

— Olha, irmão, resolve lá tu este mistério! —omeçou ele, parando para tomar fôlego.

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— À superfície da terra, como vês, há geada, mas, serguermos o termómetro uns metros na ponta dem pau, o ar está morno... Porque será isto?

— Confesso que não sei — retorquiu Kovrin, rindo.

— Não!... Não podes saber tudo... O maior cérebro éncapaz de abranger todas as coisas. Continuasnteressado pela tua filosofia?

— Sim... Estou a estudar psicologia e filosofia dumamaneira geral.

— E não te aborreces?— Pelo contrário, não poderia viver sem isso.— Bem, queira Deus... — começou Yegor

emionovich alisando as enormes suíças com arensativo. Bem, queira Deus... Folgo muito com

sso, irmão. Folgo muito...De súbito, pôs-se de ouvido à escuta, fazendo umarranca medonha, e desatou a correr pela rua fora,esaparecendo entre as árvores no meio duma

uvem de fumo.— Quem prendeu aqui este cavalo? — clamou umoz desesperada. Qual de vocês, seus ladrões,ssassinos, se atreveu a prender este cavalo a um

macieira? Meu Deus! Meu Deus! Tudo estragado,

rruinado, destruído! O jardim está arruinado! Oardim está destruído! Meu Deus!

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Quando voltou para junto de Kovrin trazistampada no rosto uma expressão de impotência endignação.

— Que diabo podemos nós fazer com esta maldita

ente? — inquiria em voz lamentosa a torcer asmãos. Stepka trouxe para aqui um carro de estrumea noite passada e prendeu o cavalo a um

macieira... atou as rédeas tão curtas, o idiota, que aasca ficou arrancada em três sítios. Que podemos

ós fazer com homens como este? Quando falo comle, pisca os olhos com um ar estúpido. Merecia sernforcado!inalmente calmo, abraçou Kovrin e beijou-o nace.

— Bem! Queira Deus... Queira Deus... gaguejava.stou muito contente, muito contente, por teresindo. Nem sei dizer quanto me sinto feliz!

Obrigado!

m seguida, com o mesmo ar ansioso e o mesmoasso rápido, deu a volta ao jardim todo, mostrandoo seu antigo pupilo o laranjal, as estufas, os abrigosduas colmeias que lhe descrevia como sendo umaas maravilhas daquele século.

nquanto passeavam, o sol rompeu, iluminando oardim. O ar ficou mais quente. Ao pensar no diongo e soalheiro que tinha na sua frente, Kovri

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embrou-se de que se estava apenas no princípio deMaio e que o esperava um Verão inteiro de diasompridos, alegres e felizes. Num repente, assaltou-

aquele mesmo sentimento de juvenil satisfação

ue experimentara em criança, quando brincavaaquele mesmo jardim. Então abraçou e beijouernamente o velhote. Comovidos pelas respectivasecordações, penetraram ambos em casa e tomaramhá pelas velhas chávenas chinesas, acompanhado

om leite e biscoitos saborosos. Estes pormenoresada vez faziam lembrar mais a Kovrin a suanfância. O presente risonho e as recordações doassado, tudo se misturava, enchendo o coração de

Kovrin duma intensa felicidade.sperou que Tania acordasse e, depois de tomarom ela o café da manhã e de dar uma volta peloardim, foi para o quarto e começou a trabalhar. Liaom atenção e tomava apontamentos, só erguendo

s olhos dos livros quando lhe apetecia olhar lá parora através da janela aberta ou contemplar as rosasrescas que tinha numa jarra em cima da secretária,inda molhadas de orvalho. E parecia-lhe que todass veias do seu corpo estremeciam e pulsavam de

legria.Kovrin, no entanto, continuava a viver a mesma

ida nervosa e inquieta que levava na cidade. Lia,

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screvia muito e estudava italiano. E, quando saía aassear, estava sempre com a ideia de voltar ao

rabalho. Dormia tão pouco, que todos em casa sedmiravam. Se acaso passava pelo sono meia-hor

urante o dia, nessa noite não conseguia pregarlho. Mas, apesar dessas noites de insónia, sentia-seatisfeito e activo.

Conversava muito, bebia vinho e fumava charutosaros. Quase todos os dias, raparigas da vizinhança

inham a Borisovka tocar piano e cantar nompanhia de Tania. Por vezes aparecia tambémm rapaz amigo que tocava bem violino. Kovriscutava, embevecido, a música e o canto, mascava depois exausto, a ponto de cerrar os olhosem querer e deixar descair a cabeça sobre o ombro.

Numa dessas tardes, encontrava-se ele sentado naaranda a ler, enquanto, na sala, Tania, que eroprano, uma das amigas, com uma voz de

ontralto, e o jovem violinista executavam umaonhecida serenata de Braga. Kovrin prestavtenção aos versos, mas, embora fossem russos, nãoonseguia perceber-lhes o sentido. Por fim,oisando o livro, escutou atentamente e

ompreendeu. Uma rapariga, de imaginaçãoxaltada, ouvia à noite, no jardim, uns sons tãoarmoniosos e estranhos, tão mágicos e

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ncantadores, que para os simples mortais seornavam incompreensíveis. Então, arrebatada porles, voou para o céu. As pálpebras de Kovriescaíram. Ergueu-se, dominado pela música, e

omeçou a passear na sala, dum lado para o outro, eepois pelo corredor. Quando a melodia terminou,egou na mão de Tania e saiu com ela paraaranda.

— Hoje, desde manhã cedo — começou ele —, não

me sai da ideia uma lenda estranha. Não sei onde, ou se a ouvi contar a alguém, mas é uma lendaotável e não muito coerente. Devo mesmo dizerue a não acho assaz clara. Aqui há mil anos, um

monge, de hábito negro, andava a vaguear peloeserto, algures na Síria ou na Arábia... A algumas

milhas de distância os pescadores avistaram ummonge idêntico a avançar devagarinho sobre auperfície do lago. O segundo monge era um

miragem. Pensa agora em todas as leis da óptica quelenda, claro, não menciona, e escuta: a primeirmiragem deu lugar a outra, esta a uma terceira, essim, sucessivamente, a imagem do monge negro éemprereflectida duma camada da atmosfera para

utra. Duma vez foi vista na África, doutranaspanha, depois na Índia, mais tarde no Pólo Norte.inalmente ultrapassou os limites da atmosfera

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errena, sem nunca encontrar condições que azessem desaparecer. Talvez hoje esteja visível nolaneta Marte, ou na constelação do Cruzeiro doul. Mas o ponto principal, o que constituí a

erdadeira essência da lenda, consiste na profecia deue, precisamente mil anos depois de o monge terdo para o deserto, a miragem será de novorojectada na atmosfera da Terra e apresentar-se-o mundo dos homens. Parece que o prazo dos mi

nos está agora a expirar... Segundo a lenda, érovável que o monge apareça hoje ou amanhã...

— Que história estranha! — murmurou Tania,uem a lenda não agradara.

— Mas o mais espantoso — prosseguiu Kovrin,indo — é que não consigo recordar-me de que

maneira isto agora me veio à ideia. Tê-la-ia lido? Ouuvido contar? Ou fui eu que sonhei com o mongeegro? Não me lembro. Mas a história interessa-me.

Durante todo o dia não tenho pensado noutra coisa.oltando a mão de Tania, que voltou para junto dosonvidados, saiu de casa e pôs-se a passear, absortoos seus pensamentos, em volta dos canteiros. O solstava a pôr-se. As flores, acabadas de regar,

xalavam um cheiro húmido e irritante. Dentro deasa, a música recomeçara e, à distância, o violinossemelhava-se a uma voz humana. Sempre a puxar

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ela memória, numa tentativa de se recordar ondeuvira a lenda, Kovrin atravessou lentamente oarque e, sem saber para onde ia, dirigiu-se à

margem do rio.

Começou a descer pelo atalho que serpenteava nomeio das raízes descarnadas, assustando as narcejasperturbando os patos. Os últimos raios do sol

rilhavam sobre os pinheiros negros, porém auperfície das águas estava já totalmente coberta de

scuridão. Kovrin atravessou o rio. Na sua frentestendia-se um prado em que ondulava centeioovo. Naquela enorme extensão não se avistavaivalma ou qualquer habitação humana. Parecia quequele atalho conduzia directamente à região

misteriosa e inexplorada onde o sol acabava de seôr: onde brilhava ainda, imóvel e majestosa, aefracção dos seus raios.Que vastidão! Que paz! Que liberdade! — pensava

Kovrin avançando pelo atalho. Parece que o mundonteiro me observa de qualquer lugar oculto, àspera que eu lhe compreenda o sentido.»

Um sopro de ar agitou o centeio e a brisa leve doite afagou-lhe a cabeça descoberta. Dali a um

minuto, o vento soprou de novo, desta vez commais força. O centeio ondulou e lá atrás, ouviu-se oussurrar monótono dos pinheiros. Kovrin deteve-

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e, surpreendido. No horizonte, lembrando umiclone ou uma tromba de água, ergueu-se umoluna negra que subia da terra para o céu. Os seusontornos permaneciam indefinidos; no entanto,

ia-se logo que não estava imóvel, antes avançavaom incrível rapidez na direcção de Kovrin; e, àmedida que se aproximava, ia-se tornando cada vezmais pequena. Sem se aperceber disso, Kovrin deu

m passo para o lado, a fim de lhe abrir caminho.

Um monge de hábito negro, com os cabelos e asobrancelhas brancas, de mãos cruzadas no peito,assou na sua frente, a uns vinte metros deistância. Os seus pés descalços não poisavam nohão. Olhou, olhou para trás, fez um aceno deabeça a Kovrin e sorriu-lhe amavelmente, mas ao

mesmo tempo com uma certa astúcia. O rosto doelho era magro e pálido. Depois de haver passado,omeçou de novo a crescer, transpôs o rio, foi bater

em ruído na margem de argila e nos pinheiros, eumiu-se no meio deles, desaparecendo como oumo.

— Ora vêem? — gaguejou Kovrin. Afinal de contaslenda era verídica!

em tentar sequer explicar este estranho fenómeno,atisfeito com o facto de haver contemplado tão deerto e com tanta clareza, não só a veste negra, mas

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inda o rosto e os olhos do monge, Kovrin regressoucasa, agradavelmente agitado.

Os visitantes passeavam agora calmamente noardim. Dentro da sala, a música prosseguia. Sendo

ssim, só ele é que divisara o Monge Negro.xperimentava um forte desejo de contar o quecabava de ver a Tania e a Yegor Semionovich.

Receava, porém, que estes considerassem aquiloma alucinação da sua parte, e decidiu calar-se. Pôs-

e a rir, cantou, dançou a mazurca, sentindo-semuito bem disposto. Os convidados de Tani

otaram-lhe no rosto uma curiosa máscara dextase, de inspiração, e acharam-no deverasnteressante.

No fim do jantar, depois de os visitantes se teremdo embora, Kovrin retirou-se para o quarto eeitou-se no sofá. Queria pensar no monge. Mas dalimomentos entrou Tania.

— Olha, Andriusha, se quiseres podes ler os artigoso pai. São esplêndidos — declarou ela. Ele escrevemuito bem.— Não haja dúvida! — exclamou Yegor

emionovich com um sorriso contrafeito. Não lhe

ês ouvidos, pelo amor de Deus!... Ou então lê-os, seueres dormir depressa. São um óptimo soporífero.

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— Cá por mim acho-os magníficos — exclamouania, muito convencida. Lê-os, Andriusha, eonvence o pai a escrever mais vezes. Julgo-o capaze produzir um tratado completo de jardinagem.

egor Semionovich riu-se, corou e murmurou asrases convencionais usadas pelos autoresnvergonhados. Por fim concedeu:

— Se estás realmente disposto a lê-los, começa porstes do Gauché e pelos artigos russos — gaguejou,

egurando nos jornais com as mãos trémulas. Deontrário, não perceberás nada. Antes de leres as

minhas respostas, tens de saber a quem as dirijo.Mas isto não te deve interessar... Que estupidez! São

oras de ir para a cama.ania saiu. Yegor Semionovich sentou-se na pontao sofá e soltou um fundo suspiro.

— Ah, meu irmão!... — começou depois de umrolongado silêncio. Como vês, meu caro Magister,

screvo artigos, tomo parte em exposições, às vezesanho medalhas... O Pesotzky, diz-se por aí, produmaçãs do tamanho de cabeças... O Pesotzky faz umaortuna com os pomares... Numa palavra: «o

Kochubey é rico e glorioso». Mas qual será o fim de

udo isto, pergunto eu! Os meu jardins, disso nãoode haver dúvida, são maravilhosos, modelares...

Não são propriamente jardins, mas antes um

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nstituição de grande importância política, um passom frente na nova era da agricultura e da indústriaa Rússia... Mas qual o seu fim? Qual o seubjectivo?

— A resposta é fácil.— Não falo nesse sentido. O que eu queria saber é oue acontecerá a tudo isto depois da minha morte?al como as coisas estão, nada disto pode manter-seem mim, nem sequer durante um mês. O segredo

ão reside no facto de o jardim ser grande, noúmero de trabalhadores, mas antes no amor que eu

he dedico, compreendes? Amo isto, talvez mais doue a mim próprio. Vê bem! Trabalho de manhã aténoite. Faço tudo com as minhas próprias mãos. Os

nxertos, as podas, as plantações, eu é que façoudo. Quando alguém me ajuda, sinto ciúmes ecabo por me irritar a ponto de ser grosseiro. Oegredo de tudo está no amor, nos olhos atentos do

ono, nas mãos do dono, na sensação quexperimento, quando vou dar um passeio ou visitolguém durante meia-hora, de que deixei o coraçãoara trás e não estou em mim... Receioonstantemente que alguma coisa tenha acontecido

os pomares. Imagina agora que eu morro amanhã:uem tomará conta de tudo isto? Quem fará orabalho? O chefe dos jardineiros? Os trabalhadores?

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Ora a minha maior preocupação, actualmente, não élebre, nem o escaravelho, nem a geada. São as

mãos estranhas.— E a Tania? — inquiriu, rindo, Kovrin. Será ela

mais perigosa do que uma lebre? A Tania ama eompreende o seu trabalho.— Sim. A Tania ama-o e compreende. Se, depois daminha morte, ela ficasse com isto, nada mais eu

oderia desejar. Mas suponha-mos... Deus nos

efenda!... que ela se casa?— Yegor Semionovich falava em voz baixa e fitavaKovrin com olhares assustados. Aí é que está o

usílis! Pode casar-se, ter filhos e então não lheestará tempo para cuidar do jardim. Isto só por si jeria mau. Mas o meu maior receio é que venha aasar-se com um perdulário, esganado por dinheiro,ue arrende o jardim a mercenários, e lá se vai tudoor água abaixo logo no primeiro ano! Num negócio

esta espécie, uma mulher é uma praga!egor Semionovich suspirou e ficou calado unsmomentos.— Podes chamar a isto egoísmo. Mas eu não

esejaria que a Tania se casasse. Tenho receio! Tu já

iste esse peralvilho que aí vem com o violino fazerma barulheira medonha. Bem sei que a Taniaunca consentiria em casar com ele. Mas não posso

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nxergar o sujeito... Enfim, meu amigo. Sou umelho casmurro... sei isso muito bem!egor Semionovich ergueu-se e pôs-se a passear

muito excitado dum lado para o outro. Via-se

laramente que tinha algo de muito importante paraizer, mas não conseguia resolver-se.— Estimo-te de mais para não te falar com toda aranqueza — declarou por fim, enterrando as mãosos bolsos. Em todas as questões delicadas só digo o

ue penso e odeio as mistificações. Confesso,ortanto, com toda a sinceridade, que és tu onicohomem que não me importaria de ver casadoom a Tania. És esperto, tens bom coração e nãoerias capaz de arruinar o meu trabalho. Mais ainda,mo-te como a um filho... tenho orgulho em ti. Porsso, se tu e a Tania acabarem por... arranjar umspécie de romance... eu sentir-me-ei muitoatisfeito, muito feliz. Digo-te isto cara a cara, sem

ergonha, como é próprio de todo o ser honesto.Kovrin sorriu. Yegor Semionovich abriu a porta e isair, mas parou ainda na soleira, para acrescentar:

— Se tu e a Tania tivessem um filho, eu poderiaazer dele um horticultor. Mas isto é uma pura

antasia. Boas noites!Uma vez só, Kovrin instalou-se confortavelmente e

egou nos artigos do velhote. O primeiro intitulava-

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e: «Cultura intermediária», o segundo, «Algumasalavras em resposta às observações do senhor Z.cerca do tratamento do solo num jardim recente», oerceiro «Ainda acerca dos enxertos». Os restantes

ram do mesmo teor. Mas tudo aquilo respiravanquietação e irritabilidade doentia. Até mesmo umscrito com o pacífico título de «Macieiras russas»xalava mau génio. Yegor Semionovich começavaom estas palavras: «Audi alteram partem» e

erminava: «Sapienti sat»; no meio destas eruditasitações, irrompia uma torrente de palavras azedasirigidas contra «a sábia ignorância dos nossosorticultores encartados que observam a naturezao alto das suas cátedras académicas» e contra M.

Gauché «cuja fama se baseia na admiração dosrofanos e dos dilettanti». Deparou-se-lhenalmente uma tirada despropositada e poucoincera em que o autor lamentava o facto de já não

er legal usar-se o chicote para com os camponesesue são apanhados a roubar fruta e a maltratar asrvores.O trabalho dele é útil, salutar e empolgante —ensou Kovrin -, no entanto, nestes panfletos nada

ncontramos senão mau génio e guerra aberta.Calculo que o mesmo se passa em toda a parte; osspecialistas, seja qual for o seu campo, mostram-se

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ervosos e são vítimas desta mesma sensibilidadexacerbada. Provavelmente não pode ser doutra

maneira.»ensou em Tania, tão encantada com os artigos do

ai e depois em Yegor Semionovich. Tania,equenina, pálida e frágil, com as clavículasalientes, os olhos negros e espertos, sempre muitobertos, que pareciam estar à procura de qualqueroisa. E em Yegor Semionovich com os seus

assinhos apressados. Voltou a recordar-se deania, do prazer que mostrava em conversar eiscutir, acompanhando as frases mais

nsignificantes com mímica e gestos. Nervosa.ambém ela devia ser nervosa no mais alto grau.

Kovrin tentou ler de novo, mas não percebia nadao que vinha nos livros e desistiu. A agradávemoção com que dançara a mazurca e escutara

música continuava a empolgá-lo, fazia surgir-lhe

ma montanha de pensamentos. Passou-lhe pelaabeça que, se aquele estranho e misterioso mongeó tinha sido visto por ele, é porque devia estaroente, a ponto de sofrer de alucinações. Esta ideiassustou-o, mas em breve a pôs de parte.

entou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos,entando dominar a alegria que se apoderara deodo o seu ser; passeou depois para cá e para lá

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urante um minuto e voltou ao trabalho. Porém osensamentos que lia nos livros já o não conseguiamatisfazer. Aspirava a qualquer coisa de mais vasto,e infinito, de avassalador. Pela madrugada despiu-

e e meteu-se na cama, contrafeito. Reconhecia quera melhor descansar. Quando, finalmente, ouviuegor Semionovich que se dirigia para o trabalho no

ardim, tocou a campainha e mandou ao criado quehe trouxesse vinho. Bebeu uns poucos de copos, até

omeçar a sentir a consciência entorpecida edormeceu.egor Semionovich e Tania questionavammiudadas vezes e diziam um ao outro coisas muitoesagradáveis. Nessa manhã estavam ambos

rritados e Tania desatara a chorar e fora para ouarto, não voltando a aparecer nem para o jantar,em para o chá. A princípio, Yegor Semionovicomeçou a andar dum lado para o outro, solene e

mpertigado, como se quisesse dar a entender que,ara ele, a ordem e a justiça constituíam o supremonteresse da vida. Mas não conseguiu manter por

muito tempo esta atitude. Faltou-lhe a coragem eesatou a passear pelo parque, suspirando:

— Ah, meu Deus!

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Ao jantar não comeu nada e por fim, torturado pelaonsciência, foi bater de mansinho à porta daapariga, murmurando timidamente:

— Tania! Tania!

Do outro lado respondeu-lhe uma voz fraca,horosa, mas decidida:— Deixe-me em paz! Suplico-lhe!A tristeza do pai e da filha reflectiam-se em toda aasa e até nos trabalhadores do jardim. Kovrin,

omo de costume, achava-se mergulhado no seunteressante trabalho, mas até ele acabou por seentir cansado e mal disposto. Resolveu interferir eissipar aquela nuvem, antes da noite. Foi baterorta de Tania, e esta mandou-o entrar.

— Vamos! Vamos! Que vergonha! — começou eleum tom brincalhão. Depois, olhando,urpreendido, aquele rosto lacrimejante e aflito,oberto de rosetas vermelhas, disse:

— Então isso é a sério? Ora, ora!— Se soubesses a que ponto ele me torturou! —xclamou ela, enquanto uma onda de lágrimas lheebentava dos olhos. Atormentou-me! — prosseguiu

torcer as mãos. E eu não tinha dito nada... Só

lvitrei que não era necessário mantermos umahusma de trabalhadores efectivos... uma vez queos podíamos arranjar com jornaleiros... Bem sabes

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ue os homens não têm feito nada durante toda estaemana... Eu... eu só disse isto e ele pôs-se a berraromigo e disse-me uma data de coisas... muitofensivas... insultuosas. E tudo sem razão nenhuma.

— Não faças caso! — declarou Kovrin, afagando-lhes cabelos. Tu já barafustaste e tiveste o teuesabafo; agora pronto! Não deves prolongar isto

ndefinidamente... não está certo... tanto mais quele gosta de ti a valer, sabes isso muito bem.

— O pai estragou-me a vida — soluçava Tania.Nunca ouvi outra coisa senão insultos e afrontas.Considera-me a mais na sua própria casa! Deixá-lo.

aço-lhe a vontade! Vou estudar e arranjar empregoomo telegrafista!... Ele verá.

— Ora, ora! Acaba lá com isso, Tania. Só te fazmal!... Sois ambos muito exaltados, impulsivos, e

enhum tem razão. Vamos, eu é que vou fazer asazes!

Kovrin falava num tom suave e persuasivo, masania continuava a chorar e sacudia os ombros, aorcer as mãos como se na verdade estivessesmagada por uma verdadeira desgraça. Kovrientia-se ainda mais apoquentado por verificar a

nsignificância do motivo deste desgosto. Umimples nada bastava para tornar infeliz durante umia inteiro aquela criaturinha, ou, segundo ela

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firmava, durante toda a vida! E, enquanto tentavonsolar Tania, ocorreu-lhe que, a não ser ela e o pai,

mais ninguém no mundo o estimava assim como sezesse parte da família. Se não fossem eles, ter-se-i

entido órfão em pequeno, passaria a vida inteiraem gozar uma carícia sincera e sem experimentarquele amor simples e irreflectido que apenasedicamos aos entes do nosso sangue. E sentia ques seus nervos, esgotados e tensos como cordas de

iola, correspondiam aos desta rapariguinhahorosa e trémula. Considerava também que nunceria capaz de amar uma mulher saudável, de facesubicundas; sentia-se, porém, atraído pela pequenania, pálida, fraca e infeliz.

Dava-lhe prazer contemplar os seus ombros e oseus cabelos. Apertou-lhe a mão e limpou-lhe aságrimas... Ela por fim deixou de chorar. Masontinuava ainda a queixar-se do pai, da vida

nsuportável que levava em casa, suplicando aKovrin que compreendesse bem a sua situação.Depois, pouco a pouco, começou a sorrir e auspirar, afirmando que Deus a castigara com uménio impossível; por fim, ria alto, chamando tola a

i própria, e acabou por sair a correr do quarto.assados uns momentos Kovrin dirigiu-se ao

ardim. Como se nada se tivesse passado, Yegor

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emionovich e Tania passeavam na alameda, aoado um do outro, comendo pão de centeio com sal.

Ambos estavam cheios de fome.atisfeito com o seu papel de medianeiro, Kovrin fo

ara o parque. Quando estava sentado num banco,uviu o ruído duma carruagem e um riso demulher. Mais visitas, sem dúvida! As sombrasomeçaram a envolver o jardim. O som de umiolino, a voz da mulher, tudo ali chegava tão

tenuado pela distância, que mal se ouvia.Recordou-se então do Monge Negro. Em queegiões, em que planetas, pairaria agora aquelabsurda ilusão de óptica?

Mal lhe viera à mente a ideia da lenda, evocando ascura aparição no campo de centeio, logo viu surgiretrás das árvores, caminhando sem ruído, umomem de estatura mediana. Trazia a cabeçarisalha a descoberto, vestia de negro e vinh

escalço como um mendigo. No seu rosto pálidoomo o de um cadáver avultavam vários pontosegros. Depois de um cumprimento de cabeça, oesconhecido, talvez um mendigo, dirigiu-seilenciosamente para o banco e sentou-se. Kovri

econheceu então o Monge Negro. Durante unsmomentos olharam um para o outro, Kovrin com ar

e espanto, porém o monge com amabilidade e, ta

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omo da primeira vez, mostrando no rosto umaerta ironia.

— Mas tu és uma miragem! — disse Kovrin. Porquestás aqui e porque vieste sentar-te neste lugar? Isso

ão está de acordo com a lenda.— É tudo a mesma coisa — replicou suavemente omonge, voltando-se para Kovrin. A lenda, amiragem, eu mesmo, tudo são produtos da tuamaginação exaltada. Eu sou um fantasma.

— Isso quer dizer que não existes? — inquiriuKovrin.— Pensa o que quiseres — replicou o monge, com

m leve sorriso. Eu existo na tua imaginação, eomo a tua imaginação faz parte da Natureza, devoambém existir na Natureza.

— A tua fisionomia é distinta e inteligente. Tenho ampressão de que, na realidade, existes há mais de

mil anos — observou Kovrin. Nunca me julgue

apaz de imaginar um fenómeno assim. Porque melhas tão encantado? Simpatizas comigo?— Sim, és um daqueles entes raros que podem, comustiça, ser chamados eleitos de Deus. Tu serves aterna verdade. Os teus pensamentos, as tuas

ntenções, a tua ciência espantosa, toda a tua vidaraz o selo da divindade, a marca do céu. Dedicasudo ao racional e ao belo, ou seja, ao Eterno.

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— A eterna verdade, disseste tu. Poderá então aterna verdade ser acessível e necessária ao homeme não houver vida eterna?

— Há uma vida eterna — afirmou o monge

— Tu acreditas na imortalidade do homem?— Pois claro. A vós, homens, espera-vos um futuroelo e grandioso. E, quanto mais homens como tuouver no mundo, mais perto se está de alcançarsse futuro. Sem vós, ministros dos altos princípios,

ue viveis conscientes e livres, a humanidade nadaeria. Deixando-a desenvolver pela ordem naturaas coisas, ela teria de esperar o fim da história da

erra. Mas vós conseguistes adiantá-la no caminhoo reino da eterna verdade alguns milhares de anos.

é este o grande serviço que lhe prestais. Vósersonificais a bênção que Deus derrama sobre oovo.

— E qual é o objectivo da vida eterna? — inquiriu

Kovrin.— O mesmo de todas as vidas. O prazer. Oerdadeiro prazer reside no conhecimento e a vidaterna oferece inúmeras e inexauríveis fontes deonhecimento; foi neste sentido que se disse: «Na

asa de meu pai existem várias mansões...»— Não calculas o prazer que sinto em ouvir-te —

eclarou Kovrin esfregando as mãos, deliciado.

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— Ainda bem.— Sei, no entanto, que, mal te fores embora, ficareitormentado por dúvidas acerca da tua realidade.u és um fantasma, uma alucinação. Mas significar

sso que estou fisicamente doente, que não mencontro no meu estado normal?— E se assim for? Não te deves preocupar com isso.

stás doente em virtude de haveres trabalhado paralém das tuas forças, porque sacrificaste a saúde a

ma ideia, e não vem longe o dia em que sacrificarásão só a saúde mas também a vida. Que maisoderásdesejar? É a isso que aspiram todas asaturezas nobres e bem dotadas.

— Mas se me encontro de verdade enfermo, comoosso acreditar em mim próprio?

— E quem te diz que todos aqueles homens deénio que o mundo admira não tiveram visões?

Hoje afirma-se que o génio está muito perto d

oucura. As pessoas saudáveis e normais nãoassam de simples homens, constituem o rebanho.Receios, esgotamentos, estados de degenerescência,udo isso só pode preocupar aqueles cujos objectivosa vida se resumem ao presente. Esses é que

ormam o rebanho.— Os romanos consideravam como seu ideal: mensana in corpore sano.

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— Nem tudo o que afirmavam os gregos e osomanos é verdade. A exaltação, as aspirações, osstados de excitamento, o êxtase, todas estas coisasue são o apanágio dos poetas, dos profetas, dos

mártires de ideias fora do comum, sãoncompatíveis com a vida animal, quero dizer, comsaúde física. Repito: se desejas ser saudável e

ormal, segue o rebanho.— Como é estranho que estejas a repetir aquilo

mesmo que tenho pensado muitas vezes!— exclamou Kovrin. — Dá a impressão de teres lido

s meus mais secretos pensamentos. Mas nãoalemos de mim. O que entendes tu por estasalavras: verdade eterna?

O monge não respondeu. Kovrin olhou para ele masão conseguiu distinguir-lhe a cara. As feiçõesaviam-se-lhe desvanecido, a cabeça e os braçosnham desaparecido. O corpo dissolvera-se no

anco e no crepúsculo, sumindo-se por completo.— Lá se foi a alucinação! — exclamou Kovrin, rindo.— Que pena!Voltou para casa alegre e feliz. O que ouvira aoMonge Negro lisonjeara-lhe, não só o amor-próprio,

mas também a alma e todo o seu ser. Considerar-sem eleito, um ministro da eterna verdade, fazerarte do grupo daqueles que apressam em milhares

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e anos o momento em que a humanidade seornará digna do reino de Cristo, poupar a essa

mesma humanidade milhares de anos de luta, deecado, de sofrimento, pôr tudo ao serviço duma

deia — juventude, força, saúde -, ser capaz demorrer pelo bem-estar colectivo, que glorioso ideal!quando a memória lhe fez reviver o passado, um

ida pura e casta, cheia de trabalho, quando pensouo que aprendera e no que ensinara aos outros,

oncluiu que não havia exagero nas palavras doMonge.

á vinha Tania ao seu encontro, no parque. Traziam vestido diferente do que lhe vira da última vez.

— Estás aí? — gritou ela. Andávamos à tua procurá que tempos... Mas que aconteceu? — inquiriuapariga, surpreendida, vendo a expressão radiosa exaltada de Kovrin, e reparando-lhe nos olhosheios de lágrimas. Que esquisito tu estás,

Andriusha!— Estou contente. Tania — explicou ele, poisando-he a mão no ombro. Estou mais do que contente,stou feliz! Tania, querida Tania! Não sabes quantoe quero! Sinto-me muito satisfeito.

eijou-lhe com fervor as mãos e prosseguiu:— Acabo de viver os momentos mais maravilhosos,mais belos, mais estranhos da minha vida... Mas não

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osso contar-te tudo, de contrário chamar-me-iasouco ou recusar-te-ias a acreditar em mim...alemos antes de ti! Tania, amo-te desde há muito!

Ver-te constantemente, encontrar-te a toda a hora, é-

me absolutamente necessário. Não sei como hei-deassar sem ti quando me for embora!— Ora! — retorquiu Tania rindo. Vais esquecer-nos

entro de dois dias! Nós somos pessoasnsignificantes e tu és um grande homem!

— Vamos falar a sério — disse Kovrin. Quero levar-e comigo, Tania. Sim? Vens comigo? Queres ser

minha?ania exclamou:

— O quê! — e tentou rir outra vez. Mas nãoonseguiu e apareceram-lhe no rosto duas rosetasermelhas. Respirava com força e pôs-se a andar

muito depressa. Não sabia... Nunca pensei nisto...unca pensei — declarava apertando as mãos um

a outra, como se estivesse desesperada.— Aspiro a um amor que possa tomar conta de todomeu ser, e este amor, Tania, só tu mo podes dar.

ou feliz! Tão feliz!A rapariga sentia-se desorientada, confundida,

xausta, e parecia ter envelhecido dez anos deepente. Mas Kovrin achava-a encantadora exprimiu em voz alta o seu êxtase:

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— Como é linda!Kovrin, porém, correu atrás dela e, com a mesmaxpressão deslumbrada e entusiasta, continuou aalar: Quando ouviu da boca de Kovrin que, além de

m romance, iria haver um casamento, Yegoremionovich pôs-se a andar pelos cantos a fim desconder a sua agitação. Tremiam-lhe as mãos, tinha

pescoço inchado e vermelho. Deu ordem partrelarem os cavalos à sua charrete de corrida e saiu.

ania, ao ver a maneira como chicoteava os cavalosenterrava o boné até às orelhas, percebeu o que ele

stava sentindo e fechou-se no quarto a chorar tododia.

No pomar, os pêssegos e as ameixas estavam jámaduros. O empacotamento e o despacho, paraMoscovo, de tão delicada mercadoria exigia muitosuidados, atenção e actividade. Por causa do calor,odas as árvores tinham de ser regadas; o processo

cava dispendioso em tempo e trabalho.Começaram a aparecer muitas lagartas que Yegoremionovich e Tania, bem como os trabalhadores,smagavam com o dedo, com grande escândalo de

Kovrin. Tornava-se necessário satisfazer as

ncomendas do Outono relativas a frutos e arvores, e por isso mantinha-se umorrespondência muito activa. No auge do trabalho,

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uando parecia que ninguém poderia dispor dummomento, começou a faina dos campos, deixando oardim desfalcado em mais de metade dosrabalhadores. Yegor Semionovich, bastante

ueimado pelo sol, muito irritado e cheio dereocupações, corria dum lado para o outro, ora noardim, ora nos campos. E gritava a toda a hora questo dava cabo dele e que iria meter uma baia nos

miolos.

Além de tudo, havia a preocupação com o enxovale Tania, a que os Pesotzky ligavam grande

mportância. A casa inteira vibrava com o ruído dasesouras, o matraquear das máquinas de costura, oheiro dos ferros de engomar, as exigências da

modista muito nervosa e susceptível. E, parúmulo, todos os dias chegavam visitas que erreciso divertir, alimentar, alojar durante a noite.

No entanto, os trabalhos e as preocupações

esvaneciam-se numa névoa de alegria. Tania tinhimpressão de que o amor e a felicidade se haviampoderado dela, como se desde os catorze anoslimentasse a certeza de que Kovrin não casaria comenhuma outra mulher. Mantinha-se num

ermanente estado de espanto, de dúvida, dencerteza para consigo própria. Em determinados

momentos, a sua alegria era tamanha, que se julgava

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apaz de subir aos céus para orar a Deus; noutros,ntão, recordava-se de que, em Agosto, teria deeixar a casa da sua infância e abandonar o pai. Essustava-a a ideia que lhe vinha, não sabia donde,

e ser uma rapariguinha vulgar e insignificante,ndigna dum grande homem como Kovrin. Quandoassaltavam tais pensamentos, corria a fechar-se nouarto e ali chorava com amargura durante horas.

Quando, porém, estavam presentes as visitas,

eparava de súbito que Kovrin era um belo homemque todas as mulheres o amavam e a invejavam a

la. E em tais momentos o seu coração inflamava-see orgulho, como se tivesse conquistado o mundo

nteiro. Quando ele ousava sorrir para qualquerutra mulher, tremia de ciúmes e fugia para ouarto, novamente em lágrimas. Estes sentimentosaviam-se apossado por completo de Tania.

Ajudava maquinalmente o pai, não dava atenção

os jornais, nem às lagartas, nem aos trabalhadores,em à rapidez com que passava o tempo.egor Semionovich encontrava-se num estado despírito mais ou menos semelhante. Continuava arabalhar de manhã à noite, corria pelo jardim e

rritava-se a todo o momento, mas sempremergulhado nas suas mágicas divagações. Dentro

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aquele corpo robusto digladiavam-se dois homens:m, o verdadeiro Yegor Semionovich, que, ao ouvirjardineiro, Yvan Karlovich, relatar-lhe qualquer

ngano ou percalço, perdia a cabeça e arrepelava os

abelos; o outro, o novo Yegor Semionovich, umelho obcecado, que interrompia uma conversamportante para agarrar no ombro do jardineiro,aguejando:

— Podes dizer o que quiseres, mas quem sai aos

eus não degenera. A mãe dele era uma senhora dasmais finas e inteligentes. Dava prazer fitar aquelaara, boa, pura, franca como a de um anjo. Eambém pintava muito bem, escrevia versos, falavainco línguas e cantava... Coitadinha! Deus a tenhm descanso. Morreu tísica!

O novo Yegor Semionovich suspirava e, após ummomento de silêncio, prosseguia:— Quando ele era um rapazinho que se fazia

omem em minha casa, tinha também uma carssim, boa, franca e pura. A sua aparência, os seusestos e palavras eram tão suaves e graciosos comos da mãe. E que inteligência! Não é sem razão quelcançou o grau de Magister. Mas vais ver, Iva

Karlovich, vais ver o que ele será dentro de deznos! Vamos perdê-lo de vista!

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Nesta altura, porém, o verdadeiro Yegoremionovich caía em si, voltava à terra e trovejava:

— Malandros! Tudo queimado, arruinado,estruído! O jardim está arruinado! O jardim está

estruído!Kovrin trabalhava com o antigo entusiasmo earamente dava pelo rebuliço à sua volta. O amorão fazia mais do que deitar azeite na lume. Depoise cada encontro com Tania, regressava ao quarto,

ncantado e feliz, e atirava-se aos livros emanuscritos com a mesma paixão com que a beijara

lhe jurara o seu amor. Aquilo que lhe dissera oMonge Negro acerca de ele ser um dos eleitos deDeus, ministro da eterna verdade e do gloriosouturo da humanidade, conferia ao trabalho de

Kovrin um significado especial e desusado. Uma ouuas vezes por semana, quer no parque, quer dentroe casa, encontrava-se com o frade, e ambos

onversavam durante horas; isto porém nãossustava Kovrin, antes o encantava, pois adquiriraá a certeza de que tais aparições só visitam osleitos e os raros que se dedicam ao ministério dasdeias.

O dia da Assunção passou despercebido. Seguiu-seboda realizada com grande pompa segundo o

esejo expresso por Yegor Semionovich, quer dizer,

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om aqueles festejos sem significado algum, masue duram dois dias. Gastaram-se três mil rublosm comidas e bebidas; porém, no meio da música deaixa categoria, dos brindes ruidosos, dos criados

tarefados, dos clamores e da atmosfera pesada dasalas, ninguém apreciou os vinhos caros nem osxtraordinários hors-d'oeuvre encomendadosxpressamente em Moscovo.

Numa das longas noites de Inverno, Kovri

ncontrava-se na cama a ler um romance francês. Aobre Tania, que todas as noites sofria de dores deabeça por não estar habituada à vida na cidade,dormecera havia muito e, em sonhos, ia

murmurando palavras incoerentes.O relógio bateu três horas. Kovrin apagou a vela e

eitou-se para baixo, ficando contudo muito tempoem poder dormir em virtude do calor do aposentodo murmurar contínuode Tania. Às quatro e meia

cendeu de novo a vela. O Monge Negro estaventado numa cadeira, ao lado da cama.— Boa-noite! — disse o monge. E, depois de ummomento de silêncio, inquiriu:— Em que estás agora a pensar?

— Na glória — respondeu Kovrin. No romancerancês que acabo de ler, o herói é um jovem queomete toda a casta de loucuras e morre de paixão

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ela glória. Quanto a mim, esta paixão afigura-se-me inconcebível.— És demasiado inteligente. Olhas com indiferença

ara a fama como para um brinquedo que te não

ode interessar.— Isso é verdade.— A celebridade não te atrai. Que prazer, quelegria ou conhecimento pode um homem tirar doacto de saber que o seu nome será gravado num

monumento, do qual o tempo cedo ou tarde virápagar as letras? Sim, felizmente vocês são tantos,ue a fraca memória humana vos não pode recordartodos o nome.

— Claro — retorquiu Kovrin. Mas para quê recordá-os... Falemos antes de outra coisa. Da felicidade, porxemplo. O que é a felicidade?

Quando o relógio bateu cinco horas estava Kovrientado na cama, com os pés poisados no tapete e

abeça voltada para o monge; dizia:— Nos tempos antigos houve um homem que teveanto medo da sua felicidade que, a fim de aplacars deuses, lhes ofereceu um anel que muitostimava. Já ouviste contar isto? Também eu agora,

al como Polícrates, me sinto um pouco assustadoom a minha própria felicidade. De manhã à noiteó sinto alegria, que me absorve e abafa todos os

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utros sentimentos. Não sei o que é a dor, o cansaçou a aflição. Falo a sério. Começo a desconfiar.

— Porquê? — inquiriu o monge num tom admirado.— Consideras então a alegria um sentimento

obrenatural. Achas que não é o estado normal dasoisas? Não! Quanto maior é o grau moral e mentaue o homem atinge, mais livre se sente, maior éatisfação que ele tira da vida. Sócrates, Diógenes,

Marco Aurélio conheciam a alegria e não a tristeza.

o apóstolo disse: «Alegra-te extraordinariamente».Alegra-te e sê feliz!— E se de repente os deuses se encolerizam? —nquiriu Kovrin. — Cá por mim, não me agradavaada que me tirassem a felicidade e me obrigassemtremer e a morrer de fome.ania acordou e olhou para o marido com espanto e

error. Este falava, voltado para a cadeira,esticular e a rir. Brilhavam-lhe os olhos e o seu riso

nha um som estranho.— Andriusha, com quem estás tu a falar? —nquiriu ela agarrando na mão que ele estendia paramonge. Andriusha, quem está aí?

— Quem? — respondeu Kovrin. Mas é o monge!...

stá ali sentado. — E apontava para o MongeNegro.

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— Ali não está ninguém... ninguém, Andriusha!stás doente!ania abraçava o marido, apertava-o contra si, comoquerer defendê-lo da aparição, e tapava-lhe os

lhos com as mãos.— Tu estás doente — soluçava ela, toda a tremer.Desculpa, querido, mas desconfio há muito de quendas um pouco nervoso... Não estás bem...sicamente, Andriusha!

A tremura dela comunicou-se a Kovrin. Olhou maisma vez para a cadeira, agora vazia, e sentiu asernas e os braços subitamente tomados de

raqueza. Começou a vestir-se.— Não é nada. Tania. Não é nada... — gaguejava eleinda a tremer. Não estou lá muito bem... Já é tempoe o confessar.

— Há muito que andava desconfiada... e o meu paiambém — confessou ela, tentando dominar os

oluços. Andas constantemente a falar sozinho, aorrir dum modo tão estranho... e não dormes. Oh,meu Deus, meu Deus, tem pena de nós! —xclamava com terror. Mas não te assustes,

Andriusha, não te assustes... pelo amor de Deus, não

e assustes...!ania vestiu-se também... Só então, ao olhar para a

mulher, Kovrin compreendeu o perigo da sua

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ituação e atingiu o que quisera dizer o MongeNegro nas suas conversas. Convenceu-sebsolutamente de que estava doido.em saberem porquê, um e outro vestiram-se e

aíram para o vestíbulo, onde encontraram Yegoremionovich de roupão. Vinha ter com eles, poiscordara com os soluços de Tania.

— Não tenhas medo, Andriusha — dizia Tania,remendo como se estivesse com febre.

— Não se assuste, pai... Isto passa... isto passa.Kovrin ficara tão agitado, que mal podia falar. Masentava levar as coisas a rir. Voltou-se para o sogro eomeçou:

— Dêem-me os parabéns... parece que estou a ficarmaluco. Mas apenas conseguiu mover os lábios eorrir amargamente.

Às nove horas vestiram-lhe um casaco, umobretudo de peles, embrulharam-no num xale e

evaram-no ao médico. Começou então a tratar-se.Chegara de novo o Verão. Por ordem do médico,Kovrin fora para o campo. Recuperara a saúde e não

oltara a ver o Monge Negro. Só dependia deleróprio adquirir as forças físicas. Habitava em casa

o sogro, bebia muito leite, trabalhava apenas duasoras por dia, não provava vinho e deixara de

umar.

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Na tarde do dia 29 de Junho, véspera de Santo Elias,ealizou-se lá em casa uma cerimónia religiosa.

Quando o padre tomou o turíbulo do incenso dasmãos do sacristão e todo o vestíbulo ficou a cheirar a

greja, Kovrin começou a sentir-se fatigado. Saiuara o jardim. Sem reparar nas flores que oodeavam, começou a andar dum lado para o outro,entou-se durante um bocado num banco, e depoisirigiu-se ao parque. Desceu a rampa até à margem

o rio e quedou-se a olhar interrogativamentegua. Os enormes pinheiros com as suas raízesescarnadas que um ano atrás o tinham visto tão

ovem, tão alegre, tão activo, já não murmuravamesta vez. Mantinham-se calados e imóveis, como senão reconhecessem... Na verdade, com os cabelos

ortados curtos, o andar vacilante, o rosto mudado,álido e de expressão carregada, tão diferente doue era um ano antes, ninguém o reconheceria.

Atravessou o rio. No campo da outra margem,utrora coberto de centeio, viam-se agora regos deveia seca. O sol escondera-se já e, no horizonte,amejava uma larga facha vermelha, a anunciar

rovoada. Tudo estava calmo. Ao dirigir os olhos

ara o ponto onde um ano antes vira o MongeNegro, Kovrin quedou-se vinte minutos a observar

clarão do céu. Quando regressou a casa, cansado e

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nsatisfeito, Yegor Semionovich e Tania estavamentados nos degraus do terraço, a tomar chá.

Conversavam um com o outro e, ao veremproximar-se Kovrin, calaram-se. Mas este

ercebeu-lhes no rosto que haviam estado a falar aeu respeito.— São horas de tomares o teu leite — disse Tania

ara o marido.— Não, por ora não — retorquiu este, sentando-se

o último degrau. Bebe tu. A mim não me apetece.— Sabes perfeitamente que o leite te faz bem.— Oh, muitíssimo bem! — troçou Kovrin. Dou-te osmeu parabéns! Já engordei uma libra desde sexta-eira passada. Apertou a cabeça nas mãos eamentou-se, numa voz dolorosa:

— Oh, porque é que me curaram? Brometos...escanso, banhos tépidos, uma vigilância aturadaobre tudo o que eu metia à boca, sobre todos os

assos que dava... tudo isto ainda acaba por daromigo em doido! Andava maluco... tinha a mania grandeza... Mas fora isso sentia-me lúcido, activosempre satisfeito... Era um homem interessante e

riginal. Agora tornei-me racional e sólido, como

oda a gente. Sou um medíocre e a vida não passa dema coisa enfadonha. Oh, que cruéis... que cruéis

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ocês foram para mim! Tinha alucinações... que maazia isso aos outros? Que mal, pergunto eu?...

— Só Deus sabe o que ele quer dizer na sua! —uspirou Yegor Semionovich. — Até chega a ser

stupidez estar para aqui a ouvir-te!— Então não oiçam!ania trocou um olhar tímido com o pai e tornou,

medo: A presença de estranhos, sobretudo de Yegoremionovich, passara a irritar Kovrin; respondia ao

ogro num tom seco, frio, mesmo mal-educado e,uando o olhava, não conseguia disfarçar o ódio e oesprezo. Yegor Semionovich sentia-se atrapalhado,

tossia, culposo, não compreendendo que maoderia ter feito ao genro. Incapaz de perceber o

motivo de tamanha reviravolta nas relações dembos, outrora tão cordiais, Tania abraçava-se aoai e fitava-o nos olhos, assustada. Via claramenteue as relações entre os dois homens pioravam dia a

ia, que o pai envelhecera extraordinariamente eue o marido se tornara irritável, caprichoso,xcitado e enfadonho. A rapariga deixara de rir, deantar, não comia nada, passava as noites semormir, vivendo sob a ameaça dum terror

ermanente. Torturava-se a tal ponto, que chegava acar inconsciente desde o jantar até à noite. Durantecerimónia religiosa teve a impressão de que o pa

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stava a chorar. Agora, ali sentada no terraço, fazim esforço para não pensar nisso.

— Que felizes foram Buda, Maomet e Shakespeareor não terem tido parentes e médicos solícitos que

s curassem do seu êxtase e inspiração! — exclamouKovrin. Se Maomet houvesse ingerido brometo deotássio para os nervos, trabalhado apenas duasoras por dia e bebido leite, esse homemxtraordinário nada mais teria deixado atrás de s

o que o seu cão. Os parentes solícitos e os médicosão fazem outra coisa senão tornar a humanidadestúpida. Tempos virão em que a mediocridade seronsiderada génio e em que a humanidade acabaror perecer. Se vocês soubessem — prosseguiu

Kovrin com petulância —, se vocês soubessem comoos estou grato!...entia uma forte irritação e, para não falar de mais,rgueu-se e entrou em casa. Não fazia vento e lá

entro pairava o cheiro à planta do tabaco e a jalapa.Através da janela do enorme átrio, os raios de luarinham poisar no chão e sobre o piano. Kovriecordou-se dos encantos do Verão passado, em quear também cheirava a jalapa e a luz da lua entrava

ela janela... A fim de reviver a atmosfera de então,ntrou no quarto, acendeu um charuto forte e

mandou que o criado lhe trouxesse vinho. A

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erdade, porém, é que o charuto amargava, sabiamal, e o vinho perdera todo o paladar do anonterior. O que faz a falta de hábito! Depois de umnico charuto e de dois goles de vinho sentiu a

abeça andar à roda e teve de tomar brometo deotássio.Antes de se meterem na cama, Tania disse-lhe:— Ouve lá! O meu pai adora-te, mas tu estásborrecido com ele por qualquer motivo e isso mata-

. Repara como envelhece de dia para dia, de horara hora! Suplico-te, Andriusha, pelo amor de

Deus, por alma do teu pai, para meu descanso, vê see mostras mais amável com ele!

— Não posso, nem quero!— Mas porquê? — Tania tremia toda. Explica-me

orquê?— Porque não gosto dele, pronto! — respondeuKovrin com indiferença, encolhendo os ombros. Mas

melhor é não falarmos nisso, é teu pai.— Não posso, não posso perceber — tornou Tania.Apertava a testa com as mãos e fitava um ponto

ago. Nesta casa passa-se qualquer coisa de terrível,e incompreensível. Tu mudaste, Andriusha. Já não

s o mesmo... Tu, um homem inteligente excepcional..., a irritares-te com ninharias.

Aborreces-te com pequenas coisas em que noutros

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empos nem reparavas. Não... não te zangues —rosseguia ela, beijando-lhe as mãos, assustadomas suas próprias palavras. És inteligente, bom,onesto. Hás-de ser justo para com o pai. Ele é tão

ondoso!— Ele não é bondoso, mas apenas bem-humorado.stes tios de opereta, no género do teu pai, bemlimentados, de rosto bonacheirão, são figuraspicas à sua maneira e outrora conseguiam divertir-

me, tanto nos romances, nas comédias, como nida real. Hoje, porém, odeio-os. São egoístas até à

medula... O que mais me enoja é a sua auto-uficiência, o seu optimismo estomacal, puramenteovino... ou antes, suíno.ania sentou-se na cama e poisou a cabeça no

ravesseiro.— Isto é uma tortura! — murmurou. E pelo tom dua voz notava-se claramente que se senti

xtremamente cansada e lhe custava falar. Desde onverno, nem um momento só de sossego... Éorrível, meu Deus! Sofro tanto...

— Pois claro! Eu sou um Herodes e tu e o teuaizinho os inocentes massacrados. Claro!

A cara dele afigurava-se a Tania uma máscara feia eesagradável. Aquela expressão de ódio e desprezoão lhe ficava bem. A rapariga observou até que

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altava qualquer coisa na cara do marido: desde queortara o cabelo parecia mudado. Sentiu umstranho desejo de lhe dizer qualquer coisansultante, mas dominou-se a tempo e, aterrada,

etirou-se para o seu quarto.Kovrin foi nomeado para uma cátedrndependente. O seu discurso inaugural estava

marcado para o dia 2 de Dezembro e nesse sentidooi colocado um aviso nos corredores da

Universidade. Mas, quando chegou a data marcadaecebeu-se ali um telegrama a comunicar àsutoridades universitárias que o professor nãooderia comparecer por motivo de doença.ubira-lhe sangue à garganta. Vomitou-o e, duasezes naquele mês, teve fortes hemoptises. Sentia-seerrivelmente fraco e caiu numa modorra contínua.

A doença, porém, não o assustava, pois sabia queua mãe, atacada da mesma moléstia, vivera ainda

ez anos. Os médicos declararam também que ooente não se encontrava em perigo econselharam-no a não se preocupar, a fazer umida regular e a falar menos.m Janeiro, a conferência foi adiada pelo mesmo

motivo e em Fevereiro era já demasiado tarde paraomeçar o curso. Ficou, portanto, resolvido dar-lhenício no próximo ano.

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Kovrin, nesta altura, não vivia já com Tania, masim com outra mulher mais velha do que ele, que oratava como uma criança. Tornara-se calmo ebediente; submeteu-se de bom grado quando

Varvara Nikolayevna, assim se chamava ela, tomouiniciativa de o levar para a Crimeia, emboroubesse que a mudança de ares nenhum bem lhearia.

Chegaram a Sebastopol ao fim de tarde e pararam

ara descansar, tencionando seguir para Yalta noia seguinte. Ambos se sentiam fatigados daiagem. Varvara Nikolayevna tomou chá e foieitar-se. Kovrin, porém, ficou a pé. Antes de sair deasa para a estação, recebera uma carta de Tania queinda não abrira. A lembrança desta carta causava-he uma estranha agitação. No mais íntimo do serentia que o seu casamento com Tania fora um erro.

Achava-se satisfeito por se ter finalmente separado

ela; porém a recordação daquela mulher que nosltimos tempos parecia haver-se tornado apenas ummanequim ambulante no qual tudo morrera,xcepto os olhos enormes e inteligentes, sóespertava nele um sentimento de piedade e de

emorso. A letra, no envelope, vinha lembrar-lheue, dois anos atrás, havia sido culpado derueldade e de injustiça e que exercera vingança

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obre pessoas que nenhuma culpa tinham daacuidade do seu espírito, da sua solidão, doesencanto que experimentava perante a vida...

Recordou-se de ter feito em pedaços a su

issertação e todos os artigos que escrevera desdeue estivera doente, atirando-os pela janela fora e deomo os fragmentos de papel haviam sido levadoselo vento, indo poisar nas árvores e nas flores; emada uma daquelas páginas via apenas uma

retensão estranha e infundada, uma irritaçãorívola, a mania da grandeza. E tudo isto produziram si uma tal impressão, que acabara por escreverm relatório das suas próprias culpas. E contudo, no

momento em que 95 últimos pedaços do derradeiroaderno eram arrastados pelo vento, sentiu tamanhamargura e desilusão, que se dirigira à mulher,alando-lhe cruelmente. Céus, como lhe arruinarantão a vida! Recordava-se de uma vez em que,

uerendo martirizá-la, declarara que o pai delaesempenhara no seu casamento um papel fora doulgar, chegando mesmo a pedir-lhe para casar comfilha; e Yegor Semionovich, que por acaso ouvira

stas palavras, rompera pelo quarto dentro, tão

onsternado que emudecera e não fora capaz deronunciar qualquer frase, limitando-se a bater coms pés no chão e a soltar uns grunhidos estranhos,

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omo se lhe tivessem cortado a língua. Ao ver o paaquele estado, Tania pusera-se a gritar que cortav

coração e caíra por terra sem sentidos. Fororrível.

A lembrança de todas estas coisas voltava-lhe agormemória, ao ver aquela letra tão sua conhecida.Dirigiu-se à varanda. O ar estava tépido, calmo,

inha do mar um cheiro salgado, e tanto o luaromo as luzes em volta reflectiam-se na superfície

a baía maravilhosa, duma tonalidade impossívee classificar. Era uma suave combinação de azul eerde. Em certos pontos, a água assemelhava-se aulfato, noutras em vez de água era luar líquido quenchia o mar. E toda esta harmoniosa combinaçãoe tons exalava tranquilidade e exaltação.

No andar inferior da hospedaria, por baixo daaranda, as janelas estavam sem dúvida abertas,ois ouviam-se claramente vozes e risos de mulher.

Devia tratar-se duma festa.Kovrin fez um esforço sobre si mesmo, abriu a carta,ntrou no quarto e começou a ler:O meu pai acaba de morrer. Isto te devo, pois fosteu que o mataste. O nosso pomar está arruinado,

em sido entregue a mãos estranhas. Acontecequilo que o meu pobre pai tanto receava. Tambémsto se deve a ti. Odeio-te com toda a minha alma e

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esejaria que morresses em breve! Ah, como sofro!O meu coração estala com uma dor intolerável!...Maldito sejas! Julguei-te um ente excepcional, um

omem de génio; amava-te e afinal revelaste ser um

ouco...»Kovrin não conseguiu ler mais; rasgou a carta etirou fora os pedaços... Sentia-se tomado denquietação, quase duma espécie de terror... Doutro lado do biombo dormia Varvara Nikolayevna.

Ouvia-lhe a respiração. No andar de baixohegavam-lhe as vozes e os risos de outras

mulheres. Afigurava-se-lhe, porém, que em todo ootel o único ser humano era ele. O facto de essobre e abandonada Tania o haver amaldiçoado naarta causava-lhe desgosto; e olhava, receoso, para aorta, temendo ver surgir de novo essa forçaesconhecida que no espaço de dois anos trouxera

amanha ruína para a sua vida e para a daqueles que

he eram mais queridos.abia por experiência que, quando os nervosraquejam, o melhor remédio é o trabalho.

Costumava então sentar-se à mesa e concentrar-seum pensamento definido. Retirou da pasta

ermelha um caderno que continha o resumo dumequeno trabalho que tencionava realizar durantequela estadia na Crimeia, se acaso se fartasse da

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nactividade... Sentou-se à mesa e pôs-se a trabalharesse resumo. Afigurou-se-lhe estar a assumir deovo a sua antiga personalidade calma, resignada,bjectiva. Aquele sumário levou-o a especular sobre

vaidade do mundo. Pensou no alto preço que elaxige em troca dos benefícios mais mesquinhos eulgares concedidos ao homem. Para reger umaadeira de filosofia antes dos quarenta anos; para serm vulgar professor; para expor pensamentos

omuns, pensamentos estes que lá não eram seus,uma linguagem fraca, pesada e cansativa; numaalavra, para atingir a posição de um medíocre

etrado, estudara durante quinze anos, trabalharoite e dia, sofrera uma doença grave, fizera umasamento desastrado, tornara-se culpado de muitasoucuras e injustiças cuja recordação se tornava parale uma tortura. Kovrin convencia-se agorompletamente de que não passava de um medíocre

não conseguia conformar-se com esse facto,abendo perfeitamente que todo o homem se devear por satisfeito com aquilo que é.

O sumário que tinha na frente acalmara-o; porém, osestos da carta espalhados pelo sobrado desviavam-

he a atenção. Ergueu-se, apanhou-os e atirou comles pela janela fora. Mas uma leve brisa queoprava do mar, fê-los voar para o peitoril. Kovri

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entiu-se outra vez inquieto, quase aterrorizado, efigurou-se-lhe de novo que, em todo o hotel, onico ser vivo era ele... Voltou para a varanda. Aaía parecia uma coisa viva e fitava-o com um

nfinidade de olhos brilhantes, azuis escuros, cor deurquesa e de fogo, a chamá-lo. Estava um calorufocante; seria delicioso ir tomar banho, pensou!

De súbito, lá em baixo, ouviu-se um violino a tocar euas vozes de mulher a cantarem. Era uma melodia

muito sua conhecida. Falava duma jovem demaginação doente que ouvira de noite, no jardim,ns sons misteriosos, achando neles uma harmonium encanto incompreensíveis para o resto dos

mortais... Kovrin susteve a respiração, o coraçãoeixou de bater e aquele mágico e estático enlevo,á muito esquecido, vibrou-lhe de novo no peito.

Uma coluna negra e alta, semelhante a um cicloneu a uma tromba de água, surgiu na costa, em

rente. Corria com incrível rapidez na direcção dootel; ia-se tornando cada vez mais pequena eKovrin afastou-se para a deixar passar... O monge,

e cabeça grisalha a descoberto, as sobrancelhasegras, pés descalços e mãos cruzadas no peito,

assou na sua frente e deteve-se no meio do quarto.— Porque não acreditaste em mim? — inquiriu numom de censura, olhando com meiguice para Kovrin.

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— Se me tivesses dado crédito quando te disse queras um génio, estes dois últimos anos não teriamido para ti tão dolorosos e tão inúteis.

Kovrin começava a convencer-se de novo que era

m eleito de Deus e um génio; recordou-seitidamente da sua conversa anterior com o mongequis replicar. Porém, o sangue jorrava-lhe da bocaara o peito, e ele, sem saber o que fazia, esfregouele as mãos até ficar com os punhos vermelhos.

Quis gritar por Varvara Nikolayevna que dormiatrás do biombo e, ao fazer um esforço, só conseguiuhamar: «Tania!»

Caiu no chão, agitando as mãos, e de novo gritou:— Tania!Chamava por Tania, chamava pelo enorme jardimom as suas flores maravilhosas, chamava peloarque, pelos pinheiros com as suas raízes nodosas,elos campos de centeio, chamava pela sua ciência

spantosa, pela sua mocidade, pela sua coragem,ela sua alegria, gritava pela vida que fora tão bela.Via no chão, à sua frente, uma grande poça deangue e sentia-se tão fraco, que não conseguiaronunciar uma só palavra. No entanto, todo o seu

er se sentia tomado duma alegria infinita. Por baixoa varanda a serenata prosseguia e o Monge Negro

murmurava-lhe ao ouvido que ele era um génio e, se

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stava a morrer, era porque o seu corpo frágil emortal perdera o equilíbrio e já não servia parabrigar um génio.

Quando Varvara Nikolayevna acordou e saiu de

etrás do biombo, Kovrin estava morto. Mas no seuosto estampava-se um sorriso indelével deelicidade.

O bilhete premiado

van Dmítritch, homem remediado que vivia comamília na base de uns 1200 rublos por ano, muitoatisfeito com seu destino, certa noite, depois doantar, sentou-se no sofá e começou a ler o jornal.— Esqueci de dar uma olhada no jornal de hoje —

isse sua mulher tirando a mesa. — Dê uma espiadaara ver se saiu o resultado do sorteio.

— Saiu — respondeu Ivan Dmítritch —, mas vocêão penhorou seu bilhete?

— Não. Paguei os juros na terça.— Qual é o número?— A série é 9499, bilhete 26.— Então... Vejamos... 9499 e 26.van Dmítritch não acreditava na sorte da loteria e

m outra ocasião jamais se daria ao trabalho deerificar a lista. Agora, porém, que não tinha nadaara fazer e o jornal estava bem debaixo de seu

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ariz, percorreu com o dedo de cima para baixo Osúmeros da série. E não é que logo de cara, cornoue para zombar de sua descrença, já no alto daegunda coluna apareceu de repente, diante de seus

lhos, o numero 9499! Sem conferir o número doilhete nem verificar se tinha lido certo, deixou cairapidamente o jornal no colo e corno se alguém lhevesse derramado água na barriga, sentiu um

riozinho agradável no fundo do estômago. Era urna

ensação de coceira terrível e deliciosa ao mesmoempo.

— Macha — disse com voz surda —, o 9499 estqui. A mulher olhou para seu rosto surpreso,ssustado, e compreendeu que o marido não estavarincando.

— 9499? — perguntou ela, empalidecendo eeixando cair na mesa a toalha dobrada.

— Sim, sim... Está, de verdade!

— E o número do bilhete?— E mesmo! Ainda falta o número do bilhete. Masenha paciência... espere. Então, que tal? Deualquer modo o número de nossa série está, hem?

De qualquer modo, entendeu?...

van Dmítritch olhou para a mulher e sorriu numorriso largo e apalermado como uma criança a quavessem mostrado alguma coisa brilhante. A

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mulher também sorria. Sentia o mesmo prazer que omarido por ele ter lido somente a série e não ter tido

ressa em saber do número do feliz bilhete. E tãoelicioso, tão angustiante consumir-se e espicaçar-se

a esperança de uma felicidade possível!— A nossa série está — disse Ivan Dmítritch depoise um longo silêncio. Significa que existe umaossibilidade de termos ganho. Apenas umossibilidade, mas, apesar de tudo, ela existe!

— Está bem, mas agora, olhe.— Espere. Ainda teremos tempo a vontade para nos

esiludir. Se esta na segunda coluna de cima, querizer que o prêmio é de 75 mil. Isso não é dinheiro, éma força, um capital! E se de repente eu olhar paralista e lá estiver o numero 26? Hem? Escute, e se

vermos ganho de verdade?Os cônjuges começaram a dar risada e a olhar

emoradamente um para o outro, sem falar nada. A

ossibilidade da ventura deixara-os obnubilados, eles não conseguiam sequer sonhar, dizer para querecisavam daqueles 75 mil, o que comprariam,ara onde iriam. Imaginavam apenas Os números499 e 75 mil, desenhavam-nos em sua imaginação,

mas a idéia da felicidade, que estava tão próxima,arecia não lhes passar pela cabeça.

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van Dmítritch andou algumas vezes de um ladoara outro com o jornal nas mãos e só quandorimeira impressão se acalmou é que, aos poucos,omeçou a sonhar.

— E se tivermos ganho? — disse. — Seria uma vidaova, uma catástrofe! O bilhete é seu, claro, mas seosse meu, antes de mais nada, naturalmente euompraria algum imóvel, algo como umaropriedade, no valor de, digamos, 25 mil; deixari

ns 10 mil para despesas extras: mobília nova... umaiagem... pagamento de dívidas e assim por diante.

Os 40 mil restantes colocaria no banco, para renderuros...— Realmente, uma propriedade seria ótimo — disse

mulher sentando-se e deixando cair os braços noolo. Nalgum canto, na região de Tula ou de Orlóv...m primeiro lugar, não seria preciso alugarenhuma casa de campo e, em segundo, não deixa

e ser uma renda.na imaginação dele começaram a se aglomerarmagens, uma mais poética e aprazível que a outra.

em cada uma delas ele se via satisfeito, tranqüilo,audável e chegou a sentir um calorzinho agradável,

m calorzão, mesmo! Lá está ele, depois de teromido uma sopa de legumes fria como o gelo, dearriga para cima na areia quente, na beira do rio ou

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o jardim mesmo, embaixo de uma tília... Faz calor...O filho e a filha rastejam perto dele, rolam na areia

u caçam algum bichinho na relva. Cochilaocemente sem pensar em nada e sente com todo o

orpo o que significa não ter de ir ao serviço nemoje, nem amanhã, nem depois. E quando cansar decar deitado, pode ir ver cortar o feno, ou aoosque, colher cogumelos, ou então ficarbservando como os camponeses pescam os peixes

om o arrastão. Ao pôr-do-sol, pega um pano, umabonete e esgueira-se na casa de banho, onde seespe devagarzinho, passa um tempão alisando oeito nu com as palmas das mãos e finalmente ca'água. Na água, Os peixinhos se agitam em voltas bolhas turvas de sabão e as plantas aquáticasalançam na corrente. Depois dobanho, um chá comreme e rosquinhas doces... À noite, um passeio ouma partida de uíste com os vizinhos.

— Sim, seria bom comprar uma propriedade — dizmulher, também sonhando. Lê-se em seu rosto questá encantada com os próprios pensamentos.van Dmítritch imagina o outono chuvoso, as noitesrias, o veranico. Nessa época é preciso andar um

empão pelo jardim, pela horta, pela margem do rioté sentir bem o frio e depois beber um copoheinho de vodka junto com cogumelos salgados ou

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m pepino em salmoura e pronto — tomar outrorago. As crianças vêm correndo da horta, trazendoenoura e nabo. Sente-se o cheiro fresco da terra...

Depois, estirar-se no sofá e folhear uma revista

ualquer, sem pressa, até que o sono chegue. Cobrirrosto com a revista, desabotoar o colete e entregar-e...

Após o veranico o tempo é fechado, ruim. Chove dinoite. As árvores despidas choram, o vento é

mido e frio. Os cachorros, os cavalos, as galinhas— não há quem não esteja molhado, melancólico,ncolhido. Não se tem por onde passear; sair deasa, nem falar! Passa-se o dia inteiro andando dem canto para outro e olhando tristemente pelas

anelas embaçadas. Que coisa enfadonha!van Dmítritch parou e olhou para a mulher.

— Sabe de uma coisa, Macha, eu iria é para ostrangeiro.

ficou pensando como seria bom viajar para ostrangeiro, cruzar o oceano profundo e irparalgum lugar no sul da França, para a Itália... Parandia!

— Eu também iria para o estrangeiro correndo —

isse a mulher. Mas olhe o número do bilhete!— Espere! Daqui a pouco...

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Andou pelo quarto e continuou a pensar. E semulher fosse realmente para o estrangeiro? Viajar é

om sozinho, ou em companhia de mulheresespreocupadas, sem compromisso, que vivem o

momento presente, e não com aquelas que ficam oempo todo pensando e falando em crianças,uspirando, tremendo com medo de gastar umopeque que seja. Ivan Dmítritch imaginou sua

mulher no vagão, cheia de embrulhos, cestas,

acotes: suspira e queixa-se que a viagem lhe deuor de cabeça, que gastou muitodinheiro. É precisoorrer na estação atrás de água quente, sanduíches,gua potável. Almoçar ela não pode, custa caro...Tenho certeza que ela iria controlar cada copeque”,ensou ele, olhando para a mulher. “O bilhete éela, não é meu! E pra que ela precisa ir para ostrangeiro! O que é que lhe falta ver lá demportante? Já sei. Ficará fechada o tempo todo no

otel e não me deixará desgrudar dela um sómomento.”pela primeira vez em sua vida reparou que a

mulher tinha envelhecido, ficara feia e cheiravaozinha, enquanto ele ainda era moço, saudável,

içoso, bom para se casar uma segunda vez.Claro, tudo isso é bobagem, é besteira”, pensou.Mas... para que iria ela ao estrangeiro? O que el

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proveitaria lá? Mas iria mesmo... Imagino. Para elaNápoles ou Klin iriam ser a mesma coisa. Ficaria metormentando e eu dependeria dela. Tenho certezae que na hora em que recebesse o dinheiro, iria

rancá-lo a sete chaves, como faz o mulherio... Iriascondê-lo de mim... Aos parentes dela tudo, masara mim, contaria cada copeque.”

van Dmítritch ficou pensando na parentela. Logoue todos esses irmãozinhos, irmãzinhas, titias,

tios soubessem do ganho, viriam se arrastando,ancando Os mendigos, sorrindo untuosamente,ajulando. Eta gentinha sórdida! Se lhe oferecem a

mão, pegam o braço. Se não lhe oferecem,maldiçoam, rogam pragas, desejam todo tipo deesgraça.

van Dmítritch lembrou-se de seus parentes e seusostos, que ele sempre olhara com indiferença,areciam-lhe agora odiosos, repulsivos.

São uns canalhas”, ele pensou.o rosto da mulher começou também a parecer-lhedioso, repulsivo. Em seu íntimo começou a ferverm ressentimento contra ela e ele pensou comlegria perversa: “Não entende nada de dinheiro,

or isso é avarenta. Se ganhasse, mal me daria cemublos, e o resto iria direto para o cofre”.

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á olhava agora para a mulher com ódio e não maisom um sorriso. Ela também olhava para ele com

maldade e com ódio. Ela tinha seus próprios sonhosourados, seus pianos, suas idéias e sabi

erfeitamente no que estava pensando o marido.abia que seria o primeiro a avançar no que ela teriaanho.É bom sonhar por conta dos outros!”, dizia o olharela. “Não, você não conseguirá!”.

O marido compreendeu seu olhar: o ódio ferveu-lheo peito e para decepcionar sua mulher e fazer-lhe

mal olhou rápido na quarta página do jornal enunciou solene:

— Série 9499, bilhete 46! Não 26!A esperança e o ódio desapareceram ambos deepente e, no mesmo instante, Ivan Dmítritch e sua

mulher acharam os aposentos escuros, pequenos ebafados, e o jantar que tinham acabado de comer

esado e insosso, e as noites longas e enfadonhas.— Só o diabo sabe — disse Ivan Dmítritch,omeçando a implicar. — Por todo lado que eu pise,ó há papéis, migalhas, casquinhas, sei lá. Será queunca varreram esses quartos? Terei de ir embor

e casa, o diabo que me carregue. Vou sair e menforcar na primeira árvore.

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A feiticeirara quase meia-noite. Deitado em um imenso leito,a casa do sacristão, o chantre Saveli Guikine nãoormia, se bem que tivesse o hábito de dormir cedo,

omo as galinhas. Sob a coberta imunda, feita deestos de chita de todas as cores, apareciam seussperos cabelos ruivos. Do outro lado da coberta,aíam dois pés enormes, que havia muito não eramavados. Escutava...

A casa do sacristão era cercada pelo muro curial eua única janela dava para o campo, onde se travavama verdadeira guerra. Era difícil perceber o que

azia a imensa algazarra; ou notar pela perda deuem a natureza punha tudo de pernas para o ar;

mas, a julgar pelo seu esbravejar incessante einistro, que repercutia violentamente, alguémstava em perigo... Uma força vitoriosa corria pelosampos; danificava a floresta e os telhados da igreja;

atia furiosamente nas janelas; varria; rasgava — eualquer coisa vencida urrava e chorava.O gemido lamuriento ouvia-se, ora além da janela,

ra no telhado, ora descendo pela chaminé — e nãora um apelo de socorro que se sentia nele, mas

ngustiada consciência de que não havia maisalvação, de que era tarde demais...

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Os montículos de neve estavam cobertos de umna casca de gelo e lágrimas congeladas tremiamobre eles e sobre as árvores. Pelos caminhos, ostalhos desafogavam um suco de lama e de neve

undida. Era o degelo. Mas, através da noite opaca,céu não o percebia e enviava, com toda a sua força,ovos flocos de neve. O vento rodopiava como umomem ébrio e sem permitir à neve tocar a terrazia-a voar, nas trevas, à sua mercê.

Guikine ouvia o atordoante concerto e franzia oosto. Sabia, ou pelo menos julgava adivinhar, a queevava toda essa algazarra e de quem ela era obra...

— Eu sei — dizia em um rosnar, ameaçando alguémom o dedo, sob a coberta. Sei tudo!erto da janela, sentada em um escabelo, estava sua

mulher Raissa Nilovna. Sobre outro escabelo, umaâmpada de lata, que, como se estivesse intimidad

incerta de suas forças, derramava uma tênue luz

acilante sobre seus largos ombros, sobre os belos epetitosos relevos de seu corpo, sobre suas trançasspessas, que tocavam o solo.

Costurava sacos de grossa estopa. Suas mãosorriam ligeiras, mas todo seu corpo, seus olhos,

uas sobrancelhas, seus lábios carnudos, seu longoescoço, imobilizados pelo trabalho monótono e

mecânico, pareciam dormir. De quando em quando,

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rguia a cabeça para relaxar o corpo fatigado e olharurtivamente a janela, além da qual se desencadeavatempestade. Mas, logo voltava a debruçar-se sobregrosso tecido. Nem desejos, nem tristeza, nem

legria — nada transparecia em seu rosto de narizrrebitado e faces marcadas de covinhas. Assimomo nada expressa uma bela fonte, quando nãostá jorrando.

Ao terminar um saco, atirou-o ao chão e, após

spreguiçar-se, com visível prazer, deteve sobre aanela seu olhar fixo e terno: pelos vidros,eslizavam lágrimas e a brancura dos efêmerosocos de neve que, tombando, se fundiam.

— Vem deitar-te — resmungou o chantre.— A mulher não respondeu. Mas, subitamente, seusílios começaram a mover-se a atenção brilhou emeus olhos. Saveli que, sob as cobertas, vigiava semessar as expressões de seu rosto, ergueu a cabeça e

erguntou:— Que há?Raissa respondeu, docemente:— Nada. Parece que está chegando alguém...Com as mãos e com os pés, Guikine atirou longe as

obertas, ajoelhou-se na cama e fitou a mulher, comxpressão aparvalhada. A luz tímida de pequena

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âmpada iluminou a face peluda e crestada dohantre e deslizou por sua áspera cabeça.

— Estás ouvindo? — perguntou à mulher.Através do ulular contínuo da tormenta, ele

preendeu um som de campainha muito fino,penas perceptível, semelhante ao zumbido de ummosquito, que se zanga quando é impedido de

ousar em um rosto.— É o correio — resmungou Saveli, sentando-se

obre as pernas.A três verstas da igreja passava a mala postal.Quando o vento procedia do lado da estrada, os

abitantes da casa ouviam as campainhas. A mulhero chantre suspirou:

— Senhor! Como se pode viajar, com um tempoesses...

— Questão de dever... Queiram ou não, é precisorabalhar... O som pairou no ar e extinguiu-se.

— Já se foi — disse Saveli, voltando a deitar-se.Mas mal teve tempo de puxar as cobertas: logo oom nítido da campainha novamente a seusuvidos. O chantre, inquieto, olhou para a mulher,altou da cama, sacudindo-se todo, pôs-se a andar

m torno da lareira. A campainha ainda ressoou umouco, depois silenciou, como se tivesse sidorrancada.

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O chantre murmurou, detendo-se, olhando amulher, os olhos meio fechados:— Não se ouve mais nada...

xatamente nesse momento o vento chicoteou

anela e chegou com o som fino e agudo... Savelimpalideceu, tossiu e arrastou, pelo chão, seus pésus.

— O correio perdeu sua rota — disse, com vozouca, olhando colericamente a mulher — estás

uvindo? A mala postal extraviou-se. Eu sei... Euei... Penas que não compreendendo? Sei tudo! Quediabo te carregue!

A mulher perguntou, suavemente, sem desviar oslhos da janela:

— Que sabes?— Sei que és tu que fazes tudo isso, mulher

iabólica. É obra tua... Esta tormenta, o correioxtraviado... és tu a culpada... és tu!

— Estás louco, ou és imbecil — replicouranqüilamente a mulher.— Há muito tempo venho notando... Desde o dia de

osso casamento, senti que há, em tuas veias,angue de cadela...

— Ora! — exclamou Raissa, surpresa, erguendo osmbros e benzendo-se. É melhor que faças o sinal da

Cruz, idiota!

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— És uma feiticeira, sem remédio — disse emontinuação Saveli, voz surda e dolente, assoando-e rapidamente em sua própria camisa. Emboraejas minha mulher e de condição eclesiástica, dire

m confissão o que és...— É meu dever. Senhor, protege-me e salva-me! Ono passado, no dia do profeta Daniel e dos trêsdolescentes, houve também uma tempestade deeve... e que aconteceu? Um operário veio ter aqui,

ara aquecer-se. Depois, no dia de Santo Aleixo, oHomem-de-Deus, o rio degelou. O chefe de polícia

eio... conversou a noite toda contigo, o maldito; e,ela manhã, quando saiu, tinha olheiras e as facesavadas. Hein? Que dizes disso? Também por duasezes, na festa do Salvador, houve tempestades e,essas ocasiões, um caçador veio passar a noite. V

udo! Que o diabo te carregue! Vi tudo! Ah! Agorcaste mais vermelha do que uma lagosta, vês?

— Não viste nada disso...— Tenho certeza! Vi, sim. E, neste inverno, antes doNatal, no dia dos Dez Mártires de Creta, lembra-te?O escrivão do marechal perdeu-se, não achou oaminho e veio cair aqui, o cão... E logo por quem, te

nfeitiçaste? Por um reles escrivão! Gastar tempoom uma coisa dessas! Um aborto do diabo, um,anhoso que não enxerga um palmo acima do chão,

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om a boca cheia de borbulhas e o pescoço torto...e, ao menos, fosse belo... Mas é nojento, o cachorro!

O chantre tomou fôlego, enxugou os lábios e ficoutento. Não mais se ouvia a campainha, mas o vento

ateu no telhado e a janela vibrou, novamente.aveli continuou:— E, agora, a coisa repete-se. Não é por acaso que oorreio se extravia! Podes cuspir-me na cara, se nãoa ti que ele procura! Ah! O diabo conhece bem

uas tarefas... vai extraviá-lo e o trará até aqui. Eueei! Eu vejo! Não podes mais ocultar-te de mim,uizo do diabo, monstro de luxúria! Adivinhei teusensamentos, desde que a tormenta começou.

— És um imbecil! Então achas que sou eu quemabrica o mau tempo?

— Sim, tenho certeza. Podes rir! Penas que não tomoota? Sempre que teu sangue ferve, faz logo mau

empo e, a cada tormenta, surge-nos um cretino

ualquer... Isso acontece todas as vezes... Logo, és tuculpada!ara ser mais persuasivo, o chantre levou o dedo à

esta, fechou o olho esquerdo e prosseguiu,rrastando a voz:

— Ah! Loucura e danação de Judas! Se fossesealmente uma mulher e não uma feiticeira, deviasndagar se esses homens são um operário, ou um

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açador, ou um escrivão e não o próprio demônio,isfarçado em suas figuras. Hein? Devias indagar,ão devias?

— Como és cretino, Saveli — disse a mulher,

uspirando e olhando o marido com piedade.Quando meu pai morava aqui, muitas pessoasinham procurá-lo, para curar as febres... Dasldeias, dos lugarejos, das fazendas dos armênios...

Quase todos os dias, sem que fossem tomados por

iabos. E agora, se aparece alguém, uma vez porno que seja, para abrigar-se do mau tempo, ficasogo pensando em feitiçarias, imbecil que és. Emediatamente tua cabeça se enche de toda espéciee maus pensamentos...

A lógica da mulher abalou um pouco Saveli.Afastou os pés nus, baixou a cabeça e refletiu. Nãostava ainda firmemente convencido quanto a suasuspeitas; e o tom sincero e tranqüilo da mulher o

esarmou completamente. No entanto, depois deensar um pouco, sacudiu a cabeça e disse:— É que nunca vêm velhos, ou aleijados: são sempre

omens jovens, os que pedem para passar a noite...or quê? Se ao menos buscassem apenas aquecer-

e... mas não! Fazem o jogo do diabo... Não, mulher,ão existem criaturas mais ardilosas no mundo doue as da espécie feminina... Do verdadeiro espírito,

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meu Deus, têm menos do que um estorninho, mase sua malícia diabólica que a Rainha dos Céus nosalve! Escuta a campainha do correio! Aconteceuogo que a borrasca começou... Adivinhei teus

ensamentos... Fizeste as tuas feitiçarias, teceste asuas teias, aranha!— Mas que razões trens para me maltratares assim,

esgraçado? — disse Raissa, perdendo a paciência.— Por que te colas a mim, resina?

— Maltrato-te porque, se suceder alguma coisa estaoite... Deus nos preserve disso! ... irei amanh

mesmo, de madrugada, a Diadkovo, procurar oadre Nicodime, para lhe contar tudo. Direi o que sestá passando. Assim: perdoe-me generosamente,adre, não tenho culpa, mas minha mulher é

eiticeira. Por que digo? Por quê? O senhor queraber por quê? Por isso, por aquilo... Então, pobre de, mulher! Serás punida, não só no Juízo Final, mas

qui mesmo, neste mundo, também! Para issoxistem os rituais...ubitamente, bateram à janela. Tão violentamente ee forma tão inusitada, que Saveli empalideceu encolheu-se de medo. A mulher sobressaltou-se,

mpalidecendo, também. Procedente de fora, soouma voz grossa, profunda e trêmula:

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— Em nome de Deus, deixem-nos entrar, para nosquecermos um pouco! Não ouvem? Por piedade,bram! Estamos perdidos...

— Quem sois? — perguntou a mulher do chantre,

eceosa de abrir a janela.— Somos da mala postal — respondeu uma outroz.

— Nunca fazes tuas feitiçarias em vão — disseaveli, num gesto desanimado. Já chegaram... Eu

enho razão, vês? Mas cuidado contigo!O chantre deu dois saltos, diante da cama, atirou-seobre o colchão e, fungando raivosamente, virou oosto para a parede. Logo, uma rajada fria bateu-lheas costas: a porta rangeu e, no umbral, apareceum vulto alto, coberto de neve. Atrás dele, um outroulto, também todo branco...

— Devo trazer os sacos? — perguntou o segundoulto, o da voz rouca.

— Não. Podem ficar lá.Dito isso, o primeiro homem começou a desabotoarua capa de montanha e, antes mesmo de terminar,rrancou-a, juntamente como gorro, atirando-a,rritado, para perto da lareira. Depois, despiu, com

ificuldade, o casaco e atirou-o no mesmo lugar domanto e pôs-se a andar pela sala, sem lembrar-se de

izer “boa noite”.

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ra um jovem empregado postal, metido em umaorrível túnica de uniforme, bastante gasta, e emotas surradas e sujas. Reaquecido pelo movimento,entou-se diante da mesa, estendeu os pés

nlameados sobre os sacos e apoiou a cabeça nasmãos. Seu rosto branco, com manchas vermelhas,uardava ainda a marca dos sofrimentos e dasificuldades que enfrentara. Crispado, expressãongustiada, a neve liqüefazendo-se em suas

obrancelhas, em seu bigode, em sua barba bemparada e arredondada, era, apesar de tudo, umelo rosto.

— Que vida de cão! — falou numa rosnadela,lhando as paredes, talvez sem acreditar, ainda, questivesse em abrigo aquecido. Quase passamos semer... não fosse esta luz na janela, nem sei o que noseria acontecido. E só o Diabo sabe quando tudo istoassará... Não há sentido nesta vida cachorra que

evamos!— Onde estamos? — perguntou, olhando em torno.— Procurava informar-se, baixando a voz, fixandonterrogativamente a mulher do chantre.

— Próximo a Gouliaevo, na propriedade do Genera

Kalinovski... — respondeu Raissa, tocada e corando.

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— Ouviste, Stepane? — disse ao companheiro,etido na porta pela largura do saco de couro querazia aos ombros. Estamos em Gouliaevo.

— Sim? Tão longe, ainda?

Deixando escorregar as palavras, com um suspiroouco e entrecortado, o cocheiro saiu e, poucoepois, reapareceu com um segundo saco, bem

menor do que o primeiro. Saiu mais uma vez erouxe o sabre do correio, pendente de uma larg

orreia, muito parecido como longo gládio achatadoue os artistas populares colocam nas mãos da

magem de Judite, perto do leito de Holofernes.Depois de enfileirar os sacos ao longo da parede,entou-se e acendeu o cachimbo.

— Talvez queiram tomar um pouco de chá — dissemulher do chantre.

— Não se trata de tomar chá — respondeu oomem, de cara fechada. Trata-se de nos

quecermos um pouco e partir o mais depressaossível: não podemos chegar atrasados para o trema mala postal. Descansaremos uns dez minutos eeguiremos viagem. Só queremos que tenhaondade de nos indicar o caminho.

A mulher suspirou:— Parece castigo de Deus, um tempo assim...— Sim...Talvez seja... Quem é a senhora?

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— Nós? Somos daqui mesmo... adidos à igreja...ertencemos ao clero... Vejam: meu marido já esteitado. Levante-se, Saveli! Vem dizer boa noite...

Antes, existia aqui uma paróquia. Mas foi suprimida

á um ano e meio. Quando os chefes viviam aqui,inha muita gente... é natural. Bem que valia a penermos um padre... Mas agora, faça idéia... comooderia viver aqui um clérigo, coma aldeia maisróxima, Markovka, a cinco verstas? Saveli, no

momento, não tem cargo. Está substituindo oelador... foi incumbido de tomar conta da igreja.ntão, o homem ficou sabendo que, se Saveli tivesse

do falar à mulher do general e escrito uma carta aorcebispo, certamente lhe teriam dado um bomugar. Mas não o fizera porque era um sujeitoreguiçoso e selvagem.

— Se bem que, servindo ele de zelador,ontinuamos a fazer parte do clero — esclareceu,

inda, a mulher do chantre.— E de que vivem?— Há o prado e o jardim da igreja. Mas isso nãoende grande coisa — disse, suspirando, a mulher.

— O Padre Nicodime, de Diadkovo, que tem olho

rande, acha que, só porque diz missa aqui nos diase São Nicolau do Verão e de São Nicolau do

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nverno, tem o direito de pegar quase tudo para ele.não há ninguém que nos sustente...

— Mentes — gritou Saveli. O Padre Nicodime éma santa alma, uma flâmula da igreja. O que ele

ega é regulamentar.O hóspede sorriu:— Como teu homem é zangado! Estás casada hmuito tempo?— Há quatro anos... contando do Domingo do

erdão. Papai era chantre, aqui;... quando sua hore aproximou, dirigiu-se ao consistório, pedindo queeu lugar ficasse para mim, até que nomeassem umhantre solteiro e eu me casasse com ele. Foi assimue me casei...

— Então de uma só cajadada mataste dois coelhos,ein? Pegaste o lugar e pegaste a mulher — disseaveli, que se conservava silencioso e de costas.aveli agitou nervosamente o pé e reaproximou-se

a parede. O hóspede levantou-se, espreguiçou-se eentou-se sobre um dos sacos. Ficou um instanteensativo. Depois, apalpou o saco em que seentara, examinando-o, mudou o sabre de lugar espichou-se, com uma das pernas pendentes.

— Vida de cão! — resmungou, levando as mãos àabeça e fechando os olhos. Não desejo uma vidaessas ao mais feroz dos tártaros.

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O correio brincou: Logo, veio o silêncio. Ouvia-seaveli fungar, enquanto o correio, adormecido,espirava lenta e tranqüilamente, deixando escapar,cada exalação, um ruído cheio e prolongado. Dir-

4e-ia, em certos momentos, que uma pequena roda,mal lubrificada, rangia em sua garganta. Sua perna,rêmula, arranhava o saco.aveli voltou-se, sob as cobertas, e olhou lentamentem derredor. Sua mulher, sentada no escabelo, o

osto entre as mãos, contemplava o hóspede; e seuslhos tinham a fixidez dos seres dominados pelospanto e pelo medo.rritado, grunhiu:

— Vamos! Que estás olhando?— Que te importa? Continua deitado e deixa-me em

az — respondeu a mulher, sem desviar o olhar daabeça loura do jovem.aveli, furioso, suspirou profundamente e, de novo,

irou-se para a parede. Instantes depois, inquieto,joelhou-se na cama e, apoiado no travesseiro,bservou a mulher, de esguelha. Raissa, imóvel,ontinuava a contemplar o viajante: suas facesstavam mais pálidas e em seu olhar brilhava uma

stranha luz. O chantre gemeu, deixou-se escorregara cama e, aproximando-se do homem adormecido,olocou-lhe um lenço no rosto.

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— Por que estás fazendo isto? — perguntou amulher.— Para que a luz não lhe bata nos olhos.— Então, o melhor é apagar tudo.

aveli fixou-a, cheio de suspeitas, esticou os lábiosm direção à lâmpada... Deteve-se, porém, e cruzous braços, exclamando:

— É uma astúcia diabólica! Não existem criaturasmais ardilosas do que as da espécie feminina!...

— Ah! Basta, demônio de batina — sibilou a mulher,rispada de raiva. Não perdes por esperar., acomodando-se melhor, recomeçou suaontemplação ao jovem hóspede.

Não importava que seu rosto estivesse coberto: issointeressava muito menos do que a visão geral, o

onjunto, a novidade e a juventude do homemdormecido. Um peito largo e forte; belas mãos,nas e musculosas; pernas rígidas e muito mais

traentes do que as gâmbias de Saveli: não haviaomparação...— Posso ser o diabo de batina — disse Saveli, aoabo de alguns instantes. Mas eles não têm o direitoe vir dormir aqui. Sim... Não têm o direito! O

erviço deles e dever de Estado... e nós seremosesponsáveis, também, se permitirmos que percam oorário. Quando se transporta a mala postal, deve-

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e levá-la a seu destino, Não se tem o direito deormir. Ei! Tu, aí! — gritou. Tu, aí, cocheiro! Como

e chamas? Queres que eu te conduza? Levanta-te.Não está certo dormir, quando se tem a

esponsabilidade da mala postal...!erdeu a paciência, precipitou-se para o correio euxou-o pela manga:

— Ei! Doutores! Enquanto se pode andar, o dever éaminhar. Se não se pode, tanto pior! O que não é

erto é ficar dormindo...O jovem abriu os olhos, esticou o corpo, sentou-seobre o leito improvisado, correu o olhar ainderturbado pelo quarto e deitou-se, novamente.aveli puxou-o mais ima vez pela manga,

martelando as palavras:— Afinal, quando pretendes partir? A mala postalxiste para chegar a tempo, não compreendes? Vou

mostrar-te o caminho.

O jovem entreabriu os olhos. Aquecido, prostrado,molecido pela doçura do primeiro sono, nãootalmente desperto ainda, via, como através de uméu, o colo branco, o olhar fixo e úmido de Raissa:echou os olhos e sorriu, como se tudo aquilo não

assasse de um sonho. Ouviu uma doce voz demulher:

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— Como será possível viajar, com um tempo desses?ariam melhor dormindo o quanto quiserem...

— E a mala? Quem levará a mala? Tu a levarás?aveli falava, alarmado. O hóspede abriu os olhos,

ontemplou as vivas covinhas da mulher: lembrou-e do local em que se encontrava e compreendeu. Adéia de sair, pelas gélidas trevas, arrepiou-o daabeça aos pés. Franziu a testa. Bocejou:

— Bem que ainda podíamos ficar, por uns cinco

minutos. De qualquer maneira, já chegaremostrasados...

Ouviu-se a voz do cocheiro, à porta:— Talvez ainda a gente chegue a tempo. Com umempo mau assim o trem deve estar atrasado.

O jovem ergueu-se, espreguiçou-se e, sem pressa,estiu o casaco. Saveli, vendo que os homens doorreio se preparavam para partir, relinchou deatisfação.

— Ajuda-me aqui! — gritou-lhe o cocheiro,rocurando levantar um grande saco.O chantre correu em seu auxílio e arrastou os sacos

ara o pátio. O outro empregado público começouesdobrar seu grosso manto. Raissa olhava seus

lhos, como se procurasse sondar-lhe a alma...— Pelo menos, deviam tomar um pouco de chá...

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— Bem que eu gostaria — respondeu o jovem. Masá está tudo preparado... É verdade que, de qualquermaneira, já estamos atrasados...— Então fique — sussurrou a mulher, olhos baixos,

ocando-lhe a manga...— O jovem conseguiu, enfim, desatar o nó do manto, indeciso, colocou-o, dobrado, no braço. Sentia-serder, perto da jovem mulher.

— Que lindo pescoço!

Acariciou-lhe levemente o pescoço, com a ponta dosedos. Sentindo falta de resistência, tocou suas

mãos, seu colo, seus ombros.— Como és bela!— Fique mais um pouco, para tomar chá... Ouviu-e, de fora, a voz do cocheiro:

— Que está fazendo com este saco, seu cara de arrozozido com melaço? Ponha atravessado!

— Fique — dizia a mulher. Veja como a tempestade

stá rugindo.Ainda não totalmente desperto, não podendoesistir ao apelo amolecedor de um sono sadio, oovem foi subitamente tomada do desejo da mulherróxima, esquecendo os sacos de cartas, os trens-

orreios, todas as coisas do mundo...Assustado,omo se quisesse fugir, ou ocultar-se, voltou asostas à porta, abraçou a mulher pela cintura e já se

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ebruçava sobre a pequena lâmpada, par4axtingui-la, quando ouviu ruído de botas noorredor e o cocheiro apareceu. Atrás dele, Savelilhava-o Deixou cair rapidamente os braços,

esitante.— Tudo pronto — disse o cocheiro.or um segundo, ficou imóvel. Depois, sacudiuabeça e, completamente desperto, seguiu oocheiro. Raissa ficou só.

— Vamos! Sobe! Mostra-nos o caminho! — ouviula.

Uma campainha começou a tocar, preguiçosamente.Depois, outra... e mais outra... e os sons,ncadeando-se, suavemente, distanciaram-se.

Quando, pouco a pouco, extinguiram-se, a mulhero chantre ergueu-se e pôs-se a andarervosamente. Muito pálida, de início, enrubesceu

ogo. Seu rosto convulsionou-se de ódio. A

espiração ofegava. Os olhos brilharam, numampejo de irritação selvagem e cruel. Andandoomo se estivesse presa em uma gaiola, lembravm tigre espicaçado com ferro em brasa. Deteve-sem instante, lançando um rápido olhar sobre o

lojamento. O leito ocupava quase a metade doompartimento: alongava-se, na extensão da parede,om seu colchão sujo, seus travesseiros duros e

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inzentos, suas cobertas feitas de trapos. Formavam amontoado informe, muito semelhante à cara dohantre, quando ele cedia ao desejo de sempomadar. Do leito até a porta que dava para o

orredor frio, avultava a lareira, com os seussfregões e suas panelas suspensas. Tudo, semxcluir Saveli, apresentava-se no superlativo damundície, dentro do ambiente enfumaçado, no qualarecia estranho ver-se o pescoço alvo e a pele

macia e fina da mulher.Raissa correu à cama, estendeu a mão, como se

uisesse dispersar, pisar aos pés, reduzir a pó tudoquilo. Mas, apavorada ao contato de toda aquelamundície, recuou e recomeçou a andar.

Quando, duas horas depois, Saveli voltou, cobertoe neve e extenuado, já a encontrou deitada. Seuslhos permaneciam fechados, mas, pela levealpitação do rosto, o chantre adivinhou que não

ormia. Não pôde privar-se de feri-la, de ofendê-la,mbora em todo o trajeto de volta tivesse prometidosi próprio nada dizer-lhe, até o dia seguinte, e não

ocá-la:— De nada serviram tuas feitiçarias... Ele se foi!

alava com uma ironia malévola. Raissa, no entanto,alava-se. Somente o queixo tremia. Saveli despiu-seentamente, passou por cima do corpo da mulher e

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eitou-se bem junto à parede. Encolheu-se,murmurando:— Explicarei tudo amanhã ao Padre Nicodime...Contarei a mulher que tu és!

— Podes ficar com a casa. Mas vais procurar outramulher na floresta. Não sou a mulher que mereces.Ah! Como seria bom que estourasses de uma vez!Que grosseiro, que vagabundo caiu-me em cima!Deus me perdoe... é o que sinto...

— Vamos, vamos... Dorme!— Sou muito desgraçada — disse, soluçando,mulher. Se não tivesses aparecido, talvez eu casasseom um negociante, ou com um nobre. Se meu

marido fosse outro, eu o amaria agora. Por queeve não te sepultou de uma vez? Por que nãocaste congelado na estrada, Herodes?

Chorou longamente. Por fim, suspirou bem fundo ecalmou-se. A tormenta crescia cada vez mais, além

a janela. Na lareira, na chaminé, do outro lado dasaredes, alguma coisa chorava; e a Saveli pareciaue esse choro era dentro dele próprio e perto deeus ouvidos. Naquela noite, ficou definitivamenteonvencido da verdade de suas suspeitas em relação

mulher. Não duvidava mais de que, com a ajudao maligno, ela dispusesse das tempestades e das

róicas do correio. Não duvidava. E, como para

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umentar seu sofrimento, esse poder sobrenatural,sse mistério e essa força selvagem davam à mulher,eitada a seu lado, um fascínio especial,

ncompreensível mesmo, que nunca percebera antes.

em que se desse conta, ele a poetizara e parecia-lheue se tornava agora ainda mais branca, mais suave,mais distante.— Feiticeira! — exclamou, com raiva. Fora, su

ojenta!

No entanto, na suposição de que, já acalmada, elaomeçasse a respirar regularmente, tocou-lhe aunca com os dedos. E tomou nas mãos sua pesada

rança. Ela não o sentiu. Mais audacioso, acariciou-he o pescoço.

— Deixa-me! — gritou a mulher. E, com osotovelos, bateu-lhe tão fortemente no nariz, queentelhas cegaram seus olhos, por instantes.la se voltou bruscamente. Seus olhos faiscavam.

A dor do chantre acalmou-se logo. Mas seu suplícioontinuou...

A mulher do farmacêuticoA cidadezinha de B., composta de duas ou três ruas

ortas, dorme um sono profundo. No ar parado tudosilêncio. Ouve-se apenas, ao longe, decerto além

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a cidade próxima, o tenorzinho ralo e rouco dosatidos de um cão. Aproxima-se a madrugada.

Há muito tempo que tudo dorme. Só não dormeovem esposa do farmacêutico. Tchornomordik,

ono da farmácia de B. Por três vezes ela já seeitou — mas o sono teima em não vir — e não seabe porquê. Ela sentou-se junto à janela aberta, deamisola, e olha para a rua. Está com calor,borrecida, entediada — tão entediada que tem até

ontade de chorar, mas por que também não seabe. Sente um bolo esquisito no peito, querendoubir para a garganta a toda hora... Atrás, a algunsassos da mulher, aconchegado junto à parede,onca pacificamente o próprio Tchornomordik. Umulga voraz grudou-se-lhe ao nariz, mas ele não aente, e até sorri, porque sonha que na cidade todosstão tossindo e compram-lhe incessantementeGotas do Rei da Dinamarca”. Agora não é possíve

cordá-lo nem com picadas, nem com canhões, nemom carinhos.A farmácia fica quase na beira da cidade, de modo

ue a mulher do farmacêutico pode ver campina,em longe. Ela vê como pouco a pouco clareia a

orda oriental do céu, e depois fica rubra, como queo clarão de um grande incêndio. De repente, de

rás de uma touceira distante, aparece uma grande

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ua de cara larga. Está vermelha (em geral a lua,uando sai de trás dos arbustos, costuma estar, nãoe sabe porque, horrivelmente encabulada).úbito, no silêncio noturno, ressoam passos e o tinir

e esporas. Ouvem-se vozes.Devem ser oficiais voltando do distrito policial,ara o acampamento” — pensa a mulher do

armacêutico.ouco depois, aparecem dois vultos vestidos com as

únicas brancas de oficiais; um grande e gordo, outro menor e mais esguio... Preguiçosamenterrastando os pés, eles vêm andando ao longo derca, a conversar em voz alta. Chegando até aarmácia, os dois vultos começam a andar ainda

mais devagar e olham para as janelas.— Cheira à farmácia... — diz o magro. E é umaarmácia mesmo! Ah, já me lembro... estive aqui naemana passada, comprei óleo de rícino. De um

armacêutico de cara azeda e queixada de burro. Eue queixada, homem! Foi com uma dessas queansão matava os filisteus.

— Hum... — diz o gordo com voz de baixo. Dormeotica. E o boticário também dorme. Aqui,

Obtiossov, existe uma boticária bonitinha.

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— Eu a vi. Ela me agradou muito... Diga-me, doutor,erá possível ela amar essa queixada de burro? Serossível?

— Não, decerto ela não o ama — suspira o doutor

om expressão de quem tem pena do farmacêutico.— E agora, dorme a belezinha atrás da janelinha!Hein, Obtiossov? Descobriu-se com o calor...

oquinha entreaberta... e a perninha pende para foraa cama... Vai ver, o burro do farmacêutico nem

ntende nada desta riqueza... Para ele, quiçá, umamulher ou uma garrafa de ácido carbólico, émesma coisa!— Sabe duma coisa, doutor? — diz o oficial,

arando. Vamos entrar na farmácia e comprarualquer coisa. Quem sabe, vai dar pra ver afarmacêutica”.

— Que idéia! No meio da noite!— E daí? Então eles não têm obrigação de atender

ambém à noite? Vamos, amigão!— Vá lá...A mulher do farmacêutico, escondida atrás dortina, ouve a campainha esganiçada. Com umápido olhar para o marido, que ronca como dantes

sorri beatificamente, ela enfia o vestido, põe osapatos nos pés descalços e corre para a farmácia.

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Atrás da porta de vidro percebem-se duas sombras.A mulher do farmacêutico aviva o fogo da lâmpada

corre para abrir a porta, e já não está tãoborrecida, nem entediada, nem tem vontade de

horar, só o coração bate com muita força. Entram oordo doutor e o esguio Obtiossov. Agora já dá paraxaminá-los. O barrigudo doutor é moreno, barbudodesajeitado. Ao menor movimento, a túnica lhe

stala no corpo e o suor lhe umedece o rosto. Já o

ficial é rosado, glabro, efeminado e flexível comom relho inglês.

— O que desejam os senhores? — pergunta amulher do farmacêutico, aconchegando o vestidoobre o seio.

— Dê-nos... eeehh... quinze copeques de pastilhas deortelã.

A mulher do farmacêutico alcança sem pressa o potea prateleira e põe-se a pesar. Os compradores, sem

iscar, fitam-lhe as costas; o doutor franze o rostoomo um gato satisfeito, mas o tenente está muitoério.

— É a primeira vez que vejo uma senhorarabalhando numa farmácia — diz o doutor.

— Isso não tem nada de extraordinário... —esponde a mulher do farmacêutico, olhando de

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sguelha para o rosto rosado de Obtiossov. Meumarido não tem auxiliares, e eu sempre o ajudo.— Ah, é assim... pois a senhora tem aqui umarmácia muito simpática... Que quantidade destes...

iversos potes! E a senhora não tem medo de mexerom estes venenos! Brrr!A mulher do farmacêutico fecha o pacotinho entrega-o ao doutor. Obtiossov dá-lhe quinzeopeques. Meio minuto passa em silêncio. Os

omens se entreolham, dão um passo em direção àorta, entreolham-se novamente.

— Dê-nos dez copeques de bicarbonato! — diz ooutor. A mulher do farmacêutico, movendo-sereguiçosa e lentamente, torna a estender a mãoara a prateleira.

— Será que não existe aqui na farmácia algumaoisa assim... — balbucia Obtiossov, mexendo osedos — alguma coisa assim, sabe, alegórica, um

uido vitalizante qualquer... água de Seltzer, talvez?A senhora tem água de Seltzer?— Tenho — responde a mulher do farmacêutico.— Bravo! A senhora não é mulher, e sim uma fada.Arranje-nos três garrafinhas!

— A mulher do farmacêutico embrulha apressada oicarbonato e desaparece na escuridão atrás dorta.

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— Que fruto! — diz o doutor, piscando um olho.Uma romã dessas, Obtiossov, nemna ilha daMadeira você encontra. Hein? Que acha?

ntretanto... está ouvindo o ronco? É o próprio

enhor farmacêutico que se digna repousar.Um minuto depois, volta a mulher do farmacêuticopõe sobre o balcão cinco garrafas. Ela acaba de

oltar do porão e por isso está corada e um poucoxcitada.

— Pssst... mais baixo — diz Obtiossov, quando ela,brindo as garrafas, deixa cair o saca-rolhas. Nãoaça tanto barulho, senão vai acordar o marido.

— E que é que tem, se o acordar?— Ela está dormindo tão gostoso... sonhando... com

senhora... À sua saúde!— E depois — diz o doutor com sua voz de baixo,rrotando devido à gasosa — os maridos são umaistoria tão cacete, que fariam bem se dormissem o

empo todo. É, com esta agüinha seria bom uminhozinho tinto.— Essa agora, que idéia! — ri a mulher doarmacêutico.

— Seria excelente! Pena que nas farmácias não

endam bebidas espirituosas! Entretanto... a senhoreve vender vinho como remédio. A senhora temvinum gallicum rubrum”?

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— Tenho.— Então! Traga-o aqui! Com os diabos, carregue-o

ara cá.— Quantos desejam?

— “Quantum satis!” Primeiro a senhora nos dá umança para cada copo, e depois, veremos... Hein,Obtiossov? Primeiro, com água, e depois, per se...O doutor e Obtiossov sentam-se junto ao balcão,

ram os quépis e põem-se a beber o vinho tinto.

— Mas este vinho, força é confessar, é o que há deéssimo! “Vinum ruinzissimum”. Porém, naresença de... eeeh... ele parece um néctar! Aenhora é encantadora, madame! Beijo-lhe emensamentos a mãozinha.

— Eu pagaria caro para poder fazê-lo sem ser emensamentos! — diz Obtiossov — palavra de honra!u daria a vida!

— O senhor, por favor, deixe disso... — diz a

enhora Tchornomordik, enrubescendo e fazendoma cara séria.— Mas como a senhora é coquete! — ri o médico em

oz baixa, fitando-a de esguelha, com ar malandro.— Os olhinhos soltam chispas, dão tiros: pif! paf!

Meus parabéns! A senhora venceu! Fomoserrotados!

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A mulher do farmacêutico observa os seus rostosorados, ouve a sua tagarelice e logo também ficanimada. Oh, ela já está tão alegre! Ela entra nonversa, ri, coquete, dengosa, e até, após longas

úplicas dos compradores, bebe umas duas onças deinho tinto.— Os senhores oficiais deveriam vir mais vezes par

cidade, lá do acampamento — diz ela — porqueenão aqui é um horror de cacete! Eu quase morro.

— E não é para menos! — horroriza-se o doutor —ma romã assim... maravilha da natureza... nesteeserto! Como tão bem o disse Griboiedov: “Para oeserto! Para Saratov!” Mas já é tempo de irmos.

Muito prazer em conhecê-la... imenso! Quantoevemos?

A mulher do farmacêutico ergue os olhos para o tetofica muito tempo movendo os lábios.

— Doze rublos, quarenta e oito copeques! — diz ela.

Obtiossov tira do bolso uma carteira recheada,emexe longamente no maço de notas e paga.— Seu marido dorme deliciosamente... tem sonhos...— murmura ele, apertando a mão da mulher doarmacêutico em despedida.

— Não gosto de ouvir tolices...

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— Que tolices são essas? Pelo contrário... não sãoolices... Até Shakespeare já disse: “Feliz quemovem foi na juventude!”— Solte a minha mão!

inalmente, os compradores, após prolongadasespedidas, beijam a mão da mulher doarmacêutico e, hesitantes, como que ponderando seão esqueceram alguma coisa, saem da farmácia.ela corre depressa para o quarto e senta-se junto

a mesma janela. Ela vê como o doutor e o tenente,aindo da farmácia, preguiçosamente se afastam unsinte passos, depois param e começam a cochicharntre si. Sobre o que será? Seu coração palpita, asontes latejam, e por que — ela mesma não sabe... Ooração bate com força, como se aqueles dois,ochichando lá fora, estivessem decidindo seuestino.

Uns cinco minutos depois, o doutor separa-se de

Obtiossov e se afasta, ao passo que Obtiossov volta.le passa pela farmácia uma vez, outra... Ora seetém perto da porta, ora recomeça a caminhar...inalmente, cautelosa, tilinta a campainha.

— O que foi? Quem está aí? — Ouve ela de repente

voz do marido. Estão tocando lá fora, e você nãoscuta! — diz o farmacêutico, severo. Queesordem!

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le se levanta, veste o roupão, e, cambaleando meiodormecido, arrastando os chinelos, vai para aarmácia.

— O que... deseja? Pergunta ele a Obtiossiov.

— Dê-me... dê-me quinze copeques de pastilhas deortelã.Com infinito resfolegar, bocejando, adormecendom pé e batendo com os joelhos no balcão, oarmacêutico escala a prateleira e alcança o pote.

Dois minutos depois, a mulher do farmacêutico vêObtiossov sair da farmácia e, depois de alguns

assos, jogar as pastilhas de hortelã na estradaoeirenta. Detrás da esquina, ao seu encontro, vem

doutor... Os dois se juntam e, gesticulando,esaparecem na névoa matinal.

— Como sou desgraçada! — diz a mulher doarmacêutico, olhando com raiva para o marido, quee despe apressado para voltar a dormir. Oh! Como

ou desgraçada! — repete ela, debulhando-se, deepente, em lágrimas. E ninguém, ninguémompreende...

— Esqueci quinze copeques sobre o balcão —albucia o farmacêutico, puxando o cobertor.

Guarde, por favor, na gaveta.adormece imediatamente.

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Anton Pavlovitch Tchekhoviografia

Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904)Dramaturgo e romancista russo, nascido em

aganrog.Ao findar o século XIX, a Rússia debatia-se nasarras de terrível reacionarismo. A vida do povo erriste, pesada, sem esperanças. Profunda apatiaesava sobre as classes intelectuais, cansadas e

esiludidas das lutas políticas. Uns se lamentavamem cessar; outros se entregavam a uma existênciae completa indiferença...oi nessa Rússia que surgiu um escritor cujas obrasanharam enorme repercussão. Chamava-se Antoavlovitch Tchekhov, era médico e, apesar de sofrero peito, levava uma vida agitadíssima. Nascera deais pobres em 1860 e a custo de esforços lograroncluir o curso com distinção, sendo nomeado

rofessor da Faculdade de Medicina dUniversidade de Moscou.Começou a escrever para os jornais da capital e de

ão Petersburgo, mas, a princípio, seus trabalhosoram mal recebidos. Ao contrário do que sucedia

om os outros grandes autores eslavos, asersonagens de Tchekhov não eram tragicamenterofundas; não gritavam, não urravam, não

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maldiçoavam céus e terras; levavam uma vidaalada, monótona, melancólica. Quando se reuniam,alavam de coisas vagas — de um barco pintado dezul; de pobres soldados discorrendo sobre vários

emas; de uma velha governanta que passa seus diaspensar na cor dos olhos do filhinho, do meninoue está ajudando a criar; de um jovem médico quee levanta de manhã bem cedo, enquanto o resto daidade está dormindo sob a neve, para meditar em

az na hora que precede o amanhecer... Tudo muitomelancólico, muito melancólico.

ssa aparente dispersão de assunto, esse estiloebuloso e vago, provocou estranheza. A Rússia nãostava habituada a tanta sutileza. De repente,orém, o império inteiro reconheceu-se, de corpo elma, na obra do novo escritor. A glória logo lheorriu. Concederam-lhe o prêmio Pushkin,legeram-no para a Sociedade dos Amigos da

iteratura Russa, e, suprema honra, construíram umeatro especialmente para a representação de suaseças.

Raros autores foram tão amados pela sua genteomo Tchekhov. Ele conhecia intimamente todas as

raquezas, todas as pequenas misérias do seu povo,mas em lugar de fustigá-lo, como Dostoiévski, ou de

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xaltá-lo, como Tolstoi, compadecia-o e, às vezes,horava com ele.no conto que o gênio de Tchekhov se expande em

oda a sua extensão. Na narrativa curta a sua arte

níssima encontrou o clima propício para oorescimento dos seus dotes de observadorenamorado da humanidade”, como escreveu