Uma Temporada No Inferno - Arthur Rimbaud-Www.livrosGratis

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    Uma Temporada no Inferno(Une saison en enfer)

    Arthur Rimbaud

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    Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim noqual todos oscoraes exultavam, no qual corriam todos os vinhos.

    Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos. - E achei-a amarga.- E injuriei-a.Armei-me contra a justia.Fugi. feiticeiras. misria, dio, a vs que foi confiado omeu tesouro!Tudo fiz para que se desvanecesse em meu esprito a esperanahumana.Como um animal feroz, investi cegamente contra a alegria paraestrangul-la

    Conjurei os verdugos para morder, na minha agonia, a culatra deseus fuzis.

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    Conjurei as pragas, para afogar-me na areia, no sangue. Fiz dadesgraa aminha divindade. Refocilei na lama. Enxuguei-me ao ar do crime.E preguei

    boas peas loucura.E a primavera trouxe-me o horrvel gargalhar do idiota. Ora, porltimo,chegando a ponto de quase fazer o trejeito final, sonhei encontrara chave dofestim antigo, no qual talvez recobraria o apetite.A caridade essa chave. - Esta inspirao prova que tenhosonhado!"Sempre sers hiena, etc..." exclama o demnio que me coroou

    de to amveispapoulas. "Vence a morte com todos os teus apetites, com todo oteu egosmoe todos os pecados capitais".Ah! estou farto de tudo isso: - Mas, querido Sat, eu te conjuro aque no mefites com pupila to irritada! e espera das pequenas covardiasatrasadas, paravs outros que admirais no escritor a ausncia das faculdades

    descritivas oupedaggicas, para vs arranco algumas hediondas pginas domeu caderno decondenado.Mau SangueHerdo de meus antepassados, os gauleses, os olhos azuis-claros, afronte estreita, e a falta de jeito para a luta. Sinto que

    minhas roupasso to brbaras quanto as deles. Apenas no unto acabeleira.Os Gauleses foram esfoladores de animais, queimadoresde ervas, osmais inbeis de seu tempo.Deles, eu herdo: a idolatria e o amor ao sacrilgio; - oh!todos os

    vcios: clera, luxria, - magnfica, a luxria; - sobretudomentira e

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    preguia.Detesto todas as profisses. Mestres e oficiais, todoscampnios,ignaros. A mo que empunha a pena equivale que guia oarado. -Que sculo de mos! - Jamais me servirei das mos!Depois, adomesticidade leva demasiado longe. A honradez damendicidadeexaspera-me. Os criminosos repugnam-me comocastrados: quanto amim, estou intacto, e pouco se me d.

    Mas quem fez to prfida a minha lngua que, at agora,tem guiadoe protegido a minha preguia? Sem saber utilizar-me docorpo, emais ocioso que um sapo, tenho vivido por toda a parte.No hfamlia na Europa que eu no conhea: - Estou falando defamlias

    iguais minha, que devem tudo declarao dos DireitosdoHomem Tenho conhecido cada filho-famlia!***Se possusse antecedentes em um ponto qualquer dahistria deFrana!Mas no, nada.

    No ignoro que fui sempre de raa inferior. No possocompreendera revolta. Minha raa s se rebelar para saquear: como oslobos aoanimal que no mataram.Recordo a histria de Frana, filha primognita da Igreja.Aldeo,teria empreendido viagem Terra Santa; vejo em

    pensamento

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    caminhos nas plancies subias, panoramas de Bizncio,muralhas deJerusalm: o culto de Maria, o enternecimento para com ocrucificado despertam em mim entre mil fantasias profanas.- Estousentado, leproso, sobre cacos de vasos e urtigas, junto aum murorodo pelo sol. Mais tarde, lansquenete, bivacaria sob asnoites deAlemanha.Ah! mais ainda: dano o sab numa incendiada clareira,com velhas

    e crianas.Minhas lembranas detm-se nessa terra e no cristianismo.Ver-meeisempre nesse passado. Mas sempre sozinho; sem famlia;e, almdisso, que lngua falarei? jamais me surpreendo nosconclios deCristo ou nos conclios dos Senhores, - representantes de

    Cristo.Que era eu no sculo passado: s hoje torno a encontrar-me.Acabaram-se os vagabundos, nada de guerras semsentido. A raainferior cobriu tudo - o povo, como se diz, a razo; a nao,e acincia.

    Oh! A cincia! Tudo se repete. Para o corpo e para a alma,- ovitico - temos a medicina e a filosofia, - os remdios dasboasmulheres e as canes populares apropriadas. E asdistraes dosprncipes e os jogos que eles interditam! Geografia,cosmografia,

    mecnica, qumica ...

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    A cincia, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha.Por queno havia de girar? a viso dos nmeros. Vamos pata o Esprito. certssimo, esteorculo, que eu fao. Compreendo, e no sabendoexplicar-me sempalavras pags, preferiria silenciar.***Retorna o sangue pago! O Esprito est prximo; por queCristono me ajuda, dando minha alma nobreza e liberdade?

    Ai, oEvangelho morreu. O Evangelho! O Evangelho.Espero Deus avidamente. Sou de raa inferior por toda aeternidade.Estou na praia armoricana. Que as cidades se iluminem noite.Minha jornada est realizada; abandono a Europa. Aaragem

    marinha queimar-me- os pulmes; os climas perdidostostar-me-o.Nadar, mordiscar ervas, caar, fumar, sobretudo; beberlicores fortescomo chumbo derretido, - qual faziam esses queridosantepassadosem volta do fogoRetornarei com membros de ao, negra a epiderme, as

    pupilasacesas: por minha mscara julgar-me-o de um raa forte.Possuireiouro: serei ocioso e brutal. As mulheres cuidam destesferozesenfermos que regressam dos pases quentes. Participareidosnegcios polticos. Salvo.

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    Agora estou amaldioado, horroriza-me a ptria. O melhor umsono, completamente bbado, na praia.***Ningum parte. Percorramos novamente os caminhosdaqui,carregado de meu vcio que aprofundou sua razes desofrimento ameu lado, desde a idade da razo, - que sobe ao cu, megolpeia,derruba, arrasta.A derradeira inocncia e a derradeira timidez. Est dito.

    Noentregar ao mundo meus desgostos e minhas traies.Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tdio e a clera.A quem me alugar? Que besta preciso adorar? Que santaimagematacar? Que coraes destruirei? Que mentira devosustentar? Sobreque sangue caminhar?

    Mas, melhor evitar a justia. A vida dura, o simplesembrutecimento, - levantar, o punho seco, a tampa docaixo, sentarse,afogar. Assim desaparecem a velhice e os perigos: o terrorno francs.Ah! Sinto-me to abandonado que estou oferecendo aqualquer

    divina imagem impulsos para a perfeio. minha abnegao, maravilhosa caridade! aqui embaixo,embora!De profundis, Domine, que estpido sou!***Menino, eu admirava o presidirio intratvel sobre quem sefecha

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    exasperada, em frente ao peloto de fuzilamento, chorandoadesgraa de que no houvessem podido compreender, eperdoando!

    Como Joana d'Arc! - "Sacerdotes, professores, mestres,vs vosenganais entregando-me Justia. Jamais pertenci a estepovo daquide baixo; jamais fui cristo; eu perteno raa que cantavanosuplcio; no compreendo as leis; no tenho senso moral;sou um

    bruto: vs vos enganais".Sim, tenho os olhos cerrados para a vossa luz. Sou uma,um negro.Contudo posso salvar-me. Vs sois falsos negros; vs,manacos,ferozes, avarentos. Mercador, tu s negro; magistrado, tus negro;general, tu s negro; imperador, velho prurido, tu s negro;

    tubebeste um licor no selado, da fbrica de Sat. Estepovo estinspirado pela febre e pelo cncer. Mutilados e velhos sode talmodo respeitveis que pedem que os cozinhem. O maissbio abandonar este continente, onde ronda a loucura para

    prover derefns estes miserveis. Entro no verdadeiro reino dosfilhos de Can.Conheo ao menos a natureza? Conheo-me a mimprprio? Bastade palavras. Sepulto os mortos em meu ventre. Gritos,tambor,dana, dana, dana, dana! Nem sequer considero que ao

    desembarcarem os brancos, cairei no nada.

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    Fome sede, grito, dana, dana, dana, dana!***Os brancos desembarcam. O canho! preciso submeter-se aobatismo, vestir-se, trabalhar.Recebi no corao o toque da graa. Ah! No o haviaprevisto!Nunca pratiquei o mal. Os dias vo ser suaves, apagar-se-me- oremorso. No terei suportado os tormentos da alma quasemorta parao bem, onde sobe a luz severa como os crios fnebres. A

    sorte dofilho-famlia, esquife prematuro coberto de lmpidaslgrimas. Certo,a libertinagem estpida, o vcio estpido; precisoarrojardistante a podrido. Mas o relgio nunca dar unicamenteas horasde dor! Vou ser raptado qual uma criana, para brincar no

    paraso,esquecido de todas as desgraas?Depressa! h outras vidas? - O sono em meio s riquezasimpossvel. A riqueza foi sempre bem pblico. S o amordivinooutorga as chaves da cincia. Vejo que a natureza no seno um

    espetculo de bondade. Adeus quimeras, ideais, erros!O canto razovel dos amigos eleva-se do navio salvador: o amordivino. - Dois amores! Posso morrer de amor terrestre,morrer desacrifcio. Deixei almas cuja pena crescer com minhapartida!Escolheste-me entre nufragos; os que ficam so meus

    amigos?

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    Salvei-os!Despertou-me a razo. O mundo bom. Abenoarei a vida.Amareimeus irmos. No so promessas infantis. Nem esperanade escapar velhice e morte. Deus me d fora e eu louvo a Deus.***O tdio j no o meu amor. As cleras, a libertinagem, aloucura, -dos quais conheo todos os impulsos e todas asconseqncias - todoo meu fardo est deposto. Apreciemos sem vertigem a

    extenso deminha inocncia.J no serei capaz de implorar o consolo de umabastonada. No meacredito a caminha de umas npcias com Jesus Cristo porsogro.No sou prisioneiro de minha razo. Disse: Deus. Quero aliberdade

    na salvao: como alcan-la? Os gostos fteisabandonaram-me. Jno preciso de sacrifcios nem de amor divino. No tenhosaudadesdo sculo dos coraes sensveis. Cada um tem sua razo,desprezoe caridade: retenho meu lugar no alto desta anglica escalade bomsenso.

    Quanto felicidade estabelecida, domstica ou no... no,noposso. Estou demasiado gasto, demasiado dbil. A vidafloresce pelotrabalho, velha verdade: quanto a mim, minha vida no suficientemente pesada, voa e flutua distante, por cima daao, esseadorado eixo do mundo.

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    Como me sinto solteirona, falto de coragem para amar amorte.Se Deus me concedesse a calma celeste, area, a orao,- como osantigos santos -. Os santos! os fortes! os anacoretas, osartistas taisquais j no precisamos.Farsa contnua.! Minha inocncia me faria chorar. A vida a farsaque todos tm que representar.***Basta! eis a punio. - Em marcha!

    Ah! queimam os pulmes, latejam as tmporas! A noitetomba emmeus olhos, em pleno sol! O corao... os membros...Aonde vamos? ao combate? Sou fraco! os outros avanam.Osferros, as armas... o tempo !...Fogo! Fogo sobre mim! L! para onde me dirijo. - Covardes- Matome!

    Arrojo-me entre as patas dos cavalos!- Habituar-me-ei a isso.Esta seria a vida francesa, o caminho da honra!Noite de InfernoBebi um grande gole de veneno. - Trs vezes bem-dito oconselhoque at mim chegou! Abrasam-se-me as entranhas. Aviolncia do

    veneno convulsiona-me os membros, desfigura-me, atira-me ao solo.Morro de sede, sufoco, no posso gritar. o inferno, acondenaoeterna! Olhai como o fogo cresce. Queimo como devoqueimar! Sai,demnio!Havia entrevisto a converso ao bem e felicidade, a

    salvao.

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    Posso descrever a viso? O ar do inferno no tolera hinos!Erammilhes de criaturas encantadoras, um suave concertoespiritual, afora e a paz, as nobres ambies, que sei eu?As nobres ambies!E ainda a vida! - Se a condenao eterna! Um homemque quermutilar-se est condenado, no assim? Acredito-me noinferno,logo estou nele. o cumprimento do catecismo. Souescravo de meu

    batismo. Pais, fizestes a minha desgraa e a vossa! Pobreinocente! -O inferno nada pode contra os pagos. - a vida. Maistarde, asdelcias da condenao sero mais profundas. Um crime,depressa,que as leis humanas me precipitem no nada.Cala-te, mas cala-te!... Esta a vergonha, esta a

    repreenso: Sat quediz que o fogo ignbil, que minha clera terrivelmentelouca. -Chega!... Segredam-me erros, magias, falsos perfumes,msicaspueris. - E dizer-se que possuo a verdade, que vejo a

    justia: tenhoum juzo so e firme, estou pronto para a perfeio...

    Orgulho. Seca-me a pele da cabea. Piedade! Senhor, eu tenhomedo. Tenhosede, tanta sede! Ah! a infncia, a erva, a chuva, o lagosobre aspedras, a claridade da lua quando o campanrio tocavameia-noite...O diabo est no campanrio, a esta hora. Maria! Virgem

    Santa!... -

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    Horror de minha idiotice.L longe, no h almas honestas que me desejem obem?... Vinde...Tenho um travesseiro sobre a boca, no me ouvem, sofantasmas.A1m disso, que ningum se aproxime. Cheiro a queimado, certo.As alucina5es so inumerveis. a que sempre tive:nenhuma f nahistria, esquecimento dos princpios. Calar-me-ei; poetasevisionrios sentiriam cimes. Sou mil vezes mais rico,

    sejamosavaros como o mar.Ah! o relgio da vida parou neste instante. J no estou nomundo. -A teologia sria, o inferno est sem dvida em baixo - e ocu noalto. - xtase, pesadelo, sonho em meio a um ninho delabaredas.

    Quanta malcia na ateno no campo... Sat, Ferdinando,corre comos gros selvagens... Jesus caminha sobre sarasardentes, semdobr-las... Jesus caminhava sobre as guas revoltas. Alanterna nolomostrou de p, branco e as tranas negras, sobre umaonda de

    esmeralda...Vou desvendar todos os mistrios: mistrios religiosos ounaturais,morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada.Sou mestreem fantasmagorias.Escutai!Possuo todos os talentos. - Aqui no h nada e h algum:

    no

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    quisera desperdiar o meu tesouro. - Desejais que eudesaparea, quemergulhe procura do anel? Desejais? Fabricarei ouro,remdios.Confiai em mim, a f conforta, guia, cura. Vinde todos, - atascriancinhas, - para que vos console, para que vos prodigueo seucorao. - O corao maravilhoso! - Pobres homens,trabalhadores!No peo. oraes; serei feliz apenas com vossaconfiana.

    - E pensemos em mim. Isto me faz ter raras saudades domundo.Minha vida foi somente doces loucuras, lamentvel.Bah! faamos todas as caretas imaginveis.Decididamente, estamos fora do mundo. J no h rudos.Desapareceu-me o tato. Ah! meu castelo, minha Saxnia,meubosque de salgueiros. As tardes, as manhs, as noites, os

    dias ...Estou exausto!Deveria ter o meu inferno pela clera, meu inferno peloorgulho, - eo inferno da preguia; um concerto de infernos.Morro. de cansao. o tmulo, vou para os vermes, horrordehorrores! Sat, farsante, queres disso1ver-me com teus

    feitios?Exijo. Exijo! um golpe de tridente, uma gota de fogo.Ah, sair de novo para a vida! Contemplar nossos aleijes! Eesseveneno, esse beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, acrueldadedo mundo! Deus meu, piedade, esconde-me, estou doente!- Estou

    escondido e ao mesmo tempo no o estou.

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    o fogo que se 1evanta com o seu condenado.DelriosIVirgem loucaO esposo infernalOuamos a confisso de um Companheiro do inferno:" divino Esposo, meu Senhor, no repilas a confisso damaistriste de tuas servas. Estou perdida. Estou bbada. Estouimpura.Que vida!""Perdo, divino Senhor, perdo! Ah! perdo! Quantas

    lgrimas! Equantas lgrimas ainda espero!""Mais tarde, conhecerei o divino Esposo!Nasci submissa a Ele! - O outro pode bater-me agora!""No momento, estou no fundo do mundo, minhasamigas!.. no,no sois minhas amigas... Jamais delrios nem torturassemelhantes...

    idiota:""Ah! sofro, grito. Sofro de verdade. Porm tudo me permitido,carregada de desprezo dos mais desprezveis coraes"."Enfim, faamos esta confidncia, com a reserva de repeti-la vintevezes ainda, - to morta, to insignificante!""Sou escrava do Esposo infernal, aquele que perdeu as

    virgensloucas. esse demnio mesmo. No um espectro, no umfantasma, Mas a mim, que perdi a sabedoria, que estoucondenada emorta no mundo, - no me mataro! Como vo-lo descrever!J nemmesmo sei falar. Estou de luto, choro, tenho medo. Um

    pouco de ar,

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    Senhor, se assim o desejas!""Estou viva...- Estava viva...- Sim, fui muito honestaantigamentee no nasci para tornar-me esqueleto!... - Ele era quaseumacriana... Seduziram-me as suas misteriosas delicadezas.Esquecitodo o meu dever humano para segui-lo. Que vida! Averdadeiravida est ausente. No estamos no mundo. Vou aonde vaiele, preciso. E com freqncia ele se encoleriza contra mim,

    contra mim,a pobre alma. O Demnio! - um demnio, vs o sabeis,no um homem"."Ele diz: "No amo as mulheres: sabemos que o amor estpor serreinventado. J no podem desejar seno uma posiosegura.

    Alcanada, o corao e a beleza so postos margem:no restaseno lgido desdm, o alimento do casamento, hoje, Ouento vejomulheres, com os sinais da felicidade, mulheres das quaiseu poderiafazer boas amigas, devoradas por brutos desde o primeiromomento

    sensveis como fogueiras"..."Ouo-o fazer da infmia uma glria, da crueldade umencanto". Eusou da raa antiga: meus pais eram escandinavos:traspassavam-seas costelas, bebiam o prprio sangue. - Ferirei todo o meucorpo,tatuar-me-ei, quero ser horrvel como um mongol: vers,

    urrarei em

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    plena rua. Quero ficar louco de raiva. Nunca me mostresjias:arrastar-me-ia e me contorceria sobre a relva. Minhariqueza,quisera-a toda enodoada de sangue. Nunca hei detrabalhar..." Certasnoites, seu demnio apoderando-se de mim, nsrodvamos, eulutava com ele! - s noites, freqentemente bbado,escondia-se nasruas ou nas casas para assustar-me mortalmente. -"Cortar-me-o na

    verdade o pescoo; ser asqueroso". Oh! esses dias emque ele quercaminhar com aspecto de crime!""Algumas vezes fala, numa espcie de pato enternecidoque traz oarrependimento, dos infelizes que certamente existem, dostrabalhospenosos, das partidas que despedaam os coraes. Nas

    tascas emque nos embriagvamos, punha-se a chorar ao pensar nosque nosrodeiam, rebanho da misria. Erguia os bbados nasnegras ruas.Tinha piedade de uma me perversa para com os filhinhos.-Portava-se com uma graa de menina, a caminho do

    catecismo. -Afetava tudo saber: comrcio, arte, medicina. - Eu o seguia,erapreciso!"Eu via toda a decorao de que, em esprito, ele serodeava;vestidos, panos, mveis: eu lhe emprestava armas, outrorosto. Eu

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    via tudo o que lhe interessava, como ele quisera cri-lopara siprprio. Quando me parecia que seu esprito estava inerte,eu oacompanha, por mim mesmo, em aes estranhas ecomplicadas,longe, boas ou ms: estava perfeitamente segura de quenuncapenetraria em seus mundo. Ao lado de seu corpo amadoadormecido,quantas horas da noite no velei, perguntando-me porquetanto

    porfiava ele em evadir-se da realidade. Jamais homemalgum fez talvoto. Advertia-me, - sem temer por ele - de que bem podiaser umgrave perigo para a sociedade. - Acaso possuir segredosparatransformar a vida? No, no faz mais que procur-los,respondia a

    mim mesmo. Sua caridade est enfeitiada e retm-meprisioneira.Nenhuma outra alma a no ser a minha teria bastante fora- fora dedesespero! - para suport-la, para ser protegida e amadapor ele.Alm disso, no o imaginava com outra alma: v-se seuAnjo, nunca

    o Anjo de nenhum outro, creio eu. Eu habitava em suaalma comoem um palcio que se desocupou para no se ver neleuma pessoamenos nobre que vs: eis tudo. Ai! eu dependia porcompleto dele.Mas, que queria ele de minha existncia opaca e covarde?No me

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    tornava melhor, se no me fazia morrer! Tristementedespeitada, eulhe disse algumas vezes:"Compreendo-te". Ele dava de ombros."Assim, como renovasse sem cessar meu sofrimento, esentindo-mea meus prprios olhos ainda mais perdida, - como diante detodos osolhos que quisessem contemplar-me se no estivessecondenada parasempre ao esquecimento de todos - aumentava cada vezmais minha

    fome de sua bondade. Seus beijos e abraos eram um cu,umsombrio cu no qual eu entrava, e no qual desejaria quemeabandonasse, pobre, surda, muda, cega. Eu comeava ahabituar-me.Considerava que ramos duas crianas boas; livres parapassear no

    Paraso da tristeza. Compreendamo-nos. Comovidos,trabalhvamos

    juntos. Mas, aps uma penetrante carcia, ele observava:Quando eume for, que estranho te parecer tudo porque tenspassado. Quando

    j no tenhas meus braos em torno de teu pescoo, masmeu

    corao para reclinar-te, nem esta boca sobre teus olhos.Porque umdia terei que partir para muito longe. Alm disso, tenho queajudar aoutros: meu dever. Ainda que isso no seja l muitoagradvel...amada criatura". Imediatamente eu o imaginava distante, eme sentia

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    presa de vertigem, relegada mais espantosa dassombras: a morte.Obrigava-o prometer que no me abandonaria. Vinte vezesme fezessa promessa de amante. Era to frvolo quanto eu,quando lhedizia:"Compreendo-te"."Ah! Jamais tive cimes dele. No me abandonars, creio.Quefaria? No possui conhecimentos, nunca trabalhar. Querviver

    sonmbulo. Bastaria a sua bondade e caridade para dar-lhe direito nomundo real? Por um instante, esqueo o estado lastimosoem queca: ele far-me- forte, viajaremos, caaremos nosdesertos,dormiremos sobre o empedrado de cidades desconhecidas,sem

    auxlios, sem queixa. Ou ao despertar, as leis e oscostumes teromudado, - graas a seu mgico poder; ou o mundo,permanecendoigual, abandonar-me- a meus desejos, a minhas alegrias,a minhasindolncias. Oh! Dar-me-s a vida de aventuras que existenos livros

    infantis a fim de me recompensar de quanto tenho sofrido?Noposso. Ignoro meu ideal. Declara-me que sente remorsos,que temesperanas: isto no deve importar-me. Fala com Deus?Talvezdevesse eu mesma dirigir-me a Deus. Estou no maisprofundo

    abismo, e no sei mais rezar".

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    "Se me explicasse suas tristezas, compreende-las-iamelhor que suaszombarias? Ele me ataca, durante horas a fio me humilhapor tudoque me tem comovido no mundo, e fica furioso se meponho achorar".- Ests vendo este elegante jovem que entra numa bela etranqilaresidncia? Chama-se Duval, Dufor, Armando, Maurcio,que seieu? Uma mulher decidiu-se a amar este perverso idiota:

    est morta;certo agora uma santa, no cu. Causars a minha mortecomo elecausou a dessa mulher. nosso destino, o dos coraescaridosos..,"Ai! dias havia em que os homens afiguravam-se-lhe

    joguetes dedelrios grotescos; punham-se a rir horrivelmente, por muito

    tempo.- Depois recuperava seus modos de jovem me, de irmmais velha.Se fosse menos selvagem, estaramos salvos! Mastambm suadoura mortal. Estou submetida a ele. - Ah! Estou louca!"."Um dia, talvez, desaparecer maravilhosamente; maspreciso saber

    se voar para algum cu, para que eu veja, ainda que porum pouco,a assuno de meu amiguinho".Que casal risvel!DelriosIIAlquimia do VerboPara mim. A histria de uma de minhas loucuras.

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    De h muito, eu me vangloriava de possuir todas aspaisagenspossveis, e achava irrisrias as celebridades da pintura eda poesiamodernas.Extasiava-me diante de pinturas idiotas; portais,decoraes. telas desaltimbancos, desenhos, estampas populares; literaturafora de moda,latim de igreja, livros erticos sem ortografia, romances denossosavs, contos de fadas, livros infantis, velhas peras,

    ditados tolos,ritmos ingnuos.Sonhava cruzadas, viagens de descobertas, das quais noexistemnoticias, repblicas sem histria, guerras de religiosufocadas,revoluo de costumes, deslocamento de raas econtinentes:

    acreditava em tudo quanto era encantamento.Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho,O azul,U verde. - Regulei a forma e o movimento de cadaconsoante, e mevangloriei de inventar, com ritmos instintivos, um verbopoticoacessvel, algum dia, a todos os sentidos. Eu me reservava

    a suatraduo.De incio foi apenas um estudo. Escrevia os silncios, asnoites;anotava o inexprimvel. Fixava as vertigens.***Longe dos pssaros, dos rebanhos, dos camponeses,Que bebia eu, joelhos em terra, naquela mata

    Rodeada de ternos bosques de aveleiras,

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    Numa tnue e verde bruma, ao meio-dia?Que podia beber neste jovem Oise,-- Olmos sem voz, relva sem flores, cu aberto! -Que podia beber nessas amareladas cabaas, longe. de[minha choupanaQuerida? Um licor de ouro que faz transpirar?Eu era como um torpe emblema de hospedaria.-- Uma tempestade desterrou o cu. Dentro da noiteA gua dos bosques perdia-se entre as areias virgens,O vento de Deus lanava pedras de gelo sobre os[charcos;Soluando, eu contemplava ouro - e no pude beber.

    ***s quatro da manh, no vero,O amoroso cansao dura ainda.Sob os pequenos bosques se evolaO perfume da noite de festa.Ao longe, na ampla oficina,Ao sol das Hesprides,J se agitam - em mangas de camisa -

    Os Carpinteiros.Em seus Desertos de musgo, tranqilos,Trabalham preciosos lambrisNos quais a cidade.Pintar falsos cus.Oh, por estes Obreiros, encantadoresSditos de um rei da Babilnia,Abandona um instante, Vnus,

    Os Amantes de alma coroada! Rainha dos Pastores,Leva aos trabalhadores a aguardenteQue lhes retempere as foras***A velha poesia tinha boa parte na minha alquimia do verbo.Habituei-me alucinao simples: via com toda asinceridade uma

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    mesquita em lugar de uma fbrica, uma escola d tamborescom anjospor discpulos, caleches nas estradas do cu, um salo nofundo deum lago; os monstros, os mistrios; um ttulo de vaudevilleprovocava terrores a meus olhos.Depois expliquei os meus sofismas mgicos com aalucinao daspalavras!Acabei considerando sagrada a desordem de meu esprito.Ocioso,vtima de acabrunhante febre, invejava a felicidade dos

    animais - aslagartas, que representam a inocncia dos limbos, astoupeiras, osono da virgindade!Meu carter azedava-se. Despedia-me do mundo numaespcie deromances:CANO DA MAIS ALTA TORRE

    Que venha, que venha,O tempo de amar.Juntei tanta pacinciaQue esqueci para sempre.Temores e sofrimentosAos altos cus evolaram-se.E uma sede malsEscurece-me as veias

    Que venha, que venha,O tempo de amar.Qual descampadoDeixado ao abandono,Coberto e floridoDe incenso e joio,Sob o feroz zumbidoDas mais sujas moscas.

    Que venha, que venha,

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    O tempo de amar.Amei o deserto, os pomares, adustos, as tascasmiserveis, asbebidas fracas. Arrastava-me por becos infectos e, olhosfechados,oferecia-me ao sol, deus do fogo.General, se restar um velho canho em tuas muralhasarruinadas,bombardeia-me com petardos de terra seca. s vitrines dasesplndidas lojas! Nos sales! Obriga a cidade a comer aprpriapoeira. Oxida as torneiras. Enche os toucadores do p de

    rubisardentes..."Oh! O moscardo embriagado no mictrio da hospedaria,atrado pelaborragem, e que se dissolve a um raio de luz!FOMESe tenho apetite, sDe terra e pedras.

    Diariamente almoo ar,Rocha, carves e ferro.Minhas fomes, voltai. Pastai, fomes,O prado das smeas.Atrai o alegre venenoDas papoulas.Comei cascalho britado,Pedras de velhas igrejas;

    Blocos errticos de antigos dilvios,Pes semeados nos vales cinzentos.***O lobo uivava sob a folhagem,Cuspindo as belas penasDe seu almoo de pssaros:Como ele, assim me consumo.As hortalias, os frutos

    Aguardam s a colheita;

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    Mas a aranha do sto,Esta vive de violetas.Que eu adormea! que eu ardaNas aras de Salomo.A fervura escorre pela ferrugemE se mistura ao Cedro.Enfim, felicidade, razo, eu separava do cu o azul,que meionegro, e vivi, centelha de ouro da luz natureza. De alegre,euadquiria a mais burlesca e alucinante aparncia queimaginar se

    possa:Ela foi achada!Que? a eternidade. o sol desfeitoNos longes do mar.Minha alma eterna,Cumpre a tua promessaApesar da noite solitria

    E do dia em chamas.Para isso desprende-teDos humanos laosDos vos entusiasmos!E voa ao acaso...-- Nada de esperana,Nem de orietur.Cincia e pacincia,

    Certo o suplcio.L se foi a manh;Brasas de cetim,O vosso ardor a obrigao.Ela foi achada!-- Que? - A Eternidade. o sol desfeito

    Nos longes do mar.

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    ***Tornei-me um pera fabuloso: vi que todos os seres tm afatalidadeda felicidade: a ao no a vida, mas uma maneira deconsumirforas, um enervamento. A moral uma fraqueza docrebro.Afigurava-se-me que a cada ser outras vidascorrespondiam. Essesenhor a no sabe o que faz: um anjo. Essa famlia umninho deces. Em presena de certos homens, falei em alta voz

    com ummomento de uma de suas outras vidas. - Assim, amei umporco.Nenhum dos sofismas da loucura, - a loucura que seencarcera, - foiesquecido por mim: poderia repeti-los todos, possuo osistema.Minha sade viu-se ameaada. Sobrevinha o terror. Caa

    no sonodurante dias seguidos e, uma vez desperto, continuava ossonhosainda mais tristes e, por um caminho cheio de perigos, aminhafraqueza conduzia-me aos confins do mundo e da Cimria,ptriadas sombras e dos turbilhes.

    Tive que viajar, distrair os encantamentos concentrados emmeucrebro. Do mar, que eu amava como se ele me fosse lavarde umamancha, via emergir a cruz consoladora. Eu havia sidocondenadopelo arco-ris. A Felicidade era a minha fatalidade, o meuremorso, o

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    meu verme: a minha vida sempre seria demasiado imensaparadedic-la fora e beleza.A Felicidade! Seus dentes, suaves morte, advertiam-meao cantardo galo, - ad matutinum, ao Christus venit, nas maissombriascidades: estaes, castelos!Que alma h sem defeitos?Fiz a mgica experinciaDa felicidade, da qual ningum escapa.

    Saudemo-la a cada vezQue canta o galo gauls.Ah! J no terei mais desejos:Pois ela velar por minha vida.Este encanto criou corpo e almaE dispersou os esforos. estaes, castelos!A hora de sua fuga, ah!

    Ser a hora da morte. estaes, castelos!***Tudo isto passou. Hoje eu sei saudar a beleza.O ImpossvelAh! essa vida de minha infncia, o largo caminho sobrequalquertempo, sobrenaturalmente sbrio, mais desinteressado que

    o melhordos mendigos, orgulhoso de no ter ptria, nem amigos,queidiotice! - E somente agora o compreendo.- Tive razo ao desprezar esses bons sujeitos que noperderiamocasio de uma carcia, parasitas do asseio e da sade denossas

    mulheres, hoje que elas to pouco se entendem conosco.

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    Tive razo de todos os meus desprezos: por isso meevado!Evado-me?Eu me explico.Ainda ontem suspirava: "Cus! somos tantos oscondenados c embaixo! Quanto a mim faz tanto tempo que perteno a essalegio!Conheo-os um por um. Alis nos reconhecemos sempre;detestamo-nos. Ignoramos a caridade Somos, porm,corteses;nossas relaes com o mundo corretssimas".

    assombroso. Omundo! Os mercadores, os ingnuos! - No estamosdesonrados. -Mas os eleitos, como nos receberiam? Pois h criaturasintratveis e

    joviais, os falsos eleitos, posto que necessitemos audciaouhumildade para abord-las. So os nicos eleitos. No so

    osabenoadores!Ao recobrar dois cntimos de razo, - isso passa logo!-constato queos meus males vm de no haver a tempo refletido queestamos noOcidente. Os pntanos ocidentais! No que acreditealterada a luz,

    gasta a forma, desviado o movimento... Bom! Eis que meuespritoquer a todo o transe ocupar-se com todos osdesenvolvimentoscruis que sofreu o esprito desde a morte do Oriente...Meu espritoassim o quer!...Acabaram-se os dois cntimos de razo! O esprito

    autoridade,

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    ele exige que eu permanea no Ocidente. Seria precisofaz-lo calarpara eu terminar como desejara.Mandava ao diabo as palmas dos mrtires, os esplendoresda arte, oorgulho dos inventores, o ardor dos salteadores; retornavaao Orientee sabedoria primitiva e eterna. - At parece um sonho degrosseirapreguia!Todavia, no pensava na delcia de escapar aossofrimentos

    modernos. No tinha em mira a sabedoria bastarda doAlcoro. -Mas no um suplcio real depois desta declarao dacincia, que ocristianismo, o homem se engane, se prove evidncias,infle deprazer ao repetir essas provas e s assim viva? Torturasutil, ncia;

    fonte de minhas divagaes espirituais. Talvez a naturezapudesseaborrecer-se! O Sr. Sabe-Tudo nasceu com o Cristo.No ser isto porque cultivamos a bruma? Ingerimos febrecom osnossos legumes aquosos. E a embriaguez! O tabaco! e aignorncia eas dedicaes! - tudo isto est muito distante do

    pensamento dasabedoria do Oriente, a ptria primeira? Para que ummundomoderno, se tais venenos se engendram?Argumentaro os homens da Igreja: "Est certo. Masqueres tereferir ao den. Ora, nada conclui a teu favor na histriados povos

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    orientais". - Mas isso mesmo; ao den que me refiro!Quesignifica para o meu sonho, esta pureza das raas antigas!E os filsofos: "O mundo no tem idade. A humanidadedesloca-seto somente. Ests no Ocidente, livre porm de habitar oteu Oriente,por mais antigo que o desejes - e de a habitar a teu belprazer. Nosejas um vencido". - Filsofos, vs pertenceis ao vossoOcidente.Esprito meu, cautela. Abandona os meios violentos de

    salvao.Exercita-te! - Ah! a cincia no anda assaz ligeira para ns.- Mas compreendo que meu esprito dorme.Se estivesse sempre desperto, a partir deste instante,alcanaramoslogo a verdade que provavelmente nos rodeia com seusanjos empranto!... - Se at agora tivesse estado desperto, seria

    porque nohavia cedido aos instintos deletrios numa pocaimemorial!...- Se houvesse estado sempre desperto, eu vogaria emplenasabedoria!... pureza! pureza! este minuto de viglia que me revelou a viso da pureza! -

    Peloesprito vai-se a Deus!Dilacerante infortnio!O RelmpagoO trabalho humano! a exploso que ilumina o meuabismo dequando em quando."Nada vaidade; em direo cincia e para a frente!"

    exclama o

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    moderno Eclesiastes, isto , Toda a gente. E todavia oscadveresdos maus e dos ociosos caem sobre o corao dosoutros... Ah!depressa, mais depressa; l longe, alm, muito alm danoite, estasrecompensas futuras, eternas... escaparemos delas ?Que posso fazer? Conheo o trabalho; e a cincia demasiadovagarosa. Que a orao voa e que a luz explode... bem ovejo. assaz simples e faz calor demais; passaro sem mim.

    Tenho o meudever; como muitos, sentir-me-ia orgulhoso pondo-o delado Estgasta a minha vida. Vamos! finjamos, folguemos, piedade! Eexistiremos enquanto nos divertirmos, a sonhar amoresmonstruosose universos fantsticos, enquanto nos lamentarmos e

    disputarmoscontra as aparncias do mundo, saltimbanco, mendigo,artista,bandido, - sacerdote! Sobre meu leito de hospital, o cheirodoincenso me fez to poderoso; guardio dos perfumessagrados,confessor, mrtir...

    Reconheo ai a srdida educao de minha infncia. Queimporta!. .. Viver meus vinte anos, se mais outros vinte anos eu aindaviver...No! No! no momento eu me revolto contra a morte! Otrabalhoafigura-se-me ofensivo demais ao meu orgulho: minhatraio ao

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    mundo seria um suplcio assaz breve. No derradeiroinstante,atacarei direita, esquerda...Ento, - oh!. - pobre alma querida, ser perdida por ns aeternidade.ManhNo verdade que uma vez vivi urna juventude amvel,herica,fabulosa, digna de gravar-se em pginas de ouro?Incomparvelventura! Por que crime, por que erro, vim a ser castigadocom a

    fraqueza de hoje? Vs que pretendeis que os animaissolucem dedor, que os doentes desesperem, que os prprios mortossoframpesadelos, procurai aclarar os motivos da minha queda edo meusonho. Quanto a mim, no posso melhor explicar-me doque um

    mendigo com seus montonos Pater e Ave Maria. Eu nosei maisfalar.Todavia, agora, creio ter encerrado o relato de meu inferno.Era, noh negar, o inferno; o antigo, aquele cujas portas o filho dohomemdescerrou. Do mesmo deserto, na mesma noite, meus

    olhos semprecansados se voltam para a estrela de prata, sempre, semque os Reisda vida, se comovam, os trs magos, o corao, a alma, oesprito.Quando iremos enfim, para alm das praias e dasmontanhas, saudaro nascimento do trabalho novo, da sabedoria nova, a fuga

    dos

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    tiranos e dos demnios, o desaparecimento da superstio;quandoiremos adorar - os primeiros! - a Natividade sobre a terra?O canto dos cus, a marcha dos povos! Escravos, noamaldioemosa vida.

    AdeusO outono j! - Mas por que ter saudades de um eterno sol,seestamos empenhados na descoberta da claridade divina, -longe dosque morrem nas estaes?

    O outono. Nossa barca elevada nas brumas imveisnavega emdireo ao porto da misria, a cidade enorme de cu sujode fogo elodo. Ah! Os farrapos podres, o po ensopado de chuva, aembriaguez, os mil amores que me trazem crucificado! Noacabarum dia este vampiro, tirano de milhes de almas e de

    corpos mortosque sero ju1gados! Revejo-me de pele corroda pelo lodoe pelapeste, cabelos e axilas cheios de piolhos, e piolhos maisgordosainda no corao, estendido entre desconhecidos semidade, semsentimento... Bem poderia acabar a... A horrenda

    evocao!Abomino a misria.E temo o inverno por ser a estao do conforto!- Por vezes descortino no cu praias infinitas cobertas dealvasnaes festivas Enorme navio de ouro, por cima de mim,agita suasbandeiras multicores brisa da manh. Criei todas as

    festas, todos os

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    triunfos, todos os dramas. Experimentei inventar novasflores, novosastros, novas carnes, novas lnguas. Acreditei adquirirpoderessobrenaturais. Ora bem! eis que devo enterrar minhaimaginao eminhas lembranas! Que bela glria de artista e narradorarrebatada!Eu! eu que me acreditava mago ou anjo, fora e cima detoda a moral,acabo rendido terra, com um cumprir, e a sperarealidade a

    abraar. Campnio!Engano-me? acaso ser a caridade irm da morte paramim?Enfim, pedirei perdo por ter-me alimentado de mentira. Evamos.Mas nem uma mo amiga! e onde pedir socorro?***Sim, a nova hora , pelo menos, assaz severa.

    Pois j posso afirmar que alcancei vitria: o ranger dedentes, o silvodo fogo, os suspiros pestilentos moderam-se. Apagam-setodas aslembranas srdidas. Evolam-se as derradeiras queixas, -cime dosmendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, dosretardados de

    toda casta -. Condenados, se eu me vingasse!Cumpre ser absolutamente moderno.Nada de cnticos: manter a posio conquistada. Noite depedra! osangue seco suja-me o rosto, e no posso contar comcoisa algumaatrs de mim, a no ser este horrvel arbusto!... O combateespiritual

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    to brutal quanto a batalha dos homens; mas a viso dajustia unicamente o prazer de Deus.Entretanto, chegada a vspera. Recebamos todos osinfluxos dovigor e da ternura verdadeira. E, aurora, revestidos deardentepacincia, entraremos as esplndidas cidades.Que dizia eu de mo amiga! J imensa vantagem podersorrir dosvelhos amores mentirosos e envergonhar essas duplas deembusteiros - vi l longe o inferno das mulheres; - e ser-

    me- dadopossuir a verdade numa alma e num s corpo.Abril - Agosto, 1873