Uma Vila Operaria Na Colonia Italiana

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

DANIELA KETZER MILANO

UMA VILA OPERRIA NA COLNIA ITALIANAO CASO GALPOLIS(1906 - 1941)

Porto Alegre 2010

DANIELA KETZER MILANO

UMA VILA OPERRIA NA COLNIA ITALIANAO CASO GALPOLIS(1906 - 1941)

Dissertao apresentada como requisito para a obteno de grau de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Histria pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

Prof. Orientadora: Dr. Nncia Santoro de Constantino

Porto Alegre 2010

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)M637v Milano, Daniela Ketzer Uma vila operria na colnia italiana: o caso Galpolis (1906-1941) / Daniela Ketzer Milano. Porto Alegre, 2010. 184 f. : il. Diss. (Mestrado) - Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Histria, PUCRS, 2010. Orientador: Profa. Dr . Nncia Santoro de Constantino. 1. Histria. 2. Histria e Arquitetura. 3. Arquitetura Popular. 4. Habitao Popular. 5. Urbanismo. 6. Imigrao Italiana. 7. Vilas Operrias. I. Constantino, Ncia Santoro de. II. Ttulo. CDD: 981.65 Alessandra Pinto Fagundes Bibliotecria CRB10/1244a

DANIELA KETZER MILANO

UMA VILA OPERRIA NA COLNIA ITALIANAO CASO GALPOLIS(1906 - 1940)

Dissertao apresentada como requisito para a obteno de grau de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Histria pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

Aprovada em _____ de________________________ de _________ BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Nncia Santoro de Constantino PUCRS __________________________________________ Prof. Dr. Raquel Rodrigues Lima PUCRS __________________________________________

Prof. Dr. Vania Beatriz Merlotti Herdia UCS __________________________________________

AGRADECIMENTOS

Agradeo em especial ao Programa de Ps-Graduao em Histria, da PUCRS, que confiou a Histria a uma arquiteta, e Prof. Dr Nncia Santoro de Constantino, pela excelente orientao. Ao CNPQ, pela Bolsa concedida. Aos meus professores da Especializao em Arquitetura e Patrimnio Histrico no Brasil da Faculdade de Arquitetura - FAUPUCRS -, que me incentivaram e que me recomendaram ao Mestrado, Prof Dra. Nara Helena N. Machado, Prof. Dr. Gnter Weimer e Prof. Ms. Renato Menegotto. Aos responsveis pelos acervos pesquisados: Arquivo Municipal Joo Spadari Adami; Setor de Arquivo do Iphan RS; Biblioteca da PUCRS, Biblioteca da UCS; Acervo de Arquitetura da Biblioteca da UniRitter; Acervo Sehbe S.A; Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias de Fiao e Tecelagem de Galpolis e a Parquia da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosrio de Galpolis. Ao Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias de Fiao e Tecelagem de Galpolis, Renato DallAgnol, pelo contato dos depoentes e pelo fornecimento de material. Prof. Dr Vania Beatriz Merlotti Herdia, que to prestativamente me forneceu material e informaes para a pesquisa. Rosa Diligenti, da Cootegal, pela fundamental cooperao no fornecimento de fontes. Aos depoentes, que abriram as portas de suas casas para contar a sua Histria, esperando a pesquisadora com fotos e com documentos para ajudar na pesquisa. Alguns foram alm dos depoimentos, visitando com a autora os prdios de interesse deste estudo, por exemplo: Agostino Fontana; Dorvalino Mincato e Dil Mincato; Edelfina Furlanetto Pinto; Renato DallAgnol; Talita Moschen; Walter Marchioro e Maria Lourdes Vial Marchioro. minha famlia e a Rogrio Pinto Dias de Oliveira, pelo companheirismo e pela pacincia. Aos amigos Letssia Crestani, pela ajuda nas transcries das entrevistas, e a Luciano Amaro e Luciana Vega Barcelos, que me acompanharam em viagens. Famlia Pedron, pelas dicas fundamentais que contriburam com a pesquisa. Domenica Felicita Trentin Bertolozzo, Elzira Maria Sirena e Ivone N. Rigon, que mostraram ou que me relataram sobre as casas da vila operria.

Fotografia da autora, Galpolis, 2006

RESUMO

A vila operria de Galpolis, localizada em Caxias do Sul, surgiu a partir da formao de uma cooperativa de imigrantes italianos originrios do antigo Lanifcio Rossi, da cidade de Schio, Itlia, que faziam parte do programa oficial de imigrao italiana financiado pelo Governo brasileiro para ocupar e para colonizar aquelas terras. Inicialmente, ocuparam os lotes rurais, exercendo atividades agrcolas, porm nunca abandonaram o ofcio da tecelagem. Anos mais tarde alguns desses imigrantes construram um barraco para abrigar uma cooperativa txtil, chamada Societ Tevere e Novit. A partir do seu crescimento, a tecelagem transformou-se em lanifcio. Com o ingresso de Hrcules Gall na sociedade, foram construdas as habitaes para os trabalhadores da fbrica, inicialmente construdas em madeira, sendo substitudas gradualmente pelas unidades de alvenaria de tijolos. O Lanifcio adquiriu diversos imveis na localidade; contudo, os exemplares mais significativos e que so alvo deste estudo fazem parte do conjunto ao redor da atual praa. Dito de outra maneira, um grupo de edifcios de servios que foram sendo construdos com a funo de aporte a esses funcionrios, bem como pelas casas que se desenvolveram na nova malha urbana fomaram a vila operria de Galpolis. A escolha do objeto de estudo se d em razo de ser um dos ltimos exemplares de vila operria ainda edificada no Brasil. Alm da relevada importncia como patrimnio histrico a ser preservado, representa uma formao atpica de um conjunto habitacional fabril dentro da colnia italiana. A pesquisa vai alm das anlises dos conceitos da Arquitetura, relatando o histrico da evoluo das moradias dos funcionrios e as contribuies que os imigrantes e que os seus descendentes incorporaram s edificaes em relao aos seus costumes e aos modos de morar.

Palavras-chave: Galpolis, habitao operria, imigrao italiana, costumes, modos de morar, urbanizao, Arquitetura popular.

ABSTRACT

The workers' village of Galpolis, located in Caxias do Sul, arose from the formation of a cooperative of Italian immigrants from the former Wool Rossi, in the city of Schio, Italy, who were part of the official program of Italian immigration financed by the Brazilian government to occupy and colonize those lands. Initially, they occupied rural lots, exercising agricultural activities, but never abandoned the craft of weaving. Years later some of these immigrants built a shed to house a textile cooperative called Societ Tevere and Novit. From its growth, weaving became wool manufacturer. With the entry of Hercules Gallo in society, the houses were built for workers of the factory, originally built in wood, being gradually replaced by brick masonry units. The Wool manufacturer acquired several properties in the locality, however, the copies which are the most significant aim of this study are the ones which are part of the set around the current square. In other words, a group of service buildings that were built with a support function to these officials, as well as the houses that were built up within the new urban fabric and formed the workers' village of Galpolis. The choice for the present study is based on the grounds that they consist in one of the last examples of workers' village still standing in Brazil. Besides its importance as historical heritage to be preserved, they represent an unusual formation of a housing factory in the Italian colony. The research goes beyond the analysis of architecture concepts, describing the historical evolution of housing officials as well as the contributions that the immigrants and their descendants brought forth to the building from their customs and ways of living.

Keywords: Galpolis, workers housing, italian immigration, customs, ways of living, urbanization, popular Architecture.

SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................09 CAPTULO 1 QUESTO HABITACIONAL OPERRIA NA EUROPA...............................................17 1.1 1.3 O SURGIMENTO DA CIDADE INDUSTRIAL........................................................... 17 A CIDADE INDUSTRIAL DE SCHIO: LANIFCIO ROSSI........................................33 1.2 PROBLEMAS E SOLUES DA MORADIA OPERRIA.........................................21

CAPTULO 2 FORMAO DE GALPOLIS...........................................................................................51 2.1 MOVIMENTO OPERRIO NO VNETO E EMIGRAO PARA O BRASIL.........51 2.2 IMIGRANTE ITALIANO NO LOTE COLONIAL........................................................55 2.2.1 Adaptao ao lote e subsistncia...................................................................................55 2.2.2 Arquitetura vernacular e costumes trazidos da Itlia................................................62 2.3 INDSTRIA TXTIL E PRIMEIRAS HABITAES DO LANIFCIO................. ...74

CAPTULO 3 EVOLUO DA VILA OPERRIA...................................................................................87 3.1 3.2 CASAS PARA FUNCIONRIOS NO CONTEXTO HISTRICO DO LANIFCIO...87 ADAPTAES NA CASA OPERRIA........................................................................97

3.3 CONFORMAO URBANA: FBRICA, SERVIOS E HABITAES................102 3.3.1 Implantao do conjunto.............................................................................................102 3.3.2 Desenvolvimento do Lanifcio.....................................................................................105 3.3.3 Casas de Hrcules Gall..............................................................................................108 3.3.4 Prdios construdos a partir dos Chaves Barcellos...................................................110 3.3.5 Edificaes ao redor da praa.....................................................................................114 CAPTULO 4 A VILA OPERRIA E SUA ARQUITETURA 4.1 PARTIDOS FORMAIS DAS CASAS OPERRIAS DE ALVENARIA.....................121

4.1.1 Caractersticas gerais...................................................................................................121 4.1.2 Habitaes de tijolos....................................................................................................122 4.1.3 Casas de primeira e de segunda ordem......................................................................125 4.1.4 Casas de terceira ordem..............................................................................................133 4.1.5 Materiais de acabamento interno das casas de tijolos..............................................139 4.1.6 Casas de quarta ordem................................................................................................140 4.2 ANLISE DA ARQUITETURA DA VILA OPERRIA EM RELAO A OUTROS MODELOS....................................................................................................................143 CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................168 REFERNCIAS....................................................................................................................174

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INTRODUO

O tema proposto aborda a problemtica da habitao popular da vila operria e seu surgimento como medida para sanar as precrias formas de moradia dos operrios europeus a partir da Revoluo Industrial e as repercusses que tais medidas tiveram no Lanifcio Rossi na cidade de Schio, ao norte da Itlia, at a implantao da vila operria de Galpolis. O distrito de Galpolis1 uma povoao de colonizao italiana situada em Caxias do Sul, no nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. Est localizado na extremidade sul da quinta lgua2, vizinha nordeste da terceira lgua e a noroeste da quarta lgua. Esta localidade inicialmente foi denominada pelos primeiros colonizadores de Profondo, devido sua conformao geogrfica, isto , estar em um vale montanhoso. Recebeu a sua denominao atual a partir de uma homenagem a Hrcules Gall3, fundador da referida vila. A idia da pesquisa sobre a vila operria de Galpolis nasce com o Trabalho de Concluso do Curso de Ps-Graduao em Arquitetura e Patrimnio Histrico no Brasil, da PUCRS, orientado pelo Prof. Dr. Gnter Weimer, iniciado em 2006. Porque o assunto suscitou novas hipteses e porque o material apresentava grande potencial, o estudo evoluiu para esta Dissertao de Mestrado. O presente trabalho fruto da constatao da escassez de bibliografia sobre a questo da Arquitetura Habitacional Operria no Rio Grande do Sul; ainda, dentro do vis da imigrao italiana, o assunto indito. Em relao abordagem da vila operria de Galpolis, existem trabalhos em outras reas do conhecimento, porm com o olhar arquitetnico, nada foi encontrado. Esta pesquisa vem elucidar a importncia para o conhecimento acerca das questes da habitao operria, da sua insero no contexto histrico, social e econmico do Brasil, visto que a maior parte dos exemplares de vila operrias no Pas, do mesmo perodo ou anteriores a este, encontram-se em pssimas condies ou desativadas. Embora as casas da vila operria de Galpolis estejam em timas condies de conservao, estas esto passando por um processo de descaracterizao.

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Atualmente Terceiro Distrito da cidade de Caxias do Sul. Denominao dada aos territrios destinados colonizao italiana. 3 Informaes de janeiro de 1937, coletadas do Livro do Tombo da Parquia da Igreja Matriz de Galpolis. p. 1.

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O conjunto de moradias de madeira, j demolidas, que faziam parte do complexo da tecelagem, nunca havia sido abordado como tema de pesquisa. Portanto, a presente dissertao pretende ser, tambm, um documento de registro tanto da Arquitetura que ainda persiste quanto da que se perdeu materialmente. A escolha pelo estudo da vila operria de Galpolis deu-se em razo da hiptese de que este conjunto habitacional fabril se conforma a partir de uma Arquitetura com caractersticas atpicas dentro dos conceitos de implantao de uma Colnia italiana. O questionamento sobre os motivos que levaram formao desta vila e quais foram os modelos arquitetnicos seguidos para a construo das habitaes operrias, foram os fatores que nortearam a elaborao deste texto. Desta forma, o objetivo principal analisar se a vila operria de Galpolis sofreu influncia do modelo do bairro operrio de Lanifcio Rossi de Schio e da Arquitetura das casas da colnia italiana. Como objetivos especficos identificar quais so os hbitos e costumes que os imigrantes e que os seus descendentes adaptaram s moradias operrias. Outro objetivo foi desenvolver a pesquisa dentro dos conceitos da Histria da longa durao, analisar os problemas e as solues para a moradia operria desde a Revoluo Industrial, bem como acompanhar o movimento migratrio dos trabalhadores do Lanerossi4 de Schio at a implantao e a evoluo das casas para trabalhadores do Lanifcio So Pedro Galpolis. Um fator importante a considerar que o presente estudo, alm de abordar duas reas pouco exploradas dentro do campo da Arquitetura, a saber, a Arquitetura popular da imigrao italiana no Rio Grande do Sul5 e a das vilas operrias, fornece material historiogrfico e iconogrfico para ambos os temas. O primeiro passo, a fim de adquirir as fontes primrias foi a busca das plantas originais das casas da vila operria de Galpolis. Com este material em mos, seria possvel

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Nomenclatura presente na bibliografia pesquisada, pela qual tambm era denominado o Lanifcio Rossi de Schio. Um estudo dentro da Arquitetura popular de grande contribuio para o nosso Pas, posto que a matria ainda no encontrou seu devido lugar nos tratados de Arquitetura. Ver: WEIMER, Gnter. A Arquitetura popular da imigrao alem: um estudo sobre a adaptao da Arquitetura centro-europia ao meio rural do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Dissertao de Mestrado do Curso de Ps-Graduao em Histria da Cultura. Pontifcia Catlica do Rio Grande do Sul, 1980. p. 13. Na presente dissertao, o conjunto de casas da vila operria de Galpolis foi classificado como Arquitetura popular, por se tratar de uma Arquitetura construda em srie pelos prprios fundadores e funcionrios do Lanifcio. O conjunto foi edificado provavelmente sem um profissional habilitado; assim sendo, nasce a partir da experincia de seus construtores dentro do conceito de Arquitetura vernacular, ou seja, com materiais e com tcnicas construtivas que eram disponveis no local.

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precisar a origem, a data e a autoria dos projetos bem como facilitar a anlise de sua Arquitetura. Depois de incessantes buscas, foi realizado um levantamento das habitaes e desenho das mesmas, visto que o projeto original da vila operria no existia ou encontrava-se extraviado, de acordo com as informaes do IPHAN6. Vale a pena referir tambm que o trabalho se desenvolveu atravs de ampla pesquisa de campo, guiada a partir das informaes fornecidas informalmente ou em depoimentos. Nas viagens a Galpolis, o tempo foi dividido entre o levantamento fotogrfico, a coleta dos depoimentos, a busca das plantas originais; alm disso, desenvolveu-se a pesquisa nos Acervos Municipal Joo Spadari Adami, do Sindicato dos Trabalhadores da Indstria Txtil de Galpolis, da Parquia da Igreja Nossa Senhora do Rosrio e da Cia. Sehbe S.A7. Enriqueceu a pesquisa a disponibilidade dos depoentes e dos moradores em fornecer material e informaes sobre o assunto estudado - fotografias de famlia, documentos, livros, cartas, entre outros, compem um material coeso de estudo. Estas descobertas ultrapassaram as expectativas, pois pessoas se dispuseram a percorrer Galpolis para o levantamento fotogrfico das casas da vila operria, das casas da Colnia e para a coleta de material no acervo da fbrica. Como metodologia principal, foram utilizados os princpios interdisciplinares da Nova Histria, no que diz respeito utilizao das fontes, que proporcionaram estudos de caso qualitativo e crtico-comparativo. De acordo com as idias de Le Goff:(...) a multiplicidade de documentos: escritos de toda espcie, documentos figurados, produtos das buscas arqueolgicas, documentos orais, estatstica, uma fotografia, um filme, uma ferramenta, so, para a Histria Nova, documentos de primeira ordem8.

Ainda, o presente estudo baseou-se na multidisciplinaridade, conceito bsico da Escola dos Annales, cujas idias esto de acordo com a Historiografia dinmica e com a utilizao das cincias vizinhas. Entre as diversas fontes, a oralidade que surge concretamente nas entrevistas, adquiriu destaque e objetividade dentro da pesquisa. Para tanto, desenvolveu-se um projeto de entrevistas denominado descendentes italianos de Galpolis. Em relao aos depoimentos de imigrantes, Constantino comenta que:

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Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Empresa que comprou o Lanifcio em 1979 da antiga proprietria, a famlia Chaves Barcellos. 8 LE GOFF, Jacques. A Histria nova. 4 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 27.

12 Independentemente de modelos, os depoimentos registrados so ricos de indcios que remetem ao cotidiano dos imigrantes e de suas famlias, ao trabalho que desenvolveram, cidade europia que ficou para trs, cidade brasileira que se transformou e que lembrada pelo olhar desacostumado e distante daquele que foi um estrangeiro. Complexidade do fenmeno da imigrao, no mais um contingente sem rosto9.

A Histria Oral proporcionou, juntamente com o levantamento fotogrfico das casas, da fbrica e da Colnia, a investigao dos modos de vida dos descendentes dos imigrantes italianos. Os depoimentos empregados como fonte de estudo, conforme destaca Bom Meihy, (...) serviram como caminho adicional para atingir um objetivo que, por sua vez, depende de outros fatores complementares que podem ou no ser qualificados como Histria Oral10. O conjunto de entrevistas11 forneceu elementos suficientes para se efetuar o cruzamento entre os depoimentos e as fontes primrias, a fim de recompor o projeto original das casas, tanto das de alvenaria quanto das de madeira. Da mesma forma, tambm estabeleceu conceitos crtico-comparativos entre a tipologia da habitao operria do Lanifcio So Pedro com outros modelos de vilas operrias. Para estabelecer as datas aproximadas da construo das edificaes, foi necessrio inseri-las no contexto histrico das vrias administraes no desenrolar do desenvolvimento do Lanifcio. Este processo foi complexo, porque, alm das fontes j mencionadas, foi necessrio sobrepor os recursos disponveis: a anlise das ampliaes fotogrficas da poca da sua construo, comparando-as com as datas de outras fontes primrias, como atas, certides, levantamentos urbansticos e arquitetnicos12 e mapas13.

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CONSTANTINO, Nncia Santoro de. Nas entrelinhas da narrativa: vozes de mulheres imigrantes. Estudos Ibero-Americanos, Revista do Ps-Graduao em Histria da PUCRS, Porto Alegre, v. 32, n. 1, p. 73, 2006. 10 BOM MEIHY, Jos Carlos Sebe. Manual de Histria Oral. 2 ed. So Paulo: Edies Loyola, 1996. p. 20. 11 Durante as entrevistas, tambm foram obtidas informaes espontneas dos depoentes, que provavelmente no se encontrariam em outras fontes, a saber, como era realizado o fornecimento de gua, de luz e de saneamento das casas, como era a vida do operrio fabril; a trajetria de suas vidas e de seus antepassados na Itlia e aqui no Brasil; com quem casaram; aonde foram morar e como era a sua casa; como era a relao de trabalho no Lanifcio; quais as atividades comunitrias que exerciam nos perodos de folga; como adaptaram o cultivo da horta e a criao de pequenos animais no novo lote semi-urbano. 12 Na ausncia das plantas originais para a anlise arquitetnica foram utilizadas as plantas e mapas dos seguintes levantamentos: Levantamento Arquitetnico do Conjunto Residencial de Galpolis de Juarez Settin em 1980. Acervo: Cia. Sehbe S.A. e Levantamento arquitetnico do Trabalho de Preservao e Valorizao da Paisagem Urbana em Ncleos de Colonizao Italiana e Alem. Executores: MEC; SEC; SPHAN; Fundao Nacional Pr-Memria; Secretaria do Interior; Desenvolvimento Regional e Obras Pblicas SDO/ Superintendncia do Desenvolvimento Urbano e Administrativo Municipal Surbam; Instituto Gacho de Tradies IGTF. Colaboradores: Prefeitura Municipal de Caxias do Sul/ Gabinete Municipal de Administrao e Planejamento Gamaplan/ Setor de Patrimnio Histrico. Superviso: Arq. Julio N. B. Curtis. Responsveis Tcnicos: Ana Lcia Meira, Beatriz Polidoro, Marilice Costi. Assessoramento da proposta urbanstica: Arq. Glenda Pereira da Luz. Colaborao: Acad. Maria Cristina Hofer e Srgio Mojen Marques. 1984. A presente fonte foi fornecida e faz parte do Acervo do Setor de arquivo do IPHAN. 13 possvel classificar nesta categoria outros documentos iconogrficos do gnero, tais como os esquemas de implantao urbana, as fotografias e as plantas arquitetnicas.

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Tais utilizaes se justificam nas palavras de Le Goff: (...) a importncia da Cartografia para a Histria Nova, grande produtora e consumidora de mapas, no de simples mapas de orientao ou de ilustrao, mas de mapas de pesquisa e de explicao, justificados pelo desejo da longa durao14. A discusso terica a respeito do objeto de estudo tambm teve como bases fundamentais as idias da Nova Histria de Lucien Febvre e Marc Bloch, que refere aos preceitos da longa durao. Os dados da anlise sobre o problema da habitao operria foram discutidos luz dos conceitos de Leonardo Benevolo e Lewis Munford, tericos da Arquitetura e do Urbanismo. De acordo com estes autores, as primeiras e mais importantes contribuies sobre a questo da habitao operria so as descries de Friedrich Engels15, descritas em suas principais obras bibliogrficas. A situao de emergncia vivida pelos trabalhadores durante a Revoluo Industrial foi denunciada atravs das comisses de inqurito do jornalismo, dos relatrios mdicosanitaristas, das produes literrias e iconogrficas que serviram como referncia para as elaboraes de reformas urbanas e para os programas de habitao social. Estes problemas foram retratados por John Tagg em El peso de la Representacon. Sob o olhar do Urbanismo, com nfase nas medidas para sanar os problemas das habitaes operrias, ps-Revoluo Industrial, destacam-se os autores como Franoise Choay na obra O Urbanismo e as idias de Fernando Chueca Goitia em Breve histrico do Urbanismo. Para o estudo sobre o modelo arquitetnico utilizado pelo Arquiteto Antonio Caregaro Negrin para a criao do Novo Quarteiro, o bairro operrio do Lanifcio Rossi de Schio, de onde partiram os emigrantes-operrios italianos em direo a Galpolis, foram utilizadas as bibliografias de Elisa e Leonardo Travi, Giovanni Luigi Fontana16 e Antnio Folquito Verona17. A inevitvel comparao entre o modelo de vila operria do Lanifcio Rossi com as idias da cidade-jardim de Ebenezer Howard foi realizada de forma sucinta, porm com bases nos conceitos do autor em sua importante obra, Cidades-jardins de amanh.14 15

LE GOFF, 1998, op.cit., p. 27. Alm das descries de Engels sobre a habitao operria durante a Revoluo Industrial, outras formas de analisar as condies de vida dos trabalhadores foram atravs das litogravuras de Gustave Dor, que retratavam o modo como estas pessoas moravam e como interagiam fora do ambiente da fbrica. 16 Docente do Departamento de Histria da Faculdade da Universit di Padova, estuda os campos do patrimnio industrial e desenvolvimento local e Histria Econmica. 17 Prof. Dr. em Histria Econmica pela USP. Coordena o grupo de pesquisa CNPQ: A imigrao de operrios txteis de Schio, Vicenza, Itlia.

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A insero da indstria txtil no panorama denominado tardio da Revoluo Industrial italiana e os motivos que levaram os operrios a emigrarem do Lanifcio Rossi na Itlia para a regio de Galpolis foram tratados atravs de Emilio Franzina. Entre as principais referncias bibliogrficas do autor, destacam-se: A grande emigrao. Outro estudo que foi consultado dentro do assunto foi Italianos do Brasil, de Franco Cenni. As consideraes sobre a imigrao italiana, sobre a colonizao do Rio Grande do Sul e sobre a ocupao dos lotes coloniais18 foram elaboradas, seguindo Angelo Trento, Olvio Manfroi, Nncia Santoro de Constantino e Franco Cenni. Embora se tenha comentado sobre os aspectos histricos e econmicos dos imigrantes, a nfase do assunto esteve no tipo de habitao e ao seu modo de morar no novo terreno rural. No campo da Arquitetura popular, o assunto ainda pouco explorado; contudo, para contextualizar a Arquitetura e os costumes da colonizao italiana no Rio Grande do Sul, foram utilizadas as imagens e os conceitos definidos por Jlio Posenato e Rovlio Costa. Tambm fizeram parte das exemplificaes deste tipo de Arquitetura os estudos de Gnter Weimer, Paulo Iroquez Bertussi e Nestor Goulart Filho. Anteriormente ao aprofundamento sobre o surgimento e sobre o desenvolvimento da vila operria de Galpolis e do Lanifcio So Pedro, foi necessrio contextualiz-los de forma breve em relao s questes da industrializao no Estado. Para tanto, foram utilizados os conceitos de Sandra Jatay Pesavento em Histria da indstria no sul-rio-grandense. Das obras, Processos de industrializao da zona colonial italiana e Hrcules Gall: vida e obra de um empreendedor, de Vania Merlotti Herdia, foram extrados os conceitos iniciais de explorao sobre a formao de Galpolis e sobre a Historiografia do Lanifcio. Na anlise crtico-comparativa entre a arquitetura da vila operria em estudo e os outros modelos, alm das fontes iconogrficas, foram utilizados os conceitos de Arquitetura de Francis Ching, Nabil Bonduki e Luciano Patetta; como tambm os j citados autores Gnter Weimer, Rovlio Costa e Paulo Iroquez Bertussi. Para que fosse possvel entender o raro exemplar da vila operria de Galpolis, foi realizado um estudo retrospectivo, abordando a problemtica e as solues desde o surgimento das primeiras habitaes para trabalhadores na Inglaterra e a sua evoluo. Segue, pois, um estudo da implantao da tecelagem e do conjunto arquitetnico para os funcionrios do Lanifcio Rossi em Schio, retratando os fatos que levaram os seus operrios a emigrar para a regio de Galpolis.

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Terras que posteriormente constituram o povoado de Galpolis.

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Desta forma, no primeiro captulo, a pesquisa prope uma retomada do contexto do surgimento da Revoluo Industrial na Europa, a partir do incio do sculo XIX, que desencadeou um processo de transformao da estrutura da sociedade, gerando grande exploso demogrfica nas cidades, assim como uma exacerbada falta de moradia. Tambm foram apresentadas algumas formas de soluo para o problema da habitao na Europa e o estudo da implantao e da Arquitetura do Novo Quarteiro do Lanifcio de Schio. O segundo captulo tratou sobre os motivos que levaram os operrios do Lanifcio Rossi a emigrarem atravs do programa oficial de imigrao financiado pelo Governo brasileiro que tinha como finalidade ocupar e colonizar terras, instalando-se em lotes coloniais que posteriormente constituram o povoado de Galpolis. Logo aps, foram abordados os modos de adaptao e de subsistncia da famlia imigrante no lote colonial. Tambm foram descritas as principais solues arquitetnicas utilizadas para as primeiras moradias de acordo com os costumes trazidos da Itlia. Entre a segunda metade do sculo XIX e a primeira metade do sculo XX, aconteceram sucessivos fatos que acompanharam o surgimento e o desenvolvimento do Lanifcio na regio talo-brasileira bem como a evoluo do conjunto de casas para funcionrios que formaram a vila operria de Galpolis. No seu entorno, criou-se uma malha urbana composta por residncias e por edifcios de aporte fbrica. A primeira fase de Galpolis compreendeu o incio da povoao instalada na localidade em 1876. A cooperativa txtil, que se chamou Societ Tevere e Novit foi formada na ltima dcada do sculo XIX e durou at a entrada de Hrcules Gall na Sociedade em 1906. A partir desta data, inicia-se a construo das primeiras casas de madeira que ocorreu em meados de 1912, data em que a antiga cooperativa de Hrcules Gall se funde com a Casa Comercial Chaves & Almeida. A partir de ento, os antigos cooperativados tornam-se funcionrios. Este momento dura de 1912 a 1928, chamado neste estudo de segunda fase. Entre 1912 e 1918 foram construdas as primeiras casas de alvenaria de tijolos; contudo, at a morte de Gall, em 1921, este conjunto ainda no havia sido terminado. O terceiro captulo expe o desenvolvimento da vila operria do Lanifcio So Pedro. A terceira fase da construo das casas foi compreendida a partir da compra de todas as aes da famlia de Gall, em 1928, pela famlia Chaves Barcellos. O Lanifcio e a vila operria passam a ser gerenciados, exclusivamente por Orestes Manfro. Com o seu falecimento em 1934, Joo Lanner Spinato assume o mesmo cargo. Em sua administrao, foram concludas

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as obras de construo das moradias operria bem como a criao de outros modelos em madeira sem valor arquitetnico. Este ltimo ainda foi protagonista de uma srie de inovaes em Galpolis e responsvel pela implementao de vrios prdios de aporte aos moradores locais. A administrao da famlia Chaves Barcellos durou entre 1928 e 1979 e representou um perodo de grande expanso da indstria txtil na regio colonial. medida que o Lanifcio crescia, incorporava outras atividades econmicas presentes na vila, porm sem perder o perfil da populao local e a continuidade da cultura italiana. A quarta fase marcada pela sntese do assunto, pois no faz parte do recorte de tempo; optou-se por descrever o percurso e o destino da vila operria e do Lanifcio desde a dcada de 1970 at os dias atuais. Aps o reflexo da crise econmica sofrida por muitas indstrias no Rio Grande do Sul em 1979, a sociedade vendida para o grupo Kalil Sehbe, a qual se uniu o Lanifcio Cia. Sehbe Indstria e Exportao em 1983. Nesta transio, as moradias da vila operria foram oferecidas aos funcionrios que quisessem compr-las. Depois da falncia do grupo, o Lanifcio retornou origem inicial, isto , ao cooperativismo. Foi adquirida por ex-funcionrios, muitos deles descendentes dos seus antigos fundadores, que a esto administrando pelo nome de Cootegal Cooperativa Txtil Galpolis Ltda. Portanto, no terceiro captulo alm de descrever o desenvolvimento do Lanifcio So Pedro, coube tambm, o processo investigativo arquitetnico do conjunto de casas e edifcios complementares pertencentes ao conjunto operrio de Galpolis. O quarto captulo esclarece sobre as questes formais19, finalizando essa trajetria com a anlise crtico-comparativa entre a habitao do imigrante italiano no Rio Grande do Sul, a implantao das casas do bairro operrio do Lanifcio Rossi e a tipologia da vila operria de Galpolis. Tambm foram feitas pequenas menes s moradias para trabalhadores inglesas e paulistas como parmetro comparativo, porm sem adentrar nas peculiaridades de tais vilas. Neste momento, novamente os conceitos da Nova Histria se fazem presentes a partir de Marc Bloch e da Escola dos Annales, quando se enfatiza que: (...) a importncia do estudo chamado de Histria comparativa20.

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Anlise quanto tipologia arquitetnica, uso de materiais construtivos, setorizao e usos dos ambientes, conceitos de hierarquia e linearidade e inovaes construtivas. 20 BURKE, Peter. A revoluo francesa da Historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). 3. ed. 2. reimp. So Paulo: Editora da UNESP, 1991. p. 30.

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CAPTULO 1

QUESTO HABITACIONAL OPERRIA NA EUROPA

1.1 O SURGIMENTO DA CIDADE INDUSTRIAL

A Revoluo Industrial ocorrida na Inglaterra integra o conjunto das Revolues Burguesas do sculo XVIII, responsveis pela crise da passagem do capitalismo comercial para o industrial. Os outros dois movimentos que a acompanham so a Independncia dos Estados Unidos (1776) e a Revoluo Francesa (1789), sob a influncia dos princpios iluministas. Em seu sentido mais pragmtico, a Revoluo Industrial significou a substituio da ferramenta pela mquina e contribuiu para consolidar o capitalismo como modo de produo dominante. Esse momento revolucionrio, de passagem da energia humana para a motriz, o ponto culminante de uma evoluo tecnolgica, social e econmica, que vinha se processando na Europa. Dentre as transformaes de que o homem j sofreu, talvez este perodo tenha sido um dos mais significativos na Histria, pois no foi marcado apenas por fenmenos ocorridos na esfera industrial. Foi tambm um perodo que transformou diretamente vrios setores da sociedade, causando uma revoluo no Urbanismo, na agricultura, nos meios sociais e de transporte, na sade e na Economia. O primeiro cenrio do fenmeno chamado industrialismo deu-se na Inglaterra, seguida por pases como a Frana e a Alemanha; posteriormente, atinge todo o continente Europeu, tendo papel fundamental na indstria txtil. Cabe referir agora que o processo de manufatura artesanal em meados do sculo XVIII, desenvolvido pelos camponeses na unidade habitacional, substitudo pelo tear mecnico e pela subdiviso do trabalho industrial. A diviso de tarefas, executada antes por uma s pessoa, alm de desenvolver a tcnica, aumentou enormemente o nmero de peas de produo. As transformaes da forma de produo, de acordo com o que afirma Benevolo, acarretaram a migrao da populao agrcola para onde existe fora motriz, para os

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estabelecimentos industriais21. Neste sentido, a procura de novas fontes de energia fez com que a manufatura txtil tradicional abandonasse a sua base predominantemente rural e concentrasse mo-de-obra e instalaes primeiramente junto aos cursos dgua e, depois, perto dos depsitos de carvo22. O aumento da produo e da procura pela diversificao de bens exigiu a concentrao das fbricas, principalmente, prximas de centros urbanos; como resultado, aumentou o nmero de mo de obra disponvel que pudesse atender ao aumento da demanda de consumo. De acordo com Goitia:No se deve perder de vista que um dos fatores importantes, exigido pelo novo sistema de produo em massa, era o fornecimento de trabalho humano, tratado quase como uma mercadoria nessa primeira poca do industrialismo, spera e seca. Era necessrio ter disposio um grande stock humano, quanto mais desprotegido e miservel melhor, visto que o seu trabalho podia ser contratado em condies mais favorveis para o patro23.

Mediante tais transformaes e com o crescimento do nmero de operrios, foi possvel adquirir um desenvolvimento qualitativo da produo e alcanou-se o progresso do industrialismo, atravs da busca de novos dispositivos e de melhorias substanciais na execuo de operaes mecnicas. A busca de matrias-primas e de formas de distribuio da produo ao mercado consumidor fez surgir novos meios de transporte para a distribuio dos produtos manufaturados. No entanto, o fator humano de produo no evolua juntamente com o desenvolvimento fabril, fator este que rebaixava as condies de trabalho a subumanas. O grande contingente de trabalhadores fez crescer o operariado. Para atender grande demanda de moradia dessa nova classe de trabalhadores vinda do campo, formaram-se bairros na periferia dos grandes centros24. De acordo com Choay: Finalmente, a suburbanizao assume uma importncia crescente: a indstria implanta-se nos arrabaldes, as classes mdia e operria deslocam-se para os subrbios e a cidade deixa de ser uma entidade espacial bem delimitada25. Nas cidades europias, os primeiros bairros possuam precrias condies para a vida humana, apresentando grande densidade demogrfica, intenso aproveitamento do terreno e ausncia de espaos livres e ptios.21 22

BENEVOLO, Leonardo. Histria da cidade. 3. ed. 2. reimp. So Paulo: Perspectiva, 2003. p. 551. Este processo se acelerou depois da descoberta da mquina a vapor por Watt em 1775. 23 GOITIA, Fernando Chueca. Breve Histria do Urbanismo. 7. ed. Lisboa: Editorial Presena, 2008. p. 147. 24 Criou-se, assim, um modelo de complexo urbano, em que a fbrica era seu ncleo principal formador juntamente a um conjunto de estabelecimentos que davam aporte vida dos moradores. 25 CHOAY, Franoise. O Urbanismo: utopias e realidades, uma antologia. 6. ed. So Paulo: Perspectiva, 2007. p. 4.

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Na primeira metade do sculo XIX, os problemas da cidade industrial aparecem de forma grave e intolervel aos seus cidados. Alm da insalubridade, o congestionamento do trfego passou a ameaar os moradores da cidade. Vale frisar, porm, que o mundo industrial no era composto apenas por proletrios: cidades como Londres tambm abrigavam camponeses desempregados que compunham o grande exrcito industrial de reserva e um nmero considervel de vivas e de rfos completava o quadro de misria dos centros urbanos. Havia tambm um nmero cada vez maior de intelectuais, cientistas, mdicos, advogados e arquitetos; ainda, a aristocracia decadente desfrutava de certa bancada no Parlamento. Para os habitantes dos ncleos urbanos, crescia a preocupao com a propagao de pestes, decorrentes da falta de salubridade das reas de alta densidade demogrfica. Algumas cidades, como Leeds, possuam um plano urbanstico segregacionista, j que os bairros operrios eram situados distantes do centro da cidade e, muitas vezes, sem acesso locomoo, pavimentao e ao saneamento bsico, formando-se deste modo verdadeiras ilhas isoladas no contexto urbano, como afirma Tagg:Nos anos 1850 foi-se impondo em Leeds uma segregao muito mais rgida, medida que as classes mdias escapam por cima da fumaa, nos subrbios do norte, deixando para trs de si os trabalhadores, nas zonas industriais que estavam atados pelo emprego ocasional, s largas horas de trabalho e a ausncia de transporte pblico barato26.

A especulao imobiliria reconhecia nessas habitaes uma forma de explorar ainda mais os trabalhadores atravs da construo de casas (de um ou de no mximo dois cmodos) para abrigar essa massa de miserveis. A ausncia de planejamento urbano, as precrias condies de higiene, a falta de ventilao e de luz solar nas estreitas ruelas na zona de Quarry Hill, bairro operrio da referida cidade, foram descritos na obra El Peso de la Representacin, de John Tagg, como um dos locais que mais gerou preocupao pblica quanto ao alto ndice de mortalidade, devido s pssimas condies de vida da classe proletria. Desta forma, o amontoamento das reas insalubres, as ms condies de trabalho, a fumaa (Figura 01) e os detritos das fbricas tornaram-se foco de proliferao de doenas, como, por exemplo, a clera, a tuberculose, o

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TAGG, John. El peso de la representacon. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1988. p. 170.

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tifo, e a disenteria27. Assim, salienta o jornal ingls Leeds Mercury, A cidade inteira poderia ter passado por um terremoto aos olhos de um arquiteto28. Alm do desenfreado fluxo da populao rural para as cidades, o interesse dos especuladores imobilirios em ter o mximo aproveitamento do lucro nos aluguis agravava a crise do alojamento, aumentando ainda as precrias habitaes para os trabalhadores. Estes fatores contriburam para que a crise da habitao no ficasse limitada classe operria, mas atingisse igualmente pequena burguesia. A respeito disso, Engels refere:Os bons alojamentos so to caros que absolutamente impossvel serem habitados pela grande maioria de operrios. O grande capital receia arriscar-se nas habitaes destinadas s classes trabalhadoras, que, levadas pela necessidade de residir, caem nas garras da especulao29.

Figura 01: Postcardcollecion of Maggie. Fumaa ao redor da indstria, no bairro operrio de Quarry Hill Fonte: Disponvel em: . Acesso: junho de 2008.

Os problemas e o perigo do alastramento de doenas causadas pelas ms condies das habitaes ameaavam as classes sociais mais favorecidas, porque as fbricas, segundo Goitia, desenvolveram-se no s em bairros isolados dos centros das cidades mas tambm nas prprias cidades antigas, as grandes capitais do perodo barroco, pois era nelas que precisamente se encontrava aquele excedente de populao miservel, to til ao fabricante em determinadas ocasies30.27

Estes problemas geraram uma srie de investigaes governamentais e privadas, que classificaram a cidade de Leeds na Inglaterra como a pior em qualidade de vida j vista at ento. 28 Jornal de Leeds que denunciava as ms condies pelas quais os operrios fabris vinham passando. Ver: TAGG, 2005, op. cit., p. 161. 29 ENGELS, Friedrich. A questo da habitao. Belo Horizonte: Aldeia Global, 1979. p. 25. 30 GOITIA, 1982, op. cit., p. 148.

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Os centros das cidades, onde estavam localizados os principais monumentos histricos, acabaram sendo abandonados pela populao mais abastada, visto que o seu sistema virio no atendia mais ao desenvolvimento dos meios de transporte e no comportava a nova exigncia de moradias mais amplas. Os grandes prdios pblicos, como conventos e palcios, foram abandonados para abrigar uma nova funo: passaram a ser divididos em pequenas moradias improvisadas, os jardins por trs das casas em fileira, os jardins maiores dos palcios, os hortos, foram ocupados por novas construes, casas e barraces industriais31. J na periferia industrial no era comum a homogeneidade funcional dos edifcios, encontrada na cidade antiga. O poder da barganha adquiriu vulto, atravs das representaes arquitetnicas do lote e da populao que nele habitava. A ocupao das reas caracterizou-se em partes, a saber, em bairros de luxo, construes de grande porte soltas no lote; em reas de indstria e bairros pobres, utilizando o mximo aproveitamento do solo. Os fenmenos da transio urbana como a multiplicao dos centros urbanos, a transformao das aldeias em cidades e das cidades em metrpoles. Entretanto ocasionaram boa parte do deslocamento da populao europia para outros continentes. Munford explica que a urbanizao aumentou quase em proporo direta industrializao32. Entretanto, os problemas e os questionamentos sobre a habitao no acompanharam o crescimento no mesmo ritmo, de tal forma que estas questes foram tema de inmeros debates e tentativas de solues por profissionais de vrias reas do conhecimento para sanar tal crise.

1.2 PROBLEMAS E SOLUES DA MORADIA OPERRIA

As transformaes, ocasionadas pelo desenvolvimento da Revoluo Industrial, fizeram surgir uma grande demanda de trabalhadores que precisaram trocar as suas casas no campo, a produo manual agrcola e artes, pelas grandes cidades em busca de novas oportunidades de emprego. Essas alteraes na forma de trabalho ocasionaram a troca do sistema de moradia do ex-campons, o abandono da propriedade rural, da casa e da horta. Na cidade, o novo trabalhador fabril se transforma de proprietrio a locatrio. Sobre isso, Engels afirma: 31 32

BENEVOLO, 2003, op. cit., p. 565. MUMFORD, Lewis. A cidade na Histria: suas origens, transformaes e perspectivas. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1982. p. 490.

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assim que o cultivo da horta e do campo pelos velhos teceles rurais, foi causa de to longa resistncia da tecelagem manual ao tear mecnico33. Com os avanos da indstria, o tear manual acabou trocado pelo tear mecnico, assim como na agricultura a explorao de grandes terras eliminou a pequena cultura; ainda, o trabalho individual e manual foi substitudo pela produo do trabalho coletivo. Dentro destas novas realidades, e sem opo de escolha, o produtor campons se aloja precariamente nas grandes cidades. Surgem inmeras descries sobre a precariedade das habitaes para abrigar o contingente da nova classe proletria, porm a unanimidade destes relatos se refere ao mximo aproveitamento do solo, pois onde quer que houvesse um pedacinho de espao entre as construes da poca precedente, continuou-se a construir e a remendar, at tirar de entre as casas a ltima polegada de terra livre ainda suscetvel de ser utilizada34. O caos representado em duas formas de morar para o operrio fabril: na primeira, nos edifcios do centro das cidades barrocas, constitudos em um ncleo j estruturado na Idade Mdia ou na Idade Moderna; na segunda, em casas enfileiradas na periferia ou em moradas sobrepostas em edifcios de muitos andares. A respeito disso, Benevolo comenta a moradia operria da grande cidade: a casa, por sua vez, pode ser melhor do que a cabana onde a mesma famlia morava no campo: os muros so de tijolos em vez de madeira, a cobertura de ardsia e no de palha, a moblia e os servios so primitivos ou no existem35. Apesar de a habitao urbana aparentemente apresentar uma evoluo no uso dos materiais de construo e na sua organizao tipolgica, ela perde em termos de ocupao, porque a casa rural, embora seja marcada pela simplicidade, era habitada por uma nica famlia e possua muito espao ao redor, onde os dejetos podiam ser descartados com facilidade. J nos novos bairros operrios, o esgoto corre a cu aberto, os animais e seus excrementos se acumulam em meio s pessoas. As casas so habitadas por vrias famlias onde no h distino entre cmodos para filhos e pais, pessoas seminuas dormem no mesmo ambiente, sem distino de idade ou sexo. Os stos, bem como os pores, so midos e insalubres, ocupados por vrios indivduos ainda mais pobres. Como descreve Goitia:

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ENGELS, 1979, op. cit., Prefcio XIII. Benevolo comenta a respeito das transformaes sofridas pela cidade industrial, utilizando para caracteriz-las a famosa descrio de Engels sobre o centro de Manchester em 1845. 35 BENEVOLO, 2003, op. cit., p. 566.

23 Ao princpio os bairros operrios, a que os anglo-saxes chamavam de slums (...) tomaram formas e caractersticas diferentes nos vrios pases, mas todos tinham em comum uma regularidade fria e atroz, e uma grande densidade no que se refere ao aproveitamento do terreno. Com o critrio do mais seco utilitarismo, tirava-se o maior partido do solo prescindindo-se de espaos livres e ptios36.

As imagens de Gustave Dor (Figuras 02 e 03) ilustram bem o estado de pobreza dos slums, como eram chamados os primeiros bairros operrios. O referido artista apresenta o amontoamento de casas e de pessoas em ambientes restritos, situao completamente oposta ao ambiente campestre. Na maioria dos casos, a ventilao das primeiras casas operrias nos bairros perifricos era realizada atravs de ptios quadrados, com pequenas variaes na sua forma, que se localizavam no meio dos quarteires e que ficavam dispostos entre duas ruas (Figura 04). O acesso rua era feito atravs de ruelas estreitas geralmente cobertas; ainda, a proximidade das casas, a fumaa caseira e a das fbricas agravavam a falta de ar e de ventilao das habitaes. Neste sentido Benevolo observa: O ar no pode absolutamente sair da; as prprias chamins das casas, enquanto o fogo mantido aceso, constituem a nica via de sada para o ar viciado dos ptios37.

Figura 02: Uma rua de um bairro pobre de Londres (Dudley Street). Gravura de Gustavo Dor de 1872 Fonte: BENEVOLO, Leonardo. Diseo de la ciudad - el ambiente de la Revolucon Industrial. 3. ed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1982. p. 17

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GOITIA, 1982, op. cit., p. 150. BENEVOLO, 2003, op. cit., p. 566.

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Figura 03: Os bairros pobres de Londres. Gravura de Gustavo Dor de 1872 Fonte: BENEVOLO, 1982, op. cit., p. 16.

A seguir, adotou-se um outro modo de construir casas destinadas aos trabalhadores: empresrios passaram a edificar conjunto de habitaes em srie para aluguel que compunham os primeiros bairros operrios ingleses. Desta maneira, Engels descreve as moradias operrias:Estas so ento dispostas da seguinte maneira: um lado constitudo pelas casas da primeira fileira, que so to afortunadas por ter uma porta posterior e um pequeno ptio, e pelas quais pedido um aluguel dos mais altos. Por trs do muro dos ptios destas casas h uma viela apertada, a rua secundria, que obstruda por construes nas duas extremidades e na qual desemboca lateralmente um estreito beco ou uma passagem coberta. As casas que do para este beco pagam um aluguel menor que os outros, geralmente so as mais desleixadas. Elas tm o muro posterior em comum com a terceira fileira de casas, que olham do lado oposto para a rua, e pagam um aluguel inferior ao da primeira fileira, mas superior ao da segunda38 (Figura 05).

Figura 04: Detalhe dos primeiros bairros de Manchester. Os vazios no meio da hachura eram os ptios internos Fonte: ENGELS, Friedrich. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. So Paulo: Global, 1985. p. 97.

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ENGELS, 1985, op. cit., p. 68.

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Figura 05: Detalhe do segundo exemplo de Bairro de Manchester Fonte: ENGELS, 1985, op. cit. p. 99

Para amenizar o desconforto pela falta de ar e de iluminao natural das habitaes dos primeiros bairros operrios de Manchester (Figura 04) foi proposto o modelo de construo da Figura 05, no qual as primeiras fileiras passaram a apresentar um sistema de ventilao mais eficaz, em relao ao antigo. Contudo a fileira central e a segunda fileira de casas eram mal iluminadas, mal ventiladas e sujas. Vale a pena referir que esse modelo se caracterizou principalmente pela hierarquizao do espao, da forma e da organizao do conjunto e pela distribuio das unidades ao longo de uma fita. Primeiramente se implantou nos novos focos populacionais em que a Revoluo Industrial se consolidava; todavia com o passar do tempo, esses agrupamentos habitacionais, embries das futuras vilas operrias, expandiram-se pelo mundo industrial. As reas centrais de Paris tambm sofrem crticas em relao ao intenso aglomerado de pessoas, tematizando questes relativas habitabilidade e higiene. Conforme descrio publicada em 1848 pouco antes das intervenes promovidas por Haussmann , sobre esta questo Chevalier relata:(...) quase todas as ruas nessa maravilhosa Paris no so nada mais do que ruelas sujas continuamente inundadas por guas ftidas. Uma multido esfarrapada e com aspecto doentio perpetuamente ocupa essas ruelas, com seus ps na sarjeta, seus narizes infectados, seus olhos revoltados com o mais repulsivo lixo em cada esquina. O trabalhador melhor pago mora nessas ruas. Essas so ruelas, tambm, em que duas pessoas no podem caminhar lado a lado, esgoto de esterco e lama, no qual o explorado e sucumbido habitante diariamente respira a morte. Essas so as ruas da velha Paris, ainda intactas. A clera castigou to dolorosamente no que passou que esperou que eles no estivessem mais l se ela voltasse; mas a maioria continua l, continuam no mesmo estado, e a clera talvez retorne39.

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CHEVALIER, Louis. Labouring classes and dangerous classes in Paris during the first half of the nineteenth century. Trad. de F. Jellinek. New Jersey: Princeton University Press, 1973. p. 155-156. Traduo livre da autora.

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Com a expanso das pestes que vinham atingindo principalmente a classe operria, ao favorecer deste modo a proliferao de doenas infecto-contagiosas e o risco de epidemia em toda Europa entre as dcadas de 1830 e 1840, foram necessrias reformas emergenciais de cunho sanitrio e a criao de uma legislao que tratasse da construo e da manuteno das densas conurbaes. Estas mudanas comeam a ser traadas a partir das crticas de dois grupos: de um lado, o grupo de inspirao humanitria, mdicos-sanitaristas, urbanistas e polticos, entre outros; por outro lado, os pensadores polticos, de espritos mais diversos e por vezes opostos, como Matthew Arnold e Fourier, Proudhon e Carlyle, Engels e Ruskin, que se reuniram para denunciar a higiene fsica deplorvel das grandes cidades industriais40. Atravs da anlise destas descries, formaram-se grupos para julgar medidas urbansticas e de sade, com a finalidade de sanar a grave situao de deteriorizao fsica e moral em que vivia o proletariado industrial:Publicaram sries de artigos em jornais e revistas, particularmente na Inglaterra, onde a situao mais aguda; sob a influncia deles que, nesse pas, sero nomeadas as clebres Comisses Reais de pesquisa sobre a higiene, cujos trabalhos, publicados sob forma de Relatrios ao Parlamento, forneceram uma soma insubstituvel de informaes sobre as grandes cidades dessa poca e contriburam para a criao da legislao inglesa do trabalho e da habitao41.

Paralelamente ao desenvolvimento da cidade liberal, surgiram modelos de cidades ideais, porm utpicas, como soluo para o problema da habitao, como o Falanstrio (Figura 06) de Charles Fourier (1772-1837) e a Icria de Victor Considrant (1808-1893). Foram, pois, propostas consideradas impossveis na primeira metade do sculo XIX e ultrapassadas na segunda metade do sculo XX. Na tentativa de solucionar os problemas acima citados, a indstria procurou diversas alternativas, entre elas a criao da fbrica modelo e a criao das vilas ferrovirias e operrias. Uma das maneiras encontradas para estes assentamentos foi a construo de edifcios denominados casa-quartel e fbrica-internato, na maioria das vezes com vrios andares de dormitrios e com um refeitrio comunitrio, considerados austeros pelos crticos.

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CHOAY, 2007, op. cit., p. 6. Ibid., p. 5.

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Figura 06: Falanstrio de Fourier. Vista do Palcio Social, apresentando complexo programa de atividades urbanas em edifcio. Fonte: Disponvel em: . Acesso: agosto de 2008.

Outras medidas para tentar solucionar o problema da habitao operria foi a proposta de reduo da jornada de trabalho, o melhoramento do habitat social e das mquinas. A prtica da escolaridade e a criao de maternais tambm se destacam como medidas importantes para sanar as ms condies de vida dos operrios. Vale ressaltar agora que a Sociedade para a Melhoria das Condies da Classe Operria patrocinou em 1844, em Londres, a construo dos primeiros apartamentos para operrios; ainda, entre 1848-1850, um prottipo de casa operria de dois andares e de quatro apartamentos para a Exposio Internacional de 1851. Todavia, o marco inicial da longa trajetria francesa na execuo de edificaes para abrigar a classe operria, foi a criao da Socit ds Ouvriers de Paris, com o propsito da construo das vilas operrias. A primeira realizao dessa comisso foi a Cit de la Rue Rochechouart, batizada de Cit Napolon. Em 1850, na Inglaterra, nas proximidades de Brandford, o industrial Titus Salt, produtor da indstria txtil de l, contratou os arquitetos Lockwood e Mawson para construir

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o primeiro conjunto residencial do mundo, com 820 casas em uma rea dominada pela fbrica42 (Figura 07). O projeto inovador foi fundado em 185143, visando propiciar qualidade de vida inigualvel para operrios, at o momento. O conjunto, alm da fbrica, abrigava casas e apartamentos de dois ou trs dormitrios e um complexo de prdios para atividades complementares vida do operrio junto fbrica, tais como hospitais, escolas, banheiros pblicos e, at mesmo, um parque.

Figura 07: esquerda, fbrica; e direita, a vila operria de saltaire Fonte: Disponvel em: . Acesso: agosto de 2008.

Alm das mudanas em relao ao sistema de saneamento, a nova cidade do sculo XIX conta com mudanas estruturais, conforme expe Benevolo:Para fins residenciais, os terrenos podem ser explorados de duas maneiras economicamente quase que equivalentes: com baixa densidade para as casas dispendiosas (as pequenas villas destinadas s classes abastadas) e com alta densidade para as casas mais econmicas (os edifcios de muitos andares na linha da rua, destinados s classes mais modestas) 44.

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PEVSNER, Nikolaus. Origens da Arquitetura moderna e do Design. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 194. 43 BENEVOLO, 2003, op. cit., p. 582. 44 Ibid., p. 576.

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Entretanto, especificamente, as habitaes para trabalhadores de Saltaire, foram uma soluo intermediria entre as casas burguesas da periferia e as habitaes sociais em fita, pois possuem um pequeno jardim (Figura 09), e a caixa de rua45 apresenta um distanciamento maior em relao s casas do lado oposto. As moradias possuem ventilao e insolao adequada, o seu tamanho e o nmero de quartos esto compatveis para uma famlia. Os edifcios tambm esto agrupados linearmente, porm dispostos em blocos (Figura 07), o que garante um espao confortvel entre estes.

Figura 08: Fachada frontal das casas de Saltaire Fonte: Disponvel em: . Acesso: agosto de 2008.

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Termo utilizado que se refere largura de toda a rua, incluindo a parte por onde passam os veculos e as caladas de ambos os lados.

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Figura 09: Rua central das casas da vila operria de Saltaire. Pequeno jardim e distanciamento entre as casas Fonte: Disponvel em: . Acesso: abril de 2008.

A iniciativa de seu empreendedor Titus Salt se adiantou Lei de 1875 e s aes saneadoras posteriores sua construo, principalmente no que diz respeito rigidez e ordem da regulao da disposio das residncias fabris (Figuras 10 e 11). Sobre a cronologia destes regulamentos, Howard comenta:Em 1848 aparece na Inglaterra a primeira lei reguladora introduzindo um mtodo de controle da construo das edificaes e das ruas. Esta lei complementada pela de 1851, 1858 e 1875, esta ltima dando poderes s autoridades locais para elaborarem regulamentos de controle de construo de casas e os espaos entre elas. So as leis sanitrias os primeiros instrumentos prticos do Urbanismo moderno. Como todas as leis urbansticas, iro produzir um novo espao urbano46.

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HOWARD, Ebenezer. Cidades-jardins de amanh . 2.ed. So Paulo: Hucitec, 2002. p. 24.

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Figura 10: Zoneamento da cidade de Saltaire. Habitaes e infra estrutura separadas da fbrica pela ferrovia Fonte: HOWARD, 2002, op. cit., p. 26

Figura 11: Houses By Law, Ilford, Londres Desenvolvimento em traado regular ditado pelas normas de 1875. Fonte: HOWARD, loc. cit .

Figura 12: Aldeia operria construda pela Artisans, Labourers and General Dwellings Co, em Shaftesbury Park, Londres. Iniciativa privada de construo para aliviar a falta de alojamento na cidade, visando ao lucro dos aluguis. Fonte: Disponvel em: . Acesso: abril de 2008

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Figura 13: Plantas baixas do primeiro pavimento de casas em fileira inglesa, conforme os regulamentos de 1875 Fonte: BENEVOLO, Leonardo. A cidade na Histria da Europa. Lisboa: Editorial Presena, 1995. p. 578

Figura 14: Plantas baixas do segundo pavimento de casas em fileira inglesa, conforme os regulamentos de 1875 Fonte: BENEVOLO, loc. cit.

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Empreendedores de outras indstrias comearam a refletir sobre a implantao de residncias junto s fbricas, fora ou dentro das cidades. Estes conjuntos habitacionais passaram, na maioria das vezes, a contar com um complexo de servios de apoio, em que os funcionrios da indstria no precisariam percorrer longas distncias. Sendo ou no um mecanismo de controle da empresa em relao ao empregado, a disseminao de vilas operrias se expande por vrios pases da Europa e do mundo. Algumas fbricas passam a se preocupar com a implantao de reas verdes no projeto, dentro do novo conceito que estava surgindo na virada para o sculo XX, a exemplo das vilas operrias na Itlia, particularmente, para o presente estudo, do Lanifcio Rossi de Schio.

1.3 A CIDADE INDUSTRIAL DE SCHIO: LANIFCIO ROSSI

A formao das cidades industriais na Itlia mais recente em relao ao restante da Europa, data da segunda metade do sculo XIX, porm aconteceu de maneira semelhante aos pases em que se iniciou a Revoluo Industrial. Assim, um grande contingente de trabalhadores do campo migrou como fora de trabalho para as indstrias txteis que se formavam, buscando trabalho nos perodos de inverno, quando a produo agrcola era invivel. A recm-formada Itlia passava por srias mudanas sociais e econmicas, o que ocasionou uma grande corrente migratria do campo para as cidades, principalmente no norte, em que os conflitos agrrios se tornavam mais graves. Como a regio de Schio, no Vneto, montanhosa e possui invernos muito rigorosos, dificultava-se a produo agrcola, racionando a alimentao nos perodos de entressafra. Os moradores desta regio rural precisaram sempre contar com um meio secundrio de produo, a saber, a fiao txtil caseira (atividade j tradicional na regio, desde a dominao romana), reconhecida como um trabalho feminino obrigatrio para as horas de folga invernais. Atravs do desenvolvimento desta cultura, a regio tornou-se uma grande produtora de l e a populao local pde obter um novo espao na Economia regional, atravs do emprego operrio temporrio. Um intenso esforo para a fixao da mo de obra foi desenvolvido: as indstrias valeram-se de certas tticas que incentivassem a classe trabalhadora a permanecer durante

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todo ano no local de trabalho, e no s nos perodo de estiagem da produo agrcola. Entre estas tticas, segundo Verona, estavam (...) a melhoria nos salrios dos mais assduos; organizao de jogos e festas, acompanhados de refeies gratuitas aos operrios e a criao de um horrio de trabalho semelhante zona rural, mais adequado s variaes sazonais do clima local47. Inicialmente no havia projetos adequados para alojar essa grande leva de trabalhadores que, movidos pelos benefcios oferecidos pela nova indstria e pelo medo de perder o emprego temporrio, voltando s condies vividas no campo, deslocavam-se para as regies da periferia das indstrias. Sobre as caractersticas das casas e dos bairros superlotados que se formaram para alojar os operrios, Verona expe:Vrias famlias, dos avs aos netos e at mesmo agregados, moravam numa nica residncia. A cidade praticamente se mantivera ainda dentro do permetro medieval e continuava a receber, num fluxo regular, novos contingentes de fora de trabalho, sobretudo na dcada de 1870. As construes eram feitas de pedra e argamassa. Os cmodos eram pequenos. As paredes eram largas e as janelas estreitas para evitar a penetrao do vento e do frio. A umidade e o cheiro correspondente eram grandes e a temperatura invernal em seu interior era bastante baixa. Era necessrio manter-se o fogo aceso ou lanar mo do fogareiro brasa. A gua para consumo devia ser buscada nas bicas e bebedouros pblicos. No havia qualquer instalao sanitria interna. At a era rossiana48 no houve nenhum investimento, por parte do Estado ou das empresas, na construo de moradias operrias. Isso significa que os trabalhadores vindos de fora tiveram que se submeter s condies insalubres de moradia que lhes eram oferecidas49.

Dentro do contexto capitalista industrial, surgem as j conhecidas medidas para melhorar as condies materiais dos trabalhadores, como a formao das cidades industriais, as chamadas vilas operrias, em franco desenvolvimento em outros pases da Europa. Na pequena cidade industrial de Schio, ao norte da provncia italiana de Vicenza, regio do Vneto, nasce a primeira iniciativa neste sentido. Nesta cidade as iniciativas dos empresrios da segunda metade do sculo XIX mudaram definitivamente a paisagem italiana e marcaram o incio de uma configurao

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VERONA, Antnio Folquito. A indstria txtil de Schio e a emigrao operria: a quebra do contrato social pelos operrios do Lanifcio Rossi, de Schio (Itlia), numa leitura crtica dos fatos ocorridos entre 1873 e 1891. In: SULIANI, Antnio (org.). Etnias e carisma: poliantia em homenagem a Rovlio Costa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 142. 48 O termo rossiano vem do sobrenome Rossi, que diz respeito ao legado do fundador do Lanifcio Rossi em Schio. 49 VERONA, 2001, op. cit., p. 149.

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urbana e social que surgir a partir destas novas formaes; dito de outro modo, A nova face industrial em substituio quela rural50.

SCHIO

Figuras 15 e 16: Localizao de Schio no mapa do Vneto, Itlia Fonte: Grande Atlas Universal Ilustrado Readers Digest. Trad. de Helena Mollo. Rio de Janeiro: Readers Digest Brasil, 1999

O Lanifcio Rossi, de Schio, foi fundado em 1817 por Francesco Rossi, como pequena atividade artesanal. Em 1849, a administrao passou ao filho Alessandro Rossi, que o transformou em uma das principais indstrias nacionais, referncia em torno da qual giravam50

TRAVI, Elisa Mariani; TRAVI, Leonardo Mariani. Il paesaggio italiano della Rivoluzione Industriale: Crespi dAdda e Schio. Bari: Ddalo Libri; Universale di Architettura Diretta da Bruno Zavi, 1979. p. 5. Traduo livre da autora.

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todas as atividades econmicas da regio. Em 1861, j com oitocentos operrios foi considerada a maior indstria da Pennsula Itlica. Dentro do pensamento rossiano, havia duas preocupaes que impulsionaram as atitudes em direo criao da vila operria e s suas instituies de aporte: a habitabilidade e a moralidade, que no estavam compatveis com a idia inicial de alocar a nova populao proveniente do xodo rural na malha residencial da cidade de Schio. Para resolver a questo habitacional da primeira demanda dos trabalhadores vindos das outras regies, Alessandro Rossi traa um plano global de poltica socioeconmica. Na primeira fase de sua reestruturao, constri um edifcio residencial para os seus trabalhadores em uma rea adjacente fbrica. Essa nova edificao passa a ser chamada de Palazzone (Figura 17) e foi inspirada no modelo social do falanstrio. Apesar do mnimo custo da construo e da mxima utilizao do espao habitvel, os novos moradores oriundos do campo no se adaptaram a esta tipologia.

Figura 17: Palazzonne, edifcio de habitaes coletivas, demolido em 1965 Fonte: Disponvel em: . Acesso: dezembro, 2008

Atravs da observao dos modelos de cidades industriais inglesas, francesas e belgas, considerados negativos por Alessandro Rossi, este ltimo criou o seu prprio modelo. Em

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1862 constri a Fbbrica Alta51 (Figura 19) e depois de outros investimentos para o seu desenvolvimento. Em 1872 o arquiteto Antonio Caregaro Negrin, que j havia projetado a Igreja de Santo Antonio e o Teatro Jacquard (Figuras 20 e 21), prdios estes que faziam parte do complexo fabril, foi contratado para projetar o quarteiro das casas operrias, com um complexo de servios52 de apoio aos moradores (Figura 22).

Figura 18: Localizao de Schio no mapa do Vneto, na Itlia. Em preto, a malha urbana existente; em rosa, acima, a fbrica; abaixo, o Novo Quarteiro; em roxo, direita, o Palazzone Fonte: Disponvel em: . Acesso: dezembro de 2008

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O ncleo da Fbrica Alta e o seu edifcio industrial anexo datam de 1862; portanto, pr-existente ao novo quarteiro. Representou a partir de sua construo um marco importante do desenvolvimento do Lanifcio Rossi. O edifcio considerado atualmente um Monumento Nacional da Itlia. 52 Faziam parte deste complexo, alm do teatro e da igreja, a estrada e a estao frrea, o lavatrio pblico, a taberna, o jardim de infncia e a escola elementar masculina e feminina, entre outros.

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Figuras 19: Fabbrica Alta, construda toda em tijolos dentro da linguagem da Arquitetura Industrial Fonte: Disponvel em: . Acesso: janeiro de 2010

Figura 21: Projeto elaborado para o Teatro Jacquard, corte transversal da edificao. Fonte: Disponvel em: . Acesso: julho de 2009

Figura 20: Teatro Jacquard em meio rea paisagstica Fonte: Disponvel em: . Acesso: julho de 2009

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Figura 22: Edifcio do jardim de infncia do Novo Quarteiro operrio de Schio, em estilo neoclssico. Era uma das edificaes que fazia parte do complexo fabril. Fonte: Disponvel em: . Acesso: maio de 2009

Vale referir tambm que foram realizados, pelo menos, trs projetos. O primeiro e mais criativo foi executado parcialmente, sendo concebido para atender a quatro categorias de casas. Cada categoria foi classificada pela hierarquia dos cargos que os trabalhadores ocupavam (Figuras 23 e 24). Esta diferenciao se deu atravs de algumas variaes na tipologia da casa isolada, pela largura e pela importncia da rua onde se situaram e pela proximidade da fbrica. Dentro do novo ideal de vila operria planejada atravs dos novos modelos urbansticos, Negrin, neste primeiro projeto, teve a preocupao com a valorizao dos espaos livres e com o tecido urbano irregular: O projeto se resume, em definitivo, em uma grande rea verde, na qual os lotes so delimitados pelas ruas e avenidas de desenhos sinuosos53. O Novo Quarteiro , ento, idealizado dentro dos princpios da cidade-jardim, em que (...) a arborizao e a vegetao substituem as relaes do edificado com o espao urbano. A caracterizao cuidada do espao coletivo substituda pela qualificao do espao

53

TRAVI, 1979, op. cit., p. 25. Traduo livre da autora.

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privado54 (Figura 24). Esta afirmativa tambm comprovada quando Fontana observa que: O projeto de Negrin impacta de sbito pela imediata evocao da cidade jardim55. A evocao deste modelo de cidade refere-se apenas questo do desenho urbano e da implantao dos edifcios no stio, no levando em considerao os aspectos sociais e econmicos que caracterizam este tipo de proposta. O projeto idealizado foge completamente do traado linear e das casas dispostas em fita, como havia sido construda a maior parte das vilas operrias construdas at ento. O edifcio vai situar-se no meio do lote, individualizado e envolvido por jardins, deixando de contatar diretamente com a rua56.

Figura 23: Planimetria geral, conforme projeto original de Negrin. Fabbrica Alta, na parte superior da figura. Em preto, as edificaes da cidade antiga Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 63

Figura 24: Detalhe da tendncia curvilnea do desenho urbano original Fonte: TRAVI, loc. cit.

54

GARCIA LAMAS, Jos Manuel Ressano. Morfologia urbana e desenho da cidade. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004. p. 206. 55 FONTANA, Giovanni Luigi. Schio e Alessandro Rossi: impreenditorialit, poltica, cultura e paesaggi sociali del Secondo Ottocento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1985. p. 341. Traduo livre da autora. 56 De acordo com as idias de Ebenezer Howard, o problema que lhe parecia essencial era o de descobrir um sistema urbano que permitisse viver perto da indstria de uma maneira saudvel (...) na Itlia o seu pensamento tambm usado parcialmente, ligado basicamente ao uso do verde e ao desenho sinuoso de suas vias. Ver: HOWARD, 2002, op. cit., p. 82.

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No primeiro projeto de 1872, as casas eram destinadas aos funcionrios de acordo com a hierarquia do posto que ocupassem na empresa. Os profissionais mais graduados ficariam mais perto da fbrica, e ao longo da via Maraschin, principal rua do quarteiro, podendo melhor fiscalizar os demais. O entorno da praa sul seria contemplado por uma rea verde e por outra de servios. A praa central constituiria no apenas o centro do quarteiro mas tambm recriaria o tradicional ponto de encontro e recreao. A praa norte seria o cruzamento das vias principais, abrindo perspectiva entrada do Lanifcio Rossi. O plo principal de servios localizar-se-ia em torno da praa central apesar de haver outros pontos de venda e de lazer (Figura 26): O ncleo compreende restaurante, cervejaria, caf-leitura, ginstica e venda de comestveis no total de doze servios no quarteiro, dentre os servios de escala urbana so banho e lavanderia, jardim de infncia e teatro57. O quarteiro havia, portanto, sido proposto dentro da ideologia de uma verdadeira cidade auto suficiente, em que o trabalhador no precisasse se deslocar para encontrar os bens e os servios dos quais precisasse.

Figura 25: Planta esquemtica das habitaes por classe Fonte: FONTANA, 1985, op. cit., p. 34257

FONTANA, 1985, op. cit., p. 345. Traduo livre da autora.

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Figura 26: Localizao dos servios e dos verdes pblicos Fonte: FONTANA, 1985, op. cit., p. 345

Ainda em 1872 so executadas algumas casas do projeto original na Via Tessitori e via Maraschin, comprovando a vontade de Alessandro Rossi em construir dentro da primeira proposta apresentada por Negrin; ainda, fica claro que houve alteraes depois do incio da obra. Entre as causas para a alterao do projeto, encontra-se o alto custo das habitaes que seriam de grandes dimenses e que ficariam isoladas no lote. Em 1873 o quarteiro passa a ser gerenciado pela sociedade annima de operrios e, para estes, o alto custo das casas exclua a possibilidade de compra. Neste mesmo ano, Negrin inicia uma srie de projetos que seriam executados por encomenda de Alessandro Rossi, observando a ideologia de um traado urbano mais ortogonal. Verona descreve a forma das habitaes do novo projeto:Aos primeiros foram destinadas as casas, construdas como verdadeiros palacetes rodeados por ptios e jardins, segundo o bom gosto da poca. Aos operrios, porm, foram construdas casas em srie, parede-meia umas s outras, em terrenos bem menores em comparao aos primeiros; e com dimenses bem mais modestas58.

58

VERONA, 2001, op. cit., p. 162.

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Figura 27: Planta do projeto construda at 1876. possvel notar a construo de casas em fita ao lado direito da primeira figura. H, ainda, alguns palacetes na parte superior, prximos entrada da fbrica. Fonte: FONTANA, 1985, op. cit., p. 349

Figura 28: Projeto realizado Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 132

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Cabe ressaltar que os aspectos formais do primeiro projeto ficam bem definidos na fase inicial de sua execuo. Assim, o eixo hierrquico marcado pela praa circular e pelo caminho arborizado simetricamente leva entrada monumental da fbrica. Os palacetes (Figura 29) foram projetados com plantas distintas, porm enquadravamse dentro de uma vertente vitoriana, tanto no que diz respeito linguagem formal quanto implantao no terreno e ao trabalho rico nos elementos decorativos de fachada. Os jardins que circundam estas residncias, caractersticos das vilas da alta burguesia rural europia, ainda mantm um traado orgnico que remete idia inicial de Negrin. As casas apresentavam plantas e formas diferenciadas, no entanto todas tinham em comum uma tima ventilao e insolao; alm disso, juntas, formavam um elemento compositivo formal para a abertura de perspectiva para a fbrica.

Figura 29: Disposio das casas isoladas em seus jardins e a marcao do eixo de entrada ao Lanifcio Rossi Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 64

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Figura 30: Uma das casas de primeira classe, destinada aos gestores e aos tcnicos Fonte: Disponvel em: . Acesso: maio de 2009

As casas de primeira classe no eram todas iguais: havia, neste sentido, variaes de projeto (Figura 30)59. Localizadas na maior via do quarteiro, a Pietro Maraschin, eram destinadas aos gestores e aos tcnicos estrangeiros que vinham para operar as mquinas. Sua planta apresentava grandes salas, destinadas vida social local. Dispunham, tambm, de amplos quartos de dormir e banheiros com acesso na parte interna da casa. As fachadas, alm da grande ornamentao, apresentavam varandas, mansardas, grandes janelas, para enfatizar a comunicao entre o ambiente interno e a natureza externa. Os jardins eram adornados com plantas ornamentais, lagos artificiais e estufas, pavilhes e cabanas construdos com tcnicas e com materiais tanto tradicionais como de acordo com as novidades tecnolgicas da poca60.

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Na bibliografia sobre a arquitetura do bairro operrio do Lanifcio Rossi, as casas para funcionrios aparecem classificadas por classes, cujo sistema de nomenclatura foi mantido neste trabalho. Tambm importante mencionar que, dentro de uma classe pode haver mais de uma tipologia arquitetnica. 60 Tecnologia do uso de materiais como zinco, cobre, ferro fundido e tambm o uso do vidro e de pedra mole.

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Figura 31: Rica ornamentao da fachada das casas de primeira classe. Elementos renascentistas como o eixo central, com arcadas romnicas, marcando a frente da casa, e a marcao dos pavimentos atravs de diferenciao das esquadrias em cada andar. Fonte: Disponvel em: . Acesso: maio de 2009

As casas de segunda e de terceira classes (Figura 32) apresentam-se de forma um tanto mais modesta com relao da primeira classe no que diz respeito s ornamentaes e planta interna. A decorao externa era feita atravs de elementos rsticos na fachada, a saber, listras horizontais na circunferncia da alvenaria ou o uso de materiais locais, como pedras naturais nos cantos da casa. Nas outras variaes se davam nas solues de plantas e na volumetria, nas reentrncias e nas salincias de volumes com sacadas ou varandas, e nas diferentes alturas ou inclinaes de telhados, lembrando o estilo rstico local. As casas de terceira classe (Figura 33) no primeiro projeto se apresentaram de forma isolada no terreno, com propores bem maiores do que as habitaes operrias do incio da Revoluo Industrial, em outros pases da Europa. Existia a mesma preocupao com o tratamento de fachadas como nas habitaes de primeira e de segunda classe; ainda, a planta era dividida em dois pavimentos, mais o sto e o poro.

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Figura 32: Projeto de casas de segunda e de terceira classes Fonte: Disponvel em: . >. Acesso: maio de 2009

Figura 33: Projeto de casa de terceira classe. A marcao da hierarquia de cada pavimento continua presente. Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 98

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Com as alteraes dos projetos, a maioria das habitaes (de segunda e de terceira classes) foi construda com um tanto de simplicidade, no que concerne primeira proposta apresentada pelo arquiteto Negrin, principalmente no que se refere aos adornos das fachadas. As casas para os operrios aparecem na forma geminada em duas residncias ou em fita, em que o mesmo edifcio passa a abrigar at oito famlias. Entretanto a preocupao por parte de Alessandro Rossi manter certa diferenciao e qualidade das moradias, mesmo que no estejam mais isoladas no lote. Conforme carta a outro industrial, ele prope o seu novo modelo urbano:(...) casas econmicas portanto, e no deves chamar de casas operrias. E por isso no deve faz-las uniformes, como em Moulhouse. Como boa mxima evita qualquer aparncia dos falanstrios; e evita quanto antes a uniformidade da classe do inquilino...61.

As casas62 em fita ou geminadas (Figuras 35 e 36), embora partilhassem das paredes laterais, tinham certa privacidade, pois possuam entrada individual atravs de um porto que dava acesso a um jardim frontal que, por sua vez, separava a rua da residncia.

Figura 34: Grupo de casas para operrios Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 7161 62

TRAVI, 1979, op. cit., p. 29. Traduo livre da autora. Os projetos de alguns exemplos de casas em fita, sero apresentados no quarto captulo durante a anlise comparativa.

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Figura 35: Casas em fita, porm com tipologia externa diferenciada Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 70

Figura 36: Casas geminadas com jardim frontal Fonte: TRAVI, 1979, op. cit., Anexo 69

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Cabe frisar que a simplificao deste ltimo tipo de projeto no tinha em vista somente a otimizao do terreno mas tambm a economia de material de construo para as fachadas laterais, ao reduzir elementos de ornamentao e de esquadrias e, principalmente, ao apresentar fcil soluo de telhado, que passou a ser nico e a ter apenas duas guas. As casas eram de propriedade do Lanifcio Rossi; contudo, com o tempo, eram vendidas por um preo inferior ao de mercado aos funcionrios da fbrica. Outras casas foram arrendadas, a fim de acomodar os empregados e a fim de atrair os tcnicos estrangeiros que eram contratados para atualizar a tecnologia das novas mquinas. Estes assinavam um contrato no qual assumiam o compromisso de no alterar e nem de fazer obras nas habitaes. Sem dvida, Alessandro Rossi63 criou um programa urbano ambicioso e de vanguarda64. Sobre isso, Fontana declara:(...) aquele na condio mxima da ideologia industrial italiana da segunda metade do sculo XIX, realizador de um modelo da grande indstria capitalista e de sociedades industriais bem definidas, produto de uma cultura econmica mista, de derivao liberalista e ao mesmo tempo filantrpica, deriva sobretudo a sua especialidade de certa conotao scio-antropolgica daquela regio italiana65.

O perodo de construo do projeto de Negrin coincidiu com a transformao da tecelagem em Sociedade Annima, presidida por Alessandro Rossi. Tambm, com a primeira greve que ocorreu em 21 de maro de 1873, devido drstica diminuio do salrio pela ocasio da compra do novo chassi mecnico, o Lanerossi passa a viver uma grande crise e nem todos os trabalhadores puderam usufruir os benefcios do Novo Quarteiro. Com a sucesso de greves que passaram a ocorrer, um contingente de trabalhadores da Tecelagem Rossi emigra para outros continentes, em busca de melhores oportunidades de emprego.

63

Fontana descreve sobre a complexa personalidade do Rossi: (...) empreendedor, poltico, intelectual, com uma extraordinria ateno ao desenvolvimento da economia fortemente capitalista (...) que combinava, preocupao em conservar e conter o efeito da modernizao industrial, com a obra de cunho social. Ver: FONTANA, 1985, op. cit., apresentao. Traduo livre da autora. 64 Ambicioso, no sentido de estar criando um quarteiro operrio dentro das novas idias da cidade jardim. De acordo com Ebenezer Howard, os conceitos da cidade-jardim foram postos em prtica pela primeira vez na criao da cidade de Letchwoeth, projetada por Raymond Unwin (1863-1940) e Barry Parker (1867-1947) na primeira dcada do sculo XX. Ver: HOWARD, 2002, op. cit., p. 47. 65 FONTANA, 1985, op. cit., apresentao. Traduo livre da autora.

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CAPTULO 2

FORMAO DE GALPOLIS

2.1 MOVIMENTO OPERRIO NO VNETO E EMIGRAO PARA O BRASIL

A crise agrcola rural e os protestos operrios durante o desenvolvimento capitalista industrial esto intrinsecamente ligados aos fatores de emigrao desta regio da Itlia entre a segunda metade do sculo XIX e as primeiras dcadas do XX. Os movimentos migratrios internos e externos no Vneto tomaram vrias direes e assumiram caractersticas e motivaes por vezes diferenciadas; todavia, a procura de maiores oportunidades de trabalho e a busca por melhor qualidade de vida assumiu papel de fundamental importncia em ambos os casos. Os deslocamentos em massa dos camponeses em direo s cidades e o primeiro perodo das emigraes transocenicas no Vneto foram ocasionados primeiramente pela crise agrria gerando a escassez de alimentos e a exploso demogrfica. Alm dos motivos de conjunturas climtico-ambientais66, Franzina comenta que preciso referir-se a condies higinico-sanitaristas, que em reas e perodos circunscritos se juntam as razes mais profundas do xodo como ocorreu, em 1886, com a epidemia de clera67. Para agravar estes fatores, os altos impostos, a concorrncia no preo do trigo, o atraso tecnolgico e em algumas reas a transformao capitalista aceleraram o processo de transferncia de fora de trabalho por parte dos pequenos e dos mdios proprietrios rurais, que passaram a reivindicar melhores condies de trabalho. Com a expanso do desenvolvimento industrial txtil nesta rea da Itlia, que teve um desenvolvimento tardio em relao ao restante da Europa, boa parte da populao rural66

Inserem-se no perodo entre 1877 e 1891 chuvas de granizo, secas, inundaes, ms colheitas, desmoronamentos, avalanches e terremotos, entre outras eventos climticos que assolaram as reas rurais do Vneto. 67 Problema que atingiu alm do Vneto outras partes da Itlia. Ver: FRANZINA, Emilio. A grande emigrao: o xodo dos italianos do Vneto para o Brasil. Campinas: Unicamp, 2006. p. 75.

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migrou para as indstrias que estavam se formando; como o trabalho agrcola rural vinha quase sempre associado ao da indstria domstica de tecidos, a proletarizao dos camponeses foi vivel na regio de Schio, pois ali vinha se formando um dos maiores suportes industriais de tecidos e de manufaturas da Itlia. Assim sendo, foi possvel absorver parte da mo de obra excedente do campo. Conforme comenta Verona: (...) Schio passou a receber tambm os trabalhadores agrcolas provenientes das grandes propriedades da vasta plancie vneta, que compreende a prpria provncia de Vicenza, na qual se inserem tambm as provncias de Pdua, Verona e Treviso68. A regio caracterizou-se por ser um misto de rea rural e urbana; portanto, as indstrias ficavam prximas ao campo. Por causa disso, o local no deixava de ser um plo captador de emprego, fazendo com que o campons dependesse das fbricas, j que a indstria era uma instituio da prpria sociedade rural. Franzina descreve as caractersticas da fora de trabalho local pela: (...) figura tipicamente vneta do operrio campons, empregado na fbrica, mas ideologicamente ligado terra69. Embora a mo de obra fosse considerada ordenada e submissa , essa condio no era garantia para que no houvesse movimentos de reivindicao tanto no campo quanto na indstria. Deste modo, para expandir o desenvolvimento da indstria moderna nesta tradicional e conservadora rea rural, foi necessria a juno entre a classe patronal agrcola, os homens da burguesia industrial e o clero catlico este ltimo com papel de conter os movimentos socialistas que comeavam a surgir. De acordo com Franzina, em 1873, comeou a propaganda socialista no Vneto, apesar de naquela poca o movimento ser quase inocente70. Tal tendncia sempre foi combatida pelo forte movimento catlico formado por um clero muito ligado s massas que condenava os erros cometidos pelos socialistas, coibindo qualquer prtica com fundo revolucionrio. Vale acrescentar que expoentes do cenrio poltico vneto, entre os quais se inclua o Senador Alessandro Rossi que tambm era proprietrio do Lanifcio Rossi de Schio contribuam com a Igreja neste sentido. Apesar da oposio aos movimentos trabalhistas, o Lanifcio Rossi enfrentou no mesmo ano uma greve, que coincidiu com a grande crise mundial e com o perodo da Grande Depresso; no entanto, as reivindicaes por melhores salrios e por melhores condies de trabalho foram amenizadas, em parte, com as medidas sociais. Entre estas, houve a criao e o

68 69

VERONA, 2001, op. cit., p. 139. FRANZINA, 2006, op. cit., p. 364. 70 Id., Il Veneto Ribelle: proteste sociali localismo popolare e sindicalizzazione. Verona: Gaspari Editore, 2001. p. 27. Traduo livre da autora.

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projeto do complexo da instituio operria71, ou seja, com o fornecimento por parte da fbrica de habitaes para os operrios. Outra soluo surgiu como meio de resolver os problemas da alta densidade demogrfica no campo e as revoltas dos trabalhadores na indstria: a propaganda emigracionista que expunha atravs dos atrativos da vida alm-mar o incentivo busca de terra e de trabalho em outros continentes. Franzina expe como a forma de pensamento dos industriais era apresentada ao povo vneto: O andamento da nossa indstria e portanto do nosso ganho ameaado continuamente pelas greves; preciso emigrar, longe dos centros populosos, para cidades onde a mo de obra no especializada ainda virgem e conveniente72. Desta maneira, desenvolveu-se o programa emigratrio. Apesar de o franco desenvolvimento industrial no Vneto ter-se dado de forma tardia e particular em relao ao restante da Europa, tal avano acabou sendo, mesmo que indiretamente, uma das portas de sada do continente como modo de resolver o problema da mo de obra excedente:Para as populaes rurais, cuja demanda de trabalho excede muito a oferta de mercado, principalmente no perodo entre 1870-1913, a emigrao se mostra fortssima, facilitada pela crescente economia, freqncia dos transportes e da disponibilidade de grandes espaos; alm dos recursos oferecidos nos novos mundos a povoar73.

Vale referir que o programa de emigrao foi considerado pelo Partido Socialista vneto como um recurso utilizado pelos banqueiros e pelos agiotas como meio de explorao aos operrios e aos camponeses. Entretanto, as idias do Partido acabaram perdendo a fora quando, a fim de solucionar o problema, os socialistas tomaram decises apenas no que se refere questo assistencial para melhorar as condies da classe operria, como, por exemplo, a criao de sociedades cooperativas e de associaes de trabalho e a elaborao de contratos que ofereciam aperfeioamento de mo-de-obra do trabalho rural, entre outras. Franzina ainda ressalta que:A opo protecionista feita pelos adversrios, principalmente o clero, empurrava os socialistas do fim do sculo, no somente os vnetos, em direo a uma unio pouco natural, difcil e contraditria com os liberais, reforando, portanto, como

71

FRANZINA. La transizione dolce. Storie del Veneto tra 800 e 900.Verona: Cierri Edizioni, 1990. p. 30. Traduo livre da autora. 72 Id., 2006, op. cit., p. 364. 73 BEVILACQUA, Piero; DE CLEMENTE, Andreina; FRANZINA, Emilio (orgs.). Storia DellEmigrazione