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PRODUTO NOVO Fernando Dias Cyrino 1

Uma sensibilidade tal qual como a do mercúrio, era … · Web viewNarciso tinha seus clubes de preferência no futebol, basquete, voleibol, a equipe de fórmula Um com o piloto brasileiro

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PRODUTO NOVO

Fernando Dias Cyrino

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DESAFIO

Uma sensibilidade tal qual a do mercúrio era o que se dizia, à boca pequena, no escritório para explicar a irritação de Narciso à menor variação para cima que ocorresse com a temperatura ambiente. Seu lema, todos sabiam, era “quanto mais frio melhor”. Era sempre assim, a subida do primeiro grau nem tinha ainda se efetivado ou já fora sentida pelos demais e a gravata de Narciso já havia sido afrouxada.

-Hora de irmos embora, amigo. Mais trinta minutos e isto aqui vai estar como a caldeira principal do inferno. Na próxima reunião do condomínio mandaremos até lá o Jorge com a proposta de que seja mantido ligado, pelo menos por mais uma hora, o ar condicionado central do prédio. Esse negócio deles o desligarem às 22h deve ser fruto do trabalho de algum antigo síndico preguiçoso que passou por aqui. -Fica frio, Alex, vamos ficando até quando dê pra gente agüentar. -Também ninguém mandou que viéssemos comprar logo um andar desse prédio balzaquiano. Pensando bem, nem mandarei o Jorge pra fazer esse lobby na reunião do condomínio. Com a cravada que estaremos dando no mercado com o produto novo, em no máximo mais um ano, teremos adquirido espaço para as novas necessidades da Good Food. Uma área no mínimo três vezes maior do que esta que ocupamos hoje aqui no Centro, em algum prédio inteligente e zerado na Barra da Tijuca.

Absorto na leitura dos muitos gráficos com as análises detalhadas do mercado de alimentos, estado por estado, Narciso balançou por duas vezes a cabeça e, autômato, sem desviar os olhos da folha que diante de si mostrava as possibilidades de vendas no Ceará, desabotoou as mangas da camisa e deu, em cada uma delas, duas dobras que pareceram terem sido medidas e passadas à ferro de tão perfeitas que ficaram.

-Faltam ainda os estados do Piauí e do Maranhão, além dos do Norte. Mas você tem razão, não vamos esperar que isto aqui pegue fogo pra gente sair correndo. Tenho uma sugestão melhor a fazer. O dia de amanhã será de decisão e precisaremos estar bem tanto física quanto mentalmente. -Essas idéias suas de final de expediente geralmente são uma furada, Narciso. Até arrepio quando você me vem com uma delas às 22h 20min. logo depois desses dois dias tão agitados que passamos, com mais de noventa por cento de possibilidades de acerto, eu vou dizer que a sua proposta não será no sentido de irmos para casa dormir. -A minha sugestão só complementará a sua de que é hora de pararmos de trabalhar. Hora de irmos embora, mas não para casa. Você apostou certo. Eu te desafio para uma partida de squash. Esta semana não jogamos ainda e já é quarta-feira. Tenho que colocar pra fora o tanto de energia que ainda sinto agora. Se não fizer isto ficarei rolando na cama contando e recontando a Dolly e as suas infinitas irmãs.-Cara, já vi que está maluco. O dia todo você reclamou do joelho que doía e eu aqui com este punho esquerdo parecendo ter sido atropelado por um trator e ainda quer jogar? Vou rememorar tudo o que fizemos desde ontem pela manhã pra você tomar consciência da insensatez do seu convite. -Precisa disto não, meu caro. Eu estava com você esse tempo todo e sei de tudo. Lembro que ontem estivemos o dia inteiro reunidos com a Agência de Propaganda em São Paulo.

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-Isto mesmo, mas não ficou só nisto, Narciso. Você deve se relembrar que já era noite quando passamos no hotel para somente deixarmos as maletas, tomarmos um banho rápido e sairmos direto para o jantar, mais do que enjoado, com os gringos do banco? -Tudo bem, Alexandre, mas você não deve se esquecer também de que para compensarmos a chateação do restaurante a gente deu uma boa esticada até aquela boate.-Você tem noção da hora em que entramos novamente no hotel para dormir? Lembro-me bem de ter olhado o relógio quando passamos pela portaria e lá pegávamos as chaves. Eram exatamente 3h 30min. quando você definiu para o moço sonolento da recepção o horário em que deveríamos ser despertados. Apenas três horas após aquela, para que pudéssemos apanhar a ponte aérea das oito. E isto porque já tínhamos feito o check in quando do desembarque lá na manhã de ontem. - É cara, você tem mais é que me agradecer por ter escolhido um hotel próximo do aeroporto. Para dormir, amigo, teremos a eternidade toda. Foram poucas horas, mas elas foram mais do que suficientes. Descansamos bem. Tanto que você estava de excelente humor na viagem de volta, o que não teria acontecido se estivesse ainda cansado. -Pára com isto. Quem escolheu o apart perto do aeroporto fui eu. Você ainda me questionou dizendo que achava que o lugar não era lá tão seguro assim.-Deixa de ser moleirão, Alexandre. Tá dando uma de fraco, é? Estou te estranhando. Vamos logo e não me venha com a desculpa de que está sem o short e o tênis. Esta não cola. Lá nos armários da Academia eu sei que você guarda todo o material necessário para praticar o esporte. Vamos logo. Amanhã chegamos às sete e fecharemos a análise do material para a reunião mais importante já havida na Good Food que será às dez horas. -Tudo bem, depois dessa tenho mais é que obedecer, senhor presidente. Se há uma coisa que ainda tenho bastante é juízo. Ao jogo então, mas será uma partida só. Umazinha mesmo, filha única. Está combinado?

Rindo, Narciso assentia com a cabeça, sabedor que era de que haveria no mínimo três rodadas. Uma só não seria suficiente para o seu propósito e não havia também o menor risco de que Alex fosse se contentar somente com o primeiro jogo, como apregoava. Haveria no mínimo três partidas até que, extenuados e já nas suas casas, os dois amigos nem se dariam ao trabalho de vestir os pijamas e, saídos do banho, morreriam nas confortáveis camas sem parecer que houvessem reparado que, encolhidas do outro lado, Lívia e Lílian, as duas na mesma posição como se tivessem copiado o jeito de dormir uma da outra, há muito já se encontravam adormecidas.

Às seis horas em ponto, sem que tivesse havido a menor necessidade do toque dum despertador, Narciso já se poria de pé, pronto para a nova longa jornada do dia seguinte, dando um beijo, ao sair, no rosto daquela que, há poucas horas tinha encontrado dormindo e que desta mesma maneira estava deixando agora. Poucos metros abaixo, parecendo até que tinha havido alguma combinação prévia, com poucas e não relevantes diferenças, o mesmo ritual acontecia no apartamento de Alexandre.

Tinha verdadeira adoração pelo esporte. Era cliente preferencial dos canais esportivos da tv por assinatura. Narciso tinha seus clubes de preferência no futebol, basquete, voleibol, a equipe de fórmula Um com o piloto brasileiro. Gostava muito de assistir esporte, mas a curtição mesmo, o prazer maior, este estava reservado para a disputa. Desde os seus preparativos iniciais, a arrumação do uniforme, todo muito certo,

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colorido, limpo e sempre com a aparência de estar sendo usado pela primeira vez, o alongamento e aquecimento feitos com bastante cuidado, essas eram todas ações que anunciavam a proximidade do jogo, o que fazia com que subisse o nível da adrenalina e aí estava a única situação em que ele aceitava sentir calor.

Nestes momentos tinha muita satisfação sentindo o corpo quente e o suor começando a marejar por entre os poros, preparando-se para o prazer maior. O clímax, este vinha da partida em si e acontecendo a vitória, aí esse gozo se multiplicava. O que já era bem grande terminava por se ampliar ainda mais. Prazer supremo de grande vencedor. Orgástico. Pena que fosse tão fugaz. Em poucos minutos tudo tinha passado e era necessário que nova meta esportiva fosse lançada à frente para ser então perseguida. Queria que sensação tão intensa de realização e de sucesso não fosse tão efêmera. Que ela permanecesse mais com ele.

Identificava-se com o técnico da seleção que, imediatamente após a conquista da tão sonhada e suada medalha olímpica, aquela do mais brilhante amarelo, já se mostrava preocupado com a preparação para o campeonato da liga mundial que iria lutar para conquistar daí a um ano. Isto enquanto à sua volta, os jogadores, dirigentes e torcedores pulavam na mais legítima alegria pela glória alcançada. Pensando em tal vitorioso técnico, sentia pena dele por perceber as semelhanças que com ele tinha e notar que também o técnico não se dava a permissão de relaxar pelo menos um pouco na curtição da vitória. Os dois não conseguiam gozar, como seria justo e razoável e por um período de tempo maior, o sucesso que com tanto esforço e garra fora obtido. Vez por outra a consciência dessa dificuldade vinha forte causando um desagradável incômodo em Narciso.

Dar tudo de si e ainda mais um pouco na busca contínua da superação, era o usual. Também era verdade que se sentia integrado e com dotação mais do que suficiente para a prática de qualquer esporte que fosse. Desde aqueles individuais como o “squash” que disputava com Alexandre, ganhando praticamente todas, é bom que se diga de passagem, até os variados esportes coletivos. Bastava que houvesse quorum suficiente para a formação das duas equipes que lá estava ele. Foi Adherbal, o seu pai, quem primeiro lhe havia constatado a competência esportiva. Fora Adherbal também o grande incentivador para que investisse forte nesta arena da sua vida.

Essa competência acima da média para a prática dos esportes com sucesso fora algumas vezes contestada. O último a ousar dizer tal disparate havia sido Alexandre. Muito rápido ele compreendeu o quanto tinha sido inoportuno e quão raivoso Narciso poderia se tornar naqueles momentos nos quais as suas verdades fossem questionadas.

Alexandre inocentemente tinha constatado que o amigo realmente se dava razoavelmente bem nas modalidades esportivas que praticava, mas isto acontecia tão somente porque aliado à inegável, apesar de que não era tanta assim, habilidade motora, Narciso possuía também a competência muita bem desenvolvida e melhor ainda aplicada, de saber escolher seus adversários. Era fato notório que nas programações para as atividades esportivas individuais ele, como costumavam dizer, “só ia na boa”. Além dos adversários para os esportes que se praticam somente contra um adversário, mais do que ninguém, Narciso sabia aliar-se aos melhores parceiros, o que fazia com que ficassem bastante aumentadas as suas probabilidades da vitória.

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Era só avaliar que vencer não seria possível e logo Narciso ia, sutilmente, fazendo as arrumações para fugir da disputa indigesta.

Os outros colegas das rodas esportivas, longe dele, também faziam chacota do fato de que se esquecia com muita presteza das derrotas, mas sabia, mais do que nenhum outro - e neste aspecto somente Alex era capaz de rivalizar com ele - vender caro as suas vitórias, ampliando-as e colocando-as num nível muito maior do que aquele que tinha sido visto e vivido nas quadras.

E o pior de tudo, eles também diziam, era que muitas daquelas vitórias que eram por ele apregoadas nem tinham ocorrido. Elas tinham sido fabricadas na sua cabeça. Já havia tido até brigas com um ou outro desses amigos por ele afirmar e reafirmar que os tinha vencido, quando na verdade havia muitas testemunhas dizendo que a realidade havia sido bem outra. Tinha sido invertida. Esta construção da verdade na sua imaginação era algo que deixava impressionado o grupo, pois que entre eles havia também o consenso de que Narciso realmente acreditava naquilo que ia propagandeando sobre seus pseudo-sucessos.

Havia que se tomar cuidado com a dispersão de atividades. Queria fazer tudo, investir em tudo, estar presente em tudo, ganhar todas. Narciso tinha lido um artigo numa revista americana que tratava do tema da qualidade de vida e ficara bastante impressionado, por uns dois meses, com o resultado do teste que este tipo de revista adora, sobre o seu perfil profissional. Com o número máximo possível de pontos, tal avaliação o havia colocado como um workaholic. De impressionado e assustado, logo passou para o lado oposto, tornando-se orgulhoso da sua capacidade de trabalho. Eu sou bom se realizo, se tenho sucesso, se sou visto como alguém que alcançou êxito costumava apregoar para os amigos depois de tomadas algumas doses do legítimo Logan.

Foi num campeonato de tênis que os dois amigos se conheceram. Apaixonados pelo esporte, eles estavam naquela época totalmente encantados com esta prática esportiva que havia se tornado moda entre os emergentes e ricos da cidade. Entre um saque e um game completado já era como se amigos de infância fossem. Formaram uma bela dupla nesse campeonato, treinaram muito e foram até às quartas de final quando infelizmente perderam. Nessa derrota, foi bastante razoável que tivessem se dado conta de que se quisessem manter e até estreitar a nova amizade, como iria mesmo acontecer, eles nunca mais deveriam atuar em parceria.

Isto somente no que diz respeito às representações esportivas, porque nos demais palcos da vida Narciso e Alexandre desempenhariam funções daí por diante sempre juntos. Tão ligados que haviam se casado com duas irmãs e mais ainda do que irmãs, Lívia e Lílian eram gêmeas univitelinas. Tão unidos um ao outro que seis meses apenas depois daquela primeira tarde de sábado em que se encontraram pela primeira vez, eles já eram sócios de muitos planos que os fariam, num piscar de olhos, milionários, tal qual o ídolo comum que àquela época veneravam: Donald Trump, o investidor e milionário norte americano.

JURAMENTO QUEBRADO

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Dar início ao negócio tendo como capital apenas aquela série infindável de planos mirabolantes não foi nada fácil. Isto até que aconteceu a chegada de Mário. A entrada deste homem na vida dos dois havia sido tão providencial e importante que chegou a fazer história, sendo bastante comentada nas rodas freqüentadas por eles. Foi o destino, era o que uns diziam; isto se deveu à sorte deles, contavam alguns outros; nada disto, foi a Providência Divina, era o que apregoavam outros mais. Mesmo não se tomando partido de nenhuma das três hipóteses aventadas, o que era certo é que a entrada de Mario mudara e acelerara tudo, tanto no cenário profissional quanto no espaço de vida afetivo dos dois inseparáveis amigos.

Com o acirramento da questão agrária, o incremento das invasões das fazendas pelo Movimento dos Sem Terra e a vitória do governo dito de esquerda, o então grande fazendeiro, criador do melhor gado zebu e da mais pura soja para exportação, tomou a decisão de vender todos os seus bens e propriedades, possuidor que estava então da certeza de que, a passos céleres, se caminhava para uma republica socialista, na qual a propriedade privada não mais teria sentido e nem existiria.

Não alienou as suas riquezas. Torrou-as todas para as aves de rapina do mercado que, notando o medo em seus olhos, sutilmente foram alimentando este sentimento, até que o pavor fizesse com que tenha sentido um grande alívio ao se ver livre, jogadas todas na bacia das almas, como era comentado pelos peões das fazendas, da última vaca e do seu derradeiro alqueire. Mesmo tendo sido vendido tudo muito barato, Mário permanecia ainda um homem bem rico. O dinheiro estava agora todo aplicado nos bancos, pois que jurara nunca mais em sua vida possuir algo que necessitasse numa emergência ser vendido.

Apesar de nunca ter freqüentado um curso de propaganda e marketing ou de algo que fosse similar, Narciso tinha embutidas nas suas palavras a capacidade de convencer os outros. Sua lembrança mais distante deste dom foi, quando ainda criança, conseguira convencer Adherbal, que já se encontrava todo endividado, além de desempregado e sem que existisse nada no cenário futuro, que fosse indicador de alguma possibilidade otimista de acontecer algum dinheiro na vida da família, a lhe comprar um videogame que, vieram logo a saber, nem era compatível com a televisão que tinham e que por isso, além de ter tornado ainda mais encalacrada a situação financeira da casa, permaneceu, até onde se teve notícias dele, guardado na mesma caixa na qual havia saído da loja. -Esse Narciso é capaz de vender geladeira para esquimó e aquecedor para nordestino. Foi o que exclamou para a mulher já todo arrependido, por ter se convencido dos infinitos e que pareciam tão razoáveis e plausíveis, argumentos do seu filho.

A mãe, bem mais sábia do que Adherbal, em várias oportunidades já profetizara que tal habilidade do filho seria, no futuro, de muita valia para todos em casa, pois que, segundo a sua expressão bastante repetida:-Esse menino ainda vai nos tirar do buraco. Tenho fé em Nossa Senhora Aparecida de que ele ainda nos sustentará a todos.O marido achava que era bobagem e, tal qual ele tinha sido tantas vezes engambelado pelos discursos tão convincentes de Narciso, também a mãe se encontrava enfeitiçada, totalmente à mercê do que ele também costumava chamar:-Das pregações e reclames do nosso vendedor nato.O futuro veio provar o seu engano e a mais completa razão que tinha a mulher ao fazer tal predição sobre o filho que tinham.

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Foi só aceitar a taça de vinho que lhe era oferecida pelo futuro genro e começar, em paralelo ao primeiro gole sorvido, a ouvir as suas explanações sobre os projetos e a altíssima taxa de retorno que propiciariam - Índices estes que ficavam ainda mais interessantes quando comparados aos baixos rendimentos auferidos pelos seus investimentos na renda fixa - que o “bichinho do homem de negócios sagaz” que desde que tinha acontecido a venda dos seus ativos, se encontrava adormecido, de um pulo, dentro dele acordasse e mentalmente as contas todas já tinham sido calculadas, acostumado que era, apesar de que um tanto quanto destreinado por estar há um bom tempo fora das canchas, a farejar um bom negócio.

Seu nariz nunca havia se enganado e não seria agora que o feeling que possuía para essas coisas iria falhar. Ali agora, aberto diante dele, apresentado por Narciso, estava um daqueles bilhetes premiados. Um dos chamados excelentes negócios que soem nos serem apresentados e oferecidos uma ou duas vezes na vida, avaliou rápido mantendo o sangue frio e o corpo quieto, para, como diziam quando jogavam truco na fazenda, “não dar parte de fraco”, demonstrando aos demais que tinha um grande trunfo, uma carta poderosa nas mãos. As regras dos negócios diziam que não podia demonstrar o que sentia. Havia que se fingir um certo descrédito e até desprezo pelo que ouvia e foi isto que ele fez, quase levando à loucura Narciso que ainda não estava acostumado àquelas estratégias. Não foi necessária a ocorrência de uma segunda vez, ele aprendia rápido e, mais que isto, passou a perceber também, tal qual o futuro sogro, os sinais sutis das presas quando naqueles momentos cruciais do se fechar o negócio, demonstravam já estar com a isca que lhes havia sido lançada dentro da boca.

Daí que, assuntando daqui, puxando de lá, esticando mais um pouco ao longe e já estava mais que quebrado por Mário aquele antigo juramento. O tempo era o justo para somente acordar lá nos cofres os seus cobres que dormiam bem guardados no banco estatal, para imediatamente alocá-los nos negócios, que eram uma barbada, desse rapaz tão dinâmico, falaz e com a aparência mais jovem ainda do que a idade que possuía e estranhamente parecendo estar sempre limpo, tendo saído instantes atrás apenas de um reconfortante banho.

-E o melhor de tudo, mulher, é que a riqueza vai ficar aqui em casa mesmo. Não vai sair da nossa família. Eu sei que você me considera um cidadão frio e que somente consegue pensar em si e no dinheiro que tem guardado, mas como ainda tenho fé em Santo Expedito que conseguirei te convencer, está redondamente equivocada. Eu sou um homem da família e desses negócios do coração eu entendo bem. Pode começar a encher a arca da Lívia. Ao contrário do outro que ela terminou e que tanto a deixou desolada, este é namoro sério e não somente de coisa e tal e tal e coisa. É paixão para acabar em altar com padre, dama de honra e vestido branco.

Sem abrir os olhos e com uma expressão de enfado ou, quem sabe, de ironia no rosto, com um gutural “ram ram” a mulher pôs fim àquele entusiasmo do marido. No escuro do quarto os olhos de Adherbal permaneceram brilhantes olhando no teto o fio de luz que o cortava da janela ao armário do outro lado da parede, por não ter sido fechada total e adequadamente a cortina. Cabeça acostumada a contabilizar touros, bezerras e sacas, ele começava agora a navegar por outros rios. Totalmente diferentes daqueles por onde remava enquanto era apenas um latifundiário.

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O PATRÃO PERDEU

Ao contrário dos placares quase sempre favoráveis a Narciso das partidas entre os dois, dessa vez fora Alexandre o vencedor dos jogos daquela noitada no squash. Normal que Narciso tenha saído de mau humor da quadra e que o porteiro da garagem da Academia, dessa vez, tenha ficado sem a sua gorda gorjeta. “O patrão perdeu”, foi o que disse para si mesmo entre os dentes, sem deixar cair a pose do sorriso automático que incorporava sempre que entrava ou saia algum daqueles bacanas com os carros importados da moda. Para os clientes “normais” havia um segundo modelo de atuar. Nesse caso o sorriso e a expressão facial do porteiro tornavam-se mais espontâneos e mais agradáveis até.

Alexandre, feliz com a vitória, mas ainda mais satisfeito por ter conseguido alterar o humor do chefe e amigo, dirigindo a BMW que até o ano passado tinha pertencido a Narciso, trocada que fora por ele pelo modelo mais novo da mesma cor e marca alemã, recebe também a atuação do serviçal do estacionamento da Academia, com a sua expressão automática, igual aquela que havia sido interpretada por ele para Narciso segundos antes, o que não poderia ser diferente em virtude da semelhança havida entre os dois, o que colocava Alex no rol dos bem sucedidos para os quais era devido, no modo de pensar e avaliar do empregado, aquele modelo primeiro de representação. Sorri para ele em retribuição e, acionando o botão, abre um pouco o vidro e passa a nota que é apanhada num bote rápido ao mesmo tempo em que o porteiro já estava, dessa vez, executando a estranha e também repetida mesura do agradecimento, o que sempre muito o divertia.

Livre na noite, Alex segue pelas avenidas amplas e vazias podendo ultrapassar, o que sempre era feito pelos dois companheiros com muito prazer, mesmo que o motorista que estivesse comendo poeira, nem tivesse se dado conta que na imagem formada na cabeça deles, estavam todos ali numa pista de corridas. Se por ventura o condutor do automóvel passado pra trás ousasse pisar no acelerador, havia instantaneamente neles a subida da adrenalina e o início ali naquela madrugada da sensação tão boa da disputa, quando colocavam em teste os tantos cavalos presentes nos seus motores. Noite vazia. Apenas um ou outro automóvel que ia se aventurando por aquela madrugada afora e uns dois ou três ônibus que chamavam a sua atenção por achá-los muito mais iluminados do que considerava, no seu julgamento, ser necessário, o que acabava aumentando ainda mais dentro deles os seus espaços, porque transportavam a esta hora já tão tardia muito poucos passageiros além dos seus necessários motoristas e cobradores.

Houve um dia em que tiveram a oportunidade, enquanto esperavam os atletas para que houvesse quorum para os jogos, de conversar sobre o prazer que a disputa lhes causava. Chegaram ambos a uma estranha conclusão: a de que, quando não tinham com quem concorrer, era com eles mesmos que buscavam competir se impondo sempre novos limites para serem superados.

Curte as vitórias enquanto dirige. Alexandre também, tal como Narciso, já consegue vez ou outra se permitir isto. No passado era fatal. Bem pouco tempo havido do sucesso, exatamente como aquele técnico da seleção de vôlei, dela ele já teria se esquecido, na corrida ansiada do novo podium. Calcula a perda calórica da noitada. Duas horas vezes 760 calorias. Isto dava 1.520. Merecia, sem precisar sentir nenhuma

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culpa, assaltar a geladeira na busca do sorvete de baunilha importado da América. Este seria o troféu da noite. Pena que o prazer iria ser solitário. Reflete sobre o quanto é parecido com Narciso. Dá-se conta, mais uma vez, da pergunta e constatação um tanto quanto grosseira dita por Mário sobre seus dois genros:-Sabem que vocês são a cara de um e o focinho do outro?Como imediatamente as duas irmãs e os seus dois à época ainda noivos quisessem retrucar ele completou:-Calma pessoal! Eu não estava dizendo isto a nível do ser humano físico, mas sim no que diz respeito à parte de dentro, a nível, digamos assim, do intelecto.

Lílian discordava do pai não somente porque achava o seu noivo muito diferente de Alexandre, principalmente porque o considerava muito chato e aborrecido, querendo estar sempre na cola do marido, imitando-o até nos menores gestos, mas também porque se intitulava como uma purista defensora do idioma pátrio e sentia calafrios quando ouvia expressões tal qual aquela da moda atual que fora falada havia pouco pelo seu pai. Esse tal de “a nível de” que cheia de ojeriza repetia sem incomodar Mário e fazendo rir aos demais à volta da mesa.

Este seu não gostar do cunhado ela achava ser um segredo desses que são guardados a sete chaves e nem com a irmã gêmea havia partilhado tal assunto. Besteira, porque a antipatia era mútua e a irmã desde muito já o tinha notado. Alexandre também não sentia a menor simpatia pela pedante e metida a besta cunhadinha.

As luzes traseiras da BMW de Narciso teimavam em continuar distantes, mesmo com o esforço de Alexandre em pisar o mais fundo possível no acelerador para que assim pudesse emparelhar o seu automóvel com o dele e tripudiar ainda mais um pouco sobre o adversário vencido. Os cavalos excedentes no motor do modelo do ano de Narciso se faziam valer e, vigiando pelos retrovisores os faróis do seu antigo carro, ia administrando aquela corrida que, não nega, lhe dá prazer como somente poucas coisas na vida conseguem lhe proporcionar. Não deixaria nunca que Alex se posicionasse ao seu lado, ia pensando enquanto relembrava com raiva os lances que perdera infantilmente. Ao contrário das vitórias que eram logo deixadas para trás, os insucessos levavam um tempo maior para serem superados. Estes iam sendo ruminados até que, de forma sutil, fossem sendo deslocados para categorias mais aceitáveis e positivas. O insucesso precisava ir aos poucos sendo cozinhado até que sucesso parecesse ser para seus olhos e mente.

Acionado o controle remoto, foi por um triz que não tivesse arranhado o teto do exclusivo bólido, enquanto passava acelerado por sob o portão ainda basculando. Segundos após, Alexandre, com um pouco mais de cuidado, pois que o vencedor já tinha cruzado a linha de chegada, entra nos boxes.

Residiam no mesmo prédio. Apenas cinco andares de muito luxo e ostentação para os quatro moradores. A cobertura, obviamente, ocupada por Narciso. Logo abaixo dela Alexandre posicionava-se com Lílian, quem sabe funcionando simbolicamente como uma segunda barreira de segurança para o primeiro casal ali no condomínio, depois daquela que era exercida pelos porteiros e seguranças.

Edifício exclusivo de beira do mar, quadras de tênis e de squash e mais tantas e tantas mordomias reservadas aos que triunfaram na ciranda da vida. Apesar dessas todas facilidades, havia muito tempo que não utilizavam as dependências de lazer e de

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esporte à disposição junto de casa e que, pelas quais, pagavam caro mensalmente, incluídas que eram nas salgadas taxas do condomínio.

NA VERDADE

Euforia total na Good Food. A reunião havia terminado e os americanos tinham sido muito bem convencidos da capacidade da empresa e do acerto em celebrarem com ela o contrato de cessão da patente para a fabricação no Brasil do produto novo. As desconfianças em ceder as patentes estavam superadas devido principalmente à excelente impressão que os americanos tiveram do químico responsável pela empresa que com eles havia passado uma temporada. Agora a Companhia estava autorizada a utilizar em todo o país as fórmulas patenteadas do alimento com baixo teor calórico que lá no hemisfério Norte fazia tanto sucesso e que aqui no Brasil prenunciavam níveis ainda mais altos de aceitação e venda.

O lançamento piloto ocorrido em Curitiba foi o argumento final para convencimento dos estrangeiros. Os índices positivos auferidos pelo produto foram ainda maiores do que aqueles ostentados pelos americanos quando do lançamento da novidade por lá, principalmente entre as mulheres posicionadas nas classes A e B e com idades entre vinte e cinco e cinqüenta e cinco anos.

Incomodado, Nelson, o químico da empresa que tinha estado nos laboratórios americanos, depois de permanecer em silêncio durante quase toda a reunião, havendo respondido somente com monossílabos nas poucas vezes em que foi questionado a respeito das legislações sanitárias vigentes no Brasil, era o único naquele andar a não comemorar a maior vitória da ainda jovem empresa. Como químico responsável pela Good Food sentia-se preocupado com os rumos que iam tomando as definições de negócio da Companhia.

Desde que foram iniciadas as conversações com a Middle East Meals Corporation, ele esteve sempre participando ativamente. Assim que, num estágio mais avançado das negociações, tornou-se imperiosa uma visita do químico responsável aos laboratórios da futura empresa parceira, fora Nelson o escolhido, lá tendo permanecido por um período conhecendo e analisando os processos em todas as etapas da produção daquela novidade alimentar que iriam daí a pouco importar. O sucesso da Good Food em conseguir tal parceria tinha muito do trabalho dele e ser sabedor deste fato fazia com que fosse aumentado ainda mais o seu desconforto na reunião.

Quando retornou dos Estados Unidos desembarcou simplesmente deslumbrado com tudo que vira e testara por lá. O novo produto era o sonho de todo industrial da alimentação, tinha um sabor verdadeiramente muito apreciado aliado a um índice calórico próximo de zero. E o que era melhor ainda era a enorme vantagem competitiva que estavam adquirindo, não sendo possível, devido à exclusividade das patentes, a instalação de algum concorrente nos próximos cinco anos no país, ou até mesmo a criação de algo similar que pudesse ser industrializado nos dois ou três anos adiante e que tivesse pelo menos um sabor parecido. E tudo isto sem que houvesse algum peso significativo nos bolsos dos consumidores, pois que os custos de produção da Good Food tornaram-se uma variável totalmente controlada e inserida dentro de

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valores assimiláveis para aquisição do produto novo até para as classes chamadas de D e E.

Como se rolasse uma ribanceira abaixo, a vibração de Nelson foi caindo e cedendo espaço para a sensação desagradável que na reunião havida na manhã para sacramentar a parceria chegara ao fundo da grota. Aconteceu que durante a sua permanência fora lá nos laboratórios americanos, à medida que maiores dados e análises iam sendo completadas e disponibilizadas, eram imediatamente repassados para a sua equipe na Good Food, para que aqui o seu time fosse validando os testes e ao mesmo tempo se familiarizando com as novas fórmulas e ingredientes que iriam fazer, todos acreditavam piamente nisto, o up grade da empresa para o podium dos industrializadores de alimentos do Brasil.

O responsável designado por Nelson para receber e coordenar a atividade no Brasil era Afonso, químico brilhante, ex-estagiário de muito talento, medalha de ouro na Universidade de padrão AAA e MBA realizado na França. Ansiosos que estavam por notícias e novidades, ele fora chamado por Narciso para explicar na reunião semanal da Diretoria Executiva, a quantas andava o trabalho de assimilação tecnológica e que cargas d’água estava produzindo Nelson do lado de lá de cima do Rio Grande. Aí veio a grande novidade. Ele sugeriu então algo que aos ouvidos daqueles homens soava como a música interpretada pelos anjos:-Era totalmente factível que a Good Food pudesse aumentar significativamente os ganhos com medidas bastante simples e que além do mais iriam, inclusive, diminuir os trâmites burocráticos porque seriam, depois de concretizadas, capazes de fazer com que fossem eliminados alguns itens importantes e dispendiosos da pauta de importação.

A receita era demasiadamente simples. Afonso sugeria ao grupo dirigente a substituição de basicamente dois componentes. As trocas da aveia importada do Canadá pela “blendagem” do milho transgênico com o arroz nosso de cada dia nascido ali adiante mesmo, a menos de duzentos quilômetros de distância da fábrica e do dietético natural americano pelo açúcar da beterraba, este que continuava importado, mas com cotação muito mais em conta, só que bem mais calórico. Com isto eles estariam baixando os custos em mais dezessete por cento sem que houvesse com essa excelente novidade nenhum risco de comprometimento do sabor. Este que era dado pelo componente principal e secreto que estaria sendo enviado pronto dos laboratórios dos Estados Unidos seria mantido o mesmo.

Os “blind tests” realizados por ele e pela equipe haviam comprovado isto. Nessas testagens os consumidores têm os olhos vendados e são convidados a tomar do produto original e também daquele que foi modificado. O fato auspicioso é que eles não souberam identificar qual produto era o básico e qual havia sido nacionalizado. Os que responderam de maneira acertada não se contavam em número suficiente para que estivesse estatisticamente comprovada a identificação por eles, das diferenças entre os dois alimentos que lhes foram oferecidos.

O resumo final que Afonso fez foi apoteótico. Reduzidos os custos nesse percentual, haveria em conseqüência o equivalente incremento nos resultados. -Os ganhos anuais com as simples trocas seriam da ordem de vinte milhões de dólares. Apressou-se em complementar, parecendo ter entrado em transe com tamanha satisfação com o que acabara de ouvir, o diretor financeiro.

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Mário, que havia sido o primeiro investidor e também como sogro de Narciso, tinha acento nas reuniões executivas, batendo com as duas mãos na mesa de jacarandá de doze lugares e esquecendo por completo as regras de comedimento necessárias ao se deparar com um excelente negócio, soltou um sonoro palavrão, esquecido que já estava da presença de mulheres na sala. O mesmo com o qual ele sempre brindara as suas vacas quando se tornavam campeãs nas exposições agropecuárias.

-Para fazermos estas mudanças na fórmula, precisaremos iniciar novo processo de autorização para o produto nos órgãos controladores dos Ministérios da Saúde e da Agricultura? A minha pergunta tem razão de ser porque todos sabem como foi muito demorado e custoso conseguirmos cumprir todos os itens da nossa complexa legislação. Era Alexandre quem perguntara fazendo rir a todos quando dissera ter sido “custoso” o cumprimento das regras. Para aquele grupo o termo usado por ele era ambíguo e, neste caso, fora citado no seu sentido digamos mais econômico e financeiro, diferentemente do seu significado mais usual de árduo e difícil.-Bem, na verdade, se formos analisar no detalhe, alguns até poderiam dizer que precisaríamos sim estar reiniciando todo o rito de aprovação, mas eu diria que não. Na verdade, ninguém precisará saber que não está comendo aveia, nem sendo adoçado pelo dietético alienígena. O rótulo é claro permanecerá o mesmo que tanto já nos custou e todos viveremos felizes para sempre, não é verdade? Por falar em saber ou não saber das coisas, na verdade, nem os americanos deverão ter conhecimento de que a nossa criatividade trouxe um jeitinho melhor para o dia a dia da rígida fórmula para a qual estamos lhes pagando este valor altíssimo em royalties.

Demonstrando muita satisfação com a proposta de mudança da fórmula que além de incrementar bem os lucros ainda não estaria lhes gerando nenhum problema burocrático que pudesse atrasar o lançamento nacional já contratado, somado aos novos milhões de dólares que engordariam o caixa da Good Food e conseqüentemente as suas polpudas participações de resultados e bônus, Narciso completou o discurso do segundo químico da Companhia fazendo com que todos rissem pela segunda vez naquela reunião. Como se estivesse procurando alguém, ele lançou o olhar à sua volta e em seguida disse que era muita sorte da Companhia que a principal pessoa que, com toda certeza, se postaria dentre aqueles “alguns” mencionados por Afonso que iriam considerar necessária a mudança de rótulo, com a conseqüente aporrinhação demorada e custosa em Brasília, estava viajando.

Ao ver que iam diminuindo as gargalhadas da platéia, Narciso deu-lhes um novo impulso, agora perguntando para Afonso sobre o porquê das tantas vezes em que ele, para responder ao questionamento de Alexandre, usara a expressão “na verdade”, quando sem sombra de dúvidas, o que estava querendo mesmo era dar um sentido muito mais amplo e relativo para tal expressão. Amplo porque as águas dessa verdade são muitas e são turvas, indo bem mais além das margens dentro das quais deveriam estar contidas e relativas também porque referentes apenas a uma forma de ver e viver o mundo de um grupo bem específico de pessoas.

Lá em Peoria, a pequena cidade do estado de Illinois onde se localizavam os laboratórios da Middle East Meals Corporation, Nelson ficou, nem uma hora havia se passado, ciente de tudo o que acontecera na reunião da Diretoria. Sentiu muita raiva. Mais que essa raiva o que lhe veio foi a dor da descrença e da traição. Dor de ver que

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os valores que tanto tentara incutir no seu grupo haviam sido quebrados por aquele ao qual ele mais ensinara e investira e que sempre achara que teria sempre uma postura ética. À noite, sentindo frio enquanto caminhava pela trilha que margeava o rio ele chorou.

DINHEIRO RÁPIDO E FÁCIL

O encerramento, depois de dois anos de luta contra a crise avassaladora que se instalara no setor das atividades alimentícias no Brasil, levou as estrangeiras que aqui chegaram a nocaute. A quebradeira jogou no mercado de trabalho, também vivendo há longo tempo em grandes dificuldades, os quase quinhentos empregados da falida indústria de laticínios argentina. Dentre eles estava o químico que agora, lá nos Estados Unidos encontrava-se, depois de ter passado pela fase do encantamento com os desafios que o novo produto demandaria dele e da sua equipe, na dura e triste realidade com a constatação havida de que na reunião da Diretoria Executiva o seu principal assessor havia convencido os dirigentes da Good Food em realizar uma burla no produto novo que logo eles estariam lançando em todo o Brasil.

A idade era um dificultador a mais que somado à sua alta especialização no ramo de alimentos, alta competência esta que de forma paradoxal, lhe tornara muito limitada a empregabilidade, fizeram com que fosse esticado por dois anos e meio o seu período de trevas do desemprego. Queimadas todas as gorduras no primeiro ano, Nelson viu-se em situação ainda mais delicada, quando no início do segundo ano do seu calvário como cidadão disponível no mercado de trabalho, eufemismo politicamente correto que lera no jornal e que lhe gerara tanta irritação, houve a descoberta do câncer no seio direito de Marly, a sua esposa.

Rápido concluiu que a permanência deles como clientes do sistema de saúde oficial, para o qual tinham migrado havia já alguns bons meses, seria nada mais nada menos do que uma forma velada de assassinato da mulher, visto que nele as consultas com especialistas só eram marcadas para daí a três ou quatro meses. O dinheiro auferido na venda do apartamento, ainda financiado, serviu só para praticamente amortizar os empréstimos feitos, para que assim eles pudessem se ver livres dos altos juros cobrados no mercado financeiro. O fim do endividamento gerou algum tempo de alívio para o casal. Não foi preciso nem que se mudassem. O comprador do imóvel havia feito o negócio com o intuito apenas de investimento e era para ele um bom negócio que permanecem nele, agora pagando o aluguel obviamente.

Mesmo com todo cuidado que estavam tendo na administração do lar, rápido se viram novamente em dificuldades. O tratamento de Marly era muito dispendioso e o plano de saúde havia exigido altíssima mensalidade para receber como sua associada uma pessoa já com aquela doença pré-existente.

Todas as ginásticas e mágicas tentadas e eis que estavam sem dinheiro suficiente para a mirrada compra, agora semanal, no armazém do bairro. Havia, além disso, uma agravante. Saldados depois dos muitos atrasos e dos tantos juros, todos os débitos com as financeiras “oficiais”, com a receita auferida na alienação do apartamento, Nelson acabara de constatar que não mais possuía crédito na praça estabelecida.

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Um homem sem emprego, sem perspectiva de encontrar um e sem a saúde da mulher, ele dizia para si mesmo enquanto perambulava pelas ruas do centro buscando coragem para relatar para Marly o tamanho da encrenca em que estavam metidos. A venda do apartamento e algum tempo depois o empenho na Caixa Econômica das poucas jóias da família, amealhadas com tanto esforço ao longo da vida e que perdidas foram pela falta das condições para que os penhores pudessem ser honrados, haviam completado a debacle e levado Nelson às garras afiadas da agiotagem.

O pequeno pedaço de papel que ia sendo distribuído na esquina movimentada da Avenida Rio Branco pela adolescente grávida e sobrando por todos os lados na minúscula roupa, foi lido com avidez. “Dinheiro imediato, fácil e sem nenhuma burocracia. Você não precisa comprovar renda, nem tem que trazer avalista. Venha e já volte para casa com o dinheiro no bolso. Ligue agora para o telefone 2121-3025”.

Sobre os fatos de que a publicidade não continha o endereço onde estaria disponível tal empréstimo, ou algum indicador de que a financiadora tivesse autorização e registro nos órgãos reguladores do Ministério da Fazenda, Nelson nem pensou. O que o fez refletir por bons momentos no ônibus enquanto lia e dobrava, desdobrava e relia o anúncio, até que já o soubesse de cor, foi nas tantas e tantas vezes em que lhe fora entregue nas ruas da cidade tal tipo de publicidade e no mesmo número de vezes em que, de imediato, sem nem se dar conta do conteúdo do texto, já os ia na mão amassando. Ou nas oportunidades, que também tinham sido várias, em que os tais papeizinhos dos empréstimos nem foram pegos, sendo recusados como se não lhe estivessem sendo oferecidos.

Pensava agora que existia uma lógica cruel por trás dessa maciça distribuição das publicidades do dinheiro fácil e rápido. Sempre haveria, circulando sem rumo certo, pelo Centro da cidade, um grupo diário de desesperados que não menosprezariam a oferta de dinheiro rápido e fácil que lhes era feita. Este pequeno número de aflitos sofredores, do qual Nelson era hoje uma parte, ao contrário da multidão dos demais, ao invés de amassar e jogar na lixeira mais próxima o papel daria louvores aos céus por ter sido agraciado com ele. O ônibus com tarifa mais barata, o popular “parador”, não deixaria que ele chegasse em casa antes das dezoito horas. Na manhã seguinte Nelson, o desesperado do dia, ligaria para o número da sua salvação.

A voz feminina, maviosa e cheia de gentileza animou-o ainda mais a continuar na empreitada da busca da ajuda financeira. Ela deu-lhe o endereço, o número do prédio e de uma sala nele, a 518. Alertou-o também para que, se perguntado na portaria sobre o seu destino, somente respondesse com o número da sala e que iria tratar nela, com Santinha, de um assunto pessoal. Nelson indagou-lhe quem era esta tal Santinha com quem falaria. Assumindo uma expressão de voz preocupada e magoada por ele não ter percebido que ela era mesma e, como se estivesse fazendo um apelo melodramático em alguma propaganda de rádio convidando a população a doar sangue, lhe disse:-Sou eu, Dr. Nelson. Eu sou a Santinha daqui da sua financeira da sala 518, sempre pronta para lhe atender. O senhor não tinha ainda reparado? Daqui da nossa firma todos saem totalmente satisfeitos e com o dinheiro da precisão na mão. Voltam para os seus lares felizes com o atendimento profissional e humano que sabemos prestar. Estou convicta de que com o senhor não será nem um pouco diferente.-Mas é este mesmo o seu nome, minha filha?

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-É apelido de infância, Dr. Nelson. O nome mesmo é Maria das Dores, mas desse eu não gosto nem um pouco. É nome de gente triste. Sou alegre, sou pra cima e por isto, eu mesma, ainda quando era bem pequena, me pus este apelido.O apito, misturado à voz, batia agora no ouvido e de forma intermitente, ia alertando para o final próximo dos créditos do cartão telefônico. Agradecendo à Santinha, Nelson se despediu animado confirmando que dentro de uma hora estaria com ela na tal sala 518.

Do lado de lá da linha Santinha também tinha gostado da primeira ligação dos desesperados do dia. Sentira que o dono daquela voz seria uma presa fácil para os seus encantos. Este seria um dia de muitos e bons negócios. Começara a jornada diária abençoada por Deus, pisara o chão com o pé direito, pensou também cheia de ânimo.

PERUA

Não foi a simpática Santinha quem lhe abriu a porta. O homem negro com os seus quase dois metros de altura e muito forte, foi quem o recebeu examinando-o de cima a baixo. A camisa dele, solta por sobre a calça, não era capaz de esconder o volume característico da arma que portava presa à cintura.

Nelson tocara a campainha um tanto quanto preocupado. O prédio era mal localizado e além disto mostrava desde a fachada estar bem decadente. Há muitos anos lhe deviam uma reforma. Os corredores sujos, as paredes que não deixavam que se soubesse que cor haviam tido originalmente, as lâmpadas quase todas queimadas, o único elevador funcionando com um ruído estranho e muitos baques, provocando a fila que saía rua afora e que só pôde transportá-lo quando da terceira viagem e mesmo assim porque subia e descia com excesso de carga, eram todos fatores que lhe geravam intranqüilidade, ampliada que fora ainda mais pela cara de poucos amigos do gigante careca que lhe abrira a porta sem dizer palavra alguma e que, ao mesmo tempo em que ia se assentando numa das três cadeiras do local, apontava para ele o cômodo feito com divisórias de madeira que separava em dois aquele ambiente.

Diferente de tudo que vira desde que chegara ao quarteirão do prédio, a sala onde acabara de entrar, era muito arrumada e bem cuidada. Não que fosse bonita. Caso fossem retirados alguns objetos excessivos na decoração, ela se tornaria mais “clean” e agradável à vista. Os muitos tons fortes de amarelo das paredes e um excesso de objetos de decoração, uns muito belos e outros denotando um gosto duvidoso, faziam com que não pudesse se ter a sensação de conforto e de se estar bem no ambiente. Aquela pesada mesa de madeira muito escura à frente, com os objetos de escritório feitos num belo design, era ocupada por uma mulher sentada numa cadeira de espaldar muito alto. Causou bastante impacto aos olhos de Nelson a visão inicial que Santinha lhe causara.

Teve a impressão de que era fingimento o teclar dela no moderno computador também na cor escura, posicionado do lado esquerdo da mesa. Com um sorriso muito grande a mulher de imediato se pusera de pé para cumprimentá-lo.

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-Bom dia, Dr. Nelson. Muito prazer em conhecê-lo e que o senhor seja bem vindo à nossa casa. Nosso propósito aqui será sempre o de servi-lo da melhor forma possível. Para a nossa empresa o cliente é o rei. Seguindo o protocolo, Nelson lhe respondeu o que era de praxe, enquanto realizava uma leitura mais aprofundada da figura que estava à sua frente. Santinha era um caso a parte, algo que seria relevante até como tema de alguma tese. Tinha os cabelos muito louros, dum amarelo puxado quem sabe para o bronze e presos no alto da cabeça em um estranho penteado, rosto com maquiagem que seria pesada até para a noite, um esfuziante colar de bolas douradas e muitas voltas, balangandãs de variados tipos nos braços. Um anel que parecia estar sendo usado de propósito para que não deixasse que fossem vistos o anelar e seus dois vizinhos. O perfume estava pelo menos dois pontos acima do que seria razoável. Enquanto reparava na anfitriã, chegava de mansinho à sua lembrança a discreta Marly, sempre entre o cinza e o marrom, que lá, de cama, na sua residência permanecera ansiosa por boas notícias advindas da visita, que o marido fora fazer à tão simpática e agradável senhora, com a qual ele dialogara na tarde de ontem.

Aquela mulher parecia ter saído de algum espetáculo teatral onde o diretor havia exigido do figurinista que caracterizasse de forma mais que brilhante e espetacular uma mulher de meia idade, ou quem sabe, ali estava ele diante de alguém que estivesse pronta para despontar em algum baile como a convidada que mais fosse capaz de carrear para si a atenção de todos em virtude da indumentária esfuziante que estava trajando.

Dr. Nelson, como Santinha gostava de chamá-lo, havia vindo pedir um empréstimo a uma autêntica perua. Uma daquelas completas como poucas vezes ele pudera observar na vida real, pois que no cinema, na televisão e no teatro não era difícil tê-las caracterizadas diante dos olhos. Não que as cores do modelo usado e os tantos adereços descombinassem entre si. A relação que havia entre eles todos era de amizade e não de conflito. O que ocorria é que tinha cores demais, detalhes demais, decotes demais, adornos demais e a demasia existente em Santinha incomodava os sentidos daqueles seres mais simples e modestos como o era Nelson. Conteve o riso quando os longos, encorpados e detalhados brincos de Santinha bimbalharam forte, como se multidões de pequenos sinos eles fossem, com o movimento do seu corpo ao sentar-se.

Acomodados agora, Santinha dá início a um texto que mais parecia ser propaganda dum desses vendedores de soluções milagrosas tão comuns nas insones madrugadas da televisão. Conclamava-o ao sucesso e à superação dos problemas, ponderando que deles era possível que se tirasse – e era este o aspecto mais importante a ser neles observado – apenas os ângulos positivos e que, pensando bem, o que estava ocorrendo com ele não eram fracassos, mas sim era tudo parte de um aprendizado para a vida maravilhosa e de muitas realizações que, com a sua esposa – Como era mesmo o nome dela? - Dr. Nelson implementaria daí por diante, já que teria em mãos, com o dinheiro que ela ali lhe emprestava e que ele já levaria em seu bolso, a capacidade de suplantação do drama que estava vivenciando no presente período da vida.

Claro estava que tal discurso não se coadunava com o ambiente e muito menos com o momento. Mesmo assim aquelas palavras de pensamento positivo muito lhe fizeram bem, provocando motivação e reduzindo o peso do caminhão de problemas nos quais

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estava inserido. Saiu daquela sala estimulado com a sensação de que logo, com trabalho e bastante otimismo, tudo estaria superado.

Na vida real os fatos não seguiram o belo roteiro traçado pela enfeitada mulher. Os dias seguintes foram ruins, foram horríveis. A agiota Maria das Dores, a Santinha, iria em breve colocar muito mais lenha na caldeira de desgraças na qual Marly e Nelson estavam até o pescoço enfiados. Sem que conseguisse o novo emprego, nem que tivesse brotado alguma miraculosa fonte de renda em suas vidas, não houve jeito de se pagar a primeira prestação do empréstimo. No primeiro mês houve silêncio da parte da sala 518.

Santinha ligou um dia depois que a segunda prestação venceu, dizendo, e dessa vez a voz gentil e solícita não mais era modulada, que um seu empregado estaria ainda naquela tarde indo fazer uma visita em sua casa. Tal funcionário era o mesmo homem que atendera Nelson na sala da agiota e que agora, rápido eles puderam descobrir, não era somente o secretário, porteiro e segurança da financeira. Além dessas atribuições ele tinha também aquela que era a do jogo pesado. Ele era o homem que os ameaçava com castigos físicos e no caso desses não surtirem efeito, até com a morte dos devedores. Segundo as suas palavras, ninguém nunca havia dado calote em Dona Santinha. Disse isto, fez uma pausa e consertou o conteúdo da ameaça. Havia se esquecido de que teve um que deu o cano nela, mas hoje esse tal idiota desavisado não pode mais dar o tombo em ninguém. Atualmente esse burro come o capim pela raiz. E essa, enquanto dizia isto, foi a única hora em que sorriu. Dizendo desejar que passassem bem, foi embora, não sem antes lhes passar a impressão de estar acariciando o volume da arma na lateral da cintura, sob a camisa frouxa que teimava em continuar caindo por sobre a calça.

Em desespero e com um medo do tamanho dos juros da sua dívida, Nelson foi gastar o último cartucho, aquele que era considerado, dentro do seu rol de possibilidades, como um que nem valeria a pena ser queimado, tão improvável de se obter sucesso ele era. Um amigo tinha lhe dito sobre dois jovens empreendedores que estavam investindo na área de alimentos. Contou-lhe que o principal dos dois se chamava Narciso e que, ao que ele soubesse, não estavam ainda contratando ninguém, mas que Nelson ficasse atento para que, quando fossem compor a equipe ele pudesse candidatar-se para com eles trabalhar. A desconfiança que há muito tinha adquirido em relação aos jovens, fez com que desacreditasse que pudesse obter aí sucesso e que deixasse no fundo da gaveta o telefone desse tal Narciso.

Vencidos dois dias de tentativas infrutíferas, conseguiu sensibilizar Glória, a secretária da diretoria da Good Food, para que ela apresentasse ao seu diretor presidente o currículo dele. Ao contrário dos tantos outros que rasgava de imediato, ou que quando recebidos via computador logo os deletava sem que os houvesse lido, o currículo de Nelson, não se sabe porque cargas d’água, foi visto com vagar e cuidado. Sem que o conhecesse, Narciso havia simpatizado com o homem que existia por trás daquelas quatro folhas de papel. Daí que decidiu que ele trabalharia com eles. Com aquela experiência na área alimentícia, este era o profissional que os levaria a um maior sucesso. A um novo patamar na indústria dentro da qual atuavam. Narciso não costumava se enganar quando fazia este tipo de avaliação.

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EMPRÉSTIMO

O estilo franco de liderar buscando a participação e o compromisso de todos da equipe, o envolvimento com eles não somente naqueles momentos de crise, mas também nos tempos do trabalho normal, ouvindo-os, comemorando até as que para os outros eram pequenas vitórias – para Narciso não havia vitória pequena. Todas eram vitórias e como tais tinham que ser tratadas – levavam o grupo a sentir-se valorizado e confiante para estar partilhando não apenas os aspectos profissionais das suas vidas, mas também aqueles pontos de embaraço existentes no lado pessoal de cada um.

Daí que não havia passado nem o segundo mês de Nelson na Good Food e não só Narciso, mas também Alexandre, já eram sabedores da sua imensa crise e dos grandes transtornos causados por Santinha e seu assecla na vida dele. Recebido o primeiro salário, saldadas aquelas dívidas fundamentais para se viver nas atuais circunstâncias, ou seja, as contas da farmácia em primeiro lugar e em seguida as do pequeno armazém do bairro, foi fácil enxergar que o dinheiro que sobrava era incapaz de cobrir mesmo os juros devidos pelos três meses do empréstimo.

Chocados com as condições do negócio que o seu empregado havia realizado, com seus juros escorchantes, aliados às ameaças que se já não eram veladas agora eram bem mais do que explícitas, os dois amigos diretores chegaram a pensar em acionar a polícia. Recuaram para evitar um possível escândalo e o plausível envolvimento do nome da Good Food nele e também ao saberem por Nelson que o número de telefone do anúncio que era distribuído pelas esquinas estava desligado e que, assim os porteiros haviam informado, a sala 518 se encontrava fechada e vazia. O dono dela descobrira-se ludibriado ao constatar que os nomes e endereços dados no contrato de locação eram todos falsos e que procurar Santinha ou Maria das Dores sem que houvesse em seguida um sobrenome válido era tarefa por demais difícil. Nem um dia de aluguel Santinha havia pagado, os empregados do condomínio contaram para Nelson.

Na última vez em que a agiota lhes ligara dissera para Marly estar de mudança, mas que o casal não se preocupasse porque ela estaria por perto e iria proceder daí por diante as cobranças na residência, bem como também em casa se dariam as outras ações que se fizessem necessárias, sugeriu lhes ameaçando antes de desligar.

A proposta feita por Narciso lhe parecera, a principio, tratar-se de sonho. A Good Food, confiante no sucesso da parceria que já há dois meses entabulavam, adiantaria o valor exato atual da dívida assumida por Nelson e pela sua esposa. O que era ainda mais inacreditável era a segunda parte contemplada pela tal proposta. Somente daí a seis meses Nelson e Narciso se sentariam para que pudessem definir, em conjunto, a fórmula para que tal débito com a empresa fosse saldado sem sacrificar o casal. Apenas o montante que naquele momento estava sendo-lhe entregue pela empresa, pois que ficasse claro Narciso arrematou rindo, que os juros todos devidos por aquele cheque no valor da dívida já tinham sido pagos à Santinha pelo casal.

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Bem mais do que a metade do débito contraído com a empresa já estava amortizada. Estar trabalhando e conseqüentemente ter recuperado o crédito na praça, também o deixavam tranqüilo, mas não era este o ponto que estava agora em jogo. Da dívida monetária Nelson poderia de imediato dar conta. Mas da outra, mais profunda e imponderável, a da gratidão, dessa até na eternidade ele continuaria devedor. O que os dois amigos, dirigentes da empresa e que tão pouco o conheciam àquela época, fizeram por Marly e por ele não tinha paga. O dinheiro emprestado em momento tão crucial e os juros que não foram cobrados estavam sendo amortizados numa pequena parte com as suas competências e com o máximo empenho que tinha para fazer da Good Food uma grande empresa e, mais do que isto, uma companhia excelente da qual pudessem todos sentir sempre muito orgulho.

VERDADE E MENTIRA

Ao contrário dos projetos anteriores, dessa vez o cronograma estava sendo seguido à risca. Em três meses lá estaria nos outdoors, televisões e nas prateleiras dos supermercados de todo o Brasil o produto novo já dentro da sua formulação modificada, secreta, é mais do que óbvio, para os consumidores, as autoridades e até para a parceira americana detentora das patentes de fabricação.

A esposa estava bem. Os cabelos cresciam normalmente e a plástica restauradora, a qual tinha se submetido depois de ter tido extirpado o seio, êxito total. O pesadelo causado pelo envolvimento com a agiota com apelido de santa e que tinha se mostrado verdadeiramente um demônio há muito estava encerrado. O emprego com excelente salário, bem garantido.Mas mesmo com isto tudo, Nelson não podia dizer que estava feliz. Sentia-se triste e acabrunhado. Seus valores estavam sendo postos em cheque pelas estratégias em curso na empresa e ele não os queria quebrados. Em contrapartida, a última coisa que iria fazer na vida seria trair os seus patrões que tanto o tinham apoiado em meio às graves turbulências que vivenciara e denunciá-los pela falcatrua que iriam realizar era, no seu modo de ver o mundo, uma traição.

Muito feliz por não mais ter sido constatado nos novos exames feitos o menor resquício de tumor no seu corpo, pelo bom emprego do marido, pela estabilidade gostosa da relação madura e pelas tantos outros aspectos positivos que iam acontecendo nas suas vidas, Marly não era capaz de entender o porquê do constante mau humor de Nelson.

Por duas vezes ele esteve a ponto de contar-lhe tudo, mas recuara à última hora deste intento. Não porque tivesse baixa confiança nela. Longe disto, o casal, desde o tempo de namoro, tudo partilhava. Entre eles somente havia o segredo recente da “tropicalização”, como Alexandre costumava dizer no restrito grupo que das falcatruas todas era sabedor, do produto novo que estavam trazendo da América do Norte.

A mágoa sentida por Nelson não atingia diretamente a Narciso e Alexandre. Ela estava focada em Afonso. Na etapa final da sua passagem pelos Estados Unidos, quando já tinha ciência das reformulações acontecidas aqui no Brasil, definiu para si a meta de procurar o ex-estagiário e assessor para ter com ele uma conversa franca e direta sobre o problema. Como bom sonhador que era, Nelson imaginava que devido à sua

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ascendência sobre Afonso, à maior experiência e mais tantos e tantos argumentos baseados muitos deles no código de ética da profissão, iria ser capaz de demovê-lo dessas idéias amalucadas e inconseqüentes de burla do produto original contratado com os americanos.

Quando da sua chegada ao Aeroporto, Marly havia reparado o grande incômodo que seu marido sentia por querer, e este porquê ela não sabia, ir de imediato ao encontro do assessor químico. Chegou até a justificar o comportamento de Nelson pensando tratar-se do cansaço da viagem, diferenças de fuso horário, enfim, teria sido originado pelo tal “jet lag”.

Dia seguinte, bem cedo, sem ainda nem ter ligado o computador ou colocado a mão na pilha muito alta de documentos postos na mesa, alguns depositados ali já há vários dias, o que denotava não serem nem um pouco importantes, porque se o fossem não teriam ficado ali deixados, chamou Afonso para o diálogo. Nem duas frases inteiras haviam trocado e já tinha se dado conta da utopia existente no que havia sonhado. Constatou também o quão pouco ele conhecia da alma daquele ao qual tanto tinha ensinado e acreditado que seria um profissional ético e verdadeiro.

A fala muito clara e articulada de Afonso não tinha nada daqueles valores que, na relação do dia a dia, Nelson tentara incutir na equipe. Era um discurso publicitário e balofo, parecendo o texto decorado de alguém que para ter na vida a sua imagem aliada ao êxito e ao sucesso, seria capaz até de subverter a verdade, tratando-a apenas naqueles aspectos que o ajudassem nos propósitos de sentir-se aceito pelos seus líderes: Narciso e Alexandre. Nesta listagem de lideranças que ele seguia e devia respeito, não havia lugar para o nome de Nelson.

A finalidade do encontro entre os dois de imediato tinha se diluído totalmente. Era como se um vidro cheio da essência de precioso perfume tivesse sido aberto e deitado ao mar. Nada mais havia a ser dito àquele respeito para o qual o chamara à sua presença. Importava agora conseguir uma fórmula para sair do barco da Good Food sem que ficasse preso à sua boca o gosto amargo da traição aos dois timoneiros que, em meio à viagem, ouviram o canto da sereia na voz do marinheiro errado e sem se darem conta do grande engano em que iam se enfiando, mudaram os rumos da embarcação. Sentiu vergonha por ter estendido a mão para Afonso ao se despedirem após as duas horas, que lhe pareceram terem sido muito mais do que isto, em que esteve junto com ele. Quando logo no início do encontro Nelson percebeu que eles estavam falando línguas diferentes e que nem com muito esforço conseguiria demovê-lo do propósito que tinha de realizar para a Good Food a nacionalização do novo produto, fazendo a tão propalada mudança na sua formulação, Nelson foi mudando o foco da reunião e passou a conduzi-la como uma das muitas reuniões técnicas que sempre tiveram feito.

Fez-lhe um resumo da experiência na América e ouviu de Afonso, também de uma forma bastante sucinta e fria, o que fora acontecendo do lado de cá durante o tempo da sua ausência. Fez-lhe mal até fisicamente ter ouvido ali naquela manhã do primeiro dia após o regresso, contada como se grande vantagem fosse, o relato duma “descoberta científica” da qual muito se orgulhava, a solução vigarista que ele havia encontrado para aumentar ainda mais os lucros da Good Food e ter

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conseqüentemente expandido o seu sucesso e prestígio não somente com os donos da sua empresa, mas também em toda a indústria de alimentos do Brasil.

Mas não foi a vergonha daquele aperto de mão, que lhe deu tanta ânsia para tê-la lavada de imediato, o que mais chocou Nelson naquela primeira manhã de trabalho após o seu retorno ao Brasil. Depois da saída do químico da sala permaneceu nele a sensação, até então difusa, de que conhecia de bem perto aquele discurso e forma de se comportar do seu assessor. Era isto que tanto o incomodava. Estava agora muito transparente diante dos seus olhos o quão se pareciam com Afonso os seus dois dirigentes. Foi bem desagradável, agora que rebobinava na mente variados momentos da forte relação que tivera com os três nos últimos anos, a constatação dessas semelhanças. O quanto eles três dependiam da imagem que projetavam à sua volta para vencer, convencer e serem aceitos pela sociedade.

Esta dependência da imagem fazia com que Narciso e Alexandre fossem construindo muito das estruturas da Good Food em cima de fatos e dados que não eram tão verdadeiros assim. Não que eles fossem maus. Nada disto, a sua história na empresa, ajudado que fora com o empréstimo feito pelos patrões, era o testemunho mais veemente da bondade dos dois. O fato é que, por mais louca que pudesse ser esta constatação que neste dia Nelson tinha tido, os maiores líderes da Companhia não tinham consciência clara de que em meio aos pilares da empresa que iam erigindo, a verdade não era a argamassa principal que estava sendo utilizada. Seus companheiros da Good Food, e aí entrava também Afonso, este sem a menor sombra de dúvidas, era um deles, se identificava com eles, acabavam por acreditar nas falsas realidades que pela construção afora iam criando.

A lembrança de Bernardo, o amigo adolescente dos seus filhos que contava histórias fantásticas, eventos mirabolantes, como aquele fato que ele jurava de pés juntos ter sido verdade, acontecido com o caça Mirage da Força Aérea. Bernardo relatava ao grupo de amigos que estando um dia visitando um aeroporto militar, foi convidado por um piloto para um passeio de caça pelo litoral do Rio de Janeiro. Na sua fantasia ele ia narrando para os companheiros os vôos rasantes que o oficial que pilotava a aeronave ia dando pelas praias e ilhas de Angra dos Reis e, o que era mais fantástico ainda, daquele momento em que o oficial piloto passou para ele, um adolescente que nem como passageiro da aviação comercial até então tinha voado, o manche e os comandos do avião para que pudesse fazê-lo romper a barreira do som.

Bernardo, hoje Nelson tem plena consciência disso, acreditava plenamente nas suas aventuras aéreas, da mesma maneira em que hoje na Good Food, Narciso, Alexandre e Afonso crêem piamente que não causarão mal que seja digno deste nome, com a mentira que planejam fraudando a fórmula do produto novo.

Os três, totalmente identificados com o papel e a função que representam, fogem de tudo que possa sugerir para o meio em que estão inseridos, qualquer coisa que mesmo indiretamente possa ser chamada de insucesso ou fracasso. A imagem cheia de vaidade que têm de si mesmos recusa terminantemente algum rótulo negativo que alguém possa querer neles afixar e que possa soar como uma derrota. Para defender esta imagem de muito êxito e realizações, os três são capazes até de se tornarem violentos, psicológica ou até fisicamente, agredindo aquele que é por eles identificado como detrator, ou que tenha algum projeto que possa fazer ruir a tal imagem de verdade cheia de sucesso e êxito que vão, pelos caminhos da vida, construindo.

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Exemplo gritante deste tipo de ataque contra a imagem, Nelson teve nesses dias em que esteve nos Estados Unidos. Lá ele pôde ver de muito perto as justificativas dadas pelo governo americano para ter invadido o Iraque. Segundo o discurso oficial que por aquelas bandas é muito propalado, a guerra é mais que justificada porque o Iraque tem armas químicas poderosas, além de que o seu ditador estava em conluio com o grupo terrorista que no 11 de setembro tanto havia arranhado a imagem americana, atacando com sucesso os castelos representantes do militarismo e do capitalismo mais poderosos da terra.

Fato é que os relatórios oficiais do próprio governo americano nunca encontraram esta ligação do presidente iraquiano com a rede terrorista e muito menos ainda as missões coordenadas pela ONU e que tiveram a participação também de cientistas americanos e ingleses, conseguiram encontrar alguma evidência, pequena que fosse, das tão propaladas armas químicas do país invadido.

A guerra na qual tantos inocentes são feridos e morrem porque nem sabem ou têm condição de se defender, porque, ao contrário dos militares ofensores, não foram treinados nem têm equipamentos para isto, foi forjada em cima de uma deslavada mentira e também para que fosse reposta e retocada a imagem ferida da nação de tanto êxito militar e econômico. Nelson também tomou conhecimento por lá da versão que circulou mundo afora sobre a visita que, enviado pelo Vaticano, um cardeal foi pedir ao presidente da nação mais potente do globo, para que não desse início à guerra. A resposta que obteve dele foi a de que faria sim a batalha e que realizaria isto para defender a sociedade ocidental e cristã e o que é pior ainda: sentia-se enviado por Deus para fazer tal combate, o que significa estarmos diante duma guerra santa, construída por sobre a mentira, ponderava Nelson perdido dentro desses seus pensamentos.

Houve um dia, neste rememorar da história, juntando os cacos para ver o sentido maior presente nos fatos, Nelson lembra que discutiam sobre o ainda candidato a presidente que depois de eleito e de ter passado um tempo no poder, foi “impichado” pela sociedade organizada, a partir de um processo que tivera início com a investigação de uma mentira, a tal operação Uruguai. A certa altura da conversa, Narciso dissera que votaria naquele candidato que àquele momento fazia grande sucesso com os descamisados, mas que tinha medo do que pudesse acontecer, porque conhecia muito aquele jeito de ser.-Este homem é a minha cara e eu sei do que sou capaz. Por causa disto, há que se ter receio do que ele possa vir a fazer se eleito for.O que naquele instante de mesa de bar não fazia nenhum sentido estava claro, como um dia de muito sol, para Nelson.

“A verdade vos libertará” a expressão bíblica lembrada por ele e que ficou rodando na sua cabeça, acalmou-o. Concluiu que não iria quebrar os seus valores e esta decisão tinha o significado de que deixaria a Good Food. A esperança que foi acalentando era de que a sua saída da empresa poderia ser um alerta, pelo menos para Narciso e Alexandre, para que repensassem as estratégias que estavam seguindo para o lançamento do novo produto. Sentiu uma grande paz, enquanto ligava o computador errando duas vezes o acesso, por ter se esquecido da senha que colocara nele.

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AERÓBICA DE ALTO IMPACTO

Fazendo um esforço enorme para que pudesse ouvir e também para que a sua voz suplantasse o alto volume da música americana e, por incrível que possa parecer, conseguindo realizar ao mesmo tempo, no ritmo e coreografia pedidos, os exercícios aeróbicos na academia de ginástica, Lílian recebia ligação de Narciso comunicando-lhe os resultados altamente auspiciosos da reunião havida naquela manhã na Good Food.

Não que tivesse compreendido bem o que ele tentara lhe contar, mas era mais que evidente que estava muito feliz e isto a deixava sentindo-se bem. Havia recíproca na vibração que tinham com o sucesso um do outro, apesar de que não se podia negar que competiam de forma velada entre si. Estar em constante disputa com o outro, ou na ausência dele, até consigo mesmo não é nenhuma novidade para essa gente que funciona no mundo como Lílian e Narciso. Nesse jogo um tanto quanto escondido que tinham, para ver quem chegava no mais alto do pódio do reconhecimento da sociedade, havia muita sutileza e se trabalhava bastante a própria imagem. Para vencer era mais que necessário mostrar-se bem e isto significava que deviam se apresentar da forma mais integrada naquilo que se estava representando naquele instante. “Em Roma como os romanos” poderia ser o lema da turma que estava sempre preocupada com a forma mais conveniente para se apresentarem. Não que o casal exercesse atividades em comum. Viviam em mundos muito diferentes um do outro. A semelhança entre esses dois planetas estava nessa forma de estar sempre competindo, sempre lutando pelo êxito através do qual eles iam realizando tentativas de obter o reconhecimento dos outros. A competição que não era aberta, somente costumava ser notada por aqueles semelhantes, como o era o cunhado de Lílian, Alexandre. Refletindo, num dia em que se sentia extremamente incomodada com o excesso de cobranças que estava se fazendo, Lílian deu-se conta do quão antigas eram as suas competições. Lembrava-se dos pais, de Mário e da mãe e constatava triste que eles a haviam como que formado para isto. Disputar e mais do que competir era necessária a vitória, fora uma condição para a sobrevivência saudável dela na infância, agora constatava em suas reflexões.

Lílian, Narciso e Alexandre, todos eles possuíam em comum a auto-imagem que prega que somente serão bons se obtiverem o reconhecimento de todos a respeito dos seus êxitos. Esta forma de levar a vida, buscando dum jeito incessante o sucesso em todas as esferas de atuação que eles possuíam, não dava muita chance para as paradas, as reflexões e, principalmente, para se lidar com esta coisa tão aborrecida e complicada, as tais das emoções.

Por isto, da mesma maneira que os automóveis que pilotavam estavam sempre, no mínimo, uns vinte por cento além da velocidade máxima permitida para o trecho que percorriam, o que lhes valia de quando em vez o recebimento desagradável das multas, também a vida seguia em ritmo de intensidade superior à necessária para se cumprir bem os requisitos da existência. O ritmo estava também sempre acima do que seria razoável para se vivenciar bem e com profundidade, todos os momentos da caminhada vital.

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O horário bastante inusual para exercitar-se, mesmo que fosse em área refrigerada e coberta, era prova da tentativa constante de Lílian em conciliar todas as agendas e possibilidades. O tempo da sua malhação era exatamente aquele em que temos o sol a pino e geralmente guardamos para o almoço. Todos os dias, às doze horas, lá estava ela queimando suas calorias excedentes nos tantos aparelhos da mais moderna tecnologia. Estar bonita, com o peso dentro dos padrões pedidos pela moda era primordial para ela.

Para fazer frente a tanta intensidade de vida tornava-se mais do que necessário que dormisse bem e também não se constituía nenhum motivo de incômodo para o casal, o fato de que tivessem horários totalmente antagônicos, provocando, como tinha acontecido na noite passada e na manhã de hoje, que os dois nem tivessem se visto, tendo Alexandre chegado em casa quando ela já dormia e saído trinta minutos antes do que, já em 220 volts, Lílian se levantasse e, como se estivesse executando movimentos cronometrados e já decorados após muitos treinos, porque aconteciam bem rápidos e de forma eficiente, as crianças já tinham sido despertadas e preparadas, prontas, muito bem arrumadas, para que ela – e desse preparo e envio matinal das filhas ela definitivamente não abria mão – as levasse ao Colégio Americano.

No carro, enquanto dirigia, somente podendo passar os olhos pelos cadernos das filhas quando ficava presa nos sinais, ou quando os sempre constantes engarrafamentos exigissem a parada, ela conversava com Lúcia e Mariana, em inglês, naturalmente, passando com elas os exercícios que haviam sido feitos e o andamento do dia anterior, no qual, como variadas vezes também ocorriam, ela não as tinha visto.

Despachadas na escola, já girava o jipe japonês blindado embicado na direção contrária, a caminho do trabalho de Lílian. Em vinte minutos ela estaria, conforme acabava de confirmar, com a agenda aberta na poltrona do carona, iniciando o primeiro atendimento do dia no consultório novo, o número dois, como ela chamava aquele da Zona Norte onde nesta quarta-feira atenderia.

Não que Narciso visse com bons olhos o ritmo alucinante e vertiginoso no qual a sua mulher conduzia as atividades cotidianas, mas não reclamava. Melhor assim, eis que conhecia muito bem como funcionava “a psicologia da cabeça de Lílian”, que era sem tirar nem por igualzinha a sua, ele costumava dizer. Tinha consciência de que exercer alguma ação, por delicada que fosse, para induzi-la a que tivesse reduzido o ritmo de trabalho, sem nenhuma dúvida, traria para ele e também para as crianças, efeitos colaterais. Haveria chateações, alterações no humor e a ampliação das exigências sobre a conduta que adotavam na criação de Mariana e Lúcia. Diminuído o seu ritmo Narciso bem sabia que haveria questionamentos e cobranças em relação a ele, com seus dias também tremendamente agitados e com foco em múltiplos interesses, dentro do qual ele também, até por ser tão parecido com a esposa, ia se construindo e caminhando pela vida.

O trabalho de Lílian, muito bem remunerado, de nutricionista nos consultórios da Zona Sul e Norte ia de vento em popa. Difícil era acontecer de se iniciar uma segunda-feira ainda havendo espaços abertos para consultas naquela semana. O serviço voluntário nas duas pontas da vida humana, atendendo às crianças obesas e desnutridas da creche localizada na favela e também dando apoio na definição de cardápios e conduta alimentar de alguns velhos problemáticos no asilo conduzido pela

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comunidade religiosa, da qual era parte integrante e que também lhe absorviam mais um considerável tempo, aliado ao grupo de estudos sobre alimentação para adolescentes que até o mês passado somente freqüentava na cidade vizinha e que, por verificar que o coordenador dos trabalhos da equipe era um moleirão e não conseguia arregimentar os profissionais interessados no tema, ela assumira como principal dirigente, faziam com que a roda da sua vida estivesse girando muito mais ainda. Revoluteava ensandecido tal qual o barulhento ventilador de teto, em velocidade máxima, da sala improvisada e muito abafada dentro da qual atendia os seus gordinhos da creche.

Pela roupa, invariavelmente adequada à situação, Narciso era capaz de identificar para onde Lílian estava indo ou, ao contrário, de onde ela tinha acabado de retornar. Para cada um dos dois consultórios, creche, asilo, algum outro trabalho comunitário, devoções religiosas, compromisso com os amigos do casal, ou com as suas amigas, fazer compras, ir à ginástica, aquelas suas horas especiais com Narciso, havia sempre a indumentária mais correta e apropriada para fazer bonito não correndo os riscos de ter arranhada a imagem.

Não que fosse uma dessas mulheres do tipo pavão clássicas, como a agiota Santinha era, mas não se poderia dizer também que ela fosse uma mulher discreta. Havia sempre um quê de excessivo nesse estilo de vestir sempre adequado para cada momento de Lílian. Essa exacerbação se tornava mais evidente principalmente naquelas horas em que se via mais relaxada e distante de compromissos formais. Nesses períodos ela podia dar asas à sua atração pelas muitas cores, alegorias e adereços. Era como se em Lílian existisse sempre, algumas vezes latente e em outras tantas mais visível, um certo “peruismo”, se é que se pode construir tal palavra. Uma vocação nata para exibir-se do modo mais amplo geral e irrestrito possível.

Quem sabe se pela dificuldade havida e da qual bem pouca consciência tinha, de lidar com o emocional, Lílian todas as vezes que se via envolvida em algo mais estressante ou que lhe exigisse botar para fora os sentimentos, era vítima das somatizações. Tais sintomas geralmente apareciam na casca e na estrutura do corpo. Ou seja, vinham na pele, ou se mostravam nos ossos e nas articulações.

SALTANDO FORA

Tomada a decisão de saltar fora da embarcação, a questão agora para Nelson era definir a melhor forma e o momento mais apropriado para fazê-lo. Ao contrário dos tempos anteriores, já estava claro para ele que o seu desligamento não se configurava como uma traição a Narciso e Alexandre, os grandes benfeitores para com os quais estaria, até o final dos seus dias, sempre em débito. A questão aí era que ele não poderia torcer os seus valores e os dois, que além de patrões eram também amigos, saberiam muito bem separar as coisas. Eles não iriam ficar chateados com o seu desligamento. Nos últimos dias Nelson chegara até a aventar a hipótese de que tal pedido de demissão estaria causando, ao contrário de tudo que até então estivera imaginando, um alívio bem grande nos dirigentes da Good Food e na equipe da área de pesquisas e laboratório que, toda, havia se bandeado para as hostes de Afonso.

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A questão da escolha para o melhor momento de saída era realmente bastante complexa. Muito da nova tecnologia estava ainda em suas mãos, não tendo sido absorvida pela equipe que agora estava sendo na prática, como já tinha observado, gerenciada por Afonso. Talvez fosse o caso de se debitar uma parte da culpa por não ter ainda havido o repasse dos conhecimentos a ele. Por tudo que estava acontecendo, Nelson não estava tendo paciência nem a menor vontade de transferir para o pessoal o que havia aprendido nos Estados Unidos.

Afonso até já havia reclamado desta desmotivação de Nelson em ensinar as competências aprendidas. Preocupados com o fato, Narciso e Alexandre tomaram a decisão de enviá-lo à América para que ele também pudesse beber na fonte, não permanecendo a Good Food daí por diante dependente de Nelson. Logo abortaram tal projeto, considerando que poderia haver algum desconforto na relação até aquele momento tão boa com os técnicos americanos, relacionamento este que fora construído, ninguém negava isto, pelo químico principal da Companhia. Melhor que não corressem riscos a esta altura do campeonato, ponderaram eles ao final da reunião na qual haviam decidido por continuarem levando o processo como estava sendo conduzido aqui no Brasil mesmo, aguardando até que tudo já estivesse apropriado no rol de competências da equipe. Neste momento, seria uma questão muito simples para ambos os lados a saída de Nelson.

Caso fosse sabedor dessas articulações que aconteciam na empresa em que trabalhava e que na qual, a cada dia, se sentia mais alijado do processo decisório, a última reunião importante da qual participara havia sido aquela em que tão mal se sentira, na qual foi sacramentada a parceria da Good Food com a Middle East Meals Corporation, o que ele considerava como problemas potenciais que sua saída geraria, não precisariam ser levados em consideração e as coisas poderiam se dar de forma muito mais simples para os dois lados da questão.

Havia também a questão doméstica. Nelson não tinha tido a coragem, até aquele momento, de contar para Marly a decisão que tinha tomado de sair da Companhia. Estava receoso a respeito da reação da esposa. Achava que ela o recriminaria por estar deixando aqueles que tanto os tinham ajudado. O medo que tinha fazia com que projetasse mil cenários com Marly o repreendendo e chamando-o de traidor. Chegara a ter pesadelos assim.

Ledo engano. Depois de respirar fundo e aproveitando o gancho de uma pergunta feita por ela sobre o que estava acontecendo com o projeto do novo produto, já que, ela havia se dado conta, de uns tempos para cá nenhuma palavra mais havia sido proferida pelo marido a respeito dele. Desabafou, contando-lhe tudo. Surpreso e feliz constatou que não poderia ter havido recepção melhor por parte dela. Apoiou-o e disse que a dívida que tinham com os dois dirigentes já estava paga considerando o altíssimo empenho e as muitas contribuições que Nelson tinha levado para a Good Food. Fez-lhe também uma proposta. A de que fizessem já as contas e pagassem à empresa os juros, que seriam agora calculados por eles de forma decente, do empréstimo que lhes havia sido feito. Caso lá na empresa não o quisessem receber, esta era a sua sugestão, tal dinheiro seria doado para o tratamento do câncer infantil no hospital onde Marly tão bem tinha sido tratada.

Alma lavada agora, pois que aliviado ele já estava desde que tinha tomado a resolução de ir embora, Nelson sentia-se em estado de graça com a compreensão da esposa

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sobre a sua deliberação e, mais ainda, com a sugestão que ela dera, de imediato por ele aceita, de tentarem pagar também os juros do empréstimo. Há muito não tinha passado uma noite tão bem dormida. Dia seguinte, saiu de casa uma hora mais cedo. Queria chegar antes que olhos curiosos pudessem vê-lo na faina de encaixotar seus poucos objetos pessoais que ainda restavam na Good Food, eis que, nos últimos tempos, enquanto amadurecia a decisão de sair, dia após dia, foi levando para casa, numa operação que ele mesmo tinha batizado como formiguinha, tudo que existia no armário e nas gavetas da mesa de sua sala. Queria também, bem cedo, alertar Glória, pedindo-lhe para que avisasse a Narciso e Alexandre, assim que chegassem, que precisava falar-lhes com uma certa urgência, e que o ideal é que este encontro se desse ainda pela manhã.

Chegados os dois diretores e passado para eles o recado de Nelson, perspicazes que eram, logo imaginaram do que se tratava. A situação estava mais do que madura e era esperado por eles para qualquer momento este desenlace. Haviam combinado que por tudo, e tinham consciência de que havia sido muito, que Nelson fizera pela Good Food naqueles anos, ele se tornara merecedor de um cheque no valor de cinco vezes o seu salário mensal como agradecimento pelos excelentes serviços por ele prestados.

O que eles não esperavam é que Nelson quisesse pagar para a empresa os juros do dinheiro emprestado para ele naquela hora da grande dificuldade. Claro era que não podiam aceitar, da mesma maneira que Nelson também não podia recusar o cheque que lhe era presenteado. Em cinco minutos, depois de abraçar os dois diretores e com as lágrimas teimando em brotar nos olhos, Nelson saia da sala da diretoria. Endossado o cheque e complementado com um outro no valor dos juros do tal empréstimo, naquele mesmo dia, o casal fazia o depósito na conta corrente da ala infantil de tratamento de câncer do hospital, não sem antes pedirem ao gerente que fosse respeitado o sigilo. Não queriam que ficassem sabendo quem era que estava fazendo a polpuda doação que, com toda certeza, muito ajudaria no atendimento diário das crianças carentes lá internadas.

A INSPEÇÃO

O ritmo de todos na Good Food que já era muito acelerado aumentava ainda mais a cada instante. A necessidade do trabalho era bem maior do que as vinte e quatro horas do dia seriam capazes de comportar. Os cartazes espalhados pela fábrica e escritórios, não deixavam que ninguém pudesse se achar desinformado quanto ao lançamento do novo produto. Bobagem, eles eram desnecessários tal era o envolvimento total de todos com tudo que por lá estava ocorrendo. Não havia ninguém por ali que não estivesse respirando o produto novo em todos os minutos das vinte e quatro horas do dia. Como aquelas grandes placas do pessoal da segurança do trabalho que iam mostrando há quantos dias sem acidentes a fábrica estava, novas chapas coloridas e muito chamativas alertavam a todos que faltavam exatos trinta dias para o lançamento nacional tão esperado.

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As viradas de noite tornaram-se comuns para o pessoal da produção e dos laboratórios. Os problemas, comuns a todo “start up” , como sempre dizia Narciso, tinham que ser resolvidos imediatamente. Há dez dias já estava sendo fabricado o produto novo. Ele, depois de embalado era encaminhado para estoque no galpão de lona alugado para tal e instalado aos fundos da quadra. Era grande o cuidado para que o novo produto não fosse lançado sem que todos os supermercados e lojas de conveniência estivessem bem abastecidos. Almoxarifado estocado além do seu limite de segurança, elevando-se até o teto as sacas de arroz e os tonéis do açúcar de beterraba, comprados que foram em grande excesso numa jogada sugerida por Mário para que aproveitassem os excelentes preços da abundante safra.

No limite do endividamento, a Good Food foi à cata de uma nova linha de financiamento, bem mais dispendiosa, para que pudessem honrar a grande compra feita, bem como para que fossem capazes de fazer frente às demandas não previstas geradas pelos problemas havidos nos últimos dias, dentre os quais dois se faziam mais relevantes: os softwares importados da parceira americana, que ao contrário do que os técnicos contratados haviam afiançado, teimavam em não se mostrar compatíveis e os preços dos anúncios e do merchandising nas televisões que estavam trinta por cento mais caros, devido ao aquecimento da economia, o que automaticamente havia demandado maiores investimentos da indústria e do setor de serviços em publicidade, fazendo com que, também de imediato, houvesse a revisão das tabelas nas agências. Afora esses percalços, por Narciso considerados como normais tal a envergadura do projeto, tudo ia, mesmo que aos trancos e barrancos, no caminho correto para o triunfal lançamento.

Foi nesse trigésimo dia que aconteceu na Good Food a visita de Gláucia e Lucélia que faria com que nada do que havia sido planejado ocorresse. Químicas com dois anos de formadas e, que até aquele momento, não tinham conseguido se colocar no mercado de trabalho, elas haviam feito juntas o concurso público para a vigilância sanitária sendo aprovadas nos testes. Empossadas há apenas um mês, fizeram de imediato intensivo programa de treinamento em Brasília. Ao final dele, de volta ao Rio de Janeiro, receberam uma listagem com o nome e o endereço de dez empresas do ramo de alimentos no estado, para que fizessem nelas as devidas inspeções sanitárias. Ocorre que por não ter havido concurso público para esta função há vários anos, havia falta de fiscais e tais inspeções não estavam sendo realizadas. Afonso não se lembrava de nenhuma desde os tempos em que, como estagiário, começara a atuar na Companhia.

Foram barradas na portaria industrial pelos guardas que não sabiam como agir naquela situação. A liberação ocorreu após algum tempo, não sem que antes tivesse havido orientações desencontradas para os seguranças, para se reunir com um dos químicos da equipe de Afonso.

Breve este técnico se deu conta de que a Good Food corria perigo. Gláucia e Lucélia queriam inspecionar todo o processo produtivo, seus insumos, especificações técnicas e o produto final. Para este mister elas haviam pedido uma sala onde pudessem instalar o seu “lap top” e onde pudessem receber toda a documentação referente aos alimentos fabricados ali, para que os estudassem antes de fazer, in loco, a inspeção para verificarem se as fórmulas que estavam sendo operadas pela produção eram condizentes com aquelas que haviam sido especificadas anteriormente pela Companhia e aprovadas nos órgãos reguladores do governo federal.

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Enquanto pedia um tempo para buscar as tais documentações, Antônio Marcos passara pela sala de Afonso alertando-o para os riscos da tal fiscalização das duas químicas. Após certificar-se de que não havia modos de que fosse adiada a inesperada visita ou que pudessem sonegar a documentação mais comprometedora, célere lá estava Afonso na sala da diretoria. Enquanto Alexandre, ainda sem ter muito clara a dimensão que aquele fato poderia tomar, aventava a hipótese de uma ajuda pecuniária depositada na conta corrente para que as tais meninas os deixassem em paz, Narciso fazia contatos em Brasília com aqueles lobistas e políticos que os tinham ajudado quando da aprovação da custosa liberação para o produto novo.

Já no segundo telefonema pôde constatar que os correligionários que tanto haviam propalado que a Good Food poderia contar com eles para o que desse e o que viesse, tinham mesmo era papo. Como répteis escorregadios, um a um eles foram dando a entender para Narciso que as coisas haviam mudado na capital e que seria muito difícil lidar de uma forma alternativa com esses meninos que foram contratados agora para fiscais. O que eles podiam fazer e disso Narciso já estava mais do que sabedor era alertar a Companhia para que tivesse cuidados com o que fosse mostrar ou dizer para a dupla de fiscais.

Mandado à sala onde as duas químicas haviam sido instaladas, para com elas conversar e tentar fazer um primeiro diagnóstico sobre o como eles deveriam conduzir o problema, Afonso pôde sentir que seria difícil que elas não reparassem que as fórmulas compradas nos Estados Unidos tinham sido modificadas pela Good Food. Ao mesmo tempo em que ele chegava a esta conclusão, as duas amigas tinham também se dado conta de que naquele caldeirão tinha carne de gato escondida. Através de um olhar que trocaram e que foi percebido por Afonso, elas demonstraram perceber que ali havia indícios de mudanças ou adulteração de fórmulas.

Apesar da nenhuma experiência em fiscalização, tudo levava a crer que a rede tinha pegado peixes muito graúdos e que seria necessária ajuda para que pudessem alçá-la para dentro da embarcação sem que a deixassem romper, o que poderia propiciar a fuga de tais pescados. Confiscada a documentação e as amostras do produto novo, elas informaram para Afonso estarem indo embora e que, em breve, novo contato seria feito. Houve gente na Good Food que até chegou a imaginar que elas haviam partido porque nada incriminador puderam encontrar. Esses estavam redondamente enganados.

Na mesa redonda da grande sala da Inspetoria, as duas tentavam relatar, ao mesmo tempo, o que tinham observado na primeira empresa que haviam visitado. O coordenador da equipe e o gerente da fiscalização ouviam tudo e, com a experiência de muitos anos, logo puderam ver que elas estavam cobertas de razão e que a Good Food estava em maus lençóis. Levadas as amostras do novo produto para um exame ainda superficial no laboratório de campo, imediatamente constatou-se a fraude. A impunidade reinante e a falta de fiscalização fizeram com que nem se dessem ao cuidado de colocar um pouco que fosse dos produtos previstos na fórmula original para, pelo menos, caso fossem descobertos, pudessem ter facilitado a defesa.

A ordem de parada das máquinas e lacre dos computadores da Good Food veio naquela mesma tarde, impossibilitando que o turno das dezoito horas assumisse os seus postos de trabalho. Enquanto isto uma força tarefa agora com a participação

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também do Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal, Ministérios da Agricultura e da Saúde realizava uma grande devassa em todos os dados da organização, encaixotando pilhas e pilhas de documentos e levando os computadores para serem vistoriados.

Dois dias depois aconteceu a prisão de Afonso. Narciso e Alexandre foram detidos passados alguns dias apenas. O processo iniciado pelos americanos pedia nos tribunais que indenizações bilionárias lhes fossem conferidas, a título de ressarcimento pela quebra de contrato e ranhuras na imagem, causadas que foram pela ampla divulgação dos fatos pela mídia não somente no Brasil, mas também nos Estados Unidos e nos países do Mercosul, onde num segundo estágio o novo produto, seria lançado, segundo previa o planejamento estratégico da Good Food. Nem um mês havia se passado e novo escândalo de grandes proporções assumira o espaço ocupado pela Good Food na mídia. Esquecidos pela imprensa, fruto do intenso trabalho do exército de renomados advogados que os defenderam, hábeas corpus já tinham retirado de trás das grades os dois responsáveis pela empresa. Afonso, com rol de culpas mais amplo, penou preso por mais sessenta dias até que pôde responder livre pelas acusações que lhe estavam sendo imputadas.

Numa visita que no presídio ele recebeu de Nelson, Afonso confidenciou choroso para seu antigo gerente de laboratório e pesquisas, toda a sua decepção e mágoa com Narciso e Alexandre. Sentia-se jogado às feras. Não tendo sido lhe dada a azeitada e eficiente estrutura jurídica notável que eficazmente livrou os grandes chefes das incômodas celas. Além disto, como bode expiatório de todo o escândalo, ele lhe contava terem sido colocadas em suas costas variadas acusações que diziam respeito não a ele, mas à dupla dos maiores dirigentes da empresa.

Solidário com aquele que tanto o havia prejudicado, provocando até o seu desligamento da Good Food, Nelson tudo ouvia em silêncio. Da mesma forma que agira quando da visita feita por ele no domingo passado a Alexandre e Narciso, só lhe cabia naquela ocasião o sentimento da empatia, o que definitivamente não tinha o significado da concordância com tudo que ouvia mas sim da compaixão com o ser humano preso com quem tanto convivera até há bem pouco tempo. Aguardando na fila para ser revistado antes de sair do presídio, Nelson refletia sobre tudo que tinha acontecido com a empresa para a qual tanto trabalhara e com a qual, ao final, também ele tanto havia se decepcionado.

COMEÇAR DE NOVO

Mal o tinha levado aos lábios, o prestimoso garçom do La Fome já se abaixava, armado com o isqueiro à mão, para acender o legítimo cohiba de Narciso. O charuto fora delicado e caro mimo enviado aos dois pelo empresário de Miami com o qual andavam negociando.

Bem empacotadas no limbo da memória, sendo usadas apenas como referências para pontos a serem no futuro evitados, o episódio Good Food encontrava-se definitivamente superado. Dificuldade mesmo foi a havida com a Middle East. Antes de

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serem levados por eles às barras dos tribunais internacionais, um acordo foi celebrado com os americanos. A venda da fábrica para a concorrente tão desprezada até então, gerou o dinheiro que foi de imediato transferido para as burras do antigo parceiro.

Por variados motivos os inquéritos abertos estavam já arquivados, descaracterizados que haviam sido através do muito bem orquestrado uso de evasivas e alegações diversas feitas pela defesa, fazendo crer que havia falta de provas, ou de que as que tinham sido coletadas não podiam como provas serem consideradas por falhas tantas havidas nas suas construções. Houve também, por parte da promotoria, a perda de prazos regimentais o que muito facilitou a defesa dos dois amigos pelos afamados causídicos contratados. Pelo telefone, Afonso havia sido contatado pelos dois e não tinha sido nem um pouco complexo para Narciso, com a sua habilidade nata para convencer os outros, aliciar para o grandioso projeto que pelos dois estava agora sendo posto em marcha, o ousado e criativo químico da Good Food. Após ter passado meio ano na geladeira depois de ter sido libertado, Afonso estivera trabalhando com inegável êxito na indústria de bebidas nos últimos cinco anos.

O constrangimento inicial do reencontro não durou o tempo em que o maitre do chique restaurante francês levou para chegar até à mesa estrategicamente escolhida por Alexandre bem ali no canto direito do salão. O Logan que já tomavam foi servido e os três pareciam três adolescentes encantados e entusiasmados com o brinquedo novo que lhes fora dado pelos seus pais. Era como se disputassem quem seria capaz de falar primeiro, atropelavam-se sonhando com a grande porrada que estariam dando no mercado com o lançamento daí a uns meses, do “energético natureba”, como, à falta de um nome melhor e mais apropriado, eles o estavam denominando.

O litro do uísque há muito havia secado e o champanhe Cristal tornara-se a bebida da mesa. Tinham-se tornado inconvenientes e o maitre, que tanto os tinha tratado com lisonja, ia tentando, através de todos os métodos dos seus muitos anos de vivência na noite com pinguços dos mais variados calibres, fazê-los ir embora, por estarem com conduta totalmente inadequada para tão fino ambiente, constrangendo a fina flor da sociedade que no La Fome buscava muito mais aparecer do que comer. Afonso ergue a taça e conclama os seus líderes:-Um brinde ao produto novo!

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