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MARIA FERNANDA RISCALI DE LIMA MORAES
A Fotografia do Conflito:
uma parceria entre Sergei Eisenstein e Eduard Tissé
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre.
Área de Concentração: Poéticas e Técnicas.
Orientador: Prof. Dr. Atílio José Avancini
São Paulo
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Moraes, Maria Fernanda Riscali de Lima A Fotografia do Conflito: uma parceria entre Sergei
Eisenstein e Eduard Tissé / Maria Fernanda Riscali de Lima Moraes. -- São Paulo: M. R. L. Moraes, 2015.
88 p.: il. + DVD.
Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. Orientador: Prof. Dr. Atílio José Avancini Bibliografia
1. cinema 2. montagem 3. fotografia do conflito 4. arte
5. Roland Barthes I. Avancini, Prof. Dr. Atílio José II. Título.
CDD 21.ed. - 791.43
Termos de Aprovação
Nome do Autor: MORAES, Maria Fernanda Riscali de Lima
Título da Dissertação: A Fotografia do Conflito: uma parceria entre Sergei Eisenstein e
Eduard Tissé
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre.
Presidente da Banca: Prof. Dr.:__________________________________________
Banca Examinadora:
Prof. Dr.:________________________ Instituição:___________________________
Julgamento:______________________ Assinatura:___________________________
Prof. Dr.:________________________ Instituição:___________________________
Julgamento:______________________ Assinatura:___________________________
Aprovada em:
_______/________/_________
RESUMO
MORAES, Maria Fernanda Riscali de Lima. A Fotografia do Conflito: uma parceria entre
Sergei Eisenstein e Eduard Tissé. 2015. 88 páginas. Dissertação (Mestrado). Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.
São muitas as parcerias no cinema, mas a que relaciona o diretor de cena ao diretor de
fotografia é certamente a principal. A proposta desta dissertação de mestrado é analisar o
estilo de fotografia criado por Eduard Tissé em três dos filmes que trabalhou com Eisenstein.
A metodologia teórica da pesquisa baseia-se em Roland Barthes a partir da análise do artefato
primeiro do cinema, que é o fotograma. As dimensões sociais ligadas ao materialismo
dialético e suas aplicações ao filme, na forma como o espectador promove a leitura de
sentidos, preocupavam o diretor soviético. Com isso evidencia-se o princípio conceitual de
Eisenstein, desenvolvido pela célula de montagem, na visão da sua missão sócio-cultural em
busca da fotografia do conflito.
PALAVRAS-CHAVE: arte; cinema; montagem; fotografia do conflito; Roland Barthes.
ABSTRACT
MORAES, Maria Fernanda Riscali de Lima. The Cinematography of Conflict: a
partnership between Sergei Eisenstein and Eduard Tissé. 2015. 88 páginas. Dissertação
(Mestrado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.
There are many partnerships in the movie business, but that between director and director of
photography is certainly the main one. The purpose of this dissertation is to analyze the style
of photography created by Eduard Tissé in three of the movies he worked with Eisenstein.
The theoretical research methodology is based on Roland Barthes from the analysis of the
first film artifact: the frame. The social dimensions related to the dialectical materialism and
its applications to the cinema – the way the audience reads the film sense – worried the soviet
director. With that, the conceptual principle developed by Eisenstein is highlighted in search
of the conflict cinematography.
KEYWORDS: art; cinema; editing; conflict cinematography; Roland Barthes.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Sergei Eisenstein (fotógrafo anônimo) e Eduard Tissé (fotógrafo anônimo) 09
Figura 02 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 31
Figura 03 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 32
Figura 04 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 33
Figura 05 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 34
Figura 06 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 35
Figura 07 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 36
Figura 08 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 37
Figura 09 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 38
Figura 10 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 39
Figura 11 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 40
Figura 12 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 41
Figura 13 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 42
Figura 14 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 43
Figura 15 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 44
Figura 16 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 45
Figura 17 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 46
Figura 18 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 47
Figura 19 - Fotograma do filme A Greve (1924)........................................................ 48
Figura 20 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 51
Figura 21 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 52
Figura 22 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 53
Figura 23 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 54
Figura 24 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 55
Figura 25 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 56
Figura 26 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 57
Figura 27 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 58
Figura 28 - Fotograma do filme O Encouraçado Potemkin (1925)............................ 59
Figura 29 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 64
Figura 30 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 65
Figura 31 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 66
Figura 32 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 67
Figura 33 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 68
Figura 34 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 69
Figura 35 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 71
Figura 36 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 72
Figura 37 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 73
Figura 38 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 74
Figura 39 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 75
Figura 40 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 76
Figura 41 - Fotograma do filme Ivan, o Terrível – Parte II (1958)............................ 77
Figura 42 - Steps, fotografia de Aleksandr Ródchenko (1929).................................. 80
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
I. O TRABALHO DO DIRETOR DE FOTOGRAFIA 17
I.1) A relação com o diretor de cena 17
I.2) Preparação 18
I.3) Filmagem 19
I.4) O pós-set. 20
II. OS FILMES DE EISENSTEIN SOB O PONTO DE VISTA DA
FOTOGRAFIA E DA DIALÉTICA 22
III. LEITURA DE SENTIDOS 28
III.1) A Greve (Statchka, 1924) 29
III.2) O Encouraçado Potemkin (Bronienosets Potemkin, 1925) 49
III.3) Ivan, o Terrível – Parte II (Ivan Grozny, 1958) 60
CONSIDERAÇÕES FINAIS 78
REFERÊNCIAS 83
FILMOGRAFIA 87
ANEXO – DVD com as sequências analisadas 88
INTRODUÇÃO
Sergei Eisentein
23/01/1898 – 11/02/1948 Eduard Tissé
13/04/1897 – 18/11/1961 figura 01
Antes de iniciar os estudos na área de cinema, cursei três anos de Economia na FEA-
USP e conclui o curso de Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas em 1993.
Graduei-me em Comunicação Social com habilitação em Cinema pela ECA-USP em
1994. No início do curso ainda não sabia exatamente em qual área do cinema iria trabalhar,
entretanto, logo nos primeiros anos comecei a me apaixonar pela direção de fotografia. Ainda
na universidade tive minha primeira experiência profissional: segunda assistente de câmera no
longa Olhos de Vampa, do cineasta paulista Walter Rogério, fotografado por Cláudio Portioli.
A experiência foi muito enriquecedora e fez com que me certificasse de que estava na área de
que mais gostava.
De 1995 a 2002 trabalhei como assistente de câmera para diretores de fotografia
brasileiros, dentre eles: Affonso Beato, Lauro Escorel, Pedro Farkas, José Roberto Eliezer,
Marcelo Durst, Lucio Kodato, Rodolfo Sanchez e Walter Carvalho.
9
Em 2002, com o lançamento do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, muitos
comerciais estrangeiros passaram a ser filmados no Brasil e pude fazer parte dessas equipes,
trabalhando com vários diretores de fotografia norte-americanos e europeus: Lance Acord
(Encontros e Desencontros, Maria Antonieta, de Sofia Copolla), Jeffrey Kimball, ASC (Top
Gun, de Tony Scott e Os Mercenários, de Sylvester Stallone), Vilko Filac (Quando Papai
Saiu em Viagem de Negócios e Underground, de Emir Kusturica), Pawel Edelman (Ray, de
Taylor Hackford, O Pianista e Oliver Twist, de Roman Polanski).
Em 2006, tornei-me diretora de fotografia. Meu primeiro longa-metragem nesta
função foi Nome Próprio, de Murilo Salles. Desde então, trabalho como diretora de fotografia
e operadora de câmera para comerciais, programas de TV, documentários e longas de ficção.
Conheci o trabalho de Eduard Tissé em 2012, quando fui aluna especial da disciplina
“Poéticas e Técnicas da Montagem”, ministrada pelo Prof. Dr. Arlindo Machado, Profa. Dra.
Maria Dora Genis Mourão, Prof. Dr. Eduardo Santos Mendes e Prof. Dr. Almir Almas, na pós
graduação da ECA-USP. Já tinha visto alguns filmes de Sergei Eisenstein durante a
graduação, mas somente após trabalhar na área de fotografia por tantos anos percebi como
esses filmes eram bem fotografados. Quando assisti Cavaleiros de Ferro (1938) e soube que a
sequência da “Batalha no Gelo” havia sido feita em estúdio, compreendi que estava diante de
um gênio da fotografia. Tive a certeza de que os filmes de Eisenstein não deveriam ser
estudados apenas sob a ótica da montagem, mas que um estudo sobre a fotografia de seus
filmes seria de grande importância.
Essa dissertação surgiu, portanto, de meu interesse particular por cinematografia e de
uma necessidade de compreender melhor o trabalho de Tissé, importante até os dias de hoje
por ter sido parceiro de Eisenstein na criação de imagens que ficaram gravadas na história do
cinema mundial.
***
Surgida por volta de 1910, a indústria cinematográfica russa, que foi, em um primeiro
momento, inteiramente dominada por companhias estrangeiras, teve um impulso importante
durante a Primeira Guerra Mundial e, notadamente no governo de Alexander Kerenski,
segundo e último primeiro-ministro do governo provisório russo, exercendo o poder de 21 de
julho a 8 de novembro de 1917. Como líder revolucionário, desempenhou um papel
primordial na queda do regime czarista na Rússia e aboliu a censura.
Mas, com a revolução bolchevique, golpe que derrubou o governo provisório e
instalou o socialismo na Rússia, instaurou-se no país um bloqueio que proibia a importação de
10
película, numa época em que sua fabricação na Rússia era apenas embrionária. Isso provocou
uma crise no cinema, levando produtores, atores e diretores a deixar o país.
Com o fim da guerra civil, o cinema foi retomado pela agitação comercial. Depois de
ter autorizado, na falta de uma produção atual, a distribuição de filmes pré-revolucionários, o
governo autorizou a importação de filmes estrangeiros.
No fim de 1921, Vladimir Lenin (1870-1924), líder do Partido Comunista da União
Soviética e grande nome da formação do país, responsável por conduzir os trabalhadores na
revolução e por estruturar a política e a economia do novo país, sugeriu uma reorganização
completa da indústria. Em janeiro de 1922, deu instruções para que todo programa de cinema
contivesse um filme de diversão e outro de educação política. Foi criado um órgão destinado a
absorver todas as firmas existentes e que passou a ter o monopólio da distribuição sobre todo
o território da URSS: o Goskino (Gosudarstvennoe Kino ou Comitê de Estado para a
Cinematografia).
Mas o Goskino herdou fábricas e estúdios desmantelados, cuja reforma levou ao seu
endividamento e acabou por fracassar na criação de uma “alternativa soviética”. Em março de
1923, enfim, o governo se voltou com seriedade para o cinema e pediu o desenvolvimento de
uma produção dirigida e controlada ideologicamente pelo Estado.
Em 1924, foi criado o Sovkino (Sovetskoe Kino ou Cinema Soviético), que substituiu
o Goskino e tinha as mesmas tarefas deste. A única política do governo em matéria de cinema
consistia na vontade de instaurar um monopólio, de centralizar completamente o setor, o que
seria mortal para o cinema de vanguarda.
Em seu livro A Forma do Filme, Sergei Eisenstein comenta que no início dos anos
1920 os profissionais que foram trabalhar no cinema soviético não tinham uma formação
específica de cinema.
Atividades particulares, ocasionais profissões passadas, habilidades impensáveis,
insuspeitadas erudições – tudo foi reunido e usado na construção de algo que não tinha, até então, tradições escritas, requisitos estilísticos exatos, nem mesmo necessidades formuladas (EISENSTEIN, 2002a, p. 15).
O encontro e a parceria de trabalho entre Eisenstein e Eduard Tissé, diretor de
fotografia que viria a executar todos os seus trabalhos, foi fundamental pois resultou em
composições cuidadosas, enquadramentos sofisticados, primoroso trabalho de iluminação,
movimentos de câmera, enfim, um enorme apuro estético e técnico.
11
Eisenstein nasceu em Riga, no dia 23 de janeiro de 1898. Era arquiteto, estudou
japonês, o que ele citava como uma influência no seu desenvolvimento artístico. Em 1920,
mudou-se para Moscou e começou sua carreira no teatro, trabalhando com Vsevolod
Meyerhold (1874-1940), um dos mais importantes diretores e teóricos de teatro da primeira
metade do século XX.
Tissé nasceu em 13 de abril de 1897 e em 1913 começou a estudar fotografia e pintura
em Estocolmo, na Suécia. Iniciou sua carreira de diretor de fotografia em 1914. Entre 1916-
18 filmou o front da Primeira Guera Mundial. Entre 1918-21 filmou 200 rolos sobre a
revolução bolchevique para o Comitê Central de Filmes, organização estatal que gerenciou a
produção cinematográfica nos primórdios da URSS. Tornou-se professor, em Moscou, em
1921. Em 1926, ele e Sergei Eisenstein visitaram a UFA Studio, em Berlim, para estudar a
cinematografia ocidental. Em 1929, Tissé, Eisenstein e Grigori Aleksandrov – proeminente
diretor de cinema soviético que até os anos 1930 trabalhou com Eisenstein como co-diretor,
roteirista e ator – foram para a Europa Ocidental, onde tiveram que fazer todo tipo de
trabalho, como um comercial de cerveja com os atores Emil Jannings (1884-1950) e George
Bancroft (1882-1956). Em 1930, o trio foi para Hollywood com o intuito de estudar o
desenvolvimento do som no cinema e acabaram por desenvolver projetos (A Casa de Vidro,
Sutter's Gold, Uma Tragédia Americana, etc.) para a Paramount Pictures.
Um dos projetos não realizados de Eisenstein, A Casa de Vidro propunha a realização de um filme cuja cenografia estaria composta por uma casa com paredes de vidro. A estrutura da casa obedeceria os padrões arquitetônicos normais. No entanto, a transparência das paredes de vidro detonaria tensões entre seus habitantes, pois eles estariam constantemente vigiando-se uns aos outros, culminando numa explosão em que, segundo um dos finais propostos para o filme, a casa seria destruída por um robô que simbolizaria o homem novo. Eisenstein tinha clareza quanto à dificuldade de produção, pois o desenrolar da narrativa exigiria uma simultaneidade de ações e imagens impossível de conseguir na época com os recursos técnicos existentes (MOURÃO, 1998).
Eisenstein declararou que gostaria de fazer em Hollywood um típico filme norte-
americano, entretanto teve dificuldade de entrar em acordo com a Paramount sobre um
projeto. Depois de algum tempo a Paramount decidiu que Eisenstein deveria fazer um roteiro
baseado no romance L’Or, de Blaise Cendrars (1887-1961), novelista e poeta suiço, traduzido
para o inglês como Sutter’s Gold. O roteiro de Sutter’s Gold era baseado na vida de Johann
Sutter, uma vítima da corrida do ouro da Califórnia de 1840. Eisenstein e seus associados
fizeram planos financeiros detalhados, sugestão de atores, cenografia e estudos de locação
para o filme. Em Hollywood havia o rumor de que o roteiro era brilhante. Entretanto a
12
Paramount o rejeitou quase que imediatamente, alegando que seria muito caro para ser
produzido e que os Estados Unidos não estavam interessados em filmes históricos. Essas não
foram as razões reais para a decisão do estúdio: havia a recusa de Eisenstein trabalhar com as
“estrelas” da Paramount neste filme, a sua falta de entusiasmo em cooperar com a equipe de
publicidade e uma possível disputa política com as lideranças da Paramount. Além disso, o
estúdio não aprovava a mensagem moral e ética do roteiro – que o ouro poderia ser uma fonte
de destruição do homem e da natureza. Para a Paramount, foi o ouro que criou a Califórnia
moderna.
Em Hollywood Eisenstein percebeu que a matéria prima do cinema sonoro era
o “monólogo interior” e não o “diálogo”, recurso amplamente utilizado na caracterização do
personagem Clyde Griffiths em Uma Tragédia Americana, filme baseado no livro do escritor
norte-americano Theodore Dreiser (1871-1945). Segundo Eisenstein, o “monólogo
interior” seria o maior desafio estético para a elaboração de filmes sonoros.
Eisenstein narrou a sua experiência na produção de Uma Tragédia
Americana em seu artigo Odolzhaites! (julho de 1932), demonstrando as várias sutilezas para um roteiro de filme sonoro que expusesse adequadamente os “monólogos interiores” do protagonista Clyde Griffiths, com eles há a intensificação do seu dilema psicológico e da dimensão trágica da divergência entre seu sonho, os meios planejados para alcançá-lo, o seu arrependimento em usá-los e a ação que efetivamente cria uma situação ambígua de como definir a sua culpa na morte da namorada grávida. Além disso, Eisenstein destacou o quanto o conceito ideológico presente na produção e montagem de um filme interferia na abordagem do tema: os produtores do cinema norte-americano queriam um filme policial simples e compacto sobre um assassinato, em que se definisse desde o começo a culpa de Clyde. Mas Eisenstein não acreditava que a novela de Dreiser fosse tão simples assim e, por isso, apresentou um roteiro que dava fundamental atenção ao fato de que era a estrutura da sociedade que levava Clyde a planejar um assassinato – embora não o executasse de fato – como condição de possibilidade para a sua ascensão social. Por isso, o seu roteiro foi rejeitado (VIANNA, 2012).
A partir desta experiência, Eisenstein quebrou o seu contrato com a Paramount e foi
para o México, a fim de dirigir, em 1932, o filme Que viva México!, financiado por capital
coletado pelo novelista norte-americano Upton Sinclair (1878-1968). O filme nunca foi
completado devido às divergências entre Eisenstein e Sinclair.
Depois de uma ausência prolongada, o líder político Josef Stalin (1878-1953), então
no poder da URSS, enviou um telegrama expressando a preocupação de que Eisenstein tinha
se tornado um desertor. As autoridades soviéticas ordenaram a sua volta em 1932.
***
13
Eduard Tissé tinha uma reputação de ser tanto competente quanto corajoso. Ele
conheceu Eisenstein em 1924 e começaram a trabalhar juntos. É impossível dizer quem
influenciou quem em determinado plano, ou quem teve a palavra final na escolha das lentes,
ainda mais nessa parceria Eiseinstein-Tissé, em que quase nenhuma documentação escrita
chegou até nossos dias.
Felizmente, em seu livro Reflexões de um Cineasta, Eisenstein dedica um capítulo à
colaboração com seu diretor de fotografia. Segundo ele, não se poderia sonhar com uma
combinação mais feliz.
Rápido em ação, o homem era capaz de revestir-se de uma paciência angélica para procurar o efeito pretendido. As duas qualidades fazem nele a melhor conjugação do mundo. Uma resistência fenomenal – no gelo como na areia, na bruma úmida do norte assim como sob o sol tropical do México, na praça de touros como a bordo, em mar agitado ou ao fundo de uma trincheira flanqueada pelos carros e pela infantaria – uma resistência de fortaleza, de operário agrícola, de mineiro, de escavador do Métro. Com tudo isso, antenas para pegar a nuança quase imperceptível, o “não sei o quê” a partir do qual, segundo a fórmula consagrada, a arte começa, antenas que aparentam Tissé aos mestres mais refinados das artes plásticas, que emparelham como mãos de quem trabalha em lavagem de roupa e olhos cor do céu à acuidade sobre-humana. A atividade intelectual mais delicada e mais sensível, junto à capacidade de enfrentar as piores dificuldades para exercer tal atividade (EISENSTEIN, 1969, p.189).
Se imaginarmos ainda o peso do equipamento naquela época e a quantidade de
posições de câmera que Eisenstein usava para compor uma cena, podemos imaginar o grau de
dificuldade que Tissé enfrentava.
E Eisenstein ainda fala sobre a parceria entre os dois
Duvido que jamais tenha existido sincronização comparável àquela que me coloca em equivalência com Tissé no que se refere a ver, perceber e experimentar... Procuramos por todo lado sempre a mesma coisa. Nem o efeito de surpresa, nem o efeito decorativo, nem a estranheza do ângulo de tomada de cenas, mas somente o máximo de expressividade. E sempre a universalidade da imagem por trás do fenômeno filmado. Passo a passo, de mãos dadas, nós procuramos nosso método durante esses quinze anos na diversidade do real que desfilava diante de nossos olhos e em nossa reflexão meditativa e apaixonante da realidade; e o sucesso coroou as tendências e os elementos plásticos de nossos filmes onde conseguimos atingi-los (EISENSTEIN, 1969, p.189).
Este estudo, portanto, busca seguir os passos desta parceria e analisar o estilo de
direção de fotografia, via leitura de sentidos, desenvolvido por Eduard Tissé nos filmes que
realizou com Eisenstein. Também procura analisar como ele enquadrava, que tipos de lente
14
utilizava, como iluminava as cenas, enfim, visa buscar os elementos técnicos e simbólicos dos
quais um diretor de fotografia se utiliza para criar seu estilo.
Para atingir este objetivo, o primeiro passo desta pesquisa é entender qual é o trabalho
do diretor de fotografia. Qual é o trabalho antes, durante e depois do set de filmagem, com
quais técnicos tem que interagir. Esta reflexão portanto é a temática do primeiro capítulo
desta dissertação.
De forma breve, o segundo capítulo busca relacionar o cinema de Eisenstein com a
dialética marxista, enfatizando o conceito de conflito.
Correlativamente, a produção de sentido, no encadeamento de fragmentos sucessivos, é pensada por Eisenstein a partir do modelo de conflito. Se a noção de conflito nada tem de original (ela deriva muito diretamente do conceito de contradição, tal como colocado na filosofia marxista, o materialismo dialético), seu uso por Eisenstein não deixa, às vezes, de ser bastante surpreendente por sua extensão e sistematização. Para ele, o conflito é, de fato, o modo canônico de interação entre duas unidades quaisquer do discurso fílmico: conflito de fragmento a fragmento, decerto, mas também dentro do fragmento e especificando-se segundo este ou aquele parâmetro particular (AUMONT, 2008, p. 83 e 84).
O capítulo três está dedicado à leitura de sentidos da fotografia de três filmes que
Eisenstein fez com Tissé. Foram escolhidos obras que bem representam a parceria entre os
dois: A Greve (1924), primeiro longa de Eisenstein; O Encouraçado Potemkin (1925),
realização mais importante e conhecida do diretor e Ivan, o Terrível – Parte II (1958), seu
último longa. A metodologia utilizada baseia-se na análise de fotogramas, criada por Roland
Barthes (1915-1980) e explicitada em seu livro O Óbvio e o Obtuso.
Segundo o pensador francês, há três patamares de sentido na cena: (BARTHES, 2004,
p. 45 e 46).
1. Um aspecto informativo e descritivo, trazido pelo cenário, vestuário, personagens e as
relações entre eles, inserção na trama. Este é o patamar da comunicação.
2. Um aspecto simbólico. Há um simbolismo diegético e um simbolismo referencial, há ainda
um simbolismo propriamente eisensteiniano. Este é o patamar da significação.
3. Há ainda um terceiro sentido, uma captação poética. É o patamar da significância.
Além disso, Barthes faz uma distinção entre o sentido óbvio e o sentido obtuso:
a) Sentido óbvio – Compreende os patamares da comunicação e da significação. O sentido
propriamente eisensteiniano fulmina a ambiguidade pela ênfase. O “cenarismo” de Eisenstein
tem uma função econômica: o artista prefere a verdade. A estética eisensteiniana não constitui
um patamar independente: faz parte do sentido óbvio, e na obra de Eisenstein, o sentido óbvio
é sempre a revolução.
15
b) Sentido obtuso – O terceiro sentido estrutura o filme “de outra maneira”, sem confundir a
história; e, por esta razão, é o patamar poético e inesperado que finalmente conduz ao
“fílmico”. O fílmico é o que, no filme, não pode ser descrito, é a representação que não pode
ser representada. Tudo o que se pode “dizer” sobre o filme pode ser dito no próprio filme,
salvo o que constitui o sentido obtuso.
O fílmico não pode ser apreendido no filme “em situação”, “em movimento”, “ao
natural”, mas apenas nesse artefato primeiro – e maior – que é o fotograma.
O fotograma não é uma amostra, mas sim uma citação do filme; não é uma pitada
quimicamente retirada da substância do filme, mas é a “marca” de uma “distribuição”
superior dos traços dos quais o filme seria, em suma, apenas um texto, entre outros.
Filme e fotograma encontram-se em uma relação de palimpsesto, sem que se possa
dizer que um está em cima do outro, ou que um é o extrato do outro. Desse modo, torna-se
legítimo analisar a fotografia dos filmes através de seus fotogramas.
De cada um dos filmes discutidos nesta dissertação, será selecionada uma sequência
de fotogramas para análise. Destas sequências, serão recortados entre nove e treze
fotogramas, baseados na relevância para a fotografia dos filmes, cujos sentidos serão
explicitados dentro da metodologia de Barthes entre o óbvio e o obtuso.
16
I. O TRABALHO DO DIRETOR DE FOTOGRAFIA
No início da história do cinema, o diretor de fotografia normalmente era também o
diretor de cena e a pessoa que manuseava a câmera. Com o advento da iluminação artificial e
dos filmes mais sensíveis, além dos avanços tecnológicos em ótica, os aspectos técnicos da
cinematografia exigiram especialistas nessa área.
Em Hollywood, no ano de 1919, formou-se uma das primeiras (e ainda existente)
sociedades comerciais do cinema: a American Society of Cinematographers (ASC), que foi
criada para reconhecer a contribuição do diretor de fotografia para a arte e a ciência das
imagens em movimento. Hoje em dia existem ao redor do mundo várias associações
semelhantes, como a brasileira ABC (Associação Brasileira de Cinematografia).
Em linhas gerais, o diretor de fotografia é o profissional que transforma as ideias do
diretor em imagem. Sua função tem um lado artístico e um lado técnico. Tem um lado
artístico porque em cada filme vai fazer pesquisas de referências, vai criar uma visualidade
relacionada ao roteiro e às concepções do diretor. Tem um lado técnico pois para transformar
tudo isso em imagem precisa saber manejar a câmera, precisa saber iluminar uma cena. Assim
como um pintor precisa conhecer a técnica do óleo ou da acrílica para pintar um quadro, o
diretor de fotografia precisa entender a técnica para que a imagem imprima sua concepção.
Nos dias de hoje, com o cinema digital, o diretor de fotografia precisa estudar muito.
Novas câmeras são lançadas continuamente e é impossível conhecer todas. De qualquer
modo, é preciso que ele esteja informado o tempo todo, faça workshops, participe de chats na
internet, faça testes quando filmar.
Os testes são fundamentais pois não existe a “melhor câmera” e sim a ”melhor câmera
para cada projeto”. E isso não significa que feitos os testes as condições ideais serão usadas
na filmagem. Pressões de produção levarão a cortes de gastos até que se chegue num kit de
equipamento de luz e câmera possível para a realização do projeto.
I.1. A relação com o diretor de cena
A parceria entre o diretor de fotografia e o diretor de cena é muito importante. O
diretor de fotografia deve entender muito bem o projeto que está executando e ser fiel às
ideias concebidas conjuntamente com o diretor. O cinema é uma arte de equipe, o diretor de
fotografia não pode ter concepções isoladas sobre a fotografia de um filme, tudo deve ser
conversado entre o diretor e o diretor de arte.
17
Eisenstein e Tissé tinham uma parceria muito produtiva, que o primeiro relata em seu
livro Reflexões de um Cineasta:
Realmente combinamos muito bem: há quinze anos que nada nos faz desentender. Não se poderia sonhar com uma combinação mais feliz. Não existe, sem dúvida, ninguém com quem eu tenha falado menos de cinema do que com Eduard. Entreolhamo-nos. E vemos. Duvido que jamais tenha existido “sincronização” comparável àquela que me coloca em equivalência com Tissé no que se refere a ver, perceber e experimentar... É essa comunicação que fornece no mesmo instante o enquadramento em que se materializará igualmente a ideia do diretor e do operador. É essa comunhão que oferece uma linha de irrepreensível unidade de estilo através de todas as peripécias da filmagem, sem permitir a um só dos milhares de futuros fragmentos de montagens “explodir” plasticamente, seja qual for o lugar e o momento da tomada de cenas. Nem o efeito de surpresa, nem o efeito decorativo, nem a estranheza do ângulo de tomada de cenas, mas somente o máximo de expressividade. E, sempre, a universalidade da imagem por trás da representação do fenômeno filmado. Essa universalidade que se obtém calculando o enquadramento, escolhendo o ângulo de tomada das cenas, compondo o quadro no interior do retângulo da futura tela, todas as operações que nos fazem às vezes suportar o martírio, aguentar durante horas o tripé da câmera, esticando ou encolhendo o respectivo carrinho, e verificando no visor, utilizando para isso toda a gama de objetivas e de filtros. Nenhum manifesto expôs nossos métodos. Ele não foi elaborado nas discussões noturnas nem nos debates entre baforadas de cigarros. Passo a passo, de mãos dadas, nós o procuramos durante esses quinze anos na diversidade do real que desfilava diante de nossos olhos e em nossa reflexão meditativa e apaixonante dessa realidade; e o sucesso coroou as tendências e os elementos plásticos de nossos filmes onde conseguimos atingi-los (EISENSTEIN, 1969, p. 188,189, 190).
I.2 Preparação
A preparação de um filme é tão ou mais importante que a filmagem. O primeiro passo
é a leitura do roteiro e as anotações das ideias do rumo que a imagem poderá tomar. O diretor
de fotografia procura referências para ilustrar suas ideias. Em seguida essas ideias são
discutidas com o diretor e o diretor de arte, outra peça chave na visualidade do filme. Chega-
se a um consenso de como o filme vai ser visualmente e o diretor de fotografia começa a
trabalhar nos testes.
Primeiramente são testadas diferentes câmeras para se decidir qual a mais adequada ao
projeto. Testes de cenário e figurino também são necessários. Finalmente são feitos os testes
técnicos para verificação das condições do equipamento (câmera e lentes). Os testes técnicos
são feitos pelo assistente de câmera, sem a necessidade do diretor de fotografia.
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Além dos testes são feitas visitas às locações. Nessas visitas, além da decupagem
determina-se em que momento do dia é melhor filmar cada cena graças à posição do sol. Isto
é importantíssimo para que o assistente de direção elabore um plano de filmagem.
Na preparação, o diretor de fotografia também elabora junto com seu gaffer ou
eletricista, os mapas de luz para cada locação ou cenário. Obviamente que os ajustes de luz
são feitos para cada cena, embora exista um conceito de luz para cada ambiente que é
determinado previamente.
No caso de filmagens em película, é na preparação que se escolhe o tipo ou tipos de
películas e as quantidades a serem usadas no filme. Também como será a revelação e a
correção de cor.
Uma vez que todos esses parâmetros estejam determinados, passa-se à etapa seguinte.
I.3. Filmagem
Na filmagem o diretor de fotografia tem que lidar com vários departamentos. Ele
chefia diretamente três deles: câmera, luz e maquinaria. O departamento de câmera é
composto pelo 1º assistente, 2º assistente, operador de vídeo assist e no caso do cinema digital
um logger. O 1º assistente de câmera é o responsável pelo bom funcionamento do
equipamento, é quem executa todos os testes técnicos, garante que toda a lista de câmera
solicitada pelo fotógrafo esteja completa e funcionando bem. É também quem faz o foco das
cenas.
O 2º assistente de câmera cuida dos negativos, carrega e descarrega os magazines, faz
os relatórios mantendo as contagens do negativo virgem e exposto do filme. Ele ajuda o 1º
assistente a marcar os focos, bater as claquetes, carregar as baterias e deixar o departamento
de câmera sempre em ordem. O operador de vídeo assist é o responsável por enviar a imagem
da câmera para o monitor do diretor, gravá-las e reproduzi-las sempre que solicitado. O
logger, no caso do cinema digital, é o responsável por copiar os cartões com as imagens para
um computador e fazer back ups para HDs externos.
O departamento de luz é composto pelo eletricista chefe (ou gaffer), assistente,
ajudante e maquinista de elétrica. O eletricista chefe estabelece com o diretor de fotografia
quantos e quais refletores serão usados em cada cena. Ele é o elemento principal para
trabalhar com o fotógrafo na iluminação das cenas, por isso é considerado seu braço direito.
Os assistentes e ajudantes são responsáveis por colocar os refletores nas posições. O
maquinista de elétrica é responsável pela fixação de refletores em posições difíceis, aquelas
em que os refletores não estejam em tripés, por exemplo, box truss, tetos, traquitanas, etc.
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O departamento de maquinaria é responsável por todo tipo de movimento de câmera.
Além disso, é responsável pela segurança da câmera fixando-a em lugares altos ou com risco
de cair. É o departamento responsável por criar traquitanas técnicas necessárias para a
filmagem. Esse departamento é composto por um maquinista, alguns assistentes e alguns
ajudantes.
Além desses departamentos que o diretor de fotografia comanda, tem que lidar com
alguns outros no set, por exemplo, departamento de direção, departamento de arte,
departamento de figurino, departamento de maquiagem, departamento de som. Deve pensar
seu trabalho de forma a valorizar o trabalho dos outros departamentos (e a luz tem o poder de
fazer isso quando é boa), caso contrário pode arruinar o trabalho da equipe inteira.
I.4. O pós-set
A etapa pós filmagem também é muito importante para o filme. Para um maior
aproveitamento do material captado, os set ups de câmeras e os negativos atuais são em geral
muito lavados, ou seja, sem contraste. Isso é feito para que se ganhe maior latitude na
captação e se possa trabalhar em pós o look do filme.
E é isso exatamente que o diretor de fotografia faz no pós-set. Em se tratando de
negativo, vai telecinar o material usando as referências escolhidas no momento da preparação.
No caso do cinema digital, faz uma correção de cor para obter o look escolhido previamente.
A única coisa que o diretor de fotografia não consegue controlar é a projeção. O filme
é distribuído para mais de uma sala e as projeções são distintas, ou seja, após todo esse
trabalho, a fotografia vai ter uma qualidade diferente dependendo da sala onde será projetado.
***
Eisenstein reconhecia o papel do operador de câmera no cinema, apenas não
concordava em transformar esses profissionais em estrelas. Via a tendência à produção de
estrelas como lógica burguesa. Cinegrafistas, atores e atrizes, cineastas, carpinteiros que
trabalham no cenário e as pessoas sem treinamento profissional que trabalham como extras
formam uma equipe, um coletivo que dá sentido ao trabalho de cada um.
Eisenstein referia-se a si mesmo e aos outros da mesma categoria como trabalhadores
do cinema, deixando claro que acreditava em uma experiência coletiva do fazer
cinematográfico. Evitava, desse modo, exaltar a criação artística como sendo algo individual,
uma manifestação de um processo íntimo, intangível e subjetivo.
A denominação de trabalhador do cinema carrega o reconhecimento de Eisenstein
como participante da classe trabalhadora, além da constatação de que seu trabalho é
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necessário para o funcionamento da sociedade socialista, não em busca da criação de obras-
primas, mas de elementos úteis para a vida do povo. Estas características pessoais explicam os
argumentos de seus filmes dentro do conceito do conflito, narrando a revolução cultural de
sua gente.
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II. OS FILMES DE EISENSTEIN SOB O PONTO DE VISTA DA FOTOGRAFIA E DA DIALÉTICA
O conceito de conflito é muito importante na teoria de Eisenstein. Podemos defini-lo
como oposição de interesses, sentimentos, ideias. O plano é a célula de montagem, que detém
a característica do conflito. A subdivisão da montagem chega ao conflito como colisão, que
leva a novos significados.
Em seu livro A Forma do Filme, Eisenstein declara que a arte não se reduz ao registro
ou imitação da natureza, mas é conflito, de acordo com sua missão social, natureza e
metodologia. O cineasta russo diz que o conflito dentro do quadro é proveniente de uma
somatória de elementos:
- conflito de direções gráficas (linhas – estáticas ou dinâmicas)
- conflito de escalas
- conflito de volumes
- conflito de massas (volumes preenchidos com várias intensidades de luz)
- conflito de profundidades
E os seguintes conflitos, que exigem apenas um impulso adicional de intensificação antes de formarem pares antagônicos de fragmentos. Primeiros planos e planos gerais. Fragmentos de direções graficamente variadas. Fragmentos resolvidos em volume com fragmentos resolvidos em área. Fragmentos de escuridão com fragmentos de claridade. E, finalmente, há conflitos inesperados como: Conflitos entre um objeto e sua dimensão – e conflito entre um evento e sua duração. O primeiro é conseguido através de uma lente oticamente distorcida, e o segundo pela câmera lenta ou parada (EISENSTEIN, 2002a, p. 43).
Segundo ele,
Considerar o plano como um caso particular de montagem, por assim dizer, molecular, torna possível a aplicação direta da prática da montagem à teoria do plano. E, do mesmo modo, à teoria da iluminação. Percebê-la como uma colisão entre uma corrente de luz e um obstáculo, como o impacto de um jato d’água de uma mangueira batendo em um objeto concreto, ou do vento soprando sobre uma figura humana, pode resultar num uso da luz inteiramente diferente em comparação com a luz usada para jogar com várias combinações de névoas e borrões (EISENSTEIN, 2002a, p. 44).
Além disso, Eisenstein é a favor da irregularidade. Traz em A Forma do Filme uma
citação do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), que muito se aproxima do sentido
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obtuso de Barthes: “O que não é um pouco distorcido não tem apelo emocional; disso se
segue que a irregularidade – isto é, o inesperado, a surpresa, o espanto, são uma parte
essencial e característica da beleza.” (BAUDELAIRE in EISENSTEIN, 2002a, p. 54).
Todos os tipos de aberrações, distorções e outros defeitos, que podem ser remediados
por sistemas de lentes, também podem ser levados em conta esteticamente, proporcionando
uma série completa de efeitos composicionais definidos (usando lentes com ângulo de visão
que variam entre 28mm e 310mm).
Outra ideia central para Eisenstein é a composição. Ele considera o enquadramento
como decisivo na construção do fotograma. O princípio recorrente da construção estética do
fotograma, observado em todos os seus filmes, revela-se na construção em profundidade, trata
da interação dinâmica do primeiro plano e do fundo, que pode apresentar-se ou como a
unidade dos dois, ou como sua nítida contraposição.
A julgar pelas anotações de diversos anos, Eisenstein estudava a formação gradual da
composição na arte pictórica, da qual surge a composição em profundidade no cinema.
Experiências em A Greve (1924) não foram muito felizes pela falta da objetiva
correspondente: a 28mm. Eisenstein e Tissé puderam depois realizar tecnicamente a
construção em profundidade graças ao surgimento desta lente.
O efeito da filmagem com uma objetiva 28mm de distância focal, quando o objeto vertical se coloca diretamente frente ao mesmo e o foco está dirigido ao seu centro. Faz muito tempo (em 1927), que eu o defini capaz de criar um conflito entre o objeto e sua aparência (do mesmo modo que a câmera lenta e a câmera rápida criam um conflito entre o processo e o tempo de sua duração). Como se sabe, o efeito dessa objetiva se deve à redução de perspectiva dos objetos em profundidade, que é muitas vezes mais brusca e rápida que no olho normal. O olho percebe as reduções de acordo com as normas habituais e através disto recebe uma representação deformada do objeto. Os lugares planos se percebem como profundos. A mão, dirigida diretamente para a objetiva, parece incrivelmente grande, devido à colossal desproporção que existe entre seu tamanho e a figura catastroficamente reduzida de seu dono, correspondendo seu tamanho relativo à percepção do olho se estivesse a uma enorme distância. Fora de foco fica aquilo que está muito longe ou excessivamente perto (EISENSTEIN, 1982a, p. 195).
É importante o fato de que o papel da composição em profundidade do fotograma, em
Eisenstein, aumenta à medida em que se aproxima do cinema falado.
Além do conceito de conflito e da composição em profundidade observa-se em
Eisenstein uma liberdade na escolha dos ângulos de filmagem.
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Houve em um tempo um período de discussões sobre a ”motivação do ângulo da tomada” , ou seja, sobre o que motiva um ou outro ângulo de visão tendo em vista o que se toma por objeto ou se filma na cena. Havia partidários de que, por exemplo, de cima só pode se filmar uma cena quando ela está justificada através do personagem que a vê a partir do alto. Dá vergonha recordar que existiram tais concepções e que foi necessário refutá-las! É totalmente compreensível que o ângulo de visão é motivado só pela condição de que, precisamente, deve ser percebido e compreendido desde a cena ou objetos dados. Como com os limites do quadro se “corta” aquilo que não deve ser conhecido e percebido, assim o escorço elegido é ditado por aquele que, pertencendo a esta cena ou objeto, corresponde apresentar com maior convicção a contemplação do espectador. Exatamente o mesmo sentido adquire a luz na cinematografia. Em seus objetivos entra a mesma tarefa de montagem, ainda que em um novo aspecto: a iluminação está chamada a destacar com manchas luminosas os detalhes necessários, tendo em vista o ângulo necessário para dar, com a combinação destes detalhes destacados, a imagem da montagem desejada do rosto, figura, cena (nas condições internas do quadro) (EISENSTEIN, 1982a, p. 178) .
O cinema é uma arte coletiva. O diretor de fotografia tem que trabalhar segundo um
briefing, levando em conta a ideia do diretor de cena e o roteiro. Desse modo podemos
considerar que a concepção de arte-conflito de Eisenstein e seu gosto pela irregularidade
exerceram enorme influência no trabalho de Eduard Tissé.
A ideia de conflito também não aparece por uma simples concepção estética na obra
de Eisenstein. Ele pensa o conflito sob o prisma do método dialético.
O dinamismo provocado pela aproximação entre a missão social e a natureza da arte revelaria, assim, um terceiro conflito, que seria a metodologia da arte, o princípio que penetraria tanto o mínimo detalhe quanto o “ponto de vista monístico” – o conjunto – expresso, exatamente, pela dialética da forma artística (FREITAS, 2011, p. 30).
O método dialético possui várias definições, tal como a hegeliana e a marxista. Para
alguns teóricos, ela consiste em um modo esquemático de explicação da realidade que se
baseia em oposições entre situações diversas. Diferentemente do método causal, no qual se
estabelecem relações de causa e efeito entre os fatos, o modo dialético busca elementos
conflitantes entre dois ou mais fatos para explicar uma nova situação decorrente do conflito.
A dialética busca não interpretar, mas refletir acerca da realidade.
Para Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão, a tese é uma ideia,
que posta em discussão gera uma antítese. Esta última contrapõe-se à primeira, surgindo
assim a síntese, que é a superação das anteriores. A síntese torna-se uma nova tese, com uma
antítese e uma síntese correspondentes e o processo continua ad infinitum.
Hegel aplica o raciocínio dialético a todos os campos do real, desde a aquisição do
conhecimento até os processos históricos e políticos. A história seria o processo mediante o
24
qual o Espírito do mundo atinge cada vez mais explícita a consciência de si como livre. Desse
modo, estaria dividida em três etapas, correspondendo à tese (os orientais da Antiguidade),
antítese (os greco-romanos) e síntese (os germânicos através da cristandade).
A história do mundo é a exposição do espírito em luta para chegar ao conhecimento de sua própria natureza. Os orientais ainda não sabem que o Espírito – o Homem, como tal – é livre. E, como não o sabem, não são livres. A consciência da liberdade surgiu primeiro entre os gregos e, portanto, eles eram livres. Mas eles, como também os romanos, apenas sabiam que alguns são livres – não o Homem em si. Isto nem Platão nem Aristóteles sabiam. Por essa razão, os gregos não apenas tinham a escravidão, sobre a qual baseavam toda a sua vida e a manutenção de sua esplêndida liberdade, mas essa liberdade deles era em si, em parte, uma evolução acidental, passageira e limitada e, parte, uma grave sujeição da natureza humana. Só os povos germânicos, através da cristandade, é que vieram a compreender que o homem é livre e que a liberdade de espírito é a própria essência da natureza humana (HEGEL, 2004, p. 64).
Karl Marx (1818-1883) – escritor, economista, sociólogo, historiador e filósofo
alemão – juntamente com o teórico alemão Friedrich Engels (1820-1895), reformulam o
conceito de dialética de Hegel, voltando-se para a sociedade, para as lutas de classes
vinculadas a uma determinada organização social. Assim surge a dialética materialista ou
materialismo dialético.
Marx criticou o sistema filosófico de Hegel. O marxismo constitui-se como
a concepção materialista da História, que procura as causas de desenvolvimentos e mudanças
na sociedade humana nos meios pelos quais os seres humanos produzem coletivamente as
necessidades da vida. As classes sociais e a relação entre elas, além das estruturas políticas e
formas de pensar de uma dada sociedade, seriam fundamentadas em sua atividade econômica.
Longe de qualquer tipo de determinismo, seu pensamento compreende a predominância da
materialidade sobre a ideia. Portanto, não é possível entender os conceitos marxistas sem
levar em conta o processo histórico, pois não são conceitos abstratos. A teoria marxista é,
substancialmente, uma crítica radical das sociedades capitalistas. Mas é uma crítica que não
se limita a teoria em si. Marx, aliás, se posiciona contra qualquer separação drástica entre
teoria e prática, entre pensamento e realidade, porque essas dimensões são abstrações.
Karl Marx compreende o trabalho como atividade fundante da humanidade. E o
trabalho, sendo a atividade central do ser humano, se desenvolve socialmente. As relações de
produção – formas como os seres humanos desenvolvem suas relações de trabalho e
distribuição no processo da vida material – com as relações sociais fundam todo o processo de
formação humana. Esta compreensão e concepção do homem é revolucionária em todos os
25
sentidos, pois é a partir dela que Marx irá identificar a alienação do trabalho (venda da força
produtiva).
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que há coincidência entre a realidade
do que os homens produzem com a forma como produzem.
Os indivíduos, no exercício de sua atividade produtiva, segundo um modo determinado de produzir, colocam-se em relações sociais e políticas determinadas, relações que se dão entre proprietários de meios de produção e proprietários da força de trabalho. Em decorrência disso, a estrutura social e o Estado nascem do processo vital de indivíduos em ação, na sua existência real, segundo a maneira como trabalham e produzem materialmente (MARX, 1989, p. 18).
A consciência é, portanto, um produto social. E a alienação das forças produtivas pode
gerar a alienação da consciência, permitindo a dominação de uma classe sobre a outra.
O capital se encarna em coisas: instrumentos de produção criados pelo homem. Contudo, no processo de produção capitalista, não é o trabalhador que usa os instrumentos de produção. Ao contrário: os instrumentos de produção — convertidos em capital pela relação social da propriedade privada — é que usam o trabalhador. Dentro da fábrica, o trabalhador se torna um apêndice da máquina e se subordina aos movimentos dela, em obediência a uma finalidade — a do lucro — que lhe é alheia. O trabalho morto, acumulado no instrumento de produção, suga como um vampiro (a metáfora é de Marx) cada gota de sangue do trabalho vivo fornecido pela força de trabalho, também ela convertida em mercadoria, tão venal quanto qualquer outra (GORENDER in MARX, 1996, p.34).
O materialismo dialético é uma das bases do pensamento marxista. É uma concepção
filosófica em que o ambiente, o organismo e fenômenos físicos tanto modelam os animais e
os seres humanos, sua sociedade e sua cultura quanto são modelados por eles. Ou seja, a
matéria está em uma relação dialética com o psicológico e social. Se opõe ao idealismo (como
em Hegel), que acredita que o ambiente e a sociedade tem por base o mundo das ideias. Marx
nega a síntese de Hegel, que viria da tese e da antítese.
No pensamento marxista, não há uma transformação para a síntese de contrários, mas
uma transformação essencial do objeto, uma mudança de qualidade. Coisas velhas, num dado
momento histórico tornam-se insustentáveis e transformam-se em coisas novas,
qualitativamente diferentes do que as que lhes deram origem. O novo sempre nasce do velho,
nada nasce do nada, do abstrato.
Na dialética marxista há o que se chama de unidade de contrários. Uma moeda, por
exemplo, pelo fato de ter duas faces diferentes, continua sendo a mesma. Uma folha de papel,
tem a página 1 e a página 2, mas continua sendo a mesma folha. Os contrários existem na
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sociedade de igual maneira. São como as contradições. Estão sempre juntas, num mesmo
evento.
Para Eisenstein existe uma relação dialética entre todas as coisas do mundo, o próprio
ser seria uma constante evolução da interação de dois opostos contraditórios.
A história do cinema soviético e a do próprio Eisenstein, está intrinsecamente
relacionada ao processo revolucionário de seu país. O diretor russo voltou suas lentes para a
história do povo e para suas lutas.
Seu objetivo, entretanto, era muito maior do que recontá-las e arrancar emoções da
platéia. Eisenstein queria que o espectador, ao ver um filme, realizasse um exercício de
dialética, isto é, que os distintos elementos do filme (a montagem, a relação da música com a
imagem, a utilização de símbolos e metáforas, etc.) fizessem com que se construísse o sentido
das imagens pela interação de dois opostos.
No inverno de 1922 para 1923, Sergei Eisenstein começou seus estudos com Lev
Kuleshov (1899-1970), cineasta russo e estudioso de teorias cinematográficas que ajudou a
fundar e ensinou na primeira escola de cinema do mundo, a Escola de Cinema de Moscou.
Eisenstein lançou seu primeiro manifesto teórico sobre a sétima arte, A Montagem de Atrações, publicado na revista Lef, que era editada pelo poeta Vladimir Mayakovsky (1893-1930). Neste artigo, ele defendia que os espectadores deveriam ser tomados de surpresa por choques emocionais bem calculados cujo objetivo seria causar agitação. Para tanto, algumas imagens deveriam ser escolhidas independentemente da ação e apresentadas não em sequência cronológica, mas de um modo que pudessem criar um máximo de impacto psicológico. Deste modo, o diretor comunicaria suas ideias para o espectador, conduzindo-o de um estado psicológico anterior para o nascimento de uma nova consciência. Tais princípios básicos da dialética na montagem guiaram toda a sua carreira (VIANNA, 2012).
Dessa forma Eisenstein buscava criar sua ideia de sintaxe cinematográfica.
A opção pelo conflito ao invés da linearidade visava arrancar o espectador de sua
comodidade, convidando-o a um posicionamento em relação ao filme, uma ativa participação
racional e emocional, determinante à impressão sobre a obra.
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III. LEITURA DE SENTIDOS
Analisaremos agora, caso a caso, os filmes feitos pela dupla Eisenstein-Tissé. Serão
analisados três dos filmes finalizados pelo diretor: A Greve (Statchka, 1924), O Encouraçado
Potemkin (Bronienosets Potemkin, 1925) e a segunda parte de Ivan, o Terrível (Ivan Grozny,
1958).
Em cada filme será selecionada uma sequência de fotogramas para análise. O critério
de seleção é a relevância fotográfica sob o ponto de vista do conteúdo e das expressões
técnico-estéticas. Em cada sequência serão recortados uma média de dez frames para a
análise. A metodologia baseia-se em Roland Barthes (1915-1980), na análise de fotogramas
que o escritor e semiólogo francês fez de Ivan, o Terrível em O Óbvio e o Obtuso.
Para Barthes existe um paradoxo fotográfico. A fotografia reproduz a realidade. Entre
o objeto e sua imagem fotográfica não é necessário interpor um código. A imagem não é a
realidade, mas seu analogon perfeito. E é precisamente esta perfeição analógica que, para o
senso comum, define a fotografia.
As artes imitativas comportam duas mensagens: uma mensagem denotada, que é o
próprio analogon e uma conotada, que é a maneira pela qual o espectador lê o que ele pensa a
partir de valores culturais. Mas é praticamente impossível haver imagem fotográfica (ou
cinematográfica) sem a conotação cultural.
A leitura fotográfica depende sempre do “saber do leitor”, tal como se fosse uma
língua, inteligível apenas para aqueles que aprenderam seus signos. Para resolver esse
problema complexo seria necessário esclarecer os mecanismos de leitura, ou se desejarmos,
da percepção da fotografia.
Embora não seja possível uma interpretação neutra, Barthes propõe um mecanismo de
leitura: analisar o sentido óbvio (patamar da comunicação e da significação) e o sentido
obtuso (patamar fílmico). Dessa forma, analisaremos as imagens desses três filmes para
interpretarmos objetiva e subjetivamente o estilo autoral de Eisenstein e Tissé.
Vale lembrar que o sentido obtuso não está presente em todas as imagens de um filme,
ele é descontínuo, indiferente à história e ao sentido óbvio (como significação da história).
Forma um dialogismo tão tênue com o sentido óbvio, que não se pode ter certeza de sua
intencionalidade.
O sentido obtuso contém uma certa emoção, poesia. Tanto a beleza quanto a falta dela
podem constituir este sentido.
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III.1. A Greve (Statchka, 1924)
Em abril de 1924, Eisenstein é autorizado a filmar para a Goskino, mas com o
Proletkult (abreviatura da expressão russa proletarskaya kultura, que significa "cultura
proletária"), um ciclo de sete filmes intitulado Rumo à Ditadura, consagrado às lutas sociais e
políticas antes de 1917. Somente o quinto episódio, A Greve, é realizado, pois ocorre nesse
momento a ruptura com o Proletkult, instituição artística experimental soviética criada na
Revolução de 1917.
Tissé foi convidado a fotografar este primeiro filme de Eisenstein. A realização de A
Greve deve-se muito a Tissé. Ele não apenas possuia o conhecimento técnico que faltava a
Eisenstein naquele momento, mas também entendeu e concordou com a “montagem de
atrações”, que consiste em inserir em meio ao filme ações (atrações) arbitrariamente
escolhidas e independentes (também exteriores à composição e ao enredo vivido pelos
atores), com o objetivo de atingir um certo efeito temático final. Eisenstein explicou que sua
teoria cinematográfica apropria-se da dialética marxista: propõe o conflito da tese e da
antítese, sua superação, gerando uma síntese. Os cortes são abruptos: ponto, contraponto,
fusão. Para ele, o impacto provocado por um filme acontece em função do ritmo, não do
enredo narrado. O diálogo mostrado nos letreiros é reduzido ao mínimo.
O filme retrata uma greve em 1912 pelos trabalhadores de uma fábrica na Rússia pré-
revolucionária, e sua posterior supressão.
Em A Greve, a frase liminar de Lenin – “A força da classe operária é a organização.
Sem a organização das massas, o proletariado não é nada. Organizado ele é tudo” – é
incorporada e serve como programa para todo o filme, que faz uma demonstração articulada
em seis partes não lineares: 1. Calmaria na fábrica; 2. Início da greve; 3. Na fábrica nenhuma
atividade; 4. A greve se prolonga; 5. A provocação; 6. A greve fracassa.
Do ponto de vista estético, dado que o filme tem como base o materialismo histórico-
dialético marxista e os métodos formais da montagem, Eisenstein cria planos que enfatizam a
geometria dos elementos cenográficos, a superposição de linhas, o contraste entre luz e
sombras, entre volumes de diversas dimensões, o conflito espacial entre distâncias, entre os
planos em um mesmo enquadramento (colidindo elementos do primeiro com os que estão em
segundo plano), entre as feições humanas de trabalhadores e dos burgueses, entre o
movimento das máquinas e o das massas.
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O filme é célebre pela sequência do matadouro, perto do fim, em que a repressão
violenta à greve é de montagem paralela com imagens de gado sendo abatido, embora existam
vários outros pontos do filme onde os animais são usados como metáforas para as condições
de várias pessoas.
Outro tema do filme é o coletivismo em oposição ao individualismo, que era visto
como uma convenção do cinema ocidental. Em A Greve não há personagens individuais, os
personagens são as massas, a força do grupo em greve. Eisenstein opta por não apresentar
personagens complexos por três motivos. Primeiro, para enfatizar o caráter geral da situação,
ou seja, que a greve não é um caso isolado e constitui um conflito inerente às interações
sociais. Segundo, para representar a luta de classes em seu sentido estrutural. Terceiro, para
não exaltar heróis individuais, típicos do cinema norte-americano.
Em contraposição ao estereótipo burguês, os trabalhadores de A Greve constituem
uma verdadeira unidade. O filme representa pela primeira vez na cinematografia um herói
coletivo.
A sequência que merece uma análise mais aprofundada é a da invasão da moradia dos
grevistas. Esta sequência inicia-se com a iminência do confronto. De um lado os grevistas e
de outro, montados a cavalo, os policiais. No chão, entre as pernas dos cavalos está uma
criança, e sua mãe desesperada corre para salvá-la. Consegue pegar seu filho mas começa a
ser chicoteada pelos policiais. Os operários partem em seu socorro e começa o confronto.
Os operários fogem para suas casas e são perseguidos pelos policiais. Os grevistas
trancam os portões mas estes são derrubados e os policiais invadem a vila operária. O que
vemos a seguir é uma série de planos de perseguição e luta. Os policiais sobem as escadarias
da vila operária jogando abaixo tudo e todos que encontram pela frente. A tensão da batalha
aumenta e a luta intensifica-se, até que finalmente uma criança é jogada para a morte. Há um
close da criança morta e a sequência acaba.
A análise da fotografia desta sequência demonstra a utilização da regra dos terços
como recurso de composição. A regra dos terços é uma regra clássica de composição que
recomenda a divisão do enquadramento em três partes iguais, tanto no sentindo horizontal
quanto no vertical, resultando na divisão do enquadramento em nove partes. Este método
prega que os pontos de maior interesse se localizem nas intersecções das linhas divisórias.
O sentido óbvio, apresentado pelos fotogramas analisados, aponta para a superioridade
da força dos policiais sobre os operários.
Veremos a seguir doze fotogramas desta sequência, que evidenciam estas percepções.
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figura 02
No início da sequência, no plano em que a criança está entre as pernas dos cavalos,
não vemos o todo, não vemos os policiais, mas sim cavalos representados por linhas verticais,
indicando a superioridade que vem do alto. Se levarmos em conta o nível simbólico, da
significação, a semiótica, explanada por Roland Barthes em seu livro O Óbvio e o Obtuso,
podemos afirmar que os volumes ressaltam essa superioridade. Os corpos dos cavalos, no alto
do quadro, são grandes volumes em preto, contra o pequeno volume da criança no chão, um
conflito de volumes. Entretanto a criança está colocada na linha diagonal de leitura (da
esquerda para a direita) do quadro e, portanto, por menor que seja seu volume, o olho do
espectador vai diretamente a ela.
Esse sentido visual e simbólico (a superioridade de forças dos policiais sobre os
operários, uma vez que os primeiros são representados pela força animal dos cavalos e os
últimos pela fragilidade de uma criança) é intencional. É um sentido que procura o
destinatário da mensagem e portanto pode ser denominado sentido óbvio, aquele que se
apresenta naturalmente.
A arte de Eisenstein não é polissêmica: é ele quem escolhe o sentido quem o impõe, o subjuga (se a significação é invadida pelo sentido obtuso, nem por isso é negada,
31
confusa); o sentido eisensteiniano fulmina a ambiguidade. De que maneira? Acrescentando o valor estético, a ênfase (BARTHES, 2004, p. 48 e 49).
Em Eisenstein é a verdade da grande circunstância proletária que exige a ênfase. Sua
estética não constitui um nível independente, faz parte do sentido óbvio, que na obra de
Eisenstein é sempre a revolução.
Nos fotogramas seguintes dessa sequência poderemos evidenciar a reiteração do
sentido óbvio do primeiro fotograma: o desequilíbrio de forças entre policiais e operários.
Podemos apontar como sentido obtuso deste fotograma a felicidade inocente
estampada no rosto da criança diante do iminente perigo.
Analisando a composição percebemos o uso de camadas (frente e fundo) e a busca da
profundidade de campo, gerando conflito de escalas. Isso é evidenciado pelas linhas diagonais
criadas pelas patas e focinhos dos cavalos.
Ainda sobre a composição verificamos a utilização da regra dos terços para esse
enquadramento. A cabeça da criança se aproxima de um dos pontos de intersecção das linhas
que dividem o quadro. Isso significa que ela é um elemento
estético de destaque.
figura 03
32
figura 04
A sequência de planos de confronto entre os trabalhadores e os policiais é sempre de
tomadas diagonais. O muro ao fundo do quadro reforça essa linha diagonal, a massa de
trabalhadores é captada em diagonal, bem como os policiais. As diagonais introduzem a
dimensão de profundidade aos quadros bidimensionais.
Este fotograma merece destaque por ser uma câmera alta em que praticamente toda a
metade do lado esquerdo do quadro é tomado pela massa cinza do prédio. Do lado direito,
ocupando mais ou menos um terço do quadro, existe outra construção. E o meio da cena é
cortada por uma linha horizontal fortemente iluminada, que cria uma tensão espacial. Há um
conflito de linhas, volumes e massas. Os trabalhadores perseguidos ficam confinados em uma
parte ínfima do fotograma, e com isso Eisenstein traduz visualmente o que está se passando
no confronto: estão encurralados.
Trata-se da reiteração do sentido óbvio apresentado no início da sequência: a
desvantagem em que os operários se encontram na luta contra os policiais.
33
figura 05
Neste fotograma a câmera está dentro de um galpão escuro e o quadro está
verticalmente dividido em três partes. As laterais esquerda e direita são pretas. Pelo centro
vemos os trabalhadores correndo em direção à câmera. Eles correm do claro para o escuro. O
sentido óbvio, da comunicação e informação, aqui apresentado por Eisenstein tem a ver com
um prenúncio do fracasso da greve e do sacrifício dos operários.
34
A estética eisensteiniana tem função econômica e a composição é clássica. Se
dividirmos o enquadramento baseado na regra dos terços, observamos que os trabalhadores se
agrupam em torno do retângulo central do quadro. Isso faz com que o centro de atenção recaia
sobre o elemento humano e suas ações. O fato de termos um primeiro plano escuro enfatiza
por contraste a iluminação do centro de interesse: os trabalhadores.
figura 06
35
figura 07
Neste fotograma vemos o início da invasão da vila dos operários pelos policiais. Há
um plano geral muito bem composto, com linhas verticais e horizontais e que poderia ser
estático, sem profundidade por não haver diagonais. Entretanto podemos ver o céu por trás da
vila, que dá a dimensão de profundidade, e o movimento das pessoas, subindo as escadas e
atravessando vertical e horizontalmente o quadro, que assim quebra a dimensão estática da
composição, promovendo um conflito de direções gráficas.
36
Outro ponto que enfatiza o dinamismo da composição é o fato dos dois patamares
centrais ocuparem as linhas que dividem o quadro horizontalmente em três partes, ou seja,
mais uma vez Eisenstein e Tissé pensam na regra dos terços ao executarem a composição.
figura 08
Aqui, o sentido óbvio da narrativa é enfatizado. Os operários sobem as escadas e os
policiais os perseguem. Não há saída para os operários, pois quando chegarem ao topo do
prédio estarão encurralados e serão capturados.
37
figura 09
Eisenstein retoma a linha diagonal, numa composição de câmera plongée mostrando
em profundidade a perseguição dos policiais na vila operária. A iluminação vem do contra-
luz, deixando os patamares diagonais muito iluminados, em contraste com a parte frontal da
cena que é escura, isso auxilia na impressão de profundidade.
Verifica-se um conflito de direções gráficas bem como de massas.
38
Ainda, nesta composição, a regra dos terços é obedecida para o posicionamento dos
patamares da direita, que cruzam a diagonal.
figura 10
39
figura 11
A seguir, Eisenstein apresenta uma série de planos da perseguição na vila operária.
Nesta imagem temos um arco na parte superior do quadro, entrecortado por um caminho
muito iluminado à esquerda, um primeiro plano silhuetado e um segundo plano com o piso
térreo em cinza. É uma composição bastante elaborada, onde as profundidades são
trabalhadas pelos diferentes níveis de iluminação da vila. Existe um conflito de linhas, de
volumes e de massas. O cenarismo de Eisenstein prefere a verdade no sentido óbvio,
abarcando os patamares da comunicação e da significação.
É importante constatar que o arco, além da sua função prática de distribuição da carga
de uma estrutura, possui também um forte componente estético permitindo uma grande
variedade formal. Desse modo, o arco acentua o conflito de linhas presente na composição.
40
figura 12
Um contre-plongée com a escada silhuetada e um raio de luz vindo do alto iluminando
os trabalhadores em desespero tentando escapar. O raio de luz descreve uma diagonal da
esquerda para a direita, no sentido ocidental de leitura e ilumina todas as linhas verticais do
quadro. Trata-se claramente de um conflito de massas, volumes preenchidos pelas várias
intensidades de luz.
41
figura 13
Neste plano, duas crianças brincando no meio do confronto, o quadro é dividido em
duas partes através de uma diagonal, sendo a parte superior ocupada pelas crianças e a parte
inferior por um cavalo no andar térreo da vila. Existe um movimento de tilt, de cima para
baixo.
O sentido óbvio do fotograma fica muito evidente, a fragilidade dessas duas crianças
na área conflituosa e a possibilidade de que seus destinos sejam tragicamente o chão.
Neste momento, o sentido obtuso se faz presente através do gato no colo da criança,
que olha para a câmera.
Há conflito de direções gráficas graças às linhas diagonais e verticais presentes no
quadro.
42
figura 14 Quase no final da sequência existe um plano que merece destaque. A metade direita
do quadro é preta, a outra metade é uma escadaria em que pessoas realizam movimentos
verticais e horizontais. E por serem ações em diferentes sentidos aumenta-se a tensão da
perseguição. Os planos de diferentes intensidades luminosas garantem profundidade à
composição. Há um conflito de linhas verticais e horizontais.
43
figura 15 Um movimento vertical mostra em contre-plongée a vila silhuetada. Para dar
profundidade ao quadro, Eisenstein utiliza as linhas diagonais e o recurso do claro/escuro. As
linhas horizontais geram a tensão espacial, e é sobre elas que vemos as imponentes figuras
dos cavalos prestes a vencer o combate. O tema do arco aparece mais uma vez, criando o
conflito com as linhas retas.
O aspecto informativo trazido pelo realismo da imagem faz parte do sentido óbvio.
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O cavalo do primeiro patamar está posicionado sob a intersecção de linhas horizontais
e verticais, um dos quatro pontos de maior interesse, evidenciando sua importância no plano.
figura 16
45
figura 17
Um plano expressivo plástica e emocionalmente pelo ruído que conduz ao fílmico.
Uma câmera alta enquadra as costas de um policial que agarra uma criança pela roupa e
ameaça jogá-la do alto da escadaria. A criança está na linha diagonal de leitura do quadro da
esquerda para a direita, é o maior volume fechado que existe dentro do plano e recebe a maior
porção de luz. As outras linhas do quadro, excetuando o varal com roupas, cruzam a diagonal
que passa pela criança. Mais uma vez Eisenstein utiliza diagonais e diferentes graus de
iluminação para evidenciar a profundidade dos diversos patamares entre a criança e o solo.
O sentido óbvio do fotograma é a derrota iminente dos operários, representados pela
criança.
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figura 18
O último plano da sequência traz mais uma bela composição. Na parte inferior do
quadro, iluminada por um grande foco de luz, está a criança morta. A profundidade é dada
pela alternância entre os planos claros e escuros. Se observarmos o ponto de fuga da
perspectiva, ele recai sobre o cavalo que está ao fundo do quadro, evidenciando assim, o
assassino da pobre criatura.
Neste caso, os patamares da comunicação e da significação fulminam a ambiguidade
pela ênfase da cena. Vale ressaltar que a sequência começa e termina com a oposição entre
uma criança e um cavalo, a primeira pertencente à classe operária e o segundo, aos policiais.
O sentido óbvio é a derrota dos operários, que reitera o desequilíbrio de forças entre classe
dominante e proletariado, apresentado desde o primeiro fotograma da sequência.
Neste filme há alguns casos de dupla e múltipla exposição.
Tendo partido da fusão mecânica, a tentativa evolui da síntese plástica para a
síntese temática. Em A Greve, há mais do que uma transformação na técnica da
câmera. A composição e estrutura do filme como conjunto adquire o efeito e a
sensação de unidade ininterrupta entre o coletivo e o meio que cria o coletivo (EISENSTEIN, 2002a, p. 23).
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Dividindo o quadro em terços, de forma horizontal e vertical, notamos que a
composição é elaborada posicionando os dois centros de interesse em quadrantes bem
definidos e isolados. Fora destes quadrantes há apenas cenário.
figura 19
48
III.2. O Encouraçado Potemkin (Bronienosets Potemkin, 1925)
Este filme é a realização mais importante e conhecida de Eisenstein. Parte de um fato
histórico de 1905 – rebelião de marinheiros de um navio de guerra – para criar uma obra
universal sobre a injustiça social e o poder coletivo das revoluções populares.
O levante do Potemkin pressagiou a Revolução de 1917. Tudo começou com os
marinheiros cansados de serem maltratados, carne estragada lhes era dada e o médico de
bordo insistia que ela era perfeitamente comestível. Alguns marinheiros se recusaram a comer
esta carne, então os oficiais do navio ordenaram suas execuções. A tensão aumentou e,
gradativamente, a situação foi saindo cada vez mais do controle. O marinheiro Vakulinchuk
(Aleksandr Antonov) gritou para os soldados e pediu para eles pensarem e decidirem se
estavam com os oficiais ou com os marinheiros. Os soldados hesitaram e então abaixaram
suas armas. Louco de ódio, um oficial tentou agarrar um dos rifles e provocou uma revolta no
navio, na qual o marinheiro foi morto. Mas isto seria apenas o início de uma grande tragédia.
Vale lembrar que quando a obra foi feita, em 1925, a ditadura stalinista estava se
iniciando e ainda não existia uma política acabada para a cultura, garantindo certa liberdade a
artistas e intelectuais.
A ideologia de Eisenstein está totalmente presente em O Encouraçado Potemkin. O
filme fala da intolerância humana, de qualquer origem cultural ou período histórico.
Eisenstein, além de ser um revolucionário, era um artista. E por isso o filme sobreviveu. Sua
obra é ponderosa, está impregnada de uma visão de mundo, e além disso, de uma vontade de
transformá-lo.
O filme é dividido em cinco partes. Todos os detalhes apresentam significados
simbólicos. Para transmitir ideias complexas e ideologias profundas, Eisenstein utilizou
técnicas de montagem inspiradas nos ideogramas orientais. Se determinado ideograma
significa "telhado" e outro "esposa" a união dos dois é lida como lar.
Destacam-se neste filme as sequências de Odessa (cidade ucraniana situada às
margens do Mar Negro, porto comercial mais importante nos tempos da União Soviética e
igualmente base naval): da escadaria, da bruma do porto e do evento anterior ao fuzilamento
da escadaria.
A clássica cena na escadaria de Odessa é a quarta parte do filme e traz imagens
chocantes da repressão violenta pela guarda do czar. A Escadaria de Potemkin ou Escadaria
Richelieu foi construída entre 1890 e 1900 e é a entrada oficial da cidade de Odessa para
49
quem vem do mar. Sua construção provoca uma ilusão de ótica, de modo que os observadores
do alto só enxergam os patamares e os de baixo apenas os degraus. No filme, a escada é um
símbolo da hierarquia social e política, da diferença entre as classes sociais. A cena da mãe
assassinada, cujo carrinho de bebê percorre degraus abaixo, é sempre citada como uma das
mais célebres da história do cinema. E justamente por esse motivo esta é a sequência que será
analisada neste capítulo.
Tissé sempre esteve inspirado a mais experimentações, com a tecnologia à sua
disposição para tornar a visão artística de Eisenstein realidade. Para a sequência da escadaria
de Odessa, Tissé colocou um trolley do comprimento dos degraus, criando um dos primeiros
dolly shots na história da cinematografia soviética.
A unidade orgânica dos marinheiros, navios de guerra e o mar, que é mostrada em intersecção plástica e temática em O Encouraçado Potemkin, não é obtida através de truques, dupla exposição, ou intersecção mecânica, mas pela estrutura geral da composição (EISENSTEIN, 2002a, p. 23).
É importante observar como Eisenstein utiliza os enquadramentos diagonais nesta
sequência, criando uma maior sensação de profundidade e uma maior riqueza plástica do que
se usasse somente planos frontais. Além disso, Tissé aproveita o bom posicionamento da luz
solar para criar volumes através das sombras.
O sentido óbvio é o conflito, mas também a disparidade de forças entre policiais e o
povo, bem como a dor do massacre, explicitada principalmente nos planos da mãe com o bebê
de colo sendo fuzilada e da professora que leva um tiro no olho.
Analisaremos nove frames desta sequência.
50
figura 20 Há um plano frontal geral da escadaria com a população sendo perseguida pela
polícia. A estética do plano seria convencional se não fossem as linhas da escada que criam
um grafismo interessante. Pelas sombras na escadaria podemos deduzir que a luz vem de trás,
da esquerda para a direita, o que faz com que a parte frontal dos personagens esteja mais
escura e cria uma dimensão de volume e de massa à fotografia.
O sentido óbvio aqui presente é de fuga. A população corre escada abaixo, mas neste
momento da sequência ainda não se sabe de que ela foge. De qualquer modo, nota-se que há a
tentativa de escapar de alguma coisa.
51
figura 21 No momento seguinte, surgem os policiais que estão perseguindo a população. As
armas prontas a atirar demonstram o sentido óbvio de conflito.
Neste plano já há uma tomada diagonal da escada e da fileira de policiais,
enriquecendo a composição. A diagonal é utilizada por Eisenstein para dar profundidade ao
enquadramento. As sombras em diagonais dos policiais e as perpendiculares à escada geram
um conflito de linhas no plano. Vale lembrar que o conflito tanto estético quanto social é
sempre buscado por Eisenstein em seus enquadramentos.
52
figura 22 Neste plano, Eisenstein inverte o ângulo em que filma a escada, ela é vista da
perspectiva dos soldados. Entretanto o sentido óbvio permanece o mesmo, o conflito entre
policiais e população, aqui representada por uma mãe que pede clemência por seu filho de
colo ferido. Trata-se de um enquadramento dramático.
As diagonais são dadas pelas sombras dos policiais. A mulher e o bebê ocupam um
volume muito pequeno do quadro e os policiais são representados por grandes sombras pretas
que ocupam quase todo o resto. Pelas proporções de volumes vemos a desigualdade de forças
entre os dois lados. Este seria um sentido óbvio do fotograma.
A mãe significa a pátria russa e seu filho o futuro da nação. Ambos estão sendo
esmagados pela polícia do czar. Os aspectos informativos e simbólicos são claros.
53
figura 23 No plano seguinte, a mãe e a criança são fuziladas pela polícia. Trata-se do típico
plano “soco no estômago” de Eisenstein para pegar o espectador pela emoção. É importante
notar que esse recurso utilizado pelo diretor vai além de um acontecimento dentro do plano,
passa pela estrutura do filme, pela montagem. Os sentidos óbvios de conflito e desigualdade
de forças são reiterados.
Neste enquadramento, a cabeça dos policiais e a ponta das armas formam duas linhas
paralelas que criam uma profundidade de campo. As sombras dos homens e suas armas estão
numa perpendicular, gerando mais uma vez um conflito de linhas e forças tão desejado por
Eisenstein.
Vale notar o contraste de tons entre as roupas dos policiais e da mulher sendo morta e
também a fumaça produzida pelas armas, que encobrem o rosto da vítima, o que nos leva a
crer que sua identidade não tem importância, já que é um membro da classe operária.
54
figura 24 Um enquadramento diagonal da escadaria com os pés dos policiais. As botas fincadas
ao chão simbolizam o poder do Estado. Note-se a ordem estabelecida pelos pés, pedras e
degraus. Diante desta força rítmica os pés estão no topo do controle da pirâmide social:
sentido óbvio.
Nos planos anteriores, a parte frontal da escada era escura, evidenciando a luz
principal vinda de trás com pouco preenchimento frontal. Aqui vemos pelas sombras dos
policiais, que a luz principal permanece a mesma, entretanto é evidente um preenchimento de
luz nos degraus, feito para mostrar melhor os detalhes da escadaria e das botas.
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figura 25 A linha formada pelas mãos dos policiais atirando dá profundidade ao enquadramento.
As armas, paralelas, do primeiro plano ao fundo do quadro enfatizam esta profundidade.
Agora é o poder das mãos que fere pela violência. Assim, o conflito ganha dimensão do
princípio da vida e da morte, sentido óbvio do plano.
Há conflito de linhas entre a diagonal formada pelas mãos e as paralelas das armas.
Aqui os policiais são filmados em contre-plongée, o que lhes confere um tamanho
maior que o real. É importante notar que mesmo nos planos anteriores, em que foram
filmados em plongée, a iluminação proporcionou sombras alongadas, o que lhes havia
sugerido um tamanho maior. Alongar uma pessoa através do ângulo de filmagem é uma
estratégia bastante comum em cinematografia para sugerir poder ao personagem.
56
figura 26 Este é o célebre plano do carrinho de bebê descendo a escadaria. Aqui vemos a cena
em um plano geral para termos a dimensão do movimento.
O carrinho segue em diagonal dentro do quadro, do canto superior esquerdo para o
canto inferior direito, exatamente o eixo diagonal de leitura ocidental.
O sentido óbvio sugere uma pergunta: estaria todo o nascente movimento social,
representado pelo bebê, caminhando em direção descendente?
57
figura 27 Um plano de difícil execução para a época, uma câmera acompanha o carrinho escada
abaixo. Este é um típico plano em que Tissé utilizou suas experimentações com movimento.
O enquadramento mantém o tema das diagonais com os degraus da escadaria e
acrescenta o tema do círculo, com as rodas do carrinho. O círculo simboliza a oportunidade
(perdida?) da integração e da unidade social. A roda também remete ao movimento, à
mudança, num sentido óbvio ela traz a ideia de alteração do contexto social, da passagem de
uma sociedade czarista para uma comunista.
O sentido obtuso é o carrinho de bebê desgovernado, descendo a escadaria de Odessa:
patamar inesperado que contempla a expressão poética.
58
figura 28 A professora tem seu olho atingido por uma bala. É um plano frontal e volta-se ao
tema do círculo. O sangue remete à dimensão da dor, da agonia, do desprezo e da morte,
sentido óbvio. Imagem fundamental, que faz interagir comunicação e significação. Ou seja, a
questão do cegar diante do horror do conflito bélico.
Sobre esse plano Eisenstein disse:
Foi esse filme que, em grande parte, nos obrigou a reavaliar o papel do primeiro plano, não fazer dele somente um detalhe indicativo, mas um elemento capaz de despertar no espectador a consciência e o sentimento do todo. (EISENSTEIN, 1969, p. 32).
O plano explicita a dor da população massacrada na escadaria de Odessa.
59
III.3. Ivan, o Terrível (Ivan Grozny, 1958) – Parte II
Em 1940, Eisenstein pensa em fazer um filme sobre o czar Ivan IV, cujo roteiro ele
termina na primavera de 1941. A Mosfilm – estúdio de cinema mais antigo da Europa, criado
em Moscou em 1920 – aceita o projeto um pouco antes da URSS entrar em combate contra a
Alemanha na Segunda Guerra Mundial. A empresa vê no filme um pretexto para exaltar o
sentimento nacional. A produção começa em 1 de fevereiro de 1943 no estúdio de Alma/Ata
pois a guerra impede a filmagem em Moscou. A segunda parte será filmada no estúdio
Mosfilm, entre setembro e dezembro de 1945, que compreende partes em cor realizadas a
partir de um estoque de película Agfa, tomado dos alemães no fim da guerra. A primeira parte
é lançada em janeiro de 1945 com um grande sucesso e obtém o Prêmio Stalin. Este prêmio ,
instituido em 1941, é a mais alta condecoração civil da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, e foi criado para homenagear pessoas com contribuições significativas nas áreas
de ciências, literatura, arte ou música.
Eisenstein termina a montagem da segunda parte em fevereiro de 1946. A doença e as
críticas à segunda parte o impedirão de rodar a terceira parte, apesar de já estar
minuciosamente escrita e preparada.
Segundo o diretor de cinema russo Mikhail Romm (1901-1971), em texto publicado
no livro Ivan the Terrible:
Eisenstein sabia que ia morrer, e pouco antes de sua morte discutiu com Tissé a questão de quem poderia finalizar Ivan, quem poderia filmar a terceira parte do filme a partir dos desenhos e de suas anotações. Mas ninguém ousou embarcar nessa jornada (EISENSTEIN, 1970, p.18).
Joseph Stalin (1879-1953), secretário geral do Partido Comunista da URSS entre 1922
e 1953, gostou da Parte I do fime mas proibiu a Parte II, descontente com a representação de
Ivan no filme. Por esse motivo Ivan, o Terrível – Parte II só foi lançado em 1958, após a
morte de Stalin e de Eisenstein.
Na primeira parte, que se passa no século XVI, Ivan IV (Nikolai Tcherkassov),
arquiduque de Moscou, assume o poder da Rússia declarando-se czar. Casa-se com Anastasia
(Lyudmila Tselikovskaya) e logo planeja ataques para retomar os territórios perdidos e
derrotar os tártaros. Sem esquecer também dos inimigos internos, que não desistem de
derrubá-lo, Ivan manipula todos ao seu redor.
60
Há pouca mobilidade no filme, a câmera se movimenta apenas quatro vezes — e um
desses movimentos é apenas uma breve panorâmica. Tudo parece duro, morto, seco. A
direção de arte e a fotografia são bem feitas mas não há exuberância.
E não se trata de um experimentalismo. Devemos lembrar que Eisenstein, não faz
nada num filme por acaso. A prova de que tudo foi pensado são os storybords e desenhos de
cenário feitos pelo próprio diretor. Além disso, lendo o roteiro, verifica-se que cada um dos
planos do filme está cuidadosa e minuciosamente planejado.
A segunda parte é superior, podemos até mesmo dizer que ela não prolonga realmente
a primeira, mas a enriquece, conferindo-lhe maior densidade. O destino trágico e quase
claustrofóbico de Ivan torna-se mais evidente, e a contribuição da cor é indiscutível. Ivan, o
Terrível representa uma grande evolução de Eisenstein em direção ao formalismo plástico, ao
mesmo tempo que torna claro seu distanciamento das massas e aproximação do ser individual
como tema ideal para uma obra de ficção. Todavia, não se pode afirmar que Ivan constitui o
triunfo do indivíduo no cinema de Eisenstein.
A Parte II é essencialmente um filme sobre contraste. Se a Parte I caracteriza-se pela
ousadia na mesa de montagem, na Parte II as imagens fluem como as águas de um rio. Os
planos são longos e cuidadosamente dirigidos.
O que há aqui é uma união entre a tesoura e a teatralidade. Quando alguém diz/faz
alguma coisa, Eisenstein faz sucessivos cortes entre os rostos caricaturais da corte de Ivan,
reforçando a complexidade das pessoas que cercam o czar. Os ângulos de câmera ousados
reforçam o aspecto caricatural da corte.
Na Parte II há uma quebra do modelo do filme predecessor e que avança na ousadia do
sentido obtuso. O centro de gravidade deixa de ser o personagem de Ivan. Os boiardos,
membros da aristocracia russa do século X ao século XVII, liderados por Efrosínia, ganham
mais proeminência (é importante notar que o subtítulo original é “O Plano dos Boiardos”). A
montagem é mais contemplativa e a mise en scène mais vistosa. Trata-se de um filme mais
calmo, a fim de que a enorme galeria de personagens faça sentido.
Eisenstein é mais comedido no ritmo da montagem e prima por planos mais
elaborados, ou seja, utiliza a montagem interna. A utilização da profundidade de campo é
intensa. A loucura não está isolada no czar, está espalhada pelo palácio.
Trata-se um filme de emoção plástica e psicológica. É tentador chorar quando vemos
Ivan puxar seu velho companheiro Fyodor Kolichev pela capa implorando por um amigo.
Neste momento a câmera de Eisenstein se afasta um pouco dos personagens e nos permite uma
contemplação maior da vastidão e da solidão do castelo abstrato – suas roupas pretas se
61
contrastam com o branco do salão do trono (além disso, as capas esvoaçantes dos dois homens
é de grande apuro estético).
Uma grande prova da importância da moderação do corte, da movimentação da
câmera e da profundidade de campo se encontram na marcha dos oprichniks, a polícia secreta
do czar, no último ato do filme. Eisenstein utiliza travellings inquietantes e Tissé ilumina a
cena de modo a criar um belo jogo de sombras para cavar sulcos cavernosos nos rostos dos
personagens.
Stalin rejeitou o filme, sabendo que Eisenstein comparava o Terrível com Nikolai
Iejov (1895-1940), chefe da polícia secreta de 1936 a 1938 – também chamado de “anão
sanguinário”. Culpou o diretor por uma falta de orgulho russo e desaprovou o retrato obtuso de
Ivan (bem como a duração de seus beijos e o comprimento da barba). Como resultado o filme
foi proibido e o material filmado da Terceira Parte foi destruído. Eisenstein teve um ataque
cardíaco.
Eisenstein apelou, mas segundo Stalin as figuras históricas deveriam ser mostradas de
modo correto. Para Stalin, Ivan beijou por tempo demais sua esposa – beijos não eram
permitidos naquela época. Além disso, achou Ivan muito cruel. Para Stalin a crueldade poderia
ser mostrada, mas deveria ser justificada. A questão do tamanho da barba também foi levantada
e Eisenstein prometeu encurtá-la.
Eisenstein faleceu em 1948, antes de poder encurtar a barba, cortar o beijo e não
mostrar que o Terrível “precisava ser cruel”.
Nas duas partes do filme, Eisenstein privilegia os tons poéticos e dramáticos em
detrimento ao rigor histórico. Ivan é um personagem invadido pela dúvida, roído pelo remorso,
mais em luta consigo mesmo e com sua corte do que contra o inimigo estrangeiro.
No artigo “Da Hipótese de uma Dedicação Secreta”, o historiador russo Leonid
Kozlov nos apresenta a ideia de que Ivan tenha sido inspirado em Vsevolod Meyerhold (1874-
1940), importante ator e diretor de teatro russo e mestre de Eisenstein. Ivan, o Terrível seria
uma espécie de réquiem para Meyerhold, mas também uma crítica. Trata-se de um filme sobre
o poder e a autoridade do czar relacionada ao jogo, às máscaras e aos travestimentos, à maneira
de Meyerhold.
A sequência escolhida para análise de Ivan, o Terrível – Parte II é a do banquete com
Vladimir, uma das duas únicas cenas coloridas do filme. A outra sequência colorida aparece no
final, quando o czar denuncia os inimigos da independência russa.
Na cena analisada, Ivan está desconfiado que sua tia Efrosínia foi a responsável pelo
envenenamento de sua esposa. Ela está planejando a morte de Ivan e indica Pyotr para executá-
62
lo. Efrosínia recebe de Ivan um convite para um banquete. Ela designa seu filho Vladimir e
Pyotr para irem no lugar dela e excutar o plano de assassinato. É uma sequência em que Ivan
reafirma seu poder de soberano.
A sequência colorida não foi inserida por acaso. Um dos motivos apontados para sua
inclusão é a busca de Eisenstein pelo êxtase do espectador. Segundo Jacques Aumont (1942),
escritor francês que estuda a teoria do cinema, o sentido de êxtase é utilizado nos últimos
filmes de Eisenstein. Para Aumont o êxtase é uma espécie de excesso psíquico e assim como na
religião, teve sua finalidade no sistema comunista.
Em todo o último periodo teórico de Eisenstein, o êxtase designa a lei interna do pensamento-cinema, a lei teórica do cinema como fonte ou veículo ao mesmo tempo de pensamento e de emoção. O êxtase é o que atinge o espectador, o que o coloca fora de si (AUMONT, 2004, p 103).
Outro motivo é a aplicação da teoria dialética ao filme, a contrução de sentido pela
interação de dois opostos: preto e branco / cor.
O que digo, ou chamo de “uma grande ordem da cor”, não é a sua formulação analítica em bases puramente físicas ou psíquicas, mas a inter-relação dessas duas com o que quer a cor expressar, pois tem ela que estar ligada ou a uma dialética ou a um fio de pensamentos e ideias intuitivas, para atingir o seu máximo objetivo, que é a expressão (OITICICA in COTRIM, 2009, p. 84).
A luz utilizada por Tissé simula uma iluminação à luz de velas, bastante contrastada e
vindo sempre de baixo. As regiões de sombra e penumbra acentuam o clima de mistério da
ação. Os tons são quentes, predominando o vermelho (vitalidade, ambição, raiva, desejo) e o
dourado (realeza, dinheiro, riqueza, poder divino), sugerindo os sentidos óbvios de
derramamento de sangue e de luta pela riqueza e pelo poder.
A análise de treze fotogramas da sequência comprova estas afirmações.
63
figura 29
A sequência começa com uma frenética cena de dança onde o vermelho e o dourado
são predominantes nos figurinos e na iluminação. A sequência inteira é predominantemente
vermelha e dourada. Essas cores tinham um importante papel na pintura da época de Ivan.
Além disso, o vermelho sinaliza a cor da bandeira russa e prenuncia o derramamento de
sangue que acontecerá durante a sequência, sentido óbvio.
As cores quentes predominantes neste enquadramento e em toda a sequência são
justificadas pela iluminação, que simula uma luz proveniente de velas. Por esse motivo o
ângulo da luz principal de toda a sequência geralmente é baixo e as velas são enquadradas,
justificando a procedência das fontes luminosas.
Esse tipo de iluminação é o que existia na época de Ivan e foi reproduzido por Tissé
de forma magistral, de uma forma que os refletores tornam-se invisíveis e a cena parece ter
sido iluminada apenas por velas.
64
figura 30 Em seguida são apresentados os assessores do czar dançando com figurinos em preto.
Esses figurinos dão um contraste de claro-escuro à sequência. A iluminação também é
caracterizada pelos claros (iluminação dourada e vermelha das velas) e escuros (regiões de
penumbra e sombras projetadas nas paredes).
Neste fotograma fica evidente o contraste das roupas e da iluminação. Ao fundo um
afresco representando Deus com uma auréola vermelha e que remete à figura do czar, pois os
ícones russos são apresentados com auréola. O afresco possui tons de azul, a única cor fria da
sequência. Esse azul de fundo, assim como o claro/escuro, contribui ao contraste da cena e à
separação dos personagens do fundo.
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figura 31 Depois de uma cena de dança frenética, Ivan é mostrado em seu trono tomando vinho.
Ele usa um caftan dourado e vermelho, seu trono é dourado e contrasta com um afresco
vermelho ao fundo. O claro-escuro é dado pela grande massa preta em primeiro plano e pelas
velas.
A iluminação de Ivan vem da esquerda para a direita, em um ângulo baixo, o que
produz sombras em um dos lados do rosto do czar e em sua roupa. As sombras são
importantes para dar volume e massa à cena.
66
figura 32 Vladimir, embriagado, conversa com Ivan e afirma que é seu amigo. Ele acaba
contando a Ivan que sua mãe tem planos para que ele se torne czar, mas que não gostaria de
tornar-se. Ivan também tem um plano para matar seu maior inimigo: Vladimir.
Pelas sombras na roupa de Ivan percebemos que a luz principal é lateral e baixa.
Existe também um contra-luz iluminando a cabeça do czar e um preenchimento, de menor
intensidade, para Vladimir. A luz de Ivan é muito diferente da de Vladimir. Ivan recebe uma
maior intensidade luminosa e sua luz é mais dura, o que garante sombras mais marcadas em
seu rosto. A luz de Vladimir é menos intensa e mais suave, as sombras são atenuadas e isso dá
menos dramaticidade ao seu personagem.
O fato da mão esquerda do czar repousar sobre a cabeça de Vladimir indica o sentido
óbvio do poder, que também é comunicado pelos anéis, correntes, vestuário e olhar definido.
67
figura 33 Neste fotograma um exemplo da iluminação bem trabalhada de Eduard Tissé. Ele usa
um contra-luz vermelho e uma luz lateral dourada. A luz principal vem de baixo, iluminando
o pescoço de Ivan e produzindo sombras alongadas em seu rosto.
O fundo é escuro, dando maior ênfase à figura iluminada de Ivan. Neste close
podemos perceber como sentido óbvio toda a desconfiança e inquietude estampadas no rosto
de Ivan através das rugas na testa e das sombrancelhas arqueadas.
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figura 34 “O czar adora se divertir/ Ele adora fantasiar os outros/ Máscaras garantem o
divertimento”(EISENSTEIN in MONTAGU, 1962, p. 191). É dessa maneira que Eisenstein
se refere a Ivan no roteiro da segunda parte do filme.
O tema da máscara é fundamentamental na obra de Eisenstein e está ligado ao
conceito de tipagem, estabelecimento de tipos (modelos, símbolos). Seria o equivalente
cinematográfico do mesmo procedimento da commedia dell’arte, uma forma de teatro
popular que aparece no século XV, na Itália, e cujas apresentações eram realizadas nas ruas e
praças públicas. Os personagens eram interpretados por atores usando máscaras.
Este fotograma é uma referência clara à inspiração de Eisenstein em Meyerhold na
execução de Ivan, o Terrível, uma vez que seu mestre também tinha fixação por este tema.
O ato simbólico de Basmanov ao retirar a máscara traz o sentido óbvio de
desmarcarar. Ivan acaba de descobrir o plano de Efrosínia e Vladimir graças às confissões
deste último. Entretanto o personagem não descobre seu rosto totalmente, ele parece estar à
espreita. Sua face, principalmente a região dos olhos, é protegida da luz pela sombra gerada
pela máscara. A imagem transmite um certo ar de suspense, um sentido de que algo vai
acontecer. Trata-se de um personagem que se identifica com a posição do espectador, que
observa os acontecimentos atentamente mas não interfere na ação.
69
A expressão do ator marca o sentido obtuso do plano.
Como nos fotogramas precedentes, a luz é dourada e vermelha e o fundo é uma
penumbra, que destaca a personagem.
70
figura 35 Pyotr abandona o recinto do banquete para colocar em prática seu plano de assassinar
o czar. Sua saída é importante para entendermos que ele desconhecerá a troca de vestuário
entre o czar e Vladimir. As sombras de Pyotr projetadas na parede lembram a iluminação dos
filmes expressionistas.
Mais uma vez o azul da parede contrasta com a iluminação vermelho-dourada e com o
figurino preto. O azul cria um “respiro” para os tons quentes e o preto do figurino e da sombra
destacam o personagem ao fundo.
71
figura 36 Ivan sugere a Vladimir que ele se vista de czar para se sentir como tal. Ele ordena que
tragam o trono e suas vestimentas. Isso é feito num plano contre-plogée, em que Ivan aparece
imponente contra o teto vermelho do recinto. As velas justificam a luz dourada que incide
sobre o czar.
Como ocorre em toda a sequência, a luz vem de baixo e o próprio gesto de Ivan cria
sombras duras em seu rosto e corpo, garantindo maior dramaticidade à cena.
A grandiosidade do czar e seu braço direito erguido traz a mensagem de conotação
cultural do poder estabelecido.
72
figura 37 Após ser acomodado no trono e vestido com os trajes nobres do czar, Vladimir é
coroado por Ivan. O fundo é dividido entre uma região clara de luz vermelha e escuro com a
sombra de Ivan. As velas mais uma vez aparecem para justificar a iluminação dourada. A
expressão de Vladimir é de espanto, ele experimenta pela primeira vez a sensação de se tornar
czar. Apesar de ter cedido a coroa, Ivan fica acima de Vladimir, cujo olhar assustado
evidencia o não-lugar.
A beleza pode intervir como sentido obtuso, é o caso deste fotograma, onde o sentido
óbvio, muito denso (gesto de Ivan e simplicidade inocente do jovem Vladimir), está fixado
e/ou desviado pela beleza de Basmanov.
Mais uma vez a iluminação difere nos rostos de Ivan e Vladimir. Ivan tem uma
sombra profunda no olho e Vladimir recebe uma luz mais equilibrada entre os dois lados do
rosto, o que lhe garante sombras atenuadas e menor dramaticidade.
73
figura 38 Todos, incluindo Ivan, curvam-se em reverência ao falso czar. Vladimir e os outros
seguidores estão de dourado, representando a realeza. Ivan é o único que está de preto, isso
faz parte de seu plano para evidenciar Vladimir e ocultar-se. Mais uma vez as velas estão
presentes no enquadramento para justificar a iluminação da cena, toda em cores quentes.
Além da iluminação em seu rosto Ivan recebe uma luz sobre seu manto, o que permite
que vejamos detalhes no preto e que cria uma sombra do personagem na escada. Isso
demonstra que mesmo nos planos mais abertos, em que o rosto de Ivan não é visto com mais
detalhes, Tissé fornece-lhe uma sombra para enfatizar sua dramaticidade.
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figura 39 No plano contre-plongée vemos Vladimir no trono com o cetro e a coroa. Podemos
comparar o czar com a figura divina no afresco do teto. É importante notar que as figuras de
Vladimir e do afresco, apesar de unidas, encontram-se em diagonais opostas, assinalando que
apesar de sua intenção de tornar-se czar, Vladimir segue movimento oposto, o que indica o
sentido óbvio do plano.
Aqui, mais um exemplo da iluminação pontual feita por Tissé, resultando em regiões
claras (Vladimir) e escuras (fundo), que evidencia a figura de Vladimir. As velas novamente
estão em quadro. Este plano, mais fechado que o anterior, tem a função de mostrar a reação de
Vladimir aos acontecimentos: sorri e parece gostar de sua nova posição.
Ao contrário dos planos anteriores, em que recebe uma luz mais difusa, agora que está
sentado no trono, Vladimir é iluminado por uma luz mais dura. Entretanto o contraste em seu
rosto é atenuado por uma luz de preenchimento do lado esquerdo, tornado o contraste em seu
rosto menor do que o contraste no rosto de Ivan quando ele ocupa a mesma posição.
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figura 40 Vladimir dorme no trono. Isso demonstra um pouco de sua personalidade aparvalhada
e de seu grau de embriaguez. Fica evidente que ele não tem as qualidades necessárias para
tornar-se um czar forte como Ivan. Mais uma vez Tissé utiliza-se do claro-escuro para
evidenciar a figura em cena.
A luz em seu rosto é mais suave do que no fotograma anterior e isso faz referência
direta com o estado do personagem: estado alerta/luz dura, sono/luz suave.
A coroa inclinada não dignifica o poder e a santidade do czar, este sentido obtuso
estrutura o filme de modo ambíguo.
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figura 41 No último fotograma Vladimir está prestes a deixar o recinto do banquete para ir à
catedral. Ele sai de um lugar claro para uma porta com fundo escuro, indicando que obscuro
também será seu futuro próximo: será confundido com o czar e será morto pelas mãos de
Pyotr. O sentido óbvio é de tragédia.
O azul claro das paredes é enfatizado pois a iluminação avermelhada incide apenas em
Vladimir e no tapete. Ele carrega uma vela não mão, justificando a iluminação de sua face e a
parte anterior do corpo, mas pela marca de luz no tapete claramente identificamos que há um
refletor do outro lado da porta responsável por essa iluminação.
Trata-se do último plano colorido da sequência, o que confere ao fotograma um
sentido obtuso de inesperado.
77
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante notar que além da busca de uma sintaxe própria para seus filmes,
Eisenstein participa do construtivismo russo, movimento estético-político iniciado a partir
de 1919. Existem certas distorções na definição do “construtivismo”. A primeira, é a que
assimila o construtivismo apenas a um “estilo decorativo, geométrico, abstrato”, ou que só vê
nele a submissão a “princípios geométricos”. A segunda, relaciona o construtivismo ao
“funcionalismo” e vê nele o prenúncio do “design”. Na realidade, devemos tratar o
construtivismo como um movimento em que os artistas defendem a arte despida de aura, mais
próxima ao povo, ao alcance de todos. É a negação da arte pura, da arte como elemento
especial da criação humana, separada do mundo cotidiano. Desse modo, o construtivista opera
sobre a dimensão social das práticas artísticas, o que as duas “distorções” mencionadas
ignoram ou subestimam.
A maioria dos artistas russos do período 1917-21 não ficou de fora dos acontecimentos
sociais e políticos. Analisando-se os termos debatidos entre os diferentes artistas e teóricos de
vanguarda constata-se que os critérios são menos estéticos, intra-artísticos, do que sociais, já
que a arte atribui a si mesmo uma tarefa de “organizar a vida” e não de decorá-la. A arte,
instrumento de transformação social, parte da reconstrução do modo de vida, da
“revolucionarização” da consciência do povo.
Os construtivistas declaram fora-da-lei a arte elitista e seus pregadores. O escritor e
crítico literário russo Osip Brik (1888-1945) pergunta: “O que um sapateiro fabrica? Sapatos. E
um artista? Nada” (BRIK in ALBERA, 2002, p.171). O fotógrafo Aleksandr Ródtchenko
(1891-1956) diz: “Abaixo a arte, brilhante desperdício em meio à vida desprovida de sentido
das pessoas bem de vida. Abaixo a arte, meio de escapar de uma vida desprovida de sentido.
Abaixo os monastérios, as instituições, os ateliês, os gabinetes de trabalho e as ilhas!”
(RÓDTCHENKO in ALBERA, 2002, p.171).
A vontade de tirar a arte de seu isolamento, de torná-la “parte integrante da vida”, de
eliminar a camada social dos artistas, faz com que esse grupo mergulhe no espaço social, na
produção de objetos do cotidiano, do âmbito da vida e da política. Assim foi Eisenstein com
seus filmes, principalmente no início da carreira, enquanto o movimento construtivista
permanecia ativo.
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O cinema é bastante propício à aplicação e à experimentação das teses construtivistas:
meio oriundo da técnica e da indústria, que está em relação direta com a realidade – seu
material é o mundo – e dirige-se efetivamente ao destinatário de massa, o povo.
Além disso, por ser uma produção que depende do trabalho de equipe, o cinema,
segundo Eisenstein, é feito por trabalhadores. Isso evita a exaltação da celebridade de cada um
e os insere em uma classe, cujo trabalho é necessário para o funcionamento da sociedade
socialista. Esse pensamento está perfeitamente de acordo com a proposta construtivista.
Acusado pelo cineasta russo Dziga Vertov (1896-1954) de ter feito um filme artístico, no
sentido da encenação, Eisentein responde em “Sobre a questão da abordagem materialista da
forma”, que “A Greve não pretende afastar-se da arte, e aí está sua força” (EISENSTEIN, 1925,
p. 5).
As construções cênicas dos filmes A Greve e O Encouraçado Potemkin são claramente
construtivistas. A organização plástica linear reivindicada por Ródtchenko e seus amigos, que
pretendiam educar o povo analfabeto através das imagens, também está presente nas duas
obras.
Ao passar do teatro ao cinema, Eisenstein conserva vários traços de seu trabalho anterior. A encenação excêntrica, o recurso à máscara, a utilização de cenários reais, a referência à máquina, o lugar e valor dos objetos, tudo isso nutre A Greve. Por outro lado, a organização da imagem aparenta-se bastante com construções de artistas construtivistas e com o linearismo de Ródtchenko (ALBERA, 2002, p. 244).
Eisenstein e Ródchenko influenciaram-se mutuamente, o que fica patente na foto Steps
(figura 42), feita por este último em 1929. A imagem assemelha-se muito aos planos da
escadaria de Odessa presentes em O Encouraçado Potemkin, de 1925.
79
figura 42
Nas escolhas plásticas também há vinculação de Eisenstein ao procedimento
construtivista. A imagens sempre partem de figuras geométricas: círculo, quadrado, retângulo,
diagonal, triângulo, organizadas no plano da tela. Tais figuras criam relações de oposição ou
contraste (alto/baixo, frente/atrás, esquerda/direita, etc), e jamais continuidade.
Mas sobretudo deve-se observar o que Eisenstein conserva como elemento dominante:
em cada quadro ele isola uma figura plástica estruturante – horizontal, vertical, arco, círculo – e
define um tipo de oposição entre os planos no interior do quadro – primeiro plano e plano de
fundo.
A partir de 1934 a única forma de arte admitida na URSS passa a ser o realismo
socialista. Todas as outras tendências artísticas durante o Stalinismo são
consideradas formalistas, isto é, voltadas à ênfase da forma sobre o conteúdo ou significado.
O realismo socialista é o estilo artístico oficial da União Soviética entre as décadas
de 1930 e 1960. Trata-se, na prática, de uma política de Estado para a estética e impede a
continuidade das manifestações de vanguarda. Muitos artistas deixam a URSS e Eisenstein
tem problemas com a censura, como em Ivan, o Terrível – Parte II.
Pesquisador incansável, enfrentou tensões para conciliar as exigências partidárias, na abordagem de conteúdos político-sociais, com suas experiências vanguardistas
80
em torno de uma “dramaturgia da forma do filme”, que iria caracterizar o processo fragmentário da “montagem intelectual”, em filmes como O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1928). Para os ideólogos do regime soviético, na fase stalinista, a composição artística deveria estar voltada para uma recepção imediata dos significados da obra, no que passaria a ser conhecido como realismo socialista (FREITAS, 2011, p. 27).
A crueldade também é um fator fundamental nos filmes e na vida de Eisenstein. Ele
sempre lembrava-se do pânico sofrido quando sua mãe negou que ele era seu filho e de seu pai,
que sempre o perseguia.
Ivan, o Terrível foi o trabalho mais complicado sobre o tema da crueldade, entretanto
o tema é comum em todos os seus filmes. Em A Greve trabalhadores são mortos como bois e
crianças são jogadas do telhado. Em O Encouraçado Potemkin crianças e adultos são
massacrados na escadaria de Odessa. Existe uma clara cena de barbárie eno filme Cavaleiros
de Ferro (1938) em que homens e mulheres são lançados ao fogo. Ivan, o Terrível contém
inúmeras cenas de pessoas sendo apunhaladas e envenenadas.
Na análise dos fotogramas, leitura de sentidos, podemos verificar que em A Greve,
apesar de ainda não dispor da lente 28mm, Eisenstein cria a profundidade na imagem através
do uso de diagonais e do claro/escuro. Um recurso que norteia o enquadramento é a clássica
regra dos terços. Além disso, a multiplicidade de posições de câmera dá o dinamismo
necessário à cena de perseguição. O sentido óbvio apresentado pela maioria dos fotogramas
apontam para a disparidade de forças entre policiais e operários.
Na sequência analisada de O Encouraçado Potemkin, Eisentein e Tissé utilizam as
diagonais e a iluminação para garantir profundidade ao quadro e volume aos objetos filmados.
Como na sequência analisada em A Greve, há vários posicionamentos de câmera, o que através
da montagem confere dinamismo e alongamento do tempo à cena. Vale notar que há uma
coerência no ângulo da luz principal em todos os fotogramas analisados, garantindo uma
continuidade na fotografia. Nota-se apenas um preenchimento de luz maior nos planos de
detalhe do que nos planos gerais, o que é perfeitamente aceitável em cinematografia. Sobre o
sentido óbvio podemos dizer que refere-se principalmente ao conflito, mas também à
disparidade de forças entre policiais e o povo, bem como a dor do massacre.
Sobre a fotografia de Ivan, O Terrível – Parte II podemos dizer que lembra a dos
filmes expressionistas: luz recortada, grandes sombras projetadas sobre o fundo. A iluminação
feita por Tissé é uma das mais elaboradas dos filmes de Eisenstein. Obedece ao esquema de
iluminação de três pontos, com a presença de luz principal, contra-luz e luz de preenchimento.
Na sequência analisada, a luz principal é lateral e vem de baixo, o que cria sombras alongadas e
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garante o volume nos rostos dos personagens. Além disso, a angulação de luz e a dureza das
sombras enfatizam a expressão de crueldade no rosto do czar. Para destacar a figura de Ivan,
Tissé sempre direciona um foco de luz sobre ele. O resto da cena sempre apresenta uma
intensidade de luz inferior à de Ivan, o que lhe dá mais destaque. Os rostos das personagens,
excetuando Ivan, são iluminados frontalmente, neles não se vê nenhuma sombra.
Sobre a cor, podemos dizer que exerce três ações sobre o receptor da imagem: a de
impressionar, a de expressar e a de construir. A cor é vista, ou seja, impressiona nossa retina,
trabalha diretamente no campo ótico-sensível. Ela é sentida, portanto nos expressa emoções,
provoca diretamente o nosso campo psíquico. E é construtiva, porque, tendo um significado
próprio, carrega um símbolo cultural e a capacidade de construir uma linguagem que
comunique uma ideia na direção do sentido óbvio.
Eisenstein considera que existem relações entre cor e significado. Em determinada
situação a cor estaria ligada à imagem resultante, como todos os elementos que dela fazem
parte. Dessa forma, a relação cor/significado depende do contexto. Sendo dependente do
contexto, o valor histórico e cultural também é determinante entre a cor e o simbolismo que
apresenta.
Nesta sequência, os tons predominantes de vermelho e dourado vêm de dois
contextos: o da época de Ivan e o da época em que o filme foi feito. No primeiro caso,
remetem aos tons predominantes na pintura da época de Ivan (século XVI). No segundo caso,
o vermelho remete à cor revolucionária. Há ainda um significado do vermelho ligado ao
roteiro do filme, ele prenuncia o derramamento de sangue que ocorrerá com o assassinato de
Vladimir no final da sequência. O dourado remete à realeza, ao dinheiro e à luta pelo poder,
sentidos óbvios da sequência.
Após a análise dos filmes alguns conceitos podem ser associados ao estilo da parceria
Eisenstein-Tissé, são eles: expressividade, ênfase, conflito, revolução (tanto ideológica quanto
formal), composição em profundidade (pelo foco ou pelo claro-escuro). Tais conceitos
caracterizam o que podemos chamar de fotografia do conflito. Os aspectos informativos e
simbólicos dos filmes criados por esta dupla se alinham à visão construtivista de “operários” do
cinema. E o aspecto da significância é articulado pela dimensão poética e “fílmica” da
genialidade Eisenstein-Tissé.
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FILMOGRAFIA
A Greve. Direção: Sergei Eisenstein. Fotografia Eduard Tissé. Moscou: Goskino, 1924 [produção]. Distribuidora: VTO Continental, 1 DVD (82 min), preto e branco. Título original: Statchka. O Encouraçado Potemkin. Direção: Sergei Eisenstein. Fotografia Eduard Tissé. Moscou: Goskino, 1925 [produção]. Distribuidora: Continental Home Video, 1 DVD (75 min), preto e branco. Título original: Bronienosets Potemkin.
Ivan, o Terrível – Parte II. Direção: Sergei Eisenstein. Fotografia Eduard Tissé. Moscou: Alma Ata Studio, 1958 [primeira exibição]. Distribuidora: Continental, 1 DVD (103 min), preto e branco/cor. Título original: Ivan Grozny.
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ANEXO
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