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UNISAL Maria Aparecida Corrêa da Rocha Ferreira de Assis Moura Semeando a Alteridade na Trama das Relações: Possibilidades Educativas Dialógicas com as Crianças Autistas. Americana 2014

UNISAL Maria Aparecida Corrêa da Rocha Ferreira de Assis …...Parábola do Semeador “Eis que o semeador saiu para semear. E ao semear, uma parte da semente caiu à beira do caminho

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UNISAL

Maria Aparecida Corrêa da Rocha Ferreira de Assis Moura

Semeando a Alteridade na Trama das Relações:

Possibilidades Educativas Dialógicas com as Crianças Autistas.

Americana

2014

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Maria Aparecida Corrêa da Rocha Ferreira de Assis Moura

Semeando a Alteridade na Trama das Relações:

Possibilidades Educativas Dialógicas com as Crianças Autistas.

Dissertação apresentada como exigência

parcial para obtenção do título de Mestre em

Educação Sociocomunitária, no Centro

Universitário Salesiano de São Paulo, sob a

Orientação do Prof. Dr. Severino Antônio

Moreira Barbosa.

Americana

2014

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Maria Aparecida Corrêa da Rocha Ferreira de Assis Moura

Semeando a Alteridade na Trama das Relações: Possibilidades Educativas

Dialógicas com as Crianças Autistas

Dissertação apresentada como

exigência parcial para obtenção do

grau de Mestre em Educação no

Centro Universitário Salesiano de São

Paulo - UNISAL.

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 10/12/2014, pela

comissão julgadora:

Banca examinadora

Profa. Dra.: Regiane Aparecida Rossi Hilkner

Instituição: Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL

Assinatura: _____________________________________________________

Profa. Dra.: Valéria Oliveira de Vasconcelos

Instituição: Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL

Assinatura: _____________________________________________________

Prof. Dr.: Severino Antônio Moreira Barbosa (Orientador)

Instituição: Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL

Assinatura: _____________________________________________________

Americana

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À Mamãe e

ao Papai (in memoriam)

Que me fizeram Ser.

Que me deixam ser.

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Agradecimento: reparte-se o fruto

As ideias que deixo aqui, observações e análises que instruí e que

generosamente são ouvidas e lidas, acompanham-me há muito.

À Profa. Dra. Regiane Aparecida Rossi Hilkner e à Profa. Dra. Valéria Oliveira

de Vasconcelos, honrosas participantes desta banca de Mestrado em Educação a

imensa gratidão.

O carinho e agradecimento especial ao Professor Dr. Severino Antônio Moreira

Barbosa, orientador da pesquisa que jamais, em momento algum, deixou-a

esmorecer. Nos momentos de maiores conflitos que durante esta pesquisa travei junto

a mim mesma, junto à palavra que tivesse sido minimamente desanimadora, ou

mesmo em relação à própria cultura que vai na contramão dela, sempre ouvia e sentia

como uma brisa as palavras que me despertavam: isto está dentro de você.

Se pareci muito poética perante essa problemática em mundo, às vezes, tão

duro e individualista, peço que me perdoem, mas que esse perdão venha

acompanhado de entendimento. “A poesia é abraço de palavras” e tem força

avassaladora. Força que se assenta na educação da sensibilidade, no grito silencioso,

nas vozes que da linha, às vezes, estabelecem-se nas entrelinhas, tal o respeito, tal

a gentileza com que querem nos atingir neste devir.

Muito do que falamos aqui está muito perto de nós. Convivemos, partilhamos

de palavras, dizeres, atitudes injustas, por vezes inaceitáveis nesta interação do “eu”

educador e “eu” criança autista, e quando percebemos, às vezes nos vemos em

conluio com elas. Mas, a indignação e perturbação, felizmente, é maior do que a

“naturalização” desta realidade.

Sabemos que a terra do nosso cultivo para a semeadura, - a educação - está

sedenta, ressecada, com muitas pedras, espinhos e como nos é sabido, vamos

criando resistência, “anticorpos”, couraça que apesar da rigidez, é como areia do

deserto: fina, quente e quase sem fim.

Mas este campo educacional, o Centro Salesiano Universitário de São Paulo,

UNISAL, aparece nesse cenário como um oásis. E posso garantir que não estou

exagerando. Aqui vi e vivi procedimentos que preparam a terra da educação

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procurando e envidando esforços para a retirada dos cascalhos, espinhos ou qualquer

outro impedimento para que sempre venha brotar a humanização.

Partindo da premissa de que somos todos pessoas, homens e mulheres,

sujeitos de nossa história, tomando ciência de nosso papel nesta seara, com

esperança embrenho-me na semeadura e sinto a alteridade do outro. E, este eu que

é o seu outro, é outro que foi acolhido, como fui; como outro que foi aceita,

independentemente de convicções políticas, filosóficas ou religiosas, em temática que

é alvo de polêmicas e incertezas que não mascaram a desumanização que sequestra

a infância de tantas crianças.

Sabemos que faz parte integrante deste Programa de Pós-Graduação, a

convivência, o diálogo entre todos e todas em quaisquer linhas de pensamento.

Diálogo que extrapola os bancos escolares e promove a pesquisa fora e para além da

escola. Estou falando do princípio sociocomunitário que vem se sedimentando e que,

nesta pesquisa e semeadura tem transformado, pelo menos, a olhos vistos, apesar

do tempo e campo limitados, Márcia, mãe de Luis Carlos (nomes simbolicamente

atribuídos), protagonistas nesta pesquisa e que singelamente homenageio, pois que,

pela semente aqui plantada, cultivada com esforços nos desafios encontrados começa

a frutificar. Hoje, é mãe de criança autista, que amanhã será educadora, pois já

cursando Pedagogia. Mãe de criança autista, que como disse alhures, quer ajudar

outras mães e crianças que, como seu filho, antes de serem autistas são crianças,

pessoas humanas que precisam da relação com o outro, sem estranheza, pelo

contrário, nos dando a nós e em sociedade conosco; a alteridade como encontro ético

que convido e instigo educadores e educadoras a semear sempre, sem dar trégua,

até que em terra boa, frutifique cento por um.

Com a pena, agradeço ao UNISAL, berço desta pesquisa; e à Instituição de

educação não formal que abre a sua porta para que esta pesquisadora possa nutrir-

se com as relações que ali se estabelecem e empreender sua contribuição possível.

Com os lábios e em alta voz, a todos e todas que partilharam dela. Com

esperança, expectativa, ou simplesmente curiosidade.

Com os olhos, no rosto que me invoca, a todas as crianças autistas em terras

da educação.

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Resumo

Esta pesquisa vem apresentar a alteridade como categoria interpretativa da relação de pessoas, educadores ou profissionais da educação e educação sociocomunitária, que interagem com crianças autistas. A alteridade, na construção do discurso pedagógico, descortina questões da diferença e intersubjetividade nas relações educacionais. O cenário educacional inclusivo brasileiro já alcança alguns anos, porém não vemos mudanças substanciais, qualitativas, no que concerne à mediação/interação nas relações professor - aluno neste contexto. Buscar a mediação entre sujeitos exigirá de nós o reconhecimento desta criança como sujeito e, como tal, deixá-la ser. A finalidade da pesquisa configura-se em refletir e analisar as relações do “eu” educador, mediador em um novo momento educacional, e o “eu” criança autista que reclama seu lugar no mundo das relações. Trata-se de pugnar por uma educação que prime pela dignidade humana, pela equidade em uma educação para todos, na qual devem se inserir indiscriminadamente pelo simples fato de serem pessoas, sujeitos humanos. Pesquisa qualitativa, em sua face teórica adota a concepção da Educação como encontro entre sujeitos, como diálogo, com Paulo Freire e a esperança da humanização. Utiliza-se do discurso fenomenológico sobre a compreensão do ser a partir da Ética, como filosofia primeira em Emmanuel Lévinas e, com Jean-Yves Leloup, a perspectiva inter-humana da responsabilidade e o cuidado que se deve imprimir nas relações com o outro, morada da humanização. Refletimos sobre o autismo, enquanto fenômeno estrutural na constituição do sujeito, sobre possibilidades de intervenções e implicações subjetivas e sua relação com a alteridade. Juntamente com a reflexão configura-se também como pesquisa de campo a narrativa e observação participante, tendo como interlocutor uma criança autista sem linguagem verbal; sua mãe e profissionais que com ela interagem em instituição de educação infantil inclusiva não formal. Assim, enseja contribuição para melhor qualidade de vida e dignidade humana às crianças, aqui especificamente, as autistas.

Palavras-chave: Alteridade. Ato de cuidar. Autismo. Diálogo. Educação sociocomunitária.

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ABSTRACT

This research presents the way relationships are diverse among people (educators or education professionals and community service education) who interact with children suffering from Autism. This diversity in the construction of the pedagogic discourse leads to questions that point out to the differences and inter-subjectivism present in the educational relationships. The inclusive educational scenario in Brazil has been part of our reality for some years now but we have not seen any substantial changes in quality concerning the mediation/interaction in the teacher-student relationship. To reach such interaction will demand from us the recognition of this child as a subject and, as such, let the child be. The purpose of this research is to reflect and analyses the relationships between the person of the teacher, a mediator in a new educational context, and the person of the child who demands a place in this world of relationships. This is about fighting for an education that aims at human dignity, for the equality of education for all subjects, no matter the problems these subjects may have. This research adopts in the theoretical phase the idea of education as an encounter among subjects, as a dialogue, with Paulo Freire and hopes of humanizing. We make use of the discourse of the understanding of people starting from Ethics, as the first philosophy in Emmanuel Levinas and Jean-Yves Leloup (the responsibility perspective) and all the care one should have when relating to another person. We reflected on Autism, as a structural phenomenon in the formation of a subject, about possibilities of interventions and subjective implications and their relationship with diversity. Together with this reflection, there is also a field research: the narrative and practical observation of an autistic child with no verbal language, its mother and professionals that interact with this child in the institution of education it attends. Thus, this research aims at contributing for a better quality of life and dignity for children, specifically the autistic ones.

Keywords: Diversity, Autism, Dialogue, Care Act, Community Service

Education

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SUMÁRIO

Era uma vez uma semente…: Apresentação ........................................................ 12

Preparando a terra: Da Introdução ........................................................................ 22

Capítulo 1. O Semeador em terras da educação .............................................. 28

1.1. Com Paulo Freire: a vida que já semeou entre nós .................................... 29

1.2. Conversando sobre as searas da educação: a esperança

nesta sementeira. .................................................................................................... 32

1.3. Fazer fruto das palavras – educar, ensinar e aprender – cem por um. ...... 35

Capítulo 2. Na seara, com os sujeitos ............................................................... 38

2.1. Com outro semeador: Emmanuel Lévinas – Breve apresentação .............. 39

2.2. Iniciando a semeadura: a alteridade, semente que lançaremos como

semeadores e com o semeador. ............................................................................. 40

2.3. Se padece a semente... Sobre o autismo e a alteridade. .......................... 47

2.4. Se padece a semente... Necessidade de sujeitos éticos ............................ 57

Capítulo 3. Na seara, a importância do cuidado ................................................ 61

3.1. Com outro semeador: Jean-Yves Leloup – breve apresentação ................ 62

3.2. A semente do cuidado recolhida do tempo com Fílon de Alexandria ......... 63

3.3. Semear e cuidar: arte que dá frutos ........................................................... 67

3.4. Relações: na diversidade, imitar a natureza. .............................................. 72

3.4.1. Semeando “primaveras” ..................................................................... 72

3.4.2. Semeando “amor juntinho” ................................................................. 73

Capítulo 4. Da colheita: Cem por um ou um por cento? .................................... 76

4.1. O canteiro sociocomunitário: recriar a esperança. ..................................... 77

4.2. Tempo de colheita: tempo de narrativas. ................................................... 79

4.3. Canteiro do reconhecimento: caminho para vínculos significativos ............ 87

4.4. Canteiro das flores: outro nome para escola .............................................. 95

4.5. Canteiro das ressignificações ..................................................................... 99

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Recriar o germinar: Considerações Finais .......................................................... 111

Sementeira: Referências Bibliográficas .............................................................. 116

Anexo A: Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do

Espectro do Autismo (TEA) ..................................................................................... 120

Anexo B: Lei No 12.764, de 27 de Dezembro de 2012 ........................................ 141

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Parábola do Semeador

“Eis que o semeador saiu para semear. E ao semear, uma parte da

semente caiu à beira do caminho e as aves vieram e a comeram. Outra parte caiu

em lugares pedregosos, onde não havia muita terra. Logo brotou, porque a terra

era pouco profunda. Mas, ao surgir o sol, queimou-se e, por não ter raiz, secou.

Outra ainda caiu entre os espinhos. Os espinhos cresceram e a abafaram. Outra

parte, finalmente, caiu em terra boa e produziu fruto, uma cem, outra sessenta e

outra trinta. Quem tem ouvidos, ouça!”

Mateus XIII, 4-9

“E saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer, e dar

muito fruto: “Et fecit fructum centuplum”.1

Padre Antonio Vieira

1 “Et fecit fructum centuplum” do latim: E fez-se fruto cento por um.

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Era uma vez uma semente…: Apresentação

“Precisamos de céus mais propícios, de dias mais propícios, de convivência

mais propícia – para humanizar a existência, humanizar a história. Para isso a

educação é vitalmente necessária, embora nunca suficiente.”

Severino Antônio

“A consciência da necessidade, sempre recomeçada, anima-nos. A paixão

pelo que nasce tem muitas formas de florescer.”

Severino Antônio

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Algumas coisas percebo hoje que acompanharam minha trajetória. Algumas

coisas me perseguiram em toda a minha vida: a educação, o outro, e a contemplação.

A educação vem desde o tempo de menina, quando eu dava aula aos

passarinhos. Esta, a única razão que confere-me o esforço que despendi na

continuidade da escolaridade, malgrado tão tenra idade. Meu pai, conquanto

morávamos numa cidade muito pequena, no estado de São Paulo, e que não havia

ainda classes de educação infantil, achou por bem matricular-me no primeiro ano

escolar aos seis anos de idade. Eu deveria ter vida social junto aos meus pares. Eu

dormia na sala de aula, como dormia em casa após o almoço. É claro que fui

promovida ao final do ano letivo. De maneira que, em tese, alfabetizada, e primogênita

de quatro irmãs, eu era a única que já tinha a deliciosa sensação do que é ensinar.

Daquele convívio de crianças, de escrita e leitura, de desafios, carinho, amizades,

brincadeiras, independência, tudo misturado ao anseio do crescimento, naturais as

dificuldades que quase sempre enfrentava no entendimento, mas fica até o hoje, o

cheiro do lanche que levava na lancheira de couro, por dentro toda engordurada do

pão com manteiga diário.

É certo que, quando sentia saudades desse ambiente, lá ia eu ao quintal para

brincar de escolinha, mas como não tinha “alunos”, eram os passarinhos que tomavam

esse lugar. Posso dizer que esse ato, tornou-se prioritário na minha vida profissional,

quando investida no magistério e lançada aos desafios e anseios de educar. Criança

e passarinho: descoberta, percepção e aprendizado.

O outro, se me apresenta desde a minha mais remota memória, naquele

diferente de mim. E desde sempre já ia entendendo que as nossas diferenças não

podem ser aquilo que nos separa, mas, ao contrário, aquilo que nos une. Lembro-me

da Nicinha, amiga que ia em casa, e eu na casa dela. Em casa, muitos brinquedos;

na casa dela nós os construíamos. Ela morava em casa de chão batido e quando

íamos comer a comida, essa era servida numa lata de goiabada batida nas bordas, e

jamais vou esquecer o maravilhoso gosto daquele arroz, carne de porco e salada de

couve temperada com limão... Experiências que complementavam o tamanho da vida.

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Por fim, a contemplação vem resumir a perspectiva poética que desde então

iniciava, ouvindo meu pai declamar poesias e repetindo tantas vezes que nós, suas

filhas, acabávamos por decorá-las. Lembro-me o quanto a imaginação dançava e

impelia-me ao êxtase forçando a representação de cada uma delas. Desse esforço

nasce a necessidade de conhecer. Conhecer o mundo, cada palmo, cada flor, cada

pessoa e seu coração, os encantos, devaneios, infortúnios, alegrias. Nisso se mistura

buscar a compreensão do mundo e poder, à luz das possibilidades que se nos

apresentam, estar sempre alerta e em estado de conhecimento. Inserida na realidade,

comprovando o existente e vivendo-o plenamente na prática. E mais: partilhar,

conduzir ao conhecimento: educar.

E como é próprio da vida e da história seguir adiante, e compreendê-las

olhando para o passado, os fatos que passo a narrar agora, deram-se a poucos, muito

poucos anos depois, naquela pequena cidade do interior paulista, hoje com

aproximadamente sessenta anos de fundação e que um dia foi impulsionada por

indústrias de óleo de amendoim, mas acabou por se tornar dependente

economicamente de alguma atividade agropecuária.

Era 1964. Mês de março. O ano iniciara e com ele as intrigas e conflitos

políticos. Com a pouca idade que contava, o importante mesmo era o momento de se

iniciarem as aulas, alegria de toda a criança que infelizmente as tinha por privilégio, e

porque não dizer do primeiro contato com as injustiças sociais, entendendo-se

qualquer privilégio como uma injustiça.

Cursando o primário em uma das duas únicas escolas públicas da cidade, em

tese, era tempo de brincar. Tempo em que se chegava ao colégio jogando a bolsa

num canto - e antes do sinal tocar convidando os alunos a subirem para as suas salas

de aula - nós, em primeiro, pulávamos corda, brincávamos de amarelinha, de ciranda,

entre outras.

Todavia o país estava de pernas para o ar. Em casa o rádio não era desligado

(não havia alcance para TV). Quando chegara o final do mês, meu pai, juiz de direito

da cidade, viajara para São Paulo, a capital. Falava-se de algo como reforma agrária,

reforma agrária...

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Neste cenário, aconteceu que fomos à escola, minhas irmãs e eu. Chegando

ao colégio, já jogamos as bolsas junto a alguma das paredes do pátio para

imediatamente entrarmos em alguma das brincadeiras com as outras crianças, que já

iam alegres metidas nelas. Porém algo acontecera.

Quando ia conversar com minhas amiguinhas, estas viravam o rosto,

desconversavam e simplesmente diziam que eu não poderia entrar na brincadeira.

Aquilo me perturbou sobremaneira. E eu não podia me conformar com aquele quadro.

Perguntava a mim mesma e a todas as colegas. O que estava acontecendo? Por que

agiam daquela maneira? O que eu porventura tinha feito para estarem todas,

impreterivelmente todas as coleguinhas, crianças da minha idade, sendo levadas a

aquela atitude de desprezo e indiferença, em contraposição àquela diametralmente

oposta que até então me presenteavam? Tanto insisti que pude ouvir de uma delas

algo que seria enfim a justificativa daquele cenário. Minha amiga me falou: “minha

mãe não quer que brinquemos com você porque seu pai está preso.”

Excluídas do meio, levei cada uma de minhas irmãs à sua sala. O corredor

central parecia mais escuro e maior, sombrio mesmo. Eu ia silente, esperando por

alguma palavra do professor, que eu sentia que me olhava com mais carinho naquele

dia, mas que nada dissera. Hoje posso entender o misto de susto e curiosidade, mas

que preferiu se resguardar a ensaiar alguma explicação.

Nunca o dia demorou tanto a passar, com aquelas horas que separavam as

12:00 das 16:30hs. Só pensava em chegar em casa e perguntar para mamãe se aquilo

era verdade. Com certeza ela me diria que aquilo era uma invenção, que deixasse

para lá, que as pessoas gostam de fofocar, aumentar, inventar, infamar... E,

finalmente quando os portões se abriram, desembestei numa corrida que iniciou no

alto do morro onde se localizava o colégio até o alto do outro morro onde morávamos,

perto da Igreja, atravessando a rua principal, que ficava na baixada.

Chegando em casa fui à procura de mamãe. Estava sentada em seu quarto

com um bordado à mão. A oeste, a janela estava semiaberta a escorar o sol que

penetrava forte quase a alcançar a porta que eu entrara do outro lado. A pergunta foi

imediata: “É verdade que o papai está preso?” A resposta não menos imediata, veio

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certa, serena, amiga, honesta, verdadeira: “É verdade, mas fique sossegada que seu

tio está tomando as providências e tudo ficará bem”. Ficou bem. A atitude de minha

mãe me fez forte. O susto da verdade foi menor que o sentimento de ser tida como

pessoa capaz de partilhar com a verdade. Lição que eu trouxe para a vida e para a

educação dos meus filhos. De outra parte, meu pai foi solto, seus direitos políticos

cassados e aposentado compulsoriamente antes de ter completado 40 anos de

idade...

Conquanto tenhamos, eu minhas irmãs, passado pelas mesmas experiências

é certo que a mim foi mais significativa, fez memória pois incitou questionamentos

acirrados que me foram da mesma forma honesta e verdadeiramente respondidos.

Meu pai, José Francisco; minha mãe, Therezinha. Ele, juiz que estava concedendo

audiências no fórum para os agricultores que o procuravam inseguros e sofridos com

os boatos de reforma agrária no sentido de ser-lhes tomadas as terras, alguns poucos

alqueires que lhes davam o sustento com o que plantavam. O juiz os recebia para

acalmar os ânimos; dar-lhes um pouco de segurança, pedir-lhes que tivessem

paciência para aquele momento histórico e, finalmente, sustentar da remota

possibilidade de lhes serem tomadas as terras. Ela, dona Therezinha, dona de casa e

mãe. Eram os subversivos. Logo, as crianças, crianças subversivas. Diferentes,

excluídas. É certo que senti medo, mas não sabia de quê, exatamente...

Essa narrativa, dentre outras que poderia trazer, pareceu-me indicada para

esse meu momento, pois narrados na sua realidade última. Ingressei no magistério e

sempre me pergunto se não fora com a perspectiva de reparar uma realidade social,

num tempo histórico, num momento único de realidade escolar onde vivera os

preconceitos, a exclusão.

Ocorre que, anos mais tarde consigo enxergar esta relação e sentir o quanto

esta experiência influenciou no processo de minha formação pessoal. Os fatos

repercutiram além de si mesmos quando na maturidade me vejo defendendo valores

da verdade, da honestidade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana. E, sentir

invariavelmente uma lacuna no contexto educacional que iniciara profissionalmente.

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Ser tratada de igual para igual por minha mãe naquela situação melindrosa

reforçou-me a experiência da verdade, de forma a tê-la como princípio na educação

de maneira geral, de meus filhos, de meus alunos, enfim em qualquer situação onde

aparecesse um viés educacional, de aprendizagem, todos esses comprometimentos.

Fui, desde então, acometida por um tufão de perplexidade que transformou-se em

questionamentos sobre acertos e erros e seus desdobramentos. Minha primeira

experiência no magistério, ainda naquela mesma cidade em que tudo ocorrera, foi ser

professora na zona rural, com adultos com quem muito aprendi e jamais deixei de

discutir com eles como cidadãos, independentemente do tempo de autoritarismo ou

não. Como professora dos pequenos procurei a filosofia para aprender falar sobre a

ética, hoje em perigo de ser banalizada; a estética, tão importante também para ler o

que vinha de dentro de cada um, entendendo que em tão tenra idade tinham já

sentimentos que traduziam em representações e que pediam serem respeitados. E

ainda, o curso de Direito que me reforçou a busca pelos entraves no pensamento da

dignidade humana, principalmente quando junto aos meninos (dos meus olhos) em

conflito com a lei. Mas, não basta.

Permito-me uma lembrança em tempos em que cuidava da coordenação de

uma escola em que numa reunião de mães, propus que cada uma desenhasse algo

que pudesse representar o seu filho que iria ser um dos alunos naquele ano. Uma das

mães desenhou uma rosa azul, e ao socializar explicou com coragem que sua filha de

apenas três anos de idade era um ser raro: uma rosa azul. Sua filha era portadora de

síndrome de Down, misto de beleza e cuidados, dada a sua fragilidade, numa proteção

contra os preconceitos e acometimentos a que se exporia a partir de então. Prenúncio

de uma era em que venho indagar e superar a grande lacuna que existe quando

observo a diferença grassar nas relações e suas questões subsumidas na maioria das

vezes, tão somente na opressão ou na indiferença. Questões de educação que

insistem, não raro, invisibilizar o diferente, sem diálogo, sem encontro, sem

reciprocidade e, como se não fossem pessoas, reduzidas ao instinto de sobrevivência.

Tal como se deu na investigação que originou os rumos desta pesquisa que passo a

expor.

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A presente dissertação de título conforme exposto: Semeando a Alteridade na

Trama das Relações: Possibilidades Educativas Dialógicas com as Crianças

Autistas, originou-se dos resultados obtidos em estudo feito anteriormente e

finalizado no ano de 2012, como exigência à graduação do Curso de Pedagogia, que

tratou de investigar a criança autista na escola regular e na escola especial, em face

do processo de inclusão educacional brasileiro. Nesta pesquisa valemo-nos de

observação participante em pesquisa qualitativa com autorização da Diretoria de

Ensino junto à Escola Estadual de Ensino Fundamental I, com classes de 1º a 5º anos,

com aproximadamente 400 (quatrocentos) alunos, divididos entre os turnos da manhã

e tarde. A comunidade escolar apontava condição socioeconômica de classe média e

média ascendente. Conquanto esta experiência tenha se dado em ambos os

ambientes educativos, o regular e uma escola especial, permitimo-nos optar pela

narrativa em escola regular, palco das promessas inclusivas, local onde as análises

das observações proporcionaram saber as dimensões intersubjetivas como

categorias inseparáveis das práticas educativas.

A narrativa que ora se fará apontou-nos indícios de possibilidades, pois uma

vez imersos neste ambiente e contexto escolar, participando intensamente do

processo da pesquisa, fomos tomados de uma imensa responsabilidade em relação

ao outro – criança autista – que observávamos e por algum tempo convivíamos,

conforme passamos a narrar.

Encontrava-se matriculado no 2º ano, etapa de alfabetização, o pequeno Lucas

(nome fictício), autista, sete anos. Único aluno autista do período (tarde), bem como

de toda a escola. Iniciara o trabalho educacional em escola regular como outro aluno

qualquer.

Contava com um tutor, chamado de “cuidador”, com formação de técnico em

enfermagem, e que passava um período com ele, dando-lhe segurança cobrindo um

trabalho de educação especializada na escola inclusiva. Lucas não tinha linguagem

verbal e apresentava algumas estereotipias. Dócil e alegre, sorria e oferecia o rosto

para ser beijado e parecia que esperava um abraço. Chegava à escola com a mãe.

As crianças viam-no e gritavam alegres: “O Lucas chegou!”.

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A convivência e rotina de ir à escola, ao cabo de quase um ano, sem nenhuma

orientação específica ou educacional – afora algumas feitas pelo cuidador – mostrava

que Lucas estava mais calmo e acostumado com a “sua” rotina escolar. Chegava e

seu ambiente era o pátio da escola. Acostumara-se ao convívio das crianças – mas

ainda gostava de ficar sozinho em seu canto – enquanto as outras brincavam no pátio.

Estava aprendendo a ouvir o Não e já não subia mais sobre as mesas, como acontecia

no início de seu processo de adaptação, como nos contara o cuidador. Era muito

querido por todas as crianças que, quando passavam por ele, chamavam-no pelo

nome e mostravam as mãos espalmadas dizendo: “Bate aqui, Lucas!” E ele batia,

sorrindo.

Já não costumava entrar nas salas de aula como no início, correndo muito

dentro delas. Às vezes entrava na sua própria sala, mas saía rapidamente com a ajuda

do cuidador. Isso se dava, pois seria certo que ele iria atrapalhar as outras crianças e

o andamento dos trabalhos, conforme a escola determinara. Surpreendentemente,

reconhecia sua professora, seu grupo e sua sala, visitando-a às vezes, mas sendo

levado a sair dela rapidamente. Importa ressaltar que não havia estímulo psicomotor

específico; não havia acompanhamento com orientação de professor especializado,

ou pedagogo que orientasse o cuidador.

Chegara aos seis anos na escola e fora estimulado a ouvir e compreender

algumas palavras ditas pelo cuidador e que prontamente, ainda que sem falar, ele

anuía: “banheiro”, “passear”, “limpe a boca”, “sente-se”, “vamos lavar as mãos”, entre

outras necessárias. O cuidador oferecia, às vezes, caderno e giz de cera (que

solicitara da mãe), e Lucas, às vezes, ensaiava alguns rabiscos.

Como o cuidador era muito dedicado, afetivo e receptivo, fazíamos algumas

orientações como estimular o corpo de Lucas com bola, arcos, etc., pois apresentava

pouca tonicidade muscular, e pudemos constatar que o cuidador fez tentativas,

enfrentando as resistências naturais de Lucas que, como alguns autistas, não gostava

de sair de sua rotina como ele demonstrava.

Sempre ficava no pátio, que na verdade era o seu ambiente e às vezes dormia

ali mesmo. Por vezes ficava muito ansioso. Porém, quando estava bem ficava sempre

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próximo das crianças. Mesmo sozinho, acabou se acostumando e procurando ficar

em meio delas, quando por algum motivo estavam no pátio. Presenciamos o caso

daquelas crianças do 4º ano que estavam ensaiando um Jogral no palco que lá havia

e Lucas foi chegando devagar e deitou-se; acomodou-se feliz no meio delas, que

naturalmente o acolheram. Então, nos perguntávamos: não teria sido oportuno iniciar

sua adaptação na sala, proporcionando, planejadamente, por cinco ou dez

minutos/dia ao menos, sua estadia na sala para ali ser ele mesmo, poder ser melhor

compreendido e ficar um pouco com as outras crianças? Afinal, estava ali há quase

um ano.

Notamos e confirmamos, além da afirmação que tivemos daqueles que

acompanhavam Lucas desde o início, o cuidador e as merendeiras – estas últimas

que tinham seu local de trabalho no pátio e haviam criado um vínculo com ele - que

ele vinha num crescendo. Sem maiores especificações, era já um pouco diferente,

acalmando-se. Porém, fora da sala de aula.

O que Lucas experimentou estava muito longe de ter sido um processo de

inclusão. Não presenciamos sua professora vir ao pátio para dele saber, ou apenas

para vê-lo. Para ele não havia professora, sala de aula, sala de arte, amigos de sala,

lápis, papel, cartolina, tinta, lápis de cor, carteira. De maneira que acusamos

problemas, falhas que implicavam na ausência de interação, ausência de relação,

ausência da mediação entre a criança autista e aqueles que com ela deveriam estar.

Estava sempre só, às vezes rodeado de crianças, mas só.

Finalizo este relato que impulsionou a pesquisa no Mestrado em Educação, no

Unisal - Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Americana, campus Maria

Auxiliadora, e que tem agora a finalidade de refletir e analisar a interação entre sujeitos

nas relações do “eu” educador, mediador em um novo momento educacional, e o “eu”

criança autista”, evocando e invocando a categoria da alteridade para essas crianças

que reclamam seu lugar no mundo das relações humanas.

Daí que, ao perseguir a Teoria da Alteridade, a princípio tendo como elemento

deflagrador o autismo, - que ao tempo daquelas primeiras investigações e em

processo educacional de inclusão, eram retiradas dessa criança o professor, os

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colegas, a sala de aula, a cartolina, o lápis de cor, tudo o que deveria ter por direito -

vi-me envolvida em todas essas questões que me perseguiram pela vida, que

influenciaram minha formação e incitaram-me à pesquisa em educação. Pesquisa que

ora anuncio e que terá como sujeitos outra criança autista, Luis Carlos e sua mãe

Márcia (nomes simbolicamente atribuídos), além da estagiária que o acompanha em

escola de educação infantil não formal.

E, conquanto em alguns momentos possa parecer poética, fruto de meu

espírito de contemplação e sensibilização às questões dessa natureza, venho reforçar

o caráter de humanidade que quero imprimir nelas: minha contribuição possível para

céus mais propícios...

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Preparando a terra: Da Introdução

“É a esperança um composto de desejo e confiança: com a vontade deseja,

e com o entendimento confia: se desejara sem a confiança de alcançar, seria

somente desejo; mas como deseja e confia juntamente, por isso é ‘esperança’ ”.

Padre Antonio Vieira

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Nós, educadores, somos agricultores da vida. A educação é nossa seara.

Caminhamos para a colheita e havemos de fazê-lo enfrentando desafios, intempéries,

mas também com esperanças de colher alegrias.

A relação entre o docente, a criança, bem como de todo aquele que com ela

interage no meio educacional formal ou não, a reflexão em favor das interações com

o educando, num tempo de educação para todos idealizada, incluídas aí as crianças

com necessidades educacionais especiais, especialmente aquelas portadoras do

transtorno global de desenvolvimento, as autistas, e deflagradoras do problema a ser

discutido neste estudo, é a temática pela qual esta pesquisa vem se detendo: a

relação entre autismo e alteridade em uma intencionalidade inclusiva.

Trata-se da relação da criança portadora do espectro do autismo com aqueles

que com ela interagem no ambiente escolar, na família e na comunidade, a ser

analisada sob a categoria interpretativa da alteridade, conceito que procede como “ser

outro, colocar-se ou constituir-se como outro” (ABBAGNANO, 2000, p.34).

A observação de uma criança autista – Lucas – evidenciou a ausência de

procedimento educacional inclusivo, agravada, não raro, pela inércia da maioria dos

sujeitos educadores na escola regular.

O conhecimento dessa experiência ensejou a questão que se nos apresenta

como fundamental e que tomou rumos no sentido de estudar a interação com a criança

autista, segundo a categoria da alteridade, pois as crianças autistas frequentemente

carecem desta atitude, de uma postura ou relação mais elaborada com o outro.

Vimos um processo de inclusão educacional em ambiente formal de educação

e o trabalho educativo muitas vezes carentes de iniciativas e atitudes de proximidade,

em detrimento da dignidade humana da criança autista. O pedagogo, aquele que

acompanha na educação formal, ou na não formal, ou outra pessoa que acompanha

em ambiente informal, necessita, não raro, de uma relação que sustente um processo

inclusivo, ou seja, um procedimento que os faça fazer parte de uma sala de aula ou

outro ambiente educativo com crianças típicas ou não, com o fito de melhorar sua

qualidade de vida.

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Ao leitor, desde agora, gostaríamos de esclarecer que a concepção que temos

deste sujeito – criança autista – e sujeito de nossa pesquisa é a de um ser humano,

singular, único na sua especificidade, assim como os outros seres humanos. E, o

sujeito educador, como aquele que, em tese, deve agir no sentido de beneficiar essa

criança.

Entendemos ser necessário buscar a identidade da criança autista no processo

de alteridade vivido por ambos; tê-los, sujeito criança autista e sujeito educador, como

sujeitos de ação, de atitude, reconhecendo o seu papel, buscando a intersubjetividade

necessária ao conhecimento do outro. Esse é o fundamento do nosso olhar.

Tal fundamento comporta e se assenta em questões relacionadas com a

política de inclusão; com a criança autista, aquela que sabemos portadora de

transtorno global de desenvolvimento e que sofre diversos graus de dificuldades

ligadas à comunicação, às interações sociais e comportamentos repetitivos e

restritivos; e também ao professor e suas intervenções.

O espectro do autismo, será abordado nas suas concepções de modelo

psiquiátrico e psíquico para a finalização de nossa escolha das possibilidades,

enquanto fenômeno estrutural na constituição do sujeito, possibilidades de

intervenções e implicações subjetivas e sua relação com a alteridade.

Ademais, resta dizer da temática estar diretamente implicada na educação

inclusiva, cuja história vemos coincidir com o resgate de uma sociedade mais justa

nas obrigações, direitos e deveres de todas as pessoas, destacando-se o combate à

discriminação, qualquer que seja, como na Declaração dos Direitos Humanos (ONU,

1948).

No Brasil, a preocupação por garantir em lei algumas formas de proteção e

educação de pessoas com deficiência aparece pela primeira vez em 1961, quando o

direito à educação de pessoas excepcionais é preconizado nas disposições da Lei nº.

4.024/61 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, “preferencialmente

dentro do sistema geral de ensino” (BRASIL, 1961). Dez anos mais tarde, a Lei nº

5.692/71 alterou a LDB de 1961, definindo a necessidade de tratamento especial para

os alunos com “deficiências físicas, mentais, os que se encontram em atraso

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considerável quanto à idade regular de matrícula e os superdotados”. Uma crítica a

essa lei é que suas premissas não promoveram a mudança da escola e a organização

de um sistema de ensino que se mostrasse eficiente no atendimento às necessidades

educacionais especiais, o que acabou reforçando o encaminhamento dos alunos para

as classes e Escolas Especiais (BRASIL, 1971). Em 1973, foi criado pelo Ministério

da Educação e Cultura (MEC) o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP),

órgão responsável pela coordenação da Educação Especial no Brasil. Suas ações

foram marcadas por uma política de integração das pessoas com deficiência e das

pessoas com superdotação e caracterizadas por um forte assistencialismo e por

iniciativas isoladas do Estado (BRASIL, 1973). (CRIPPA, 2012).

Registramos alguns dos muitos documentos internacionais, dos quais o Brasil

é signatário, que foram elaborados, no sentido de acolher alunos com deficiência ou

de outra forma excluídos, respeitadas as suas características, incluindo propostas

adequadas a todos, beneficiando, também, os autistas. Entre outros destacaram-se:

A Declaração Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990); A Declaração de

Salamanca (UNESCO, 1994); A Convenção Interamericana para a Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação Contra a Pessoa Portadora de Deficiência, que

gerou a Declaração de Guatemala (OEA, 1999); e outras mais recentes de igual

importância e que concluem pela prática inquestionável da Educação Inclusiva.

Pareceres, Decretos e Leis de suma importância incorporaram-se à legislação

procurando fazer crescer a responsabilidade, a reafirmação dos direitos, mudanças

para os sistemas de ensino e promoção da acessibilidade, mormente aos deficientes

e com necessidades educacionais especiais.

Nesse sentido torna-se de especial importância a formação específica dos

professores e entendemos que as experiências em crescimento que temos tido na

trajetória da inclusão educacional brasileira devem ser sempre comemoradas.

Há um tempo razoável, nossa geração de professores e professoras vem

discutindo e se inteirando da necessidade da postura e responsabilidades éticas no

âmbito da prática educativa. E a questão que nos aflora neste estudo é: os atos de

ensinar e aprender, atos essencialmente relacionais na prática educativa e, pensando

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as dificuldades educacionais especiais, estão sendo atos em si mesmos respeitosos

da inteireza humana, vale dizer, fazem jus à integridade do ser manifestada em cada

uma das partes envolvidas? Por ventura não há que reforçar sua importância no

despertar para a alteridade e seus componentes na convivência com crianças, jovens

ou adultos? E, ademais, quanto aos portadores de deficiência, verdade seja dita.

Conquanto se ouça a importância do afeto, e do amor para com estes – sem querer

dizer com isso que os demais não o necessitam – muito pouco resta na relação

educacional inclusiva, mercê que são desses afetos que, apesar de muitas vezes

serem verdadeiros, não apresentam mais do que resultados fugazes.

Isto posto, em primeiro, que nos tenhamos todos como sujeitos.

Ao pugnar por uma educação que prime pela dignidade humana, inseridos

todos pelo simples fato de que somos pessoas, sujeitos humanos, novamente

recorremos à metáfora: somos agricultores da vida. Semeadores que em terras da

educação lançamos as sementes da alteridade e a partir dela, nas relações inter-

humanas, aguardamos a preciosa colheita.

Na trama das relações educacionais, o leitor será conduzido por meio de

metáforas construídas a partir da Parábola do Semeador, recurso discursivo que vai

compondo os capítulos, nos saberes e novos nasceres e novos saberes e novos

nasceres. Sementes que queremos germinar e novas ações, gerar.

Preparada a terra, nasce o primeiro capítulo onde nos re-encontramos com o

educador/semeador Paulo Freire, que nos reforça a esperança de refletir a educação

naquilo que a nós, alguns educadores, mais incomoda: as relações, as interações

entre sujeitos, reivindicando e desejando humanização, na tentativa, quiçá de uma

prática que prenuncie o encontro, o diálogo, a reciprocidade, a responsabilidade, a

alteridade nos sujeitos protagonistas do processo educacional.

Ao segundo capítulo reserva-se a categoria da alteridade segundo Emmanuel

Lévinas, filósofo/semeador que, acentuando a fenomenologia, nos move a buscar nos

atos essencialmente relacionais da prática educativa, aqueles que integram a

manifestação do ser em cada uma das partes envolvidas. O autismo, na sua

imprecisão etiológica em face à categoria interpretativa da alteridade, tomado na

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realidade atual, apesar dos desafios, nos permite pensar a criança e as intervenções

no ambiente escolar e na comunidade: Eu e Outrem2, outro que é rosto que nos

convoca e de cuja responsabilidade nos incumbe. Responsabilidade que brota da

subjetividade, do amor, e com ele a reflexão do fator ético suscitado na trama inter-

humana.

Partimos ao terceiro capítulo, com o filósofo e padre/semeador Jean-Yves

Leloup que invoca o cuidado, que desde Fílon de Alexandria e os Terapeutas,

antecipa-se na ação de cuidar e cuidar do Ser, como se fora o educador, que na arte

da escuta e do silêncio faz ecoar o sentido, sem embaraçar a liberdade de ser na

trama das relações.

O tempo, à sua maneira silenciosa, mas também ativa trará as transformações?

A colheita compõe o quarto capítulo, o que se recolherá do campo.

Esclarecemos que, embora essa temática tome início num tom de indignação

não menos acompanhado de um contexto grávido de sofrimento do eu e do outro que

se vão revelando, às vezes, paradoxalmente, em que a estranheza em que alguns se

debruçam é leito confortável para outros, entendemos que as relações humanas são

abertas a possibilidades. Por isso há esperança.

E pela esperança, pela qual somos tomados no estudo que se segue - pela e

na educação não apenas nas salas de aula de educação formal, mas também na

convivência familiar e comunitária – é que havemos de principiar; fio que nos

esforçaremos até o fim sem perdê-lo, porque há de atar o laço do presente que

haveremos de oferecer ao futuro.

2 Outrem – tradução do pronome indefinido autrui da língua francesa [...] Está sempre pela outra pessoa humana (CINTRA, 2009, p.17, grifo do autor)

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Capítulo 1. O Semeador em terras da educação

“Quem ensina aprende ao ensinar, quem aprende ensina ao aprender.”

Paulo Freire

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1.1. Com Paulo Freire: a vida que já semeou entre nós

Paulo Reglus Neves Freire, um dos mais importantes educadores que nosso

país já teve, hoje PATRONO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, vem ao mundo no estado

de Pernambuco em 1921, no dia 19 de setembro, na cidade de Recife. Dizia de si

como de olhos castanhos e da raça humana, modo de identificação que demonstra

ter sido defensor na luta contra a discriminação.

Na infância, tendo nascido na década da quebra capitalista – 1929 – sofreu

todo tipo de privações, chegando a compensar a fome nos quintais de sua casa repleto

de árvores frutíferas.

Em 1932, a família perde a casa grande onde residia e muda-se para Jaboatão

de Guararapes, arredores de Recife, com idade que o permite as primeiras

observações quanto às posturas discriminatórias que aconteciam até nas brincadeiras

no campo de futebol enquanto se divertiam. Via os meninos mais abastados

discriminarem os mais simples e Paulo Freire – como ficou conhecido – descobre que

desde a mais tenra idade já se punha contra essas manifestações discriminatórias.

Casou-se com Elza, professora, tendo com ela convivido apaixonadamente por

42 anos. Tiveram cinco filhos, dentre eles duas educadoras de nome Fátima Freire e

Madalena Freire.

Quando D. Elza faleceu, Paulo Freire ficou muito abatido, perdera o gosto de

viver e passou por um tempo de ruptura, de desencanto. Depois descobriu que vivera

uma experiência plena com D. Elza e esse pensamento o restabelece. Reconhece e

assume a perda do grande amor e nesse momento diz que da ausência começa a

vingar uma presença remota, que se veste de uma saudade risonha que convive com

a possibilidade do passado: modo do educador se reabrir ao mundo. Tempos depois

casa-se com Nita, como chamava Ana Maria Freire.

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A professora Anita Freire, em palestra a Seminário3 traz-nos dados sobre sua

trajetória e conta, por exemplo, que quando em 1932, tempo em que a família de Paulo

Freire passava grandes dificuldades, sua mãe saía à procura de uma escola para o

filho ingressar, mas teria que ser particular e gratuitamente, pois as escolas estaduais

não aceitavam alunos que não pudessem comprar materiais, livros etc.

E, nessa busca, depois de muito andar encontrou uma escola em Recife que

aceitou seu filho e o acolheu. O dono desta escola era o pai de Anita, que à época

tinha 4 anos de idade. Nesta escola Paulo Freire estudou e foi depois convidado a ser

professor, tendo sido professor de Anita. Fez Curso de Direito, mas abandonou a

profissão no seu primeiro caso. Para ela, professora Anita, Paulo Freire foi coragem,

ousadia e tenacidade, dos 16 aos 76 anos de idade.

Paulo Freire escolheu o caminho da Educação, porque para ele, sem ela o

mundo não se transforma. Ele amou fortemente a Educação, a pedagogia como

observamos e ouvimos dizer sua filha e educadora Fátima Freire, um amor: “...tão

soberanamente amor, mas amor no sentido de desprendimento, amor no sentido de

consciência do outro ...” (PAULO, 2007; grifo nosso).

Na sua pedagogia Paulo Freire entende que antes da palavra temos o mundo

para ler. E seu método de alfabetização para adultos assentado ele mesmo na

constatação universal daquilo que vem antes da palavra: o mundo. Só depois de

milênios, a linguagem e a escrita. Paulo Freire fantasticamente re-cria esta sequência

originária oferecendo-a como a maneira natural da aquisição da escrita.

O seu Método de Alfabetização apresenta etapas que podem ser discriminadas

pelas palavras geradoras, pela silabação, formação de novas palavras e a

conscientização, tudo desde sempre problematizado e discutido. Logo, os princípios

que conhecemos por meio deste método e que o rege são: a leitura do mundo, a

tematização e a problematização.

3 Notícias fornecidas pela profa. Ana Maria Freire na palestra sobre Paulo Freire, no Seminário “Paulo Freire entre nós” realizado na UNICAMP em 18 de maio de 2005, por mim compiladas e aqui reproduzidas.

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Seu pensamento sobre a educação, a leitura e a escrita nos deixa um legado

inestimável nas concepções próprias das pessoas humanas, homens e mulheres.

Como seres inacabados e inconclusos que são, por isso precisam do outro; por isso

impõem-se acrescentar o mais. Há sonhos para amanhã. Somos possibilidade. Hoje

fazemos o que temos que fazer para transformar o amanhã. No compartilhar o mundo

com o outro vive a esperança de se chegar a um mundo melhor e prescreve uma

pedagogia que embasa a aceitação de culturas, pensares, sem hierarquizar,

simplesmente porque somos diferentes.

Rejeita a concepção “bancária” (FREIRE, 1975; FREIRE, 2006a) da educação,

nome que dá àquela que o educador faz depósitos e os educandos vão guardando,

arquivando informações, memorizações, e sobre isso lega-nos a maior de suas

contribuições pedagógicas: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a

possibilidade para a sua produção ou sua construção. Quem ensina aprende ao

ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (QUEM, 2010; FREIRE, 2006a).

Sonho que se revela no educar pelo respeito do outro, pela liberdade, pelo

respeito à diferença.

Assim, para enfatizar a presença de Paulo Freire na sua ausência, optamos por

este breve registro expositivo de sua biografia. Trazer seu pensamento e concepções

pedagógicas por meio de suas próprias palavras, ditas por si mesmo, ouvidas das

muitas entrevistas que em vida concedeu, especialmente ao Museu da Pessoa4, bem

como por meio daquela que com ele conviveu seus últimos anos, Ana Maria Freire,

além daqueles que com ele compartilharam palavras, obras e as reservadas em seus

escritos. Retomá-los, ouvi-lo em vídeos, vendo-o com seu sangue correndo em suas

veias pareceu-nos abrir um relicário cujo teor, reverentemente, ousamos re-criar, re-

viver, re-encontrar, certos de que assim poderemos devolver-lhe em atos o amor que

nutriu pela vida, pela pessoa e pela educação.

4 Museu da Pessoa – museu virtual e colaborativo de histórias de vida, fundado em São Paulo em 1991 com o objetivo de registrar, preservar e transformar em informação histórias de vida e de toda e qualquer pessoa para a sociedade.

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1.2. Conversando sobre as searas da educação: a esperança nesta

sementeira.

“As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. [...] As razões

próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens

não se convencem pela memória, senão pelo entendimento”

Padre Antonio Vieira

O estudo que ora se inicia, o temos como um processo; certamente nos

significará mais como processo do que seu resultado.

Entremeado entre muitas e das mais diversas razões, incluímos até mesmo

aquelas da infância, da juventude estouvada, da maturidade difícil e cerceada e que

hodiernamente nos provocam: a educação e nela as interações, a mediação de

sujeitos que, conquanto subjetividades que detém importância histórica afirmam

também o papel da educação que tanto nos afeta.

O tempo que dedicamos à educação, que muitas vezes dedicamos à sala de

aula e às relações educativas fora das escolas, desde o início vai se delineando como

tempo de convivência em relações bem diferentes daquelas que se nos apresentavam

e ainda hoje acreditamos: como convivência de respeito ao outro, do estar com o

educando, diálogo contínuo e afetividade, para dizer o mínimo. Quão diferente é ainda

o que se vive na dimensão da educação.

O descortinar da pedagogia freireana vem encontrar-nos e extasiar-nos em

tempo de verificar que sua influência seria definitiva e também a outros que concorrem

neste pensar educacional. Porém, não basta. Ainda hoje e cada vez mais nosso

mundo não está se coadunando com este discurso, mas nós educadores, estampados

com a armadura do bom-senso, cingidos com essa verdade que se nos descortina no

pensar freireano e com os óculos da esperança poderemos enfrentar os desafios que

interceptam a transformação possível.

Desperta-nos a atenção, com especial importância o procedimento subjetivo

sobre o que nos diz Paulo Freire ao descortinar nossos tempos vividos: “os momentos

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que vivemos ou são instantes de um processo anteriormente iniciado ou inauguram

um novo processo de qualquer forma referido a algo passado” (FREIRE, 2006a, p.28)

Essa é a nossa situação. A esperança assentada no vivido, malgrado as

dificuldades, uma coisa é certa: é possível. Utopia. Sonho possível e sabemos que

sonhar é forma de recriar o mundo.

Algumas reflexões que se fazem necessárias neste momento do texto, nos

remetem facilmente a lembranças, como dentre as mais recentes, ainda cursando

aulas de Mestrado no Programa de Pós –Graduação, Mestrado em Educação5,

quando o professor Severino Antonio pede a todos os mestrandos que dissessem

cada um - em uma palavra – seu projeto de pesquisa. Não por acaso, minha palavra

salta aos lábios ligeira e inequívoca: esperança. Esperança de podermos ainda que

timidamente, mas não menos criticamente aprofundar e refletir a educação,

perfazendo saberes, enfrentando ideologias, perscrutando caminhos, dimensões da

alteridade, reivindicando e desejando humanização. Parafraseando Paulo Freire,

releitura e re-escrita da nossa realidade educacional, com ênfase no respeito às

diferenças, nas relações, na subjetividade como característica humana, bem como o

amor e o cuidado com o outro, perfazendo o andar desta caminhada. Vale lembrar:

O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre um processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz. (FREIRE, 2006a, p.99)

Nessa perspectiva, conceitualmente a educação para nós é revisitada na

significância real de ser o educando aquele que precisa:

assumir-se como tal, mas, assumir-se como educando significa reconhecer-se como sujeito que é capaz de conhecer e que quer conhecer em relação com outro sujeito igualmente capaz de conhecer, o educador e, entre os dois, possibilitando a tarefa de ambos, o objeto do conhecimento. Ensinar e aprender são assim momentos de um

5 Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), Campus Maria Auxiliadora - Americana - SP.

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processo maior – o de conhecer, que implica re-conhecer (FREIRE, 2006b, p.47, grifo nosso).

Conquanto possamos aderir às conceituações e práticas freireanas,

reclamamos ainda no momento do aqui e do agora voltados para a educação que

queremos para todos; voltados para a inclusão educacional vigente por meio do

riquíssimo legado que nos deixa Paulo Freire. Como pensar as relações também no

âmbito das necessidades especiais? Queremos crer que em nada difere do conjunto

de possibilidades que deve ser a visão do educador para com os educandos em geral.

Mas como se manifesta esta visão? Possibilidades que questionam verdades

únicas e prosaicas que vemos muitas vezes grassar em pessoas que compõem as

escolas em detrimento de ressoar nas relações educacionais um exercício de

aproximação que levem à compreensão do todo enquanto ser, enquanto lugar,

enquanto linguagem, pelo menos?

Não basta apenas tirar o véu que paira sobre essa realidade. Nós, educadores,

estamos subsumidos nela e como tal, nos propondo a conhecer o outro, aquela

criança autista e como que, numa experiência dialética de reciprocidade intentar o real

encontro de alteridade. Paulo Freire nos conduz à compreensão dos elementos

necessários e da convicção ética da construção de autonomia por meio do “com” o

outro, junto ao outro. Esperança para um sonho que vive a humanização: processo e

devir.

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1.3. Fazer fruto das palavras – educar, ensinar e aprender – cem por um.

ensignar, apreender

o seu nome era Maria.

como tantas das meninas,

sonhava crescer, amar

e tornar-se professora.

no quintal de sua casa,

entre as árvores e as nuvens,

dava aula aos passarinhos.

as mãos junto com as asas

aprendiam voo e chão.

desde cedo e para sempre

ensinar é ensinar-se,

aprender é aprender-se.

Severino Antônio

Educar, ensinar e aprender, tríade que enseja um sem número de outros

conceitos para que se dê verdadeiramente o que entendemos pelo despertar de cada

um na diferença, na diversidade, no seu espaço, no seu próprio recurso: o respeito, o

direito a ser, a autonomia, a autenticidade. Respeitar a criança na sua inteireza, no

seu jeito de ser como pessoa, como sujeito. A simplicidade que transparece nessa

assertiva que há muito emerge em determinadas abordagens educacionais,

paradoxalmente, apresenta uma dificuldade, complexidade no sentido de perceber

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que: “cada criança é feita da matéria do mundo, da circulação da vida, das

circunstâncias históricas e sociais, mas, ao mesmo tempo, feita de sonhos, movida

por desejos e sentidos que descobre ou atribui à vida” (ANTÔNIO, 2013, p.16).

É assim que se revela como sujeito com necessidades específicas biológicas,

físicas, espirituais e poéticas, entre outras. A relação, a mediação do docente pode

resumir-se em acolher, respeitar e conduzi-la ao seu vir-a-ser. Uma revolução de

aprendizagem que prevemos e que ainda se assenta na relação professor-educando,

no convívio, no estar com, no pensar o outro, sentir o outro, viver o outro (ANTÔNIO,

2010).

Paulo Freire desde sempre vem assegurar-nos da necessidade iminente do

cuidado com a formação dos professores: na reflexão da prática docente, na relação

pensada do professor com o aluno. A postura de mediador leva à reinvenção do ser

humano na relação educador-educando. Postura ética assentada na relação da

esperança numa prática de sujeitos que dialogam e se permitem mudanças. Relação

ética que salvaguarda a liberdade e a autonomia, práticas que não são ensinadas,

mas devem ser alimentadas todos os dias.

Aprender e ensinar pressupõem que se considere os saberes do educando.

Ensino ético que rejeita a discriminação e se assenta na aceitação do novo. Nessa

perspectiva, o docente vai dialogar e assim desperta a autonomia, a autoria do

educando, sua voz. Aqui se insere novo recorte de educação inclusiva, cujo diálogo

deve acontecer da mesma forma com o aluno no seu jeito de ser, na sua fragilidade,

vulnerabilidade social ou física. A intervenção do educador - nas diferentes dimensões

de educação - pressupõe a alteridade; pressupõe um docente mediador que acredita

que o aprendizado, na autonomia, reinventa o ser humano na relação de ambos,

educador-educando. Vale dizer, dar ênfase no “aprender-se”, lugar da

experimentação, das ações e interações. Fundamento de todo o zelo e atividade

dialógica do educador que chama o educando a ser.

Diálogo que encerra expressões em que “possamos ouvir as outras vozes que

se façam presentes na nossa voz” (ANTÔNIO, 2012, p.58) E não existe a última

palavra. Na relação entre sujeitos não há lugar para a dicotomia, para oposições

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binárias em que um sobrepõe-se ao outro, onde um fala e outro ouve, onde um dita e

o outro age, onde um ensina e outro aprende. No diálogo primamos pelo

distanciamento e pelo pertencimento (ANTÔNIO, 2012). Escutar as diferentes vozes

como meio de novas possibilidades de criação e recriação e de sentidos no contexto

da educação. E não nos parece que, neste contexto, haja um lugar específico para

uma ou outra relação, aquela com crianças em geral e as com criança com

necessidades educacionais especiais, em especial as autistas.

É o conhecimento que vem coroar o encantamento do mundo, bem como a

criação de sentido quando de encontro às indagações e perplexidades que povoam

as experiências dos educandos, crianças, adolescentes, jovens ou adultos, mas

também dos educadores. Encontro onde o diálogo tem seu lugar, porque “sendo o

diálogo uma relação eu-tu, é necessariamente uma relação de dois sujeitos” (FREIRE,

1974, p.115).

E, numa visão metafórica, o que são as relações de conhecimento senão uma

rede? Rede de saberes entre sujeitos. Nela, o que pode ser mais importante do que

seus pontos de intersecção? Eles a formam e, ao mesmo tempo, fortalecem. Depende

de como os ligamos, como apreendemos, criamos, recriamos, conduzimos, unimos,

para quando a lançarmos ao mar da vida, toda essa conjunção polissêmica,

harmônica e ao mesmo tempo dissonante, possa trazer à tona um ser único na

pluralidade e plural, na unidade.

Nessa perspectiva, o educar é encontro que busca conhecimento

reciprocamente e exige espaço pedagógico, que como um texto inacabado, para ser

constante, precisa ser lido, relido, escrito e reescrito em múltiplas vozes (SEVERINO

ANTÔNIO). Espaço de forte intersubjetividade que suscite a sensibilidade para que

se dê o que falta na humanidade, a humanização. Bom começo e medida seria que

frutificasse um por cento para alcançar, trinta, sessenta, cem por um.

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Capítulo 2. Na seara, com os sujeitos

“...‘voltar-se para o outro’, vale dizer, estabelecer relação autêntica e

genuína com o outro. Para isso é essencial voltar-se para o outro como ele é... para

a face vital dessa outra pessoa como à sua própria face; que dois seres se tornem

presentes mutuamente. Este “voltar-se para o outro” eu o denominei “dizer-Tu”, e

é a última exigência. Um homem pode considerar o outro como uma soma de

propriedades cognoscíveis, utilizáveis, ou então, ele pode conhecer o outro...

reconhecê-lo, experienciá-lo naquele sentido específico, como a relação amorosa

que às vezes é descrita como conhecimento”.

Martin Buber

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2.1. Com outro semeador: Emmanuel Lévinas – Breve apresentação

Emmanuel Lévinas, filósofo nascido em uma família judaica na Lituânia, um

dos países do Mar Báltico, em 30 de novembro de 1906 em Kaunas; falecido em 25

de dezembro de 1995. Viveu na França a maior parte de sua vida, naturalizando-se

cidadão francês.

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914), sua família se refugiou na Ucrânia.

Em 1923 emigrou para a França. Também viveu na Alemanha e aos 34 anos de idade

foi preso e levado para um campo de concentração de onde saiu somente com o fim

da guerra, no ano de 1945. No campo de concentração ficou sabendo da morte de

toda a sua família. (CINTRA, 2009).

Foi influenciado pela fenomenologia de Edmund Husserl, Martin Heidegger e

Franz Rosenzweig. O pensamento de Lévinas parte da Ética como filosofia primeira e

para ele é no face a face humano Eu – Outrem que acontece, irrompe o sentido: diante

do rosto do outro, o sujeito se descobre responsável.

A ideia de sujeito que é outro vem contrapor-se a Descartes para quem

encontrar o outro da mesma forma que encontra a si próprio é impossível. Lévinas

quer que se estabeleça uma relação em que o outro é o princípio, o outro é o centro

desencadeador, descentramento do eu.

Na contemporaneidade, em que as relações humanas atravessam crises, tem

lugar a ética para onde se desloca sua preocupação que inclui o outro. Nessa

perspectiva buscamos a contribuição de Lévinas para desvelar esse outro e sua

importância nas relações humanas, mormente as educacionais (MARTINS, 2013).

Para o desenvolvimento deste estudo temos procurado entender entre as

pessoas, homens e mulheres, na contemporaneidade, o que se pensa do ser outro,

para transferirmos sua relação à educação com vistas à humanização, uma das

maneiras de vencer crises na aproximação da ética.

Para Lévinas o Outro refere-se por o outro/outrem de mim mesmo. E o Mesmo

vale por o mesmo de mim mesmo, o Eu. (CINTRA,2009, p.17)

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2.2. Iniciando a semeadura: a alteridade, semente que lançaremos

como semeadores e com o semeador.

“Dou-me ao Outro e, aberto à sua alteridade, por mediação dele, recebo dele o

dom de mim, a graça de existir, por ter-me dado”.

Hélio Pelegrino

Esta pesquisa tem entre seus referenciais o filósofo acima citado, Emmanuel

Lévinas, na obra ENTRE NÓS, cujo tema central é a alteridade. Juntamente com ela

temos a intersubjetividade, categoria de urgência em nosso meio social e, queremos

crer, educacional, em que tudo parece demonstrar a premente necessidade de justiça,

emancipação, com responsabilidade de cada indivíduo, cada sujeito.

Intersubjetividade e alteridade, diálogo e encontro, busca de sentido nas relações

entre os homens.

A categoria da alteridade, conceituada como ser outro, como o reconhecimento

do outro, suscita uma experiência fenomenológica, na qual pensando o homem,

Lévinas numa “aventura pessoal” (LÉVINAS, 2009, p.33) vem contestar o primado da

ontologia para trazer à tona a relação absoluta da alteridade. Supera a ontologia pela

Ética, que é agora sua filosofia primeira, para que se dê a contento essa compreensão.

A opção pela obra “Entre nós” dá-se pela importância que o autor imprime

também à categoria da intersubjetividade, o que vem ao encontro da atualidade de

nossa sociedade quando nos deparamos com a solidão dos homens e mulheres,

mormente nas relações em que suscitam a responsabilidade de cada um como

necessidade premente ao buscarmos a alteridade para além do alcance da razão

solipsista, em vista de uma contribuição para com a educação. Temos por certo que

esta não é tarefa fácil, uma vez que Lévinas não escreveu, especificamente, um texto

voltado para a educação. A opção pela obra, e mais especificamente pelo autor vai

ao encontro de um empreendimento com vistas à própria experiência que

reconhecemos estabelecida em nossa vida profissional a ela relacionada, numa

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perspectiva de repensar a educação à luz deste viés levinasiano que a partir da ética

nos move a buscar nos atos essencialmente relacionais da prática educativa, aqueles

que integram a manifestação do ser em cada uma das partes envolvidas.

O “entre-nós” levinasiano advém da relação intersubjetiva apoiada no um ao

outro, no para-o-outro. Referimo-nos, com o autor, a uma relação de sujeitos que

carregam consigo a razão do saber imanente ao ser, que está na origem da filosofia

ocidental.

Lévinas retoma a ontologia na facticidade da existência temporal e contingente:

“nas suas preocupações temporais se soletra a compreensão do ser” (LÉVINAS,

2009, p. 22), que supõe todo o comportamento dos homens e mulheres,

comportamento humano, conforme sua preocupação de esclarecer que na

contemporaneidade:

o homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas necessidades, sua vida social e morte articulam, com um rigor que reserva a cada um destes momentos uma função determinada, a compreensão do ser ou a verdade (LÉVINAS, 2009, p.22).

A humanidade que buscamos compreender advém de um ser que é inteligível,

de um ser que se encontra ou é inseparável de sua possibilidade de abertura,

entendido na existência (LÉVINAS, 2009). Mas, é muito mais:

Ser eu é, mais além de toda a individuação que se pode obter de um sistema de referências, ter a identidade como conteúdo. O eu não é um ser que permanece sempre o mesmo, mas o ser cujo existir consiste em se identificar, em reencontrar sua identidade através de tudo o que lhe acontece. É a identidade por excelência, a obra original da identificação. (LÉVINAS, 1998, apud CINTRA, 2009, p. 20)

Ao elaborar uma compreensão do ser, Lévinas busca compreender nossa

situação no real, mas numa proposta afetiva, engajada no que se pensa, no estar-no-

mundo, e que comporta, outrossim, algo como que uma falta de habilidade em nossos

atos responsáveis para além de nossas intenções.

Nossa relação com o ser, consiste em querer compreendê-lo, porém, para

Lévinas esta relação vai exceder a compreensão. E, na condição de educadores, e

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com crianças autistas ousamos questionar: na sua singularidade poderá ou deverá

ser protagonista de sua aprendizagem?

Como mediador que desenvolve a cidadania no aluno, como enfrentar esse

momento educacional? Como alcançar esse ser que anuncia uma nova significação

diversa e atual de existir que, como lembra Lévinas (2009, p.79), “os existentes não

diferem mais por suas qualidades ou por sua natureza, mas por seu modo de existir”?

Na relação ideal de todos os homens e mulheres serem responsáveis pelos outros

(LÉVINAS, 2009), estamos a acreditar na necessidade de um trabalho pautado numa

perspectiva inter-humana que vá além da “coexistência de uma multiplicidade de

consciências” (LÉVINAS, 2009, p. 141), ou daquela determinada socialmente. Vale

ressaltar, mudar o “comércio interpessoal” - troca de bons comportamentos

estabelecidos na nossa realidade educacional prática - pela perspectiva inter-humana

da responsabilidade pelo outro, pela relação de um ao outro (LÉVINAS, 2009).

Relação dialógica conforme já identificara Martin Buber (2012) no que concerne à

alteridade, ao EU, ao TU. Conforme já vimos identificado em Paulo Freire.

Compreensão diametralmente diferente daquela eivada de atos

desnecessários, conforme exemplifica Lévinas: “Édipo, pelo fato de conseguir êxito,

opera para a sua infelicidade” (2009, p.24).

Numa reflexão que se propõe além da ontológica, outrem e interlocutor

coexistem em relações que se confundem, ou seja, aquele a quem se fala não é

compreendido previamente no seu ser. Compreender uma pessoa encerra exigências

que Lévinas vem esclarecer uma vez que a questão na nossa relação com outrem é

deixá-lo ser, mas aquele a quem se fala não é, previamente, compreendido no seu

ser? Se compreendemos uma pessoa já ao falar-lhe, contrapõe explanando:

Pôr a existência de outrem, deixando-a ser, é já ter aceito essa existência, tê-la tomado em consideração. “Ter aceito”, “ter consideração”, não corresponde a uma compreensão, a um deixar-ser (LÉVINAS, 2009, p.27).

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O eu separado que desvela um ser no conhecimento “é em relação a nós e

não kath’auto6 [...]” (LÉVINAS, 1988, apud CINTRA, 2009, p.30).

Ser, verbo que não atrai substantivos e que “exprime o advir ou o próprio fato

do acontecimento do ser” (LÉVINAS, 2009, p.263). Afirma “a realidade atual de uma

existência” (DUROZOI e ROUSSEL, 1993, p.432).

Nesta relação de ter aceito essa existência do outro, a chamamos ser, diz

Lévinas, mas ao chamá-la ser nós invocamos e deixando de lado somente o que ela

é, e dirigir-lhe a palavra já se negligencia o ser universal que é, para ser invocado o

ente particular que é. Em outras palavras, isso é mais do que curiosidade, simpatia ou

amor, ou quaisquer maneiras de contemplação.

O mesmo se diz para o ente7, - “o que é, ou seja, tem do ser sem coincidir com

a totalidade do último: é portanto o ser em situação, ou seja, o existente” (DUROZOI

e ROUSSEL, 1993, p.152) - ultrapassar o objeto conhecido não pode ser interpretado

como compreensão; neste caso o ente apreendido e reconhecido apenas enquanto

aparece como ser no mundo, demarca-se como posse e, mais, consumo do objeto.

Inadvertidamente, como pensa Lévinas, os nossos pensamentos vinculados a

essa existência interpretam-na como compreensão; na verdade, uma incompreensão

ou compreensão deficiente.

Porém, abordar outrem sem lhe falar é para nós algo muito difícil de entender,

até impossível. Ao encontrarmos com o homem ou com a mulher, já oferecemos a

compreensão, a nossa compreensão. Resta pois, que a característica que se

apresenta como própria de sua compreensão é a invocação de outrem. Mas a

invocação não é precedida de compreensão, mas de uma estrutura que nos oferece

Lévinas a partir do encontro com outrem que: “é ao mesmo tempo dado a nós e em

sociedade conosco, sem, que este acontecimento de socialidade possa reduzir-se a

uma propriedade qualquer a se revelar no dado, sem que o conhecimento possa

preceder a socialidade” (2009, p.29). Entendemos como um encontro ético.

6 kath'auto é grego, “segundo o próprio” (CINTRA, 2009, p.30) 7 ente- (“ens”)- processo ou acontecimento do ser – o sein. (CINTRA 2009, p. 52)

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E o questionamento que nos aflora: o que é irredutível à compreensão?

Diferentemente de Heidegger, cuja compreensão do ser particular já é estar além do

particular pelo conhecimento que é sempre conhecimento do universal, Lévinas apõe

a relação com o ente de início como compreensão, mas, repetimos, “esta relação

excede a compreensão” (LÉVINAS, 2009, p.26).

O encontro é, portanto, diferente do conhecimento. O encontro surge na

percepção que se refere ao indivíduo puro, ao ente como tal, distinto do conhecimento

que se projeta em direção de um horizonte que coincide com a liberdade e o poder de

apreendê-lo como indivíduo. E como saber ou perscrutar um meio de, nos encontros,

não reduzirmos à posse esse homem, esta mulher, esta pessoa, este outro?

O homem ou a mulher só podem ser numa relação em que são invocados. E é

enquanto próximo, enquanto rosto que Lévinas considera essa relação acessível. O

rosto do outro, o em face do outro é que nos convoca. O outro é significação do rosto,

sem contexto, sem cultura; ao contrário, ele vive num contexto e numa cultura e daí

tira ou recebe significação. Conferir-lhe significação tão somente a partir do horizonte

do ser, é cometer violência e negação de ser, pois aprisionado em nosso poder, esta

posse é “o modo pelo qual um ente, embora existindo, é parcialmente negado”

(LÉVINAS, 2009, p.31).

Ressalte-se que a compreensão que se dá a partir da história, meio, hábitos a

partir do horizonte do ser se oferece à nossa compreensão e posse. E o que foge à

nossa compreensão é tão somente o ente, porque foi apreendido na abertura do ser

em geral, vale dizer, no horizonte do ser. Não foi olhado seu rosto. Não encontrou seu

rosto. Não houve a ética do encontro, ou seja, a socialidade, segundo Lévinas.

A significância do rosto não deve ser entendida de modo estreito, mas como

diz Lévinas, deve aflorar até da “nudez de um braço esculpido por Rodin” (2009,

p.297). A significância do rosto vai além da compreensão e da significação a partir do

horizonte do ser. Ente enquanto ente, não concebido como ente ou como encarnação

do ser universal, mas como rosto, relação em que o invocamos e que significa por si

mesma. Conforme nos esclarece Cintra, o rosto do outro é uma intencionalidade às

avessas, e nas palavras de Lévinas:

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...a abordagem do rosto não é da ordem da percepção pura e simples, da intencionalidade que vai em direção à adequação. Positivamente diremos que, desde quando outrem me olha, sou-lhe responsável, mesmo sem ter de assumir responsabilidades a seu respeito. Sua responsabilidade me incumbe. Habitualmente cada um é responsável por aquilo que faz. Digo que a responsabilidade é inicialmente para outrem. Isto quer dizer que sou responsável de sua responsabilidade. (LÉVINAS, 2000, apud CINTRA, 2009, p.77)

A reflexão da compreensão do outro nos eleva à questão da responsabilidade,

e nela a subjetividade, descrita por Lévinas em termos éticos:

A ética não aparece como acrescentamento a uma prévia base existencial: é na ética entendida como responsabilidade que se tece o próprio vínculo do subjetivo. Entendo a responsabilidade como a responsabilidade por outrem, portanto como responsabilidade pelo que não me cumpre ou não me diz respeito: é abordado por mim como rosto [...] A responsabilidade não é um atributo da subjetividade, como se esta já existisse em si mesma antes da relação ética. A subjetividade não é um para si: de princípio é um para outrem. (LÉVINAS, 2000, apud CINTRA, 2009, p.78)

A questão da alteridade do outro e com o outro excede a compreensão que

desconstrói uma linguagem ôntica para construir a alteridade de sujeitos éticos. O

outro eu que não eu, é o primordial. Arranca do centro do mundo o eu privilegiado que

nesse sentido se coloca. Nesse diapasão Lévinas expõe:

Na colação do sentido do “eu” ao outro e também da minha alteridade a mim mesmo, pela qual eu posso conferir ao outro o sentido de eu – o aqui e o lá invertem-se um no outro. Não é a homogeneização do espaço que, assim, se constitui; sou eu – embora tão evidentemente primordial e hegemônico, tão idêntico a mim mesmo no nome “próprio”, tão bem na minha pele, no meu “hic et nunc”8 – que passo ao segundo plano: eu me vejo a partir do outro, exponho-me a outrem, tenho contas a prestar. (LÉVINAS,2009, p.123).

Responsabilidade que faz com excelência seu caminho por meio da

proximidade ética, na socialidade e no amor. Responsabilidade por outrem que faz o

caminho da espiritualidade proclamando o amor - que malgrado se nos apresente

como uma palavra gasta, no eu chamado a responder pelo outro, eu responsável pelo

8 “hic et nunc”- aqui e agora (NT)

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outro que o rosto convoca, na proximidade do próximo - este amor “é mais precioso à

alma que a plena posse de si por si” (LÉVINAS, 2009, p.107).

À guisa ainda desta responsabilidade que nos surge trazendo à baila a

categoria do amor, importa-nos ressaltar que desde o início desta reflexão, pesquisa

e estudo que pontuará as relações na educação, o termo amor sempre foi por nós

questionado, pois embora tenha uma significância específica na temática, emerge

com o significado que como diz Lévinas é gasta, desgastada. A ênfase que dá a ela,

longe de tal temeridade deve ser entendida na sua mais séria profundidade:

pressuposta que é por toda a cultura literária, por todas as bibliotecas e ainda por toda

a Bíblia nas teses de sua sublimação e profanação, concebe a responsabilidade pelo

outro na gravidade especial do amor do próximo; conquanto pareça desgastada é

palavra que na mais mediana reflexão do nosso cotidiano revela e refere-se

verdadeiramente à aceitação do outro. Na cotidianidade é o que nos faz abertos à

aceitação do outro legitimamente outro nas relações inter-humanas.

Ademais, segue-se que, em uma voz convergente com a de Lévinas:

o amor é emoção central na história evolutiva a que pertencemos desde o início, e toda ela se dá como uma história em que a conservação de um modo de vida no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto. Num sentido estrito, nós seres humanos nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do sofrimento vem da negação do amor; os seres humanos somos filhos do amor (MATURANA, 2001, p.23).

A aceitação do outro, no contexto, a aceitação da criança autista, cuja

linguagem pode estar implícita em formas e representações diversas, muitas vezes

não ganha corpo, como se diz, de uma planta que ganha raízes... Se padece aí, a

semente...como enfrentar o desafio? Em pauta, a atitude do questionamento.

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2.3. Se padece a semente... Sobre o autismo e a alteridade.

“Os cromossomos não têm a última palavra.”

Reuven Feuerstein

Como campo de possibilidades, para tratar da criança autista e sua

entronização no processo educacional inclusivo, faz-se necessário conceituá-la,

trazer algumas concepções sobre ela formuladas para que sejam conhecidas de

professores e pedagogos, bem como seus pais e responsáveis e ainda quaisquer

daqueles que com ela interagem.

Ao buscarmos uma educação para a autonomia, para a emancipação, para a

formação de sujeitos que pensem por si mesmos, que falem por sua própria voz, é

imprescindível pensarmos a alteridade. Os sujeitos se formam nos diálogos com

outros sujeitos: reconhecem-se uns nos outros. A dimensão das relações

intersubjetivas é inseparável das práticas educativas, singularmente na concepção

sociocomunitária, ainda mais sob a perspectiva da educação inclusiva.

Como então optar pelo melhor caminho e nele fazer justiça ao lugar da criança

autista nas relações humanas? Como a alteridade poderá estabelecer-se na criança

autista, que traz com ela as dificuldades de interação social? Relação de sujeitos.

Relação dialógica entre sujeitos, entre “eu” criança autista, entre “eu” educador.

Embora o propósito deste trabalho não seja discutir a etiologia do autismo, faz-

se necessário uma breve abordagem das duas referências predominantes. A do

autismo na perspectiva psiquiátrica e na perspectiva psicanalítica.

E, afinal, o que é autismo infantil?

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No terreno psiquiátrico, Leo Kanner, nos anos 40, empenhou-se na construção

de uma nova entidade nosográfica que se aplicava a certas crianças que se

distinguiam por “sua extrema retração desde o início da vida” (DUROZOI e ROUSSEL,

1993, p.56) - o autismo infantil precoce – que seria dali em diante conhecido sob o

nome de Autismo de Kanner. Paul Eugen Bleuler (1857-1939) havia implantado o

termo autismo em 1911 para unificar o campo das psicoses:

os esquizofrênicos mais gravemente atingidos, os que não têm mais contato com o mundo externo, vivem num mundo que lhes é próprio. Fecharam-se com seus desejos e suas aspirações (que consideram realizados) ou se preocupam apenas com os avatares de suas ideias de perseguição; afastaram-se o mais possível de todo o contato com o mundo externo. A essa evasão da realidade, acompanhada ao mesmo tempo pela predominância absoluta ou relativa da vida interior, chamamos de autismo (DICIONÁRIO, 1996, p.56).

Não obstante as dificuldades das pesquisas atuais e científicas sobre as causas

etiológicas e, consequentemente, de tratamento e cura do autismo até o presente

momento, impõe-se-nos trazer a este estudo o entendimento do Ministério da Saúde

que implementa a nível nacional a presente política que ora apresentamos.

A Lei 12.764 de 27/12/12 (ANEXO II), que institui a Política Nacional de

proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo hoje

considerada Pessoa com Deficiência para todos os efeitos legais ensejou as

Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do

Autismo (ANEXO I), em tese, fruto de ação conjunta de pesquisadores, especialistas,

profissionais, Sociedades Científicas e Profissionais e a representação da sociedade

civil debruçados em material nacional e internacional dos últimos 70 anos. De forma

que, o diagnóstico fechado da criança autista encaminha-a à reabilitação. E apresenta

este documento que historia o direcionamento na atualidade. Senão, vejamos.

Após ser considerado por alguns anos como um tipo de psicose, a partir dos

anos 80 o conceito de Autismo Infantil passa a:

ser agrupado em um contínuo de condições com as quais guarda várias similaridades, que passaram a ser denominadas de Transtornos Globais (ou Invasivos) do Desenvolvimento (TGD) . Mais recentemente, denominaram-se os Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) para se referir a uma parte dos TGD: o Autismo; a

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Síndrome de Asperger; e o Transtorno Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação” (BRASIL 2013, p. 14).

Sem ainda uma etiologia especificada o autismo, considerado como uma

síndrome neuropsiquiátrica, e conforme a Diretriz, seus sintomas e sinais devem

surgir antes dos 3 (três) anos de idade e apresentam três principais grupos

característicos: problemas de linguagem; na interação social e nos comportamentos -

restrito e repetitivo – (BRASIL, 2013). O autismo que aqui abordamos pode ser

entendido como o Transtorno do Espectro do Autismo por estar alocado com diversos

sinais e sintomas que podem ou não estar presentes, mas as características de

isolamento e imutabilidade de condutas estão sempre presentes conforme

entendimento nas políticas públicas apresentadas pela Diretriz. E ainda entre as

demais características temos as dificuldade para estabelecer vínculos como pessoas

ou situações; ausência de linguagem ou incapacidade no uso do significativo da

linguagem; boa memória mecânica; ecolalia (repetição de uma ou mais palavras);

recusa de comida; reação de horror a ruídos fortes e movimentos bruscos; repetição

de atitudes; manipulação de objetos; físico normal; família normal (BRASIL, 2013),

acrescidos ainda dos sinas que o documento entende como básicos: o isolamento e

a imutabilidade. Tais sinais convergem ao conceito acima destacado.

Conquanto avancem as pesquisas científicas, ainda convivemos com as

incertezas e indefinições que percorrem difíceis caminhos na busca das causas ou

etiologias do espectro do autismo.

Entendemos que autismo e alteridade podem ter seu entendimento ampliado,

pelo menos em parte, quando suas bases epistemológicas possam ser aventadas em

algumas de suas concepções como a apresentada pela psiquiatria moderna e aquela

apresentada pelo referencial teórico da psicanálise, não aventada no documento

acima. Para isso valemo-nos do artigo de Tamara da Silveira Valente9 e o de Maria

Cristina Kupfer10, cujas argumentações dessa última poderão indicar intervenções em

crianças autistas, mormente em fase escolar inclusiva.

9 Professora adjunta do Departamento e Teoria e Fundamentos da Educação do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná.

10 Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – Psicanálise.

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Valente em seu artigo, A ausência de alteridade no autismo: duas perspectivas,

apresenta abordagem sobre o autismo a partir de Leboyer (1995, apud VALENTE,

2010) em seu livro Autismo infantil: fatos e modelos, que circunscrevem a síndrome

na vertente psiquiátrica e apresenta-nos três modelos: o Modelo Psicodinâmico; o

Modelo Orgânico e o Modelo Intermediário. O primeiro, modelo psicodinâmico vem

explicar a causa do autismo a partir da dinâmica familiar (morbidade e estudos de

gêmeos) e, segundo essa concepção estão em pauta os fatores genéticos ou

exógenos.

Os estudos, nessa esteira, em modelo genético mostram que prevalece em

meninos e é mais severo em meninas e esbarram em, pelo menos, duas dificuldades:

a de se encontrar um filho de pessoa autista e o pequeno número de autistas

diagnosticados. Estudos de família mostram que há risco entre irmãos de um autista,

mas as investigações em estudo sobre gêmeos sugerem que a transmissão do

autismo não é hereditária, mas um déficit na linguagem, reforçando a ideia do autismo

ser uma anomalia cognitiva. (VALENTE, 2010)

Faremos aqui um recorte para especificar quanto os cientistas travam luta na

busca de causas, e a velocidade que nos chegam os primeiros resultados, dentre os

quais podemos incluir trabalho recente de pesquisadores do Hospital Infantil de

Boston e da Faculdade de Medicina de Harvard, ambos nos Estados Unidos da

América, que apontam para uma mutação genética que pode explicar por que o

cérebro de autistas funciona de maneira diferente. Publicado em artigo recente, no dia

30 de setembro de 2014, advém de publicação em revista Cell Repor, e de acordo

com Chiara Manzini, líder do estudo discorre sobre as mutações no gene isolado -

CC2D1A – :

“São problemas heterogêneos, ou seja, causados por genes distintos. Então tivemos que focar em grandes famílias como muitas crianças afetadas de modo que uma análise genética pudesse ser realizada de forma independente”. As famílias escolhidas são do Oriente Médio, como detalha pesquisadora: “Pais com cerca de oito a dez filhos são comuns nesses lugares” [...] Enquanto as crianças afetadas apresentavam níveis de leve a grave de deficiência intelectual, alguns irmãos também tinham autismo ou convulsões, mostrando que a mesma mutação pode causar diferentes manifestações.” E, como pondera o psiquiatra Jaime Vaz Brasil: “Ainda não se sabe o potencial da descoberta em termos de criar um tratamento efetivo a curto prazo,

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pois os estudos para esta etapa ainda dependem de outras descobertas” (FRANCO, 2014).

Dando continuidade, o segundo modelo, o orgânico, por outro lado, considera

os numerosos casos de autismo associados às patologias que induzem uma

disfunção cerebral como os acidentes pré, peri e neonatais. Há hipóteses apoiadas

em déficit de imunidade que tornaria o feto suscetível a infecções virais, o que

desencadearia as lesões cerebrais.

Ainda sobre o artigo de Valente, o modelo Intermediário, supõe a presença de

muitos fatores patológicos ao mesmo tempo e busca saber qual a etapa do

desenvolvimento, se perturbada, conduz à síndrome do autismo, propondo estudos

em três eixos: o neurobiológico, o neurofisiológico e o cognitivo, este último, apoiado

em vários estudiosos (Leboyer, 1995; O’Connor, 1970; Frith, 1984; Rutter, 1978 e

Ornitz, 1983) que encerra a criança autista na impossibilidade de possuir

representação mental interior, interações sociais, linguagem, bem como dá ênfase à

necessidade da imutabilidade, e expõe a conclusão de Leboyer com eles que:

o autismo pode ser visto, portanto, como uma psiquiatria em desenvolvimento, e acrescenta que talvez assim se possa integrar a heterogeneidade clínica e etiológica. Então, a perspectiva de desenvolvimento psiquiátrico constitui a ligação entre o determinismo genético e ambiental, entre a psicologia social e a individual e entre as etiologias psicogenéticas e organicistas. (VALENTE, 2010, p. 142).

Na perspectiva de uma causa psíquica à questão etiológica do autismo, Valente

cita Jerusalinsky no livro Psicanálise do autismo (1984, apud VALENTE, 2010) que se

posiciona favorável ao desequilíbrio em relação ao encontro da mãe e o filho. Para

Jerusalinsky, ambos - mãe e filho – mesmo implicados nele, não desconsidera o fato

de tal fator muitas vezes não parecer estar presente. E que deve ser buscado, ativado,

por uma articulação psíquica.

Na perspectiva de uma causa psíquica, a abordagem da autora Kupfer é trazida

à temática por Valente como difundindo a ideia da falha no desejo materno e, por isso

diz essa última: “o Outro, a alteridade, não realiza sua função na constituição do

psiquismo da criança autista” (VALENTE, 2010, p.145)

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Com os autores acentua Valente que é a mãe, o Outro11 no sistema de

atividades constitucionais da criança que vai preenchendo o filho de significantes,

necessários à sua constituição psíquica. E introduz aí o que entende por um

impedimento, já que a mãe carrega uma marca significante que impede

imaginariamente que o filho a complete: a Função Paterna. Nessa perspectiva e em

articulação com Rocha (Autismo: Controvérsias na Psicanálise,2002) expõe as

controvérsias sobre o papel da estruturação subjetiva do psiquismo da criança autista

que vem concluir: “nada aproxima a criança psicótica e/ou autista de um sujeito de

desejo, um sujeito do inconsciente e, o segundo ponto, o autismo antecede a psicose.

De um modo ou de outro, a alteridade não é reconhecida.” (VALENTE, 2010, p.147)

Para Kupfer, a função paterna vem estabelecer-se na psicose infantil e

articulada com Mannoni vem dizer:

a criança psicótica faz parte de um mal-estar que é o efeito de um discurso coletivo. As condições para a cura de uma criança psicótica só são operantes a partir das transformações que deverão ocorrer no nível da palavra da criança que, alienada no discurso dos pais, precisará se separar desse discurso (KUPFER, 2000).

Acrescenta ainda que a psicose em criança e adulto tem maneiras diferentes

de se dar, mas não deixa de mostrar as marcas de irredutibilidade de discursos que

determinam impossibilidades de se deixar lugar que seja para a questão do sujeito.

Kupfer vem propor, como o faz Jerusalinsky, uma forma mais simples de diferenciar

psicose de autismo quando estabelece os termos da seguinte forma: “no autismo falha

a função materna, na psicose, falha a função paterna” (KUPFER, 2000).

A respeito da função materna, reproduzimos a citação de Kupfer feito por

Valente que vem dizer da função do Outro, a mãe de uma criança autista, na

constituição do psiquismo da criança autista:

No exercício dessa função, uma mãe sustenta para seu bebê o lugar do Outro primordial. Impelida pelo desejo, antecipará em seu bebê uma existência subjetiva que ainda não está lá, mas que virá a instalar-se justamente porque foi suposta com seu olhar, seu gesto, com

11 O conceito de Outro, escrito com letra maiúscula, se encontra na obra de Jacques Lacan, e busca estabelecer uma distinção em relação à ideia de “outro”, que designa o semelhante, o parceiro imaginário ... (KUFPER, 2000)

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palavras, o mapa libidinal que recobrirá o corpo do bebê, cuja carne sumirá para sempre sob a rede que ela lhe tecer (KUPFER, 2001 apud VALENTE, 2010, p. 144).

Neste diapasão e a partir da própria Kupfer, o entendimento de que essa tarefa

que se dá no encontro, na relação – função da mãe no mapa libidinal da criança:

não depende de nenhum ato de volição , mas se faz em um cotidiano construído de pequenos e imperceptíveis reconhecimentos recíprocos, dos quais escutar o choro de seu bebê sem que ninguém mais o houvesse escutado é apenas um exemplo banal e já conhecido. Do lado do bebê, é muitíssimo cedo que o vemos virar a cabeça, reencontrar a gestalt do rosto materno que saíra de seu campo de visão, e lhe sorrir [...] Quando esses atos de reconhecimento começam a falhar, e se perde a sua constante realimentação, vemos surgir, logo por volta de seis meses de idade, os primeiros traços autistas (KUPFER, 2000).

Daí que, conforme alerta Kupfer, a falha da função materna pode também trazer

seus indesejáveis efeitos, como a inoperância da função e desejo maternos, mas a

falha no encontro da mãe com o bebê poderá, outrossim, sofrer intervenção, a

princípio na dinâmica familiar pois, como atenua Jerusalinsky: “As psicoses infantis

precocíssimas devem ser consideradas, de um modo geral, como não decididas”

(JERUSALINSKY apud KUPFER, 2000).

Ao priorizar a falha neste encontro entre mãe e bebê, - pois não se sabe se foi

a mãe que não fez o investimento libidinal, ou se a criança o fez, mas para de

responder, - existe a possibilidade de que se a criança para de responder, a mãe pode

parar de investir... Assim, não se deve minimizar o valor do encontro mãe-bebê, cuja

relação opera em universo complexo “que começa com o material com o qual a

criança vem ao mundo e termina no entorno social em que mãe e bebê encontram-se

mergulhados” (KUPFER, 2000). Vale dizer, não culpar mãe alguma, mas

responsabilizá-la, ou seja, fazê-la perguntar-se a respeito da parte que a si cabe na

criação dos seus filhos, o que proporciona a intervenção. Como diz Kupfer, de maneira

geral, as “desculpabilizações” das mães neste contexto existem, e efetivamente as

mães não têm culpa, mas a sociedade moderna, ao desculpabilizá-las, também as

desresponsabilizam. Responsabilidade e culpa, encontram em Kupfer a significação

que segue:

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Responsabilizar uma mãe significa engajá-la neste movimento de resgate do que não pôde acontecer quando seu filho era ainda um bebê, seja porque ele não facilitou as coisas por ser, por exemplo, cego, surdo, ou hipotônico, seja porque ela vivia um momento em que se encontrava "apagada" para o exercício da função materna. Culpá-la, de outro lado, significa apoiar-se nos sinais imaginários que a nossa cultura habituou-se a pensar como relevantes quando se trata da maternidade: pegar no colo, acarinhar, amar loucamente seu bebê são sinais que, ausentes, podem fazer adoecer, segundo os cânones de nossa cultura. E segundo os de Kanner. Uma mãe que não os exerce pode então ser culpada: você não o ama o bastante, você o deixou abandonado aos cuidados de uma babá, dizem em uníssono a mídia, os pediatras e muitos educadores mais severos. Mas se pudermos deixar de lado esses sinais imaginários, então será possível encontrar, de um lado, uma mãe "fria" – que não fica o tempo todo a agarrar e beijar seu filhinho –, que foi capaz de exercer sua função, que pôde colocar em ação seu desejo inconsciente, e de outro, uma mãe efusiva, amorosa, que não pôde, todavia, olhar para seu filho de modo a fazer operar a especularização. Nenhuma delas é intencionalmente culpada, mas ambas são responsáveis pelos destinos subjetivos de seus filhos (KUPFER,2000).

Na esteira da tese que afirma ser o autismo um significante moderno que dá

nome ao fenômeno estrutural na constituição do sujeito, considera que a criança

autista não poderá deixar de sofrer os efeitos desse lugar moderno em que está

situada e que vem carregado da exclusão da linguagem, da circulação social que

acarreta a invisibilidade social. E muitas vezes, “submetido a técnicas de

condicionamento para permanecer aí, na borda, lugar em que ele, de forma valente e

surpreendente, se equilibra” (KUPFER, 2000).

De forma que a conclusão de ausência de alteridade, trazida na reflexão de

Valente que tanto a psiquiatria que expressa os sintomas de isolamento e

incapacidade de relações sociais, quanto a psicanálise, pela falha na função materna,

ambas concluindo pela ausência de alteridade no fenômeno do autismo, não se

justifica na sua totalidade.

Não se pode desconsiderar que os traços autistas, como esclarece Kupfer,

surgem sempre associados a outras patologias e até na psicose infantil, onde não se

estruturou o estágio do investimento libidinal. Os psicanalistas “que escutam as mães

dessas crianças, que as deixam falar, que lhes abrem as condições para que se dê

esse corajoso enfrentamento de si, têm colhido resultados.” (KUPFER, 2000).

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Em nossa concepção, esses resultados apoiados nessa escuta que

proporciona o encontro da mãe-filho podem vislumbrar possibilidades de nos valermos

da alteridade quando esta criança chegar na escola e fora da escola, nos trabalhos

de proximidade do educador e da criança autista.

Ademais disso, no início deste ano, o jornal Folha de São Paulo publicou

pesquisa científica sobre um levantamento grande e robusto como jamais feito

anteriormente, por equipe da Suécia, - considerado pelos autores da pesquisa como

um país organizado e igualitário, pois naquele país, “há um registro nacional completo

de nascimentos e outro de pacientes. Aos 4 anos, as crianças em idade de pré-escola

passam por exames de desenvolvimento mental, social e motor” (LEITE, 2014).

Liderada por Sven Sandin, do Instituto Karolinska, faz-nos reconsiderar o

autismo como doença genética, pois “o estudo do Karolinska diz que só a metade da

chance de manifestar transtornos do espectro do autismo deriva dos genes” (LEITE,

2014)

Esta conclusão apoia-se em informações de amostra que inclui todos os

nascimentos ocorridos na Suécia de 1982 a 2006, ou seja, 2.049.973 crianças e o

cruzamento das informações nos pares de gêmeos, 37.570; 2.642.064 pares de

irmãos; 432.281 pares de meio irmãos e outros 445.531 pares de meio-irmão

paternos. E ainda, 5.799.875 pares de primos. Essas informações e grandes números,

encerrados na memória de computadores, no tipo de pesquisa denominada “big data”,

revelam a grande magnitude dessa pesquisa. E como resultado, o autismo pode

decorrer só com metade da chance de derivar-se dos genes e a outra metade como

decorrente de condições no ambiente, mas o trabalho ainda não dá palavra sobre

isso, alertando, todavia, sua relevância para orientação às famílias.

A propósito de nossas questões que envolvem prioritária e concorrentemente

as de alteridade, buscamos nestes embasamentos teóricos, que fazem antever

diferentes resultados, experimentar diferentes modos de ver a criança autista (muitas

vezes sem ter obtido ou necessitar de diagnóstico fechado) e a alteridade.

Considerando, a princípio, a importância de ambas as concepções, a seu

tempo e a seu modo neste complexo contexto de fenômeno estrutural e interrogações

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sobre a subjetividade, questionamos: determinismos ou possibilidade de encontros?

Reabilitação apenas comportamental ou intervenção com o ambiente, a família, e com

a criança autista quando maior, em escolas inclusivas? Trazemos à baila a voz de

Hélio Pelegrino12 a esclarecer que:

a psicanálise visa ao encontro entre duas pessoas, já que o centro da pessoa é a liberdade. Não há liberdade sem abertura ao Outro, sem consentimento na existência do Outro como tal enquanto tal. Os distúrbios emocionais podem ser conceituados em termos de limitações ou distorções nessa Abertura, implicando uma perda de disponibilidade com respeito ao Outro. Se minhas ansiedades básicas exigem de mim que faça do outro um instrumento de meu esquema de segurança, já não posso aceitar o Outro como fim em si mesmo – isto é, em sua essência de ser-outro. Vou inventá-lo à imagem e semelhança dos meus temores, tomo-me o eixo de referência ao qual o Outro deve refletir-se e submeter-se (PELEGRINO apud LISPECTOR, 1999, p.53).

Nós, educadores, devemos nos valer da intencionalidade em que o nosso aluno

autista avance um pouco mais à frente, que seja aceito e reconhecido como sujeito,

com desejos e manifestamente Ser. Intentamos uma reflexão que gere estratégias

interventivas na contracorrente de pensamentos deterministas. Pensamos que a

pessoa humana é infinitamente mais importante do que seus sintomas muitas vezes

acomodados no fatalismo. Se há possibilidades, é aí que o educador com sua

alteridade, que dá abertura ao outro, vai se valer para, com responsabilidade, com

amor, proporcionar avanço, contribuição possível com as crianças autistas.

À guisa de finalização, o primeiro ato de nossa liberdade pessoal começa nas

escolhas, e estas, por sua vez, carregam consigo possibilidades de mudanças. Resta

não prescindir delas.

Quando intencionamos a humanização, que por sua vez é impregnada de

saberes e fazeres diversificados, ela reclama de nós, homens e mulheres, - na trama

das relações pessoais, educacionais, sociais, intelectuais, acadêmicas, científicas e

12 UM HOMEM CHAMADO HÉLIO PELEGRINO: Fragmentos da entrevista à Clarice Lispector, “De Corpo Inteiro”: Ed. Rocco, RJ, 1999.

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tantas outras - o olhar voltado à inteireza humana, no qual impera a troca, a aceitação,

a colaboração, o estar sendo. Nisso residem as tão preciosas possibilidades.

Por isso, neste contexto, revelam-se significativas as possibilidades de retirar

os espinhos, não deixar abafarem, arrefecer esta semente.

Retirar os espinhos entendidos como entraves que encontramos nesta

desafiante messe: o da submissão e segregação da criança autista, que pode

arrefecer a abertura e disponibilidade ao outro. Nessa semeadura, a criança é pessoa

humana, antes de ser autista, e pode valer-se do encontro, da relação com o outro,

da alteridade do outro como luz, água e ar para revigorar-se e alcançar melhor

qualidade de vida, ela; e nós todos, novo patamar da humanização.

2.4. Se padece a semente... Necessidade de sujeitos éticos

“O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte que ela. Só

ele, e não a razão inspira pensamentos bondosos”

Thomas Mann

Nossa preocupação com a categoria do amor, desperta o lado humano da

convivência com o sofrimento, mormente quando se trata de relações com crianças

com necessidades educacionais especiais, aqui nos referindo às autistas. Como

perscrutar esse amor na sua forma mais grave, mais séria, sem que projetemos nele

nossa liberdade e poder, como adverte Lévinas, para compreender a criança autista

como ela é?

Uma das reflexões mais recorrentes no andar desta pesquisa foi, sem dúvida,

o sofrimento. Durante toda a elaboração, durante as leituras, apresentação de

trabalhos acadêmicos a ela relacionados, estágios, observação participante, relato de

experiências, conversas informais, em tudo, o sofrimento humano irrompeu. Mistura-

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se no viés poético da dor, a esperança da unidade de cada pessoa desaguar na

diversidade da humanidade.

Não por acaso a opção da referência bibliográfica que recai sobre Emmanuel

Lévinas contribui e muito para esse deságue. Ele reflete o mundo, o ser, o ente, a

pessoa, o sujeito, cada rosto, cada Eu-Tu, saído que foi de um século de sofrimento

inominável. Lévinas relembra sofrimentos atestados naqueles expiatórios dos justos

sofrendo pelos outros; o sofrimento que ilumina se pensado na tradição espiritual da

humanidade; no sofrimento do amor, religioso ou não, diríamos, que expia pelo outro.

Quando evoca aqueles que têm problemas mentais – e aqui nós lembramos a criança

autista – menos favorecida nas relações com o outro e que é o grande mote desta

pesquisa, a sua dor é a “dor pura” (Lévinas, 2009, p.131), que se projeta em nós e

levanta a bandeira do sofrer: o salto qualitativo que vem encampar a ética suscitando

o dever perene, prioritário, específico, inevitável de alcançar-lhe uma melhor

qualidade de vida. No seu próprio desordenamento, no seu próprio não-sentido

desponta uma possibilidade: o socorro do outro, o eu, na alteridade que se abre para

o despertar de um sono à vigília ética que fertiliza a trama das relações, o inter-

humano.

Dessa forma, nossa vida toma sentido e as aventuras nela vividas com o

sofrimento. O sofrimento do outro, ou como chama Lévinas, sentimento em outrem

me invoca, chama e a atenção que evoca clama por ação, inter-ação no seio da mais

profunda subjetividade humana elevada por Lévinas a um “supremo princípio ético –

o único que não é possível contestar – e até a comandar as esperanças e as

disciplinas práticas de vastos agrupamentos humanos” (2009, p.133).

E as escolas, ou outros grupos de formações educacionais, mormente aquelas

inclusivas, em que o princípio ético deve precipitar como forma de sentido, têm

reclamado o sentido no exame do sofrimento ou na perspectiva inter-humana? Têm

reclamado os recursos do eu em cada um e a seu sofrimento e ao sofrimento do outro?

A disposição inter-humana levada à dimensão de sentido está:

numa não-indiferença de uns para com os outros, numa responsabilidade de uns para com os outros, mas antes que a reciprocidade desta responsabilidade, que se inscreverá nas leis

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impessoais, venha sobrepor-se ao altruísmo puro desta responsabilidade inscrita na posição ética do eu como eu (LÉVINAS, 2009, p.141).

Não raro, percebemos ausência do encontro, da incorporação de cada um Eu

nesse outro. Do Tu e Eu, o que caracteriza um estreito modo de encontro.

É a dialogicidade do EU-TU como o conceito de relação que designa o que

essencialmente acontece entre os seres humanos; é a experiência dialógica se

revelando pela palavra; existe inter-ação “entre” EU e TU. Para Buber, filósofo que é

fonte do pensamento de Lévinas, a palavra-princípio, EU-TU, está fundamentada na

necessidade do diálogo, da relação e criação. Compreendida no par EU-TU, vai ser

proferida para buscar uma relação autêntica, pois “ela atua sobre mim e eu atuo sobre

ela” (Buber, 2012 p. 56). É reciprocidade, é ato essencial. É ato de escolha: o de ser

escolhido e o de escolher. É encontro: “o EU se realiza na relação com o Tu; é

tornando EU que digo TU” (Buber, 2012 p. 57). A relação com o TU é imediata e só

se instaura quando o TU se torna presente (Buber, 2012), vale dizer, permanece. Este

TU que para Buber ensina a encontrar o outro e permanecer. Este Tu que deve ser

dito verdadeiramente para proclamar a humanidade que buscamos.

O Tu que Buber encontra na natureza quando considera uma árvore. Árvore

que apreende na imagem, sente-a no movimento, classifica-a em espécies ou pode

eternizá-la, tornando-a um número mantém, entretanto, sua natureza e composição:

Tudo o que pertence à árvore, sua forma, seu mecanismo, sua cor e suas substâncias químicas, sua “conversação” com os elementos do mundo, com as estrelas, tudo está incluído numa totalidade. A árvore não é uma impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta “em pessoa” diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho a ver com ela. Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade (BUBER, 2012, p.54).

Assim como na concepção de Buber, em Lévinas, a proximidade do outro

sugere aceitação na ordem inter-humana, mediação que inscreve a alteridade e nos

vemos a partir do outro, numa relação de reciprocidade e que deixa ser.

A proximidade do outro, no caso da criança autista, nesta relação de ensaios

de inter-relação, o domínio do afeto e do amor espontaneamente faz estender a

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relação do eu para o outro, do eu pelo outro, pela sua significância congênita, ou seja,

numa relação que pode nascer com o amor, que já vem com a própria pessoa. Revela

o amor (LÉVINAS, 2009).

Conhecer a alteridade, às vezes, invoca e evoca o também sofrimento do outro

e o sofrimento em mim, em nós. A nós, deve ascender um fator ético que essa dor

suscita: o socorro do outro. Metaforicamente, desafogando-nos dos espinhos da

indiferença, do amor desgastado que se insere nesta relação, que se apõe como dado.

Conhecer a alteridade, vivê-la integral, etica e responsavelmente, certamente

virá em prol da minimização de tão intoleráveis sofrimentos. Arrancar-lhes os espinhos

da indiferença, sinal de amor no encontro ético, deixar o outro ser para poder despertar

à responsabilidade. Não se pode prescindir do cuidado presente e necessário nas

relações humanas, mormente aquelas educacionais e/ou inclusivas. Afinal, há

possibilidades na semeadura: os espinhos crescem e abafam, mas o cuidado em

detê-los não deixará a semente morrer.

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Capítulo 3. Na seara, a importância do cuidado

“O segredo no cuidado do paciente está no cuidado com o paciente.”

Francis W. Peabody.

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3.1. Com outro semeador: Jean-Yves Leloup – breve apresentação

Jean-Yves Leloup é filósofo contemporâneo, escritor, doutor em Psicologia,

sacerdote ortodoxo, conferencista, nasceu na cidade de Angé, França em 24 de

janeiro de 1950. De formação pluridisciplinar de rara complementaridade é defensor

da união entre a ciência e a espiritualidade.

Costuma visitar o Brasil, especialmente Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro a

convite da Universidade da Paz (Unipaz) e outras.

Debate e reflete, ministra conferências em muitos países do planeta e entre os

temas que desenvolve em suas obras estão o sagrado, a interação entre o indivíduo

e a sociedade, a jornada humana, a morte, o ser. Participa de muitos colóquios sobre

Psicologia Transpessoal e seu conceito de educação carrega o princípio de que é

necessário levar em conta todos os componentes do ser humano: físico, afetivo,

emocional, religioso e intelectual.

Encontra na Natureza lições preciosas que embasam seu pensamento

filosófico, com categorias da Transdisciplinaridade, Silêncio, Amor, Paz,

Complexidade, Cuidado.

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3.2. A semente do cuidado recolhida do tempo com Fílon de Alexandria

Cuidados

numa hora de almoço

a mãe colocou no prato

uma comida diferente.

A menina estranhou,

mastigou bem devagar,

olhando só para o lado.

com muito cuidado, a mãe

quis saber se ela gostou.

com maior cuidado, a filha,

delicada, respondeu:

“gostei, mas do tamanho

duma formiga bebê.”

a matéria e as metáforas

fazem as transmutações

do alimento e dos amores.

Severino Antônio

Se os cuidados que se devem ser conferidos às nossas crianças em ambiente

educacional nas relações de proximidade com o próximo, do eu com o outro, em

quaisquer esferas, inclusivas ou não ou de qualquer forma, regular ou não, nas

invocações de cada rosto, nas interações de sujeitos, tivessem a força dessa

“transmutação” (ANTÔNIO, 2014, p.27) que vemos acontecer nessa escuta de voz da

infância captada pelo autor...

Tais cuidados que pensamos se deverem às crianças por aqueles que com elas

interagem na esfera educacional – esfera inclusiva – são também o mote deste estudo

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que vem desvelar o que é este cuidar, cuidar de alguém que pode ser doente ou não;

como cuidar do ser que em geral é único, mas é também plural.

A opção pelo “semeador” Jean-Yves Leloup deve-se à secular antecipação

desta ação de cuidar e cuidar do ser. Na história da cultura ocidental, desde os

Terapeutas de Alexandria já temos antecipado o ato de cuidar. Cuidado que não se

limita a cuidados na doença, mas também do corpo, do espírito, do desejo, movendo-

o, reorientando-o para o essencial. Cuidar do outro, o serviço à comunidade, espécie

de escola à época “jardim para o cultivo e pleno florescimento do ser humano”.

(LELOUP, 2002, p. 10); incita-nos ainda ao amor e ao ser.

À guisa de contextualização, Fílon e seus Terapeutas viveram em Alexandria.

Fílon, nascido entre os anos 20 e 13 a.C., contemporâneo de Cristo, filósofo

experiente, crente a Deus. Judeu nascido em família que pode ter sido a primeira a se

fixar no Egito. E os Terapeutas (homens e mulheres) dedicados aos estudos das

Escrituras, com modo de vida sóbrio e exigente. Eram filósofos. Professavam a

medicina que cuida do corpo, do psiquismo, das desorientações do desejo, das

tristezas, da ignorância e outros sofrimentos. E, se chamavam Terapeutas porque

receberam educação conforme a natureza e às Sagradas leis e porque cuidavam do

Ser. Eram impulsionados pelo amor divino.

Segundo Leloup, os Terapeutas, abandonavam riquezas, que eram doadas,

numa conduta mais magnânima do que negligente e após desfazerem-se de seus

bens, deixavam para sempre pais, mães, filhos, irmãos, amigos e seu país de origem,

pois acreditavam que os hábitos eram aquilo que mais atrai e seduz. Sua morada era

muito simples, casas afastadas nos arredores de Alexandria. Alimentavam-se apenas

do necessário. O domínio de si e a temperança era para eles o fundamento das outras

virtudes da alma. Entregavam-se à contemplação da natureza e ao dom mais

precioso, a amizade com Deus.

O texto de Fílon é lido como utopia, em que ele retrata homens e mulheres que

encontrou, idealizou fazendo de sua comunidade modelo do que os Terapeutas

poderiam ou deveriam ser. Utopia entendida por Leloup não como o irrealizável, mas

como o irrealizado (LELOUP, 2002).

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Na época de Fílon, o termo ‘terapeuta” - therapeutes - podia ser entendido, pelo

menos, sob duas formas: a de servir, cuidar, e tratar, sarar.

Ele também pode ser tomado por aquele que ora pela saúde do outro, pois “o

terapeuta está lá apenas para pôr o doente nas melhores condições possíveis para

que o Vivente atue e venha a cura” (LELOUP, 2002, p. 26). É também aquele que

cuida do outro; tem sobre ele sua atenção e seus cuidados. Ouvir, sem angústia, a

angústia do outro. O Terapeuta é uma pessoa que se supõe saber escutar. Para Fílon:

“escutar uma forma sensível, seja ela qual for, é sempre percebê-la como eco de uma

voz mais silenciosa e mais alta” (LELOUP, 2002, p.94). Escutar o Logos. Logos que

vai permitir apreender cada coisa como viva, não só como matéria.

Nesta concepção, suas lições vêm do livro da Natureza, das Escrituras, através

das imagens e símbolos que transmitem sentido, além de descobrir o espírito

escondido dentro da letra. Enseja entrar no mundo das imagens estruturantes, sejam

de Deus, transcendentais ou outras. O texto sagrado introduz ao nosso inconsciente

um sentido para a experiência, por meio das imagens em questão. Interpretar as

escrituras, pois é o mesmo Logos que informa os elementos do cosmos e o mesmo

que inspira as leis sagradas. Logos, “informação criadora, que arranca sem cessar o

cosmos do caos, e produz com essas letras reunidas um texto que faz sentido”

(LELOUP, 2002, p.97). E o papel do Terapeuta é:

mostrar que há outras maneiras de interpretar os sintomas e os eventos que nos sucedem, não nos fechando nos mesmos, a partir de uma única maneira de ver as coisas. Assim, a hermenêutica dos Terapeutas pode estimular a arte contemporânea de interpretar (LELOUP, 2012, p.22).

Para Leloup (2012), na esteira de Fílon de Alexandria, o processo de

interpretação das Escrituras que leva os Terapeutas a cuidar e cuidar do Ser, move-

se pelo fato de, ao não seguirem mais a Natureza, necessitavam das Escrituras, cujos

ensinamentos sagrados levavam-nos de volta àquilo que chamavam verdadeira

natureza, forma de estar em harmonia com o Logos que informa os corpos e os

pensamentos. Em suma, exercitam-se todo o tempo em estar atentos, em ver aquilo

que É.

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Fílon de Alexandria fala do cuidar do Ser. Em seu tempo, a terapia visava cuidar

do corpo, da psyque, do seu desejo, cuidar do outro pela oração. Mas, na visão deste

pensador, cuidar do Ser é transcender dentro de nós o Desconhecido e o Inacessível.

Neste diapasão, cuidar daquilo que escapa ao homem, e para isso dá-lhe tempo,

silêncio. Em primeiro lugar ocupar-se com aquilo que vai bem dentro de nós, e a cura

vem por acréscimo. Para Leloup, é lição que Fílon toma seu tempo para ensinar de

maneira que seus ouvintes possam seguir sua interpretação e compreender o que ele

diz.

Uma das tradições dos Terapeutas é o aprender a ver com clareza, que supõe

o deixar de lado as projeções que nos impossibilitam de ver o que é. Como se

colocássemos entre parênteses os juízos, os “pacotes de memórias” que carregamos

em nossos olhos (LELOUP, 2002). Fílon de Alexandria e os terapeutas são, portanto,

contemplativos e se esforçam em ordenar a “ver o que é”, tanto dentro como fora. Ver

com clareza, com cuidados necessários ao sentido dos acontecimentos.

Importa ainda ressaltar que, para Leloup, Fílon e os Terapeutas são, antes de

tudo, hermeneutas e a partir do aprendizado da interpretação da Escrituras vão

aprendendo a interpretar a vida. Buscam orientação e Sentido nas imagens e

símbolos bíblicos que ajudam a dar sentido a acontecimentos pessoais ou coletivos.

Encontravam “cuidados” tanto num hospital quanto num mosteiro. O Terapeuta é um

cuidador. Os Terapeutas de Alexandria cuidavam do corpo, quer pela alimentação,

quer pelas plantas e práticas medicinais como médicos que eram; como psicólogos,

estavam à escuta dos sonhos, da palavra do outro. Aos doentes, facilitar que não se

identifiquem com os sintomas. Em situações em que vemos possibilidades,

O ser humano é sempre maior do que a doença que lhe acomete; é sempre maior do que a injustiça que lhe acontece. Nesse sentido, faz-se necessário salvar em nós a humanidade, despertando a força do sujeito (LELOUP, 2012, p. 98).

Hoje, na contemporaneidade, o enfoque multidimensional do ser humano traz

à baila o cuidado com o ser humano na sua integralidade, o que nos leva a pensar

num chamado a recolher esta semente lançada por Fílon e os Terapeutas de

Alexandria e ensaiar também uma hermenêutica num estilo alexandrino que evoque

sua fertilidade. Saiamos a semear.

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3.3. Semear e cuidar: arte que dá frutos

“Quer falemos de uma flor ou de um carvalho, de uma minhoca ou de um

belo pássaro, de uma maçã ou de uma pessoa, creio que estaremos certos ao

reconhecermos que a vida é um processo ativo e não passivo. Pouco importa que o

estímulo venha de dentro ou de fora, pouco importa que o ambiente seja favorável

ou desfavorável. E qualquer uma dessas condições, os comportamentos de um

organismo estarão voltados para a sua manutenção, seu crescimento e sua

reprodução. Essa é a própria natureza do processo a que chamamos vida. Esta

tendência está em ação em todas as ocasiões. Na verdade, somente a presença ou

ausência desse processo direcional total permite-nos dizer se um dado organismo

está vivo ou morto.

A tendência realizadora pode, evidentemente, ser frustrada ou desvirtuada,

mas não pode ser destruída em que se destrua também o organismo. Lembro-me

de um episódio da minha meninice que ilustra essa tendência. A caixa em que

armazenávamos nosso suprimento de batatas para o inverno era guardada no

porão, vários pés abaixo de uma pequena janela. As condições eram desfavoráveis,

mas as batatas começavam a germinar - eram brotos pálidos e brancos, tão

diferentes dos rebentos verdes e sadios que as batatas produziam quando

plantadas na terra, durante a primavera. Mas esses brotos tristes e esguios

cresceram dois ou três pés em busca da luz distante da janela. Em seu crescimento

bizarro e vão, esses brotos eram uma expressão desesperada da tendência

direcional de que estou falando. Nunca seriam plantas, nunca amadureceriam,

nunca realizariam seu verdadeiro potencial. Mas sob as mais adversas

circunstâncias, estavam tentando ser uma planta.

A vida não entregaria os pontos, mesmo que não pudesse florescer. Ao

lidar com clientes cujas vidas foram terrivelmente desvirtuadas, ao trabalhar com

homens e mulheres nas salas de fundo dos hospitais do Estado, sempre penso

nesses brotos de batatas. As condições em que se desenvolveram essas pessoas

têm sido tão desfavoráveis que suas vidas quase sempre parecem anormais,

distorcidas, pouco humanas. E, no entanto, pode-se confiar que a tendência

realizadora está presente nessas pessoas. A chave para entender seu

comportamento é a luta em que se empenha para crescer e ser, utilizando-se dos

recursos que acreditam ser os disponíveis. Para as pessoas saudáveis, os resultados

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podem parecer bizarros e inúteis, mas são uma tentativa desesperada da vida para

existir. Esta tendência construtiva e poderosa é o alicerce da abordagem centrada

na pessoa.”

Carl Rogers

Esta página de Rogers, que traz uma síntese da sua concepção de vida e de

trabalho terapêutico guarda estreita semelhança com o cuidado que buscamos

enquanto educadores ao aprender o outro.

A terapia de Fílon de Alexandria e os Terapeutas é uma arte. Arte de

interpretação que está assentada na maneira de ler as Escrituras, com efeito que se

modificam em direção ao que pode ser melhor – ou pior, de acordo com o sentido que

se dá a um sofrimento, um sonho, ou mesmo um texto sagrado. Em síntese, o homem

é livre para interpretar. E a hermenêutica da qual se valem os Terapeutas pode incitar

novas maneiras de aproveitamento da arte contemporânea de interpretar.

Importa ressaltar que nossa sementeira, agora à luz de Leloup, conquanto use

o termo de Fílon de Alexandria, “terapeutas” por nós serão nomeados educadores,

pois “nas antigas tradições dos terapeutas, o médico tinha um papel de educador,

assim como o educador era aquele que cuidava, que curava.” (ANTÔNIO e

TAVARES, 2013, p.76).

Segundo a arte de interpretar aliada à busca de sentido, os acontecimentos são

o que são; o que se faz deles dependerá do sentido que se lhes dará. E o

questionamento que fazemos resulta saber qual o sentido que um educador vê ou

sente frente às crianças, em particular a uma criança autista ou com necessidades

educacionais especiais? Qual o sentido que se atribui às conexões que

necessariamente devem fazer em relação às atitudes pessoais, pedagógicas ou

sociais? Entender esse sentido é apropriar-se de uma interpretação que mude a ação

do profissional em relação a esse aluno e que ambos, numa interação de escuta,

encontro e alteridade possam alcançar o “Logos” a que se refere Leloup como

verdadeira palavra para a formação de cada sujeito.

No segmento educacional, muito mais importante resta esta ideia, pois além de

corpo, mente, muito mais além é completado o ser, o que importa em respeitá-lo em

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todas as suas dimensões. A educação traz em seu cerne também a característica da

mudança, pois o ser humano muda, transforma-se; não é predestinado, embora já

nasça às vezes cumulado de memórias. A liberdade que tem o homem ou a mulher

de interpretar vem dar à vida sentido, uma razão de ser.

Nesse sentido há uma convergência com o pensamento de Paulo Freire

quando considera que ter liberdade de interpretar o que nos acontece, buscar e dar

sentido à nossa existência é estarmos prenhes de possibilidades e, então, mudarmos.

O educador não é uma pessoa de quem se supõe saber, mas uma pessoa de

quem se supõe que saiba escutar. Para Leloup, a sua formação consistirá no

aprendizado da Escuta, desde a natureza até o Logos, como em Fílon. Saber escutar,

pois somos pessoas “habituadas”. São os hábitos que muitas vezes nos alienam.

Necessário se faz sair do conhecido, deixar espaço livre para o desconhecido e

acolher um novo modo de ser e de relacionar (LELOUP, 2002).

Resta lembrar que para Leloup, a busca de um caminho equilibrado, caminho

do meio13, com autonomia, é condição da maturidade e das relações autênticas.

Proferir palavra nessa liberdade de interpretação pode incitar o que faz bem ou o que

faz mal, depende de se formar na arte de, ao proferir palavra, que seja de maneira

que “não acrescente sofrimento ao sofrimento, que não adicione culpa à dor”

(LELOUP, 2012, p.26).

O educador deve, portanto, aprender a ver com clareza, sair das projeções,

suspender o juízo, ou seja, não projetar no ser educando os temores ou desejos. Ver

o que é. Com liberdade, deixar de lado o ponto de vista próprio, seus

condicionamentos. Ver com clareza, num primeiro sentido:

Supõe grande liberdade diante das nossas reações, mas essas atitudes “reativas” que tomamos muitas vezes por “ações”, falando precisamente, não somos senhores delas. Antes de imaginar somente que isto seja possível, trata-se em primeiro lugar de tomar consciência (LELOUP, 2002, p.112).

13 “Uma palavra que ocorre muitas vezes na pena de Fílon, a propósito dos Terapeutas, é “equilíbrio”. Não estamos percorrendo aqui um caminho escarpado ou de excessos, mas um “caminho do meio” (LELOUP, 2002, p.108).

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Ver as coisas em sua “outridade”, que na concepção de Leloup significa seu

modo específico de ser outro, irredutível às nossas percepções fragmentárias, é o

começo da nossa arte de cuidar, da clara visão

Ver com clareza, num segundo sentido, é desenvolver em si, educador, um

olhar esclarecedor, aquele que vem do olho do coração. Olhar amoroso do educador

que se torna o que ama e o que olha.

Há vários olhares. Olhares que diminuem, olhares que coisificam; há outros

olhares que revivificam, iluminam, e o olhar do educador deverá ser o olhar do aceite,

do amor, gratuito de per si, esclarecedor. Diante de um olhar como esse o educando

pode sentir-se amado, mas de uma maneira gratuita, “ ‘amado por si, gratuitamente’,

estranhamente amado” (LELOUP, 2002, p.113).

Educar, nestes termos, é fazer da doença ou do sofrimento, ocasião de

consciência e sabedoria. E ao nos referirmos ao educador, nessa perspectiva, nos

remetemos a ele também como um cuidador. Cuidado no sentido de saber o

educando, o outro no ambiente educacional como aquele embrião que precisa de

presença, tempo, oxigênio para que sua formação se dê em todas as suas dimensões.

O cuidado com esse corpo deve revelar o cuidado com seu ser, sujeito a ser

desvelado. Frente aos educandos, do autista ou daquele ou daquela com

necessidades educacionais especiais, cuidar de imprimir a esta ação o estilo que

acreditamos ser o de:

Jamais tratar o outro como objeto, como uma doença, considerando-o sempre, infinitamente mais importante do que seu sintoma, com o qual não pode ser identificado. [..] cuidar do outro que tem uma face – um corpo, um semblante único (LELOUP, 2012, p.28).

Muitas vezes constatamos de forma direta ou indireta, pessoa cujo semblante

está deformado, ausente, sem alteridade, um não-sujeito. Muitas vezes são

consideradas doentes, e não simplesmente alunos, pessoas. A maneira de nos

aproximarmos para dele cuidar nos dará a resposta no reconhecimento: se explicitado

como sujeito, a resposta será de um sujeito que pede para ser tocado, de uma certa

maneira a ser ouvido, a poder escutá-lo, porque é pessoa. Ter a consciência de que

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é sujeito de desejo, desejo que é íntimo a cada um e que merece escuta, mesmo que

haja doença.

Ser pessoa, ser sujeito significa ser único, e sua singularidade requer cuidados

de um corpo que ora pode precisar de um distanciamento, ora de aproximação –

evidências que podem ser observadas, re-humanizadas, lembradas na história da

pessoa.

É próprio e relevante do ser humano que busque cuidar daquilo que está

doente, que não vai bem. Porém, o melhor olhar está em cuidar também daquilo que

está bem, no doente; em outras palavras, o outro não pode ser visto apenas como

enfermidade, mas visto como o que está bem no seu corpo. No que concerne à criança

autista, olhá-la no seu Eu Sou profundo – olhar que vai além dos sintomas – e,

conforme Leloup, esta atitude “talvez facilite o enraizamento da pessoa na sua

dimensão transpessoal; no coração de sua humanidade” (2012, p.36). Parafraseando

Rogers, certamente ela – criança autista – sob as mais diversas circunstâncias, estará

tentando ser; ela é outro, e é ao mesmo tempo Eu - ainda que tentando - na relação

com o educador, que o será da mesma forma, Eu e Tu, ou Eu e outrem. A alteridade

do outro nos impele ao cuidado e nos impede ou deveria nos impedir de nos valermos

de posicionamentos predeterminados que impossibilitam saber e reconhecer esse

outro como sujeito, como ser que é.

Tratamos até aqui de elementos demasiado importantes e significativos

relativos aos cuidados que devemos imprimir na condição de cuidadores e ou

educadores. Mas o cuidar das “relações” vem ao encontro ao nosso tema e contempla

de modo mais completo reunindo todos os outros em um, e vice-versa.

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3.4. Relações: na diversidade, imitar a natureza.

“A ordem flutua na desordem.”

Ilya Prigogine

3.4.1. Semeando “primaveras”

Conquanto a educação possa transcorrer a qualquer tempo, e de muitas formas

e inclusive de maneira informal, o cuidado com as relações extrapola o sentido comum

para assentar-se na afirmativa de que o sujeito é muito mais do que um indivíduo.

Leloup, filósofo cristão, nos oferece uma imagem que resume esta

representação: a Santíssima Trindade. Imagem de Deus, que para os cristãos não

pode ser representado por uma pessoa tão somente. Desde sempre é relação.

Relação que foi representada na obra de Rublev14: “Santíssima Trindade”, cujo ícone

incorpora a inter-relação de três Anjos que aparecem a Abraão no texto bíblico

(BÍBLIA, Gn16, 2-11). Em cada um deles se vislumbra a relação com os outros e

porque Abraão dirige-se aos três no singular “como se, na pluralidade das pessoas

Abraão visse o único”, complementando: “assim como, em cada indivíduo pudesse

ser vislumbrada sua relação com os outros”, traduzindo a imagem como se segue:

A vestimenta de cada Anjo se reflete na dos demais. Há linhas côncavas e convexas; sobretudo, o importante, é o movimento circular, indicando que cada personagem só é ele mesmo na relação com os outros. Talvez aí esteja o sentido mais profundo deste ícone. Poderíamos, também, falar sobre o simbolismo das cores, dos gestos, da taça no interior da imagem – não somente a que está sobre a mesa. Se seguirmos a linha dos Anjos, veremos que, no interior mesmo do círculo, há como uma taça que se forma e que simboliza o Graal, o coração. Então, lembramos que o Terapeuta tem uma inteligência que lhe permite discernir a doença desta ou daquela pessoa. Mas tem um

14 Andrei Rublev- (1360-1430), monge ortodoxo russo, pintor de ícones.

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coração; e o próprio do coração é reconhecer o Tu que há no outro (LELOUP, 2012, p.38).

Em nossas reflexões, na nossa realidade educacional queremos entender as

dificuldades que grassam nas relações humanas. Vemos, muitas vezes, ações que

geram isolamento mais do que convivência. Relações em que não se captam sentido

dos acontecimentos. Situações do ambiente educacional em que as relações

educador-educando, o eu e o outro, o eu e o tu, não estimulam a transformação, não

se estabelecem com o fito de dar sentido ao que se faz, e a questão que se coloca é

de como o educador reage ao chamado de ajuda, ao socorro ao outro, ou ao encontro

do outro?

A relação do educador é relação com o outro. Cuidar do outro, ser-pessoa, Ser.

Vemos grassar a relação, a inter-relação, a interação na natureza. Desde os

átomos que só existem em relação com os outros; árvores que mantém relação

consigo mesmas na sua estrutura de formação, tronco, galhos, folhas. Céus que se

relacionam em suas constelações e com o firmamento; inter-relação, interconexão

entre as coisas. Relação que se assenta numa ética que:

Funda-se na compreensão da interdependência de tudo o que existe, e da unidade da diversidade. Reconhece o real como teia, tecido, tessitura. Reitera que existir é coexistir, viver é conviver. Redescobre imagens mais que milenares, mitopoéticas, de que tudo está interligado a tudo. E, relembra: “em todas as coisas um; em um, todas as coisas” (ANTONIO, 2010, p. 23-24).

Como primaveras floridas que se entremeiam na diversidade dos seus galhos,

suas flores surgem coloridas, únicas.

3.4.2. Semeando “amor juntinho”

A maneira de cuidar do ser marca suas consequências. Cuidado, “escuta

poética, que amorosamente considera as múltiplas vozes que compõem a tessitura

da realidade” (ANTÔNIO, 2010, p.26). Presente o amor que, - para Leloup, no cuidar

do estilo alexandrino, precede o ser; amor-generosidade, retorno do dom que está

antes da existência do ser e que pode restituir a humanidade. Dom, generosidade que

descobrimos em nós muitas vezes oculto, e que nos torna capazes do retorno a ele,

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se há o cuidado. O cuidado é com aquilo que no ser é capaz de dom, de doação, de

generosidade: “o que ofertamos, nada nem ninguém pode retirar de nós” (LELOUP,

2012, p. 39).

O educador guarda essa dimensão de dar de si algo pelo crescimento do outro,

mas muitas vezes constatamos que “esquece” que esse outro – aluno – também tem

a capacidade de dar, capacidade dessa generosidade que, uma vez descoberta,

despertada, pode vir a transformá-lo, o que acarreta a mais fascinante das

consequências, a de devolver-lhe a identidade (LELOUP, 2012).

Também é preciso silêncio nesta relação. Acolher para receber e dar,

movimento que resulta em permanecer. Silêncio que reside entre palavras e

pensamentos.

Trata-se de propor ao educador uma prática para que ao acompanhar o outro

possa respeitar todas as suas dimensões: corpo, matéria, psiquismo e no seu centro

silencioso para conhecê-lo melhor: “...ouvir a voz e a razão dos outros, sabendo que

a realidade não se reduz às nossas razões e aos nossos signos” (ANTONIO, 2013,

p.158).

O terapeuta alexandrino é um médico que tem uma ampla visão do ser humano.

E sabe que a dor que não se conhece o sentido, a dor para a qual não podemos dar

um sentido é a mais insuportável. O educador que interage com uma criança autista,

nessa perspectiva, precisa conhecer que em seu trabalho, seu cuidado não se limita

apenas ao corpo. Precisa aprender a escutar o sentido dos acontecimentos e ainda

interpretá-los de forma ativa e criativa, pois esse outro tem algo a nos dar, a nos

ofertar.

Com a criança autista, colocar-se na escuta – que chama e desvela palavras e

emoções. Nessa escuta vamos ouvir falas amorosas, mas também gritos que se

parecem com os de raiva, cólera, surtos, murmúrios, esforços de linguagem dos

melhores aos piores. O educador não sabe tudo, mas escuta tudo. E antes de escutar

uma palavra e o que expressa, deve aprender a escutar as coisas que não fazem

barulho (LELOUP, 2012).

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Escutar as palavras, o coração, os ditos e os não ditos, os desejos que podem

não ser exatamente os nossos, ou deles - alunos - e levá-los à escuta de seus próprios

desejos e palavras.

Há diversas formas de o educador escutar: a escuta consciente, a inconsciente,

a inteligente, a respeitadora, e a silenciosa, que encerra o não saber, o misterioso,

porque há algo no outro que sempre pode escapar. E ele, aluno, não pode ser

reduzido ao pouco que dele se conhece.

O educador é o sujeito “suposto escutar” e, assim, considerar a interpretação

do aluno incitará o compartilhamento das interpretações, vozes outras que permeiam

a relação. Compartilhamento de consciências para que se compreendam. Educador

e educando têm algo em comum, no entanto, cada semblante é único, cada um é

outro. E é o amor que conduz a um estado de relação para o despertar do Eu sou,

condição de sujeito em que ambos alcançam a unidade que o autor nomeia,

diferenciada:

Quanto mais eu sou um com você, mais eu descubro a sua diferença, e o reconheço como outro. Quanto mais eu sou um com você, mais eu gosto e respeito a sua diferença. Quanto mais eu respeito a sua diferença mais eu me sinto um com você. Pelo respeito à alteridade, descubro uma maneira mais elevada de unidade que não é indiferenciada: unidade diferenciada (LELOUP, 2012, p.90).

Como “amor-juntinho” que cresce na trama dos seus galhos e folhas e

generosamente nos ofertam suas pequeninas flores que “juntinho”, coloridas,

diferentes, emaranhadas, nos presenteiam os olhos e a alma.

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Capítulo 4. Da colheita: Cem por um ou um por cento?

“A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação

dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito

e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do

sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por

uma teoria explicativa; o sujeito-observador é parte integrante do processo de

conhecimento e interpreta os fenômenos atribuindo-lhes um significado.”

Antônio Chizzotti

“...a experiência de trabalho de campo tem uma dimensão muito intensa

de subjetividade. Ou seja, ainda que o antropólogo possa se armar de toda uma

intenção de objetividade, de obtenção, de produção de dados e informações, os

mais objetivos, os mais reais (não sei se com aspas ou sem aspas) possíveis, de

qualquer maneira, muito mais do que em outros casos, todo trabalho de produção

de conhecimento aí se passa através de uma relação subjetiva.”

Carlos Rodrigues Brandão

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4.1. O canteiro sociocomunitário: recriar a esperança.

A educação tem muitos mundos. A educação sociocomunitária é um desses

mundos que vão para além da escola. Na contemporaneidade, a educação precisa

compreender e valorizar este contexto sociocomunitário, dado que, historicamente,

vemos sociedades, grupos, pessoas ou sujeitos sociais e históricos vivenciarem

processos educativos. Esta constatação nos leva a buscar compreender as relações

entre sociedade e educação e o sentido desta educação sociocomunitária, que

remonta

do estudo da identidade histórica de uma prática educativa, a educação salesiana. Em suas origens históricas, ela se fundava na articulação de uma comunidade civil – de religiosos e cidadãos comuns – em torno de um projeto educacional que participou e promoveu transformações sociais em seu tempo e lugar histórico (GOMES, 2008, p.53).

Na proposta de conceituar a educação sociocomunitária, o investigador pensa

o indivíduo no curso da vida e faz um desdobramento da palavra “sociocomunitária”,

sabendo-o ora imerso em relações do tipo comunitária, ora em relações do tipo

societária, como relata Groppo:

Quando se pensa em uma sociedade de tipo complexo, aquela que constitui uma esfera pública para além da esfera privada, pode-se dizer que, em certos momentos do curso da vida do indivíduo, tais como na infância e na velhice, a tendência é a de que predominem as relações de tipo comunitário, voltadas ao cuidado, proteção e pertencimento. Em outros, tais como na idade juvenil e adulta, paulatina e depois integralmente, a tendência é a de que o indivíduo, imerso plenamente nas redes sociais, viva relações de tipo societário. Nessas relações comunitárias e societárias, ou sociocomunitárias, ele está se realizando como ser humano. No caso do campo educacional, mais propriamente, ele está se formando, conformando e até se reformando como ser humano (GROPPO, 2013, p.115)

Historicamente tece uma lógica societária e uma lógica comunitária nas

relações educacionais. A primeira, societária, tem cultivado uma educação

emancipadora, a interação e comunicação de grupos da sociedade e a criatividade,

bem como a criação. As relações do tipo comunitária, na educação, refere-se à

formação do sujeito em sua identidade, com ênfase no cuidado, e socialização,

permitindo “construir uma personalidade autônoma, criativa, racional e crítica –

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exercício da individualidade e de grupos livremente formados, fomentando uma

liberdade criadora e transformadora” (GROPPO, 2013, p.116).

A propósito de se pensar o diálogo e também os conflitos entre os diversos

modos de ensinar e aprender e também de socialização, Groppo nos lembra que o:

ato de aprender-e-ensinar não começa e termina na escola, nem que o que lá acontece explica-se tão somente pelo currículo, seus pretensos portadores (educadores) e seu suposto destino (educandos); que a socialização atravessa as esferas sociais diversas, privadas e públicas, familiares e institucionais, que influenciam reciprocamente; que alunos, jovens e crianças não são apenas o objeto passivo da socialização, mas atores vitais e legítimos desta, em seu diálogo-confronto com educadores, adultos, idosos e outros jovens e crianças (GROPPO, 2013, p. 67)

Nessa concepção, “a educação sociocomunitária trata das ações educativas

de impacto social, para além da escola, ou que envolvem a relação escola-

comunidade” (GROPPO, 2013, p.105). Perspectiva que nos leva a pensar na pessoa

de cada aluno, de cada um em sala de aula ou em outro ambiente educativo; em todos

os lugares encontramos a comunidade. Cada família vista hoje de maneira própria

nas relações que estabelece permite as proposições de intervenções educacionais,

impacto social que vem reverberar uma luz necessária ao novo momento educacional

caracterizado pelo princípio sociocomunitário e ressignificação dos meios que levam

à emancipação, como complementa Groppo:

Processo, ações e relações educacionais que fertilizam o desejo de vir a ser algo diferente do que se é, bem como contribuem para expandir as possibilidades de transformação do ser humano e de suas coletividades, de modo a aperfeiçoar a espécie humana e os seus agrupamentos, de dar a eles maior autonomia na condição de suas vidas e destinos. (2013, p. 113).

Um processo que recria a esperança por meio da educação sociocomunitária,

por meio do princípio sociocomunitário que brota dessas e nessas intervenções

educacionais mas que retornam à comunidade, delineando novos rumos da

emancipação das coletividades.

No contexto desta pesquisa educacional inclusiva, muito poder-se-ia cultivar no

cuidado, na autonomia para dizer o mínimo, por meio de ações dos agentes

protagonistas dela. Intentar tal emancipação daquelas pessoas tornadas vulneráveis,

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tornadas inferiores retornando à comunidade os frutos que foram semeados. Para

além da escola, uma “sadia insanidade”, diria Paulo Freire, pois traz consigo a alegria

e contentamento, “o gosto inesquecível ao nos darmos conta de que somos melhores

do que a sensata rotina institucional” (FREIRE e NOGUEIRA, 1980, p. 52).

4.2. Tempo de colheita: tempo de narrativas.

“Dedicados à procura da verdade, nem sempre a atingimos quando a

buscamos pelas análises e equações, pelas experiências ou evidências formais; por

vezes, é preciso recorrer ao ensaio; e quando o ensaio não chega, sigamos pelo

conto, se for possível; se a meditação fracassa por que não tentar a narrativa?”

Michel Serres

“...depressa adquire uma técnica quem a necessita intimamente.”

Thomas Mann

“O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida;

está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço.”

Thomas Mann

A primeira narrativa que desponta diz respeito a essa pesquisadora.

Mergulhada que estava dentro do tempo da pesquisa e com os ânimos em

estado de exaltação voltados ao exercício de experimentar a alteridade nas relações

com cada ser, cada outro, cada eu, surge esta junção de pequenos textos, alguns

escritos que registram descobertas e aprendizado que chamarei mosaico.

Mosaico em que os diversos tipos de materiais, – pedras, sementes, galhos,

espinhos, flores – e também nas múltiplas relações com pessoas e com a natureza

guarda um propósito. Vai tecendo e refletindo o desejo antecipado que se deem nas

relações de intersubjetividade o mesmo efeito de generosidade, escuta, cuidado,

encontro, também com os adultos e crianças, também com professores e alunos,

também com educadores e crianças autistas.

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Exercício fenomenológico que, como o tempo, arrefece os ânimos antes

exaltados, e agora quer conduzir o leitor a esse aprendizado, como num passeio entre

canteiros de mosaicos, que preenchem olhares, mas também o sentir desta

pesquisadora.

Amor-eira

O espírito do dom, da generosidade, da doação deve assemelhar-se àquele

das árvores, frutíferas ou não.

Ocorre-me o exemplo da amoreira – amor-eira – que nos dá a seu tempo suas

melhores frutas, as amoras. Ela está ali. Pronta. Receptiva. Oferece-nos seu melhor

fruto. Generosidade que mal conhece, que está antes mesmo de Ser. E, se há o

cuidado, o fruto será melhor.

Vale dizer, que na relação do cuidado com a natureza, do eu com a natureza,

ambos são beneficiados, ambos ficam melhores. O que não dizer das relações

humanas? O Eu-Outro, Eu – Tu pode despertar-se para o dom, para a generosidade,

para a ética no “aprender-se” do cuidado. Na relação que surge desse “amor

cuidadoso” desse encontro necessário e de doação, todos crescem e

consequentemente a reciprocidade, a responsabilidade e tudo se sedimenta.

Doação, encontro, reciprocidade, responsabilidade, são categorias que fazem

parte do grande pacote do Amor, que na sua suposta simplicidade, na sua

significância congênita, deixa entrever tal generosidade e grandiosidade que causa

estremecimento sabê-los camuflados no invólucro da individualidade tão

expressamente delineada na contemporaneidade, prenhe de razões solipsistas.

Ninhos

Metaforicamente, a trama das relações humanas poderiam assemelhar-se a

ninhos de passarinhos.

Por mais imbricados e difíceis seus entrelaçamentos, diferentes entre si os

ramos que o tecem e o conformam, ao final são parte de um confortável leito de um

aconchegante espaço onde descansa terna, suave e frágil uma nova vida que sempre,

desde o início rompe com o medo para manifestar-se no ser que é.

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Ouso dizer do ser humano que romperia com o medo para manifestar-se no

ser, para que o Logos, a verdadeira palavra invocada no rosto possa pronunciar-se e

ouvir-se, como aquele que também nos olha e nos ouve.

Espelho

Homem, terra, semente, aves, espinhos, pedras. Tudo faz parte de uma “ética

que nos diz: “sejamos irmãos, porque somos irmãos” (ANTÔNIO, 2010, p.35), grifo

nosso). Fertilizemos o terreno da subjetividade para que nessa diversidade sejamos

incitados ao crescimento consciente de salvar o que de mais humano existe em cada

um de nós: a humanidade.

Aprendo no silêncio.

Aprendo no silêncio de meu orientador, aqui nomeado educador. Fruto de

minhas buscas de seus sinais: ensignar, apreender.

Nas repetidas buscas ao conhecimento, algumas vezes, se insere o seu

silêncio que impera com tal majestade que me curvo, reverentemente. É então o

momento de retornar, repensar, rever, e quanto se aprende! Refazê-los, re-criá-los

são atividades que movimentam o aprendizado.

Essa relação professor-aluno viveu uma transcendência e retorno do dom, da

doação, da generosidade. O cuidado que pude sentir resgatou em mim a possibilidade

de também doar-me, de sentir a capacidade que despertou em minhas reflexões: de

generosamente poder me reencontrar, humildemente como sujeito capaz.

Houve escuta. Escuta de alguém que conhece. Conhece a dor, a angústia de

ainda não poder dar sentido às percepções que fragilmente vinham a mim se

delineando.

Houve cuidado na tarefa da ajuda; ajuda a esse outro, eu, a encontrar um

significado para aquilo que o outro conhecia, mas na escuta e no silêncio mostra o

caminho que é mais que caminho, é um despertar para.

O educador se coloca na escuta, no silêncio para que o meu eu pudesse ouvir

a mim mesma, pois certamente ele já ouvira a si. E a mim.

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Esse silêncio, essa escuta no caminho fenomenológico desvela palavras que

ainda não tinham sido ditas anteriormente e que o meu eu tinha-as retido. E chega-se

ao maravilhamento! Porque, como diz Padre Antonio Vieira:

as razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. [...] As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento (VIEIRA, 1951, p. 23).

O educador que é o “suposto escutar” suspende o seu saber que fica apenas

como que suposto em detrimento de escutar o desejo que permita informar como o

outro está, como se encontra o seu saber. Abre-se à escuta do outro para os ditos e

não ditos, pois uma atitude de escuta permite decifrar fenômenos inconscientes a

partir do que é expresso.

Por conseguinte, o sujeito “suposto não saber”, outra dimensão do “suposto

escutar”, no silêncio não permite que o seu saber se projete sobre nós, mas deflagra,

restitui o dom do fazer do outro, o fazer generoso e capaz de doar, de ser.

“Suposto escutar” e “suposto não saber” me persuadem ao entendimento do

mais difícil aprendizado: o de saber como aprendemos a não saber? Não saber que

não significa ignorância, que não dispensa tudo o que trazemos conosco para bem

realizarmos a nossa missão de educar. Mas, o não saber que “trata-se de

compreender que tudo o que sabemos não é nada ao lado do mistério do ser humano”

(LELOUP, 2012, p.66).

Ética e humildemente posicionamo-nos frente ao outro sabendo que há algo

que sempre pode escapar, porque não o conheço totalmente, e por esse pouco que

conheço do outro, resta descabido a isso reduzi-lo.

Acolher o sentido antes de interpretá-lo, e quando houver interpretação, que

seja inovadora tanto quanto o sentido que aflora para a pessoa – o outro – que

desperta.

Esse cuidado, no silêncio, na escuta é a grande inovação, a re-criação; cuidado

que gera a liberdade de ir em direção de si mesmo; que tem no outro a certeza da

liberdade e da autonomia, da doação do ser.

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Silêncio. Escuta. Cuidado. Alteridade. Autonomia que brota do soberano gosto

da liberdade que como alimento vai mobilizar ações éticas para as diferentes

expressões da vida em plenitude.

“Ensinares” e “Aprenderes”

A relação educador-educando que carrega junto a si o ato tão específico de

ensinar, ação que vai gerar o aprender, vive mais um momento de repensar, de re-

criação, para não perder sua característica maior, a ética: na sua prática, na

alteridade, no respeito à autonomia, no cuidado, na liberdade, no saber escutar, no

amor, algumas categorias aqui discutidas.

Aprender que se assenta na dimensão do estar sendo e deixar ser,

manifestamente explícito, corroborando com isso para a formação de sujeitos com

dignidade humana que anunciam a tão desejada humanização.

Perguntamo-nos e debruçamo-nos também e com real ênfase sobre essas

mesmas relações e com as mesmas perspectivas, sobre fazer jus à integridade de ser

manifestada em cada uma das partes envolvidas, quando uma dessas partes é

criança ou jovem com dificuldades, com necessidades educacionais especiais;

quando esse aprender é distinto, é singular, é específico, é novo. Impasse.

Nova reflexão se faz necessária, principalmente quando o aprender toma

proporções maiores do que a vida humana que se vê em dificuldades físicas,

psíquicas, mentais, ou outras.

Nas relações educacionais da criança típica, ou nas relações educacionais da

criança autista, o aprender tem como pressuposto a relação humana, que vemos

muitas vezes num ou noutro caso, subsumido aos saberes adquiridos, transferidos,

depositados, negligenciando-se os preciosos desafios de oferecer a ambas, a

produção de sua própria compreensão.

Desta indignação vem delinear-se um que-fazer crítico em face da negação do

direito de ser mais de cada um e de todos.

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“Dois aprenderes”, “dois ensinares”: o que aproxima a humanização e o que

aproxima a coisificação. O que leva a produzir a própria compreensão do saber e o

que deposita o saber de forma bancária.

Na perspectiva das crianças com necessidades educacionais especiais,

algumas pessoas poderão dizer que depositar o saber numa criança autista está fora

das mais medianas interpretações, bem como levá-la a produzir sua própria

compreensão do saber.

Nós, assumindo “a humildade crítica própria da posição verdadeiramente

científica” (FREIRE, 2006a, p.123), dizemos que o primeiríssimo movimento na ação

de ensinar e aprender, tanto no caso das crianças em geral, como no das crianças

autistas, em qualquer dos casos, é o movimento enquanto pessoa, inter-humano, de

encontro e reciprocidade, de alteridade, responsabilidade ética, vir a ser da

autonomia. De um lado, os sujeitos crianças cognoscentes, serão capazes de

despertar para a manifestação do ser, para os saberes, para a compreensão, ou

objeto do conhecimento. De outro, os sujeitos crianças autistas serão capazes de ser.

E sendo, ou no estar sendo, estarão correspondendo à condição da sua humanidade,

e no de conhecer, re-conhecendo. Em ambos, cumpre-se o magistério e

amorosamente, a serviço da mudança.

Partimos ao segundo momento deste tempo de colheita e narrativas.

Este campo de pesquisa quer dar significação às relações educacionais onde

os protagonistas são uma criança autista e aqueles que com ela interagem.

Entendemos que a presente pesquisa seja classificada como qualitativa. Observamos

o comportamento dos sujeitos envolvidos, procedimento que não pode ser mensurável

quantitativamente e por isso escolhido para as questões educacionais e que conquista

o espaço e o respeito no mundo acadêmico das ciências humanas.

A observação é acompanhada da narrativa que enseja reflexões e análises

referentes aos sujeitos “eu” educador e “eu” criança autista, e a pesquisadora,

pessoas humanas cujas relações se fundamentam na discussão das categorias

interpretativas da alteridade, bem como o diálogo, o cuidado que se devem imprimir

quando da busca de possibilidades de intervenções e implicações subjetivas nas

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relações com o outro, mormente quando esse outro – criança autista - é alvo de

melhoras na sua qualidade de vida educacional ou outra.

É o início do campo de narrativas, semeado, e em tempo de colheita.

Muito tempo depois, há mais de um ano daquela fase de reconhecimento, onde

já havia sedimentado o vínculo entre o pequeno autista, sua mãe e esta pesquisadora,

ela [a mãe], conta sobre o nascimento, desenvolvimento e diagnóstico que, antecipo

com esta breve narrativa, ponto de partida deste tempo narrador, lembrando, desde

já, da lição deixada por Rubem Alves que a escolha do problema de pesquisa é ato

anterior a ela e tem a ver com os valores e interesses do investigador.

É uma história como tantas.

Márcia (nome fictício da mãe da criança autista), casou-se. Um dia descobriu

que estava grávida e, como é natural, encheu-se de alegria, assim como todos de sua

família. Foi uma gravidez de risco, desde o início tomando medicamentos para

amenizar sangramentos, e para que nada de mais sério acontecesse com ela e com

o bebê. Ao cabo de quarenta e uma semanas de gestação, depois de quatorze horas

de espera, com uso de fórceps, veio ao mundo seu filho, o pequeno Luis Carlos (nome

fictício). Perfeito, saudável e como quase todos os bebês foi crescendo com graça,

saúde, alegria. Com um ano, brincava de empurrar carrinho, fazia gracinhas, divertia-

se com outros bebês. Após esse tempo, a mãe começa a perceber que poderia haver

algo diferente, não sabe dizer se a palavra certa seria, errado, com ele, pois o que

percebe é que ele passa a ser mais quieto, talvez, observador?

E, como toda mãe atenta, procura não se deixar enganar. Observava que ao

chamá-lo pelo nome, ele não correspondia. Imaginou que pudesse ser uma criança

com deficiência auditiva ou tê-la contraído de alguma forma. Procurou médico

especialista que disse estar tudo bem sob esse aspecto. Que isso era só uma

preocupação de mães quando ainda estão no primeiro filho.

Márcia ficou aliviada e tocou a vida para a frente, sempre tentando dirimir as

preocupações no convencimento de que a última palavra fora dada. Porém, as ações

e não-reações de Luis (como será nomeado adiante) começam a se intensificar e aos

três anos de idade ainda não falava, o que a levou a procurar um neuropediatra e foi

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este quem lhe deu o diagnóstico: autismo. Márcia nunca tinha ouvido falar sobre isso,

mas também ouviu algo de bom, o médico aconselhava que Luis fosse para a creche.

Com muito cuidado Márcia narra esse tempo com intenso pesar. O pai não se

acostumava com a ideia de conviver com essa dificuldade. Apesar de tudo, ela vai

vencendo este tempo e a vida correndo. Tudo a seu tempo, mas com o coração e a

alma aos trambolhões, porém, inteira.

Aos quatro anos Luis é matriculado em creche municipal. Nesse momento a

narrativa toma o foco do nosso estudo.

De uniforme e fotos antes de sair, inicia o período escolar, onde se dá a primeira

constatação pública que Márcia precisa aprender a conviver: de que Luis na escola

só anda, anda, anda. Não para e chama a atenção de alguns professores, que mesmo

assim não interferem ou propõem algo que venha contribuir na busca de soluções.

Diante disso, a própria mãe vai até a APAE e pede que um especialista vá até

a escola para observar seu filho na creche, e o que obtém como resultado são

novamente as características de autismo que a levam a ouvir da dirigente (sem

coração, ela diz) da instituição onde funcionava a creche que seu filho frequentava

frases como: “ele não tem jeito; nunca vai aprender”, “só vai fazer loucuras, como subir

sobre ônibus nas ruas...” E como Márcia chorasse muito ao ouvir essas coisas, a

dirigente a advertia que parasse de chorar, “porque a escola é escola-modelo e as

outras mãe não podem saber que tem casos assim aqui”.

Márcia mudou Luis de escola. Depois também deixou-a e Luis ficou somente

na APAE, até voltar, no contraturno desta, a uma instituição de educação infantil não

formal com 7 anos de idade, como veremos nos próximos relatos.

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4.3. Canteiro do reconhecimento: caminho para vínculos significativos

“– Não, o nome não pode ser “canteiro”. Canteiro é um lugar de canto.

Um lugar onde crescem as plantas deve se chamar ‘planteiro’ ”

Raquel, 7 anos

Venho acompanhando Luis, há quase dois anos. Certo dia vi aquele menino

tão bonito, de uniforme andando de mãos dadas com uma senhora. Parei o carro e

comentei: essa sua criança é muito bonita! Como ele se chama? A senhora respondeu

sem dizer seu nome e tampouco seu diagnóstico: É meu neto, mas é doente, não

sabe falar e está na APAE... Conversamos um pouco, sobre como as coisas são tão

difíceis, mas que podem se ajeitar. Esse, meu primeiro contato, primeiro encontro com

Luis.

Meses mais tarde, vi-o na APAE da cidade. Frequentava a sala de seis anos e

tinha uma garrafa de líquido azul, que jogava por todos os lados. Às vezes deixava-a

por uns momentos e depois retornava para sabê-la por perto. Estalava os lábios

fazendo um barulhinho constante com a boca, um tipo de ecolalia. Era a mesma

criança. O mesmo Luis que encontrara algum tempo atrás. Agora um pouco mais

crescido, sem linguagem verbal, e já muito habilidoso com uma bola.

Dando continuidade à minha investigação que já se delineava nos termos em

que hoje se encontra, fui acometida por um grande desejo de aproximar-me da família;

conhecer a mãe e ter mais proximidade com aquela criança autista, que tanto me

encantara sem saber que poderiam, ele e sua mãe virem a ser as pessoas que tanto

me ensinariam neste campo de possibilidades de educação e vida.

Com muito cuidado, iniciamos um tempo de aproximação. Descubro que Luis

e eu moramos no mesmo bairro. Sempre que podia e que entendia não interferir na

nossa iniciante relação de amizade passava à frente de sua casa como para ver se

encontrava-o e pudesse iniciar uma ação para instaurar um novo mundo para mim e

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para ele, ação que começa na palavra, estende-se na amizade e, quiçá, pudesse ter

presença qualitativa para sempre à mim e à ele. A nós todos.

E assim os encontros se deram. Na rua, ficávamos a conversar, eu e sua mãe,

Márcia, enquanto Luis brincava sob nossos olhos ali pela calçada, pela rua que, por

não ter muito movimento, foi palco de brincadeiras, ações, observações em misto de

alegria e preocupações. Alegrias pelas descobertas que fazia quando nas tentativas

mais inovadoras e criativas do que científicas, sentia alguma resposta de Luis que

com o passar do tempo me olha, aceita, partilha brincadeiras, obedecendo a mãe

quando ela dizia: Dá um beijo na Maria... E ele dava. E também quando sorria e,

muitas vezes, quando eu sentia uma “tentativa” (?) de mostrar-me algo como naquele

dia em que passava por lá e ele feliz, me olha da garagem, e joga a bola na parede,

pega-a e me olha de novo. Ouso dizer que seu olhar poderia, se falasse, me dizer:

“Olha, Maria, eu consigo fazer isso”!

A partir daí, vou sentindo e percebendo que, apesar de não ter linguagem

verbal, seus olhos podem me dizer coisas. Algumas vezes isso é muito difícil para ele,

mas tanto quanto a sua coragem, eu não desisto. É a marca do nosso encontro. O

rosto.

Por esse tempo, eu e Márcia, mãe do Luis vamos nos conhecendo. Conto para

ela os meus estudos sobre o autismo. Sobre as questões que me instigam e me

indignam. Sobre as intenções de aprofundar as questões relacionadas às interações

e mediação das pessoas que se aproximam dele. Peço permissão para acompanhá-

lo e me coloco à disposição para futuras conversas. Felizmente, ela anui e selamos

um grande momento na semeadura.

Márcia formou-se no ensino médio e há quatro anos é monitora em creche

municipal por meio período, aquele em que Luis vai para a APAE. Tinha problemas

com horário, pois quando Luis chegava em casa (de van), ela ainda não chegara e

por isso pagava uma vizinha para ficar com ele até que chegasse de seu trabalho.

Luis deu trabalho nesse tempo de adaptação, pois resiste a sair da rotina. Sua vizinha

chegou a ficar com ele durante todo o tempo (uma hora, mais ou menos) à espera da

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mãe, com ele Luis gritando e murmurando, sem que nada pudesse fazê-lo acalmar-

se até a chegada de Márcia.

Contou-me a mãe que ouviu de sua vizinha que ela não poderia trabalhar, pois

precisava cuidar de seu filho autista, ela própria. Frente a esse comentário, Márcia

considerou seriamente a possibilidade de largar tudo, emprego, tirar seu filho da APAE

para ficar somente cuidando dele. Quando a questionei do porquê tomar isso como

verdadeiro, disse que seria o mais certo. Que sua vizinha tinha razão, que seu esforço

de hoje em relação a seu filho não traria melhoras amanhã.

Imediatamente levei-a à problematização dessa situação, acentuando a

importância de olhar para si e para seu filho como pessoas, com dignidade e direitos

como quaisquer outras, ainda que com algumas limitações. E ela questionou: Mas,

como assim? Luis só gosta de bola; não dorme se não souber que a bola está por

perto.

No íntimo Márcia pensa, o que é o mundo numa bola? Para uma criança que

não tem linguagem verbal, como será o futuro girando uma bola, quando, na verdade,

o que deve girar é o mundo e desta forma nos fazer portadores de transformações

que estão já no íntimo de nossas pulsões?

Márcia ouviu de mim o que penso. Penso que a bola para certas pessoas, no

caso específico de Luis, é de extrema importância, pois é o que ele faz de melhor.

Jamais veremos tanta destreza e segurança de atividades com a bola, como em suas

pequenas mãos. Luis não gosta de chutar bola. Joga sempre com as mãos. Estimulá-

lo, não poderia ser o prenúncio de um futuro jogador de vôlei ou basquete?

Márcia acalmou os ânimos sobre desistir do emprego e tudo o mais que

pensara. E ainda comentou com seu marido a nossa conversa, que dias depois,

quando me encontrou perguntou-me o pai de Luis: você sabe se tem escola de

basquete ou vôlei aqui na cidade? Respondi que talvez a prefeitura tivesse um projeto

para crianças. Fiquei muito animada e fora plantada aí uma semente de esperança.

Caminhando pelo bairro, passo pela casa de Luis. A mãe vem com ele me

encontrar no portão conversando baixinho com ele e ainda pude ouvir: “dá um beijinho

nela. Vejo-o sorrir quando me vê. Chamo-o e ofereço as mãos espalmadas, “nosso”

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jeito, ensaio e busca de interação. Ele vem, bate na minha mão e sorri novamente.

Senta-se com pernas de índio do lado de dentro do portão. Eu faço o mesmo pelo

lado de fora e ficamos assim. A mãe me convida para o bolo de aniversário no sábado

próximo. Comemoro, bato palmas, canto parabéns. Ele sorri, mas não participa. Não

faz mal. Convido-os também para passarem em minha casa, quando puderem. Márcia

me diz que Luis está doente, tomando remédios. Vou-me embora. Luis me beija no

rosto. Pede colo para a mãe. Faz “tchau” com as mãos espalmadas quando ofereço

as minhas.

Numa outra tarde de sábado, estávamos sentadas na guia da calçada

conversando enquanto Luis brincava na rua, e Márcia reclama que fora falar com a

professora na escola especial e que nunca tem novidades sobre uma possível

alfabetização do Luis. Não sabe se “eles dão letrinhas para ele”. Pergunto sobre o que

acha de buscar para ele, no contraturno, uma escola de educação infantil onde ele

pudesse ter contato com outras crianças. Márcia entende “que a escola

[especializada] não deixa, porque lá na escola regular eles não sabem trabalhar com

ele e ele pode piorar”. E o que você pensa disso? pergunto. Ela não sabe. E

novamente conversamos sobre ele ser criança como todas. Que tem direitos, como

criança e autista. Conversamos sobre a inclusão educacional e seus benefícios, sobre

o modelo que ele terá de seus amigos, da possibilidade de lá na escola ele ter uma

pessoa cuidadora com ele, enfim, dados concretos de uma política que se ensaia em

nosso meio. Conversamos também da possibilidade de Márcia voltar a estudar. Quem

sabe fazer o curso de Pedagogia? Nada mais.

Alvissareiro foi ouvi-la contar, dias depois que, seu lugar de trabalho, uma

Creche Municipal foi visitada pela Sra. Secretária da Educação. Márcia juntou suas

forças, aproximou-se dela em frente a todos que a circulavam, contou a história de

seu filho e ouviu dela: amanhã mesmo leve seu filho para tal escola (uma escola de

educação infantil assessorada pela rede municipal de ensino) que haverá uma vaga

para ele lá.

Luis foi matriculado na escola de educação infantil determinada pela senhora

Secretária da Educação Municipal. A escola aceita, mas com limitações: apenas dois

dias na semana e em menor tempo, para a adaptação – no período da manhã. A mãe

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me conta que a adaptação foi difícil. A criança autista tem dificuldade de sair da rotina.

Luis gritou, chorou, murmurou muito pois não tem linguagem verbal. Correu pelos

espaços internos e externos, quintais da escola. Foi escalada uma estagiária15 para

ficar com ele, acompanhando-o em todas as atividades.

Mais alguns dias e a mãe vem relatar que Luis vai bem na escola “nova”; diz

que ele gosta de estar com as crianças menores, de 4 anos, 5 anos. Ele fez 7 anos,

mas não é de grande estatura. A dificuldade da mãe é com o desânimo que sente em

relação às pessoas, pois sempre acha que ele não é querido neste espaço. Digo que

precisa ter paciência. Que algumas vezes esses processos são demorados. A mãe

me diz que sente uma profunda tristeza quando perguntam se ele tomou o remédio,

porque esteve muito agitado. Relata também que ao buscá-lo na escola, algumas

vezes, foi sugerido que ministrasse ansiolíticos, porque ele não para.

Mas o tempo é amigo de Luis. Ele se adapta. Passou a gostar de ir à escola

pela manhã, apesar de, ainda, conforme me contava a mãe, apenas duas vezes por

semana. Não obstante isso, todos os dias Luis pegava a mochila, indicando um desejo

de ir à escola. A propósito disso, gostava sempre de me perguntar: a quebra de rotina

não lhe é favorável? Ou pode ser?

Tempos depois, era um domingo pela manhã. Passando pela rua do Luis, vejo-

o brincando com a bola e a mãe acompanhando-o; sempre em sua companhia. O pai

estava dentro de casa. Fazia muitos dias que não a via.

Na última vez que nos encontramos, combinou de encontrar-se comigo pois

queria falar de Luis. Ela mesma marcou local e horário, e não compareceu. Deveria ir

até a minha casa, pela primeira vez. O seu não comparecimento foi muito sofrido para

mim. Imaginava que eu não tivesse tido sensibilidade suficiente para perceber que

talvez ela estivesse constrangida. Pensei que o trabalho de observação estivesse

prejudicando-a e, consequentemente, prejudicado. Decidi aceitar como um dado esse

fato e continuar à espera do desdobramento dos acontecimentos. Voltando à calma,

e com paciência aguardava o que aquele domingo ensolarado, com clima ameno tinha

15 Estagiária: nome que a própria se dá como acompanhante de Luis, - “estagiária do Luis”- escalada pela coordenação da instituição até os dias atuais

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reservado para aclarar os fatos e trazer de volta as possibilidades de participar de sua

dura experiência de mãe daquele filho autista que tanto me encantava e cada vez

mais me enchia de esperança na continuidade.

Márcia se aproxima de mim imediatamente se justificando do desencontro

daquele dia, pedindo desculpas pelo fato que nos distanciou. Eu também, por minha

vez, peço desculpas, explicando o quanto me preocupara em poder ter sido de alguma

forma insensível em algum momento especial dela. Mas, tudo resolvido.

Nesta manhã, fiquei durante quarenta e cinco minutos brincando com Luis, que

paulatinamente foi se soltando e se alegrando com a atividade com a bola. Brincamos

de imitá-lo no jogo de bola. Não me acanho de dizer que queria saber se ele poderia

perceber. Sentamos no chão. Bolas altas, bolas baixas. Bola rasteira. Bola descendo

alguns degraus. Bola girando no chão e aparada com o dedo indicador. Bola

mansinha, muito devagar. Bola molhada na guia da calçada. Ficamos assim o tempo

todo. A mãe entrara para adiantar o almoço e ali ficamos. Eu dizia a ele: cuidado como

o carro. Ele olhava. Coloca a sandália, ele colocava. Tudo enquanto brincávamos.

Quando chega a hora vou me despedir. Luis me beija. Mas a mãe vem me dizer

do problema que agora enfrenta. Diz que vai tirar Luis da van que o leva e o traz da

escola especializada, pois a motorista havia amarrado os pulsos e os braços de Luis

durante três dias, durante o trajeto, dizendo que ele brigara com o coleguinha. Agora

mais do que nunca precisava que fosse aceito na escola infantil, no contraturno em

dias e horários completos. Os problemas se avolumavam. Foi várias vezes à escola,

conta os fatos da van, pede que o aceitem, que aumentem os dias e os horários, mas

esse pedido desencadeia com a escola um novo problema: ligavam a todo momento

para que ela fosse buscar Luis, o que a fazia acreditar que seu filho jamais se

adaptaria novamente nos horários extensivos, que foi de uma hora a mais, e algum

tempo depois, conseguiu mais um terceiro dia, como se encontra até hoje, um ano

depois.

Ainda um último relato. Encontro com Márcia e Luis chegando em sua casa

num sábado à tarde. O pai me vê passar e diz: A Maria vem aí, vem ver a Maria. Ele,

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com uma bola nova sai do carro para a rua. A mãe diz: Vem dar um beijo na Maria.

Ele volta e me beija, e eu nele.

Márcia está animada, e conta as novidades. Tinha comprado uma bola e uma

sandália nova para Luis, que tinha chorado muito porque a sandália nova não era igual

à antiga. Quando pergunto o que tinha acontecido ela explica que, desde pequeno,

sempre comprara sandálias do mesmo modelo, porque ele não gostava de mudar.

Mas que ela resolveu mudar e enfrentar o fato de não achar outra igual. Pergunto o

que acha que vai acontecer? Ela diz que ele vai acostumar; precisa acostumar. Que

acredita nisso.

Nesse mesmo dia, sou apresentada à Nina, a cadelinha que veio morar ali. Há

algum tempo conversamos sobre filmes que existem sobre crianças autistas e Márcia

chegou a assistir a alguns deles. Um deles estimulou a aquisição de Nina. A princípio,

disse-me Márcia, Luis assustou, colocava os braços à frente para se desvencilhar do

filhote. Mas depois foi se acostumando. E, a propósito disso, gostaria de registrar aqui

um fato que algum tempo mais tarde, presenciei. Brincando com a bola, Luis jogou-a

mais longe alcançando outra rua, numa descida, e começamos a gritar com cuidados

com ele e com a bola na rua. Nina saiu em disparada e com o corpo, tentava aparar

a bola jogando-a para a guia. A bola acabou contida sob um carro estacionado na guia

da calçada. Ouso dizer que os olhos de Luis, se falassem, me diriam que ele estava

feliz e que se divertira com isso.

Importa ressaltar que alguns desses relatos foram certamente feitos pela mãe

de Luis em nossos encontros semanais, às vezes quinzenais, às vezes até mais

distantes. Outros, eu estava presente, nessa fase de reconhecimento, sempre perto

de sua casa, reconhecendo seu dia a dia. Quando conversávamos, Márcia relatava-

me sobre questões da escola, e outras que aqui foram narradas e que nos deixavam

mais preocupadas, tristes, mas também aquelas que nos animavam e dessa forma

fortalecíamos o vínculo que um dia estabelecêramos nessa missão comum:

proporcionar ao Luis o que de melhor ele poderia ter por qualidade de vida. E, algo já

vem acontecendo. Há muito tempo Luis não faz mais o barulhinho de estalar os lábios.

E sua mãe, está cursando Pedagogia, semipresencial, que é o modo como atualmente

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pode estudar. Penso que refletiu sobre nossas conversas. Tem interesse, porque

convive com o tema em casa, com seu filho Luis, no curso, na comunidade, na vida.

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4.4. Canteiro das flores: outro nome para escola

“Aprender é partir. A formação implica uma travessia conosco e com os

outros, processos de identidade e de alteridade.

António Nóvoa

“Aprender é estar dentro de um tempo [...] Eis o fio do seu mistério.”

Carlos Rodrigues Brandão

O primeiro reconhecimento será sobre a Instituição onde Luis foi matriculado,

numa breve caracterização a título de contextualização, cujas narrativas serão feitas

já com a participação desta pesquisadora no dia a dia desta escola.

Trata-se de uma instituição filantrópica de educação não formal, cuja fundação

remonta os anos 50, com objetivo social voltado para a criança. Atua conveniada ao

Poder Público e outras parcerias.

Atualmente recebe crianças de um ano de idade até adolescentes de 17 anos

e 11 meses, advindos, prioritariamente de famílias em estado de vulnerabilidade

social, bem como em situação de risco, em condições de abrigamento.

Atuando em educação não formal, funciona no contraturno do período escolar

regular das crianças, oferecendo atividades diversificadas como música, esporte,

judô, teatro, informática, balé, arte-terapia e trabalho com meio ambiente. Trabalha

com projetos que são elaborados por idade, sendo o Projeto Creche para crianças de

1 a 3 anos de idade incluindo cuidados diários como alimentação, sono, banho com

duas educadoras em cada classe; o Projeto Serviço de Convivência e Fortalecimento

de Vínculos para crianças de 4 a 12 anos em classes separadas por faixa etária; o

Projeto Pré-Rumo para pré-adolescentes e o Projeto Rumo para os adolescentes.

Conta com, aproximadamente, 500 alunos. Entre eles os abrigados do

acolhimento institucional, que moram em 4 casas localizadas na área central da

cidade, e passam ali, alguns, um período, outros, os dois.

A escola oferece 5 refeições diárias às crianças que permanecem em período

integral e 3 às que ficam apenas meio período.

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Frequentam a escola duas crianças autistas, uma (Luis) no período da manhã

e outra, à tarde.

Passo às narrativas.

Como já foi relatado, Luis foi matriculado em uma escola de educação infantil.

Parto para ela. Para conhecê-la preciso fazer o seu reconhecimento, atribuir sentidos,

alicerçar o lugar onde estão pessoas, crianças ou jovens, adultos ou bebês, buscar os

seus saberes, que sabemos também das lições de Paulo Freire, se contrapõem e se

complementam.

Chego na instituição. Período da tarde. A escola está calma, sossegada, quieta.

Como a Assistente Social não está para definir meu lugar, fico pelo pátio e áreas

externas da escola. As crianças pequeninas estão nas “salas do sono”. Encontro com

alguns deles pelo pátio e, para conhecê-los, travo um diálogo: “Dioges”, minha vó me

chama assim”, quando lhe perguntei o seu nome. Outro pequeno passa por mim e eu

digo: Aposto que vai tomar água. Vai? Ele me responde: “vou fazer “sissi”. E vai.

Quando volta me procura. Já fez? digo. “Zá, agola vou pala sala minha”. E vai.

Mais tarde outro pequenino passa por mim, e eu digo: Vem cá. Ele, choroso,

me olha e diz: “eu quero a minha mãe”. E digo, eu sei que você quer a mamãe. Vem

cá, vamos conversar. Ele vem. Digo: Sabe, a mamãe está no trabalho; quando ela

acabar ela chega. Já, já é hora do lanche. Você gosta? Ele faz que sim com a cabeça.

Então, você vai lá na sala, depois chega a hora do lanche e fica mais perto da hora

da mamãe chegar. Está bem? Ele diz que sim e vai.

Para o lanche, no pátio coberto são dispostas mesinhas com cadeirinhas.

Emendadas as mesinhas tornam-se longas mesas com bancos para os bebês que

ainda usam fraldas. As crianças são servidas de suco na caneca para os maiores e

para os menores em canecas com canudos, do tipo de bicos de mamadeiras.

As crianças são e estão alegres, ativas, e correspondem à sua maneira às regras.

Comem e tomam à vontade. O ambiente é calmo. As crianças graciosas e saudáveis.

Aproveitam o tempo na escola e creche. Após o lanche dirigem-se para a sala e

quando voltam, vão para a grama e o parquinho e já trazem a mochila. A saída é

alegre com a chegada das mães, avós, responsáveis ou peruas.

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O pequenino que queria a mamãe, na saída passa perto de mim e eu digo: Viu

como chegou logo a hora de ir embora? Ele me olha e com um meio-sorriso, misto de

alegria e timidez, faz um sim com a cabeça, do tamanho de um elefante.

Dia chuvoso. E tranquilo na escola. Neste dia me aproximo pela primeira vez

das professoras e das cozinheiras na hora do lanche. Ofereço-me para limpar as

cadeiras e mesinhas das crianças, caso derrubem suco. O lanche sólido são biscoitos

de polvilho. Quem tem vontade come à vontade. Vejo que uma criança de quatro anos

não quer e quando pergunto por que, responde: “só gosto de comida saudável!”

As maiores, conversando comigo, dão uma aula sobre alimentos com muito sal

e muito açúcar e descrevem as experiências feitas com as professoras, no turno da

manhã, em escola regular.

Quando as professoras se dirigem para as classes, peço para ficar com uma

pequenina de apenas dois anos que come seu biscoito e toma seu suco bem devagar.

Espero que termine no seu tempo e depois levo-a para a sala para a sua professora.

Quase todas as professoras dobram período e não há exigência do curso

superior de Pedagogia, apesar de algumas estarem cursando.

Na saída, encontro-me com a pessoa que é responsável pelo Acolhimento.

Está saindo para levar roupas, xampu, perfume para uma adolescente que está

internada por drogadição. A menina tem apenas 13 anos, é deficiente intelectual e já

sofreu um aborto. Está envolvida com drogas e há algum tempo vai e volta para a

clínica. Sua mãe e avó são também deficientes intelectuais. A Instituição é muito

cuidadosa com estes casos também, e o trabalho é feito de maneira séria, afetuosa e

responsável.

A narrativa que passo a fazer agora, trata-se de como conheci Pedro (nome

fictício) ao tempo inicial do meu trabalho de observação na escola no período de Luis.

Conversava com a Assistente Social sobre o trabalho que pretendia fazer em

minha pesquisa, especificamente junto ao grupo de crianças onde estaria Luis, criança

autista, com ênfase nas suas relações e interações tanto com as crianças como

também com os adultos, professoras, educadoras que com ele interagissem; falamos

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sobre a possibilidade de intervenções de minha parte às professoras, mas soube

naquele momento, tacitamente, que a anuência viria devagar, paulatinamente.

Durante toda a nossa conversa, a Assistente Social tinha no colo, em atitude

de contenção, uma criança mais ativa, de 7 anos, de nome Pedro, que ali estava para

ser advertida sobre algo que fizera.

Algumas semanas depois desse fato, no pátio aguardava Luis pois soube que

teria aula de música. Fiquei muito animada, pois gostaria muito de ver como seria sua

reação na aula de música! Mas ela não aconteceu, pois a estagiária disse que ele

estava agitado e iria atrapalhar a professora e as outras crianças. Foi para a

brinquedoteca com ele. Acompanho e vejo a estagiária fazê-lo sentar-se à mesinha.

Oferece-lhe uma bolacha e ele come. Depois, pega uma peça redonda – uma bola

com pés – e começa a brincar com ela sobre a mesa. Parece bem.

Nesse momento a professora do grupo pede-me que fique com as crianças que

estão no campo de futebol. No grupo, Pedro, (aquele que estava no colo da Assistente

Social), muito bravo, falando palavrões, agressivo, chutando os amigos. Começo a

administrar o jogo, determinando algumas regras iniciais, e o jogo vai bem até um

desentendimento entre eles. Aproximo-me para apartar chutes, e palavrões. Seguro

Pedro, e procuro distraí-los com um “calango” que vejo no muro. Volta a calma. Pouco

depois, nova briga. Pedro vem até mim, converso com ele e espero acalmar-se.

Proponho que vamos lavar as mãos, o rosto e tomar água. Ele aceita. A seguir a

professora pede que eu fique com ele, isoladamente, do outro lado, longe do grupo.

Pedro pega uma bola e vamos. Jogamos juntos até ele se cansar e pedir para sentar-

se à sombra. Sentamos na calçadinha, à sombra de uma grande árvore. Pergunto

sobre a escola e ele me conta que está no primeiro ano. Então já sabe escrever,

pergunto. Ele responde: Sei, mas não sei ler. Como assim? Você conhece as letras?

Sim. Então vamos lá. Desenho com o dedo no chão da calçada a letra A e pergunto,

que letra é essa? A, responde. Que ótimo! Você leu! Isso é ler. Continuei brincando

de escrever com o dedo e ele foi respondendo. Primeiro, “AI”, ele leu e eu representei,

ai, ai, ai, você leu a palavrinha que falamos quando sentimos dor, quando alguma

coisa está doendo. Que legal! E ele ria, satisfeito. Mudei para as letras do crachá.

VISITANTE. Sílaba a sílaba foi lendo e comemoramos: isso mesmo, eu sou visita na

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escola, por isso estou com esse crachá. Gostaria de congelar o sorriso que ele dava

com os lábios e com os olhos!

Trago as informações do trabalho desta instituição, que acolhe crianças em

abrigamento desde um ano de idade até dezessete anos e onze meses, aquelas em

regime de contraturno escolar com educação não formal e socioeducativo, e creche.

São crianças, adolescentes e jovens que frequentam e se beneficiam deste

trabalho educacional. Um canteiro de flores. Jardim de cultivo humano, onde as

relações se dão, se fazem, se interpenetram. Lugar onde se deve constituir o outro

em cada um, onde se deve escutar o sentido dos acontecimentos e interpretá-los de

forma criativa, principalmente naquilo que nos escapa. Lugar onde a alteridade e o

cuidado são categorias necessárias, pois algumas “flores” merecem mais tempo,

escuta, diálogo e dedicação do que outras para equacionar de modo justo a equidade.

4.5. Canteiro das ressignificações

“A transformação de uma realidade simplesmente imaginada seria um

absurdo.”

Paulo Freire

O desafio de semear a alteridade na trama das relações no meio educacional

de uma criança autista e com aquelas pessoas que com ela interage, aguardar a

colheita – no campo – e, verificar as possibilidades dialógicas em terras da educação,

enquanto devir, vem estabelecer-se nas narrativas que ora damos continuidade. São

fatos que, em observação participante, estive inserida e que passo a narrar.

Após a fase de autorização e reconhecimento da escola, a Instituição ora

descrita, por se tratar daquela em que Luis se matriculara por apenas três dias, passei

ao momento da pesquisa em que, inserida nela, iniciei a observação com o fito de

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refletir e analisar como se dá a interação de Luis e as pessoas que com ele interagem.

Sua mãe está de acordo.

Na Instituição educacional, neste campo de “flores” está Luis, como já relatado,

matriculado e experimentando um novo tempo e lugar de vida. Está fazendo sua parte.

E também a sua mãe, que nos três dias que tem autorizado sua frequência prepara-

o, pega a mochila e leva-o. Passado o tempo de adaptação, resistência natural das

crianças que, quase sempre, preferem a mamãe a qualquer outra pessoa, Luis vai

para a escola com alegria e a seu modo parece aproveitar e quiçá, favorecer-se com

as possibilidades que se lhe apresentam. Os relatos não guardam entre si uma

sequência no tempo. Foram escolhidos no sentido de poder equacioná-los e dar

sentido aos acontecimentos, uma vez que ultrapassava oito meses de convivência de

Luis na escola. A maioria dos relatos guarda semelhança, no sentido de que Luis,

agora mais “comportado”, precisa somente de acompanhamento para que tudo corra

bem. De maneira que os acontecimentos mais específicos tiveram prioridade nas

questões que poderiam ser beneficiadas com o cuidado, a alteridade, a proximidade,

a compreensão do ser. Senão, vejamos.

Chego à escola, pela manhã. Luis ainda não veio. Neste dia ele tem uma seção

de Terapia Ocupacional com profissional fora da escola e por isso chega um pouco

mais tarde. Estando à disposição da escola, disponho-me a ajudar a professora

responsável pelos bebês na creche, pois um deles está chorando muito. Pego-o no

colo e vou passear pela área externa da escola para distraí-lo. Pouco depois vejo que

Luis chega com a estagiária e se deslocam para a atividade do grupo. Dirijo-me para

lá.

Está um dia frio e as crianças estão em atividade num grande salão. Algumas

carteiras encostadas à parede, com papel e lápis, o grupo desenvolve atividade de

desenho, todos em pé, à vontade ao mesmo tempo que trabalham. Noto que Luis não

se encontra com o grupo. Está no mesmo espaço, mas muito distante deles. Do outro

lado do salão, sentado, de frente da estagiária, sem brinquedo, sem papel.

A princípio entendo que este momento é um momento importante para Luis e

a estagiária. De conhecimento, responsabilidade que nasce do vínculo que pode

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haver entre eles. Não ouso tecer ainda um julgamento por estar tão distante do grupo,

apesar de imaginar que por este tempo poderia estar ensaiando maior interação com

as crianças.

Novo dia de outono bastante frio. Destes dias em que as crianças desenvolvem

suas atividades em ambientes mais fechados. O salão que há na Instituição é perfeito

para isso. O grupo de Luis está nele e ele participa da atividade. A brincadeira é “corre-

cotia”. Todas as crianças estão sentadas no chão, num grande círculo. Luis está nele,

também sentado e sorri, enquanto as crianças cantam a brincadeira:

“Corre cotia, na casa da tia;

Corre cipó, na casa da vó.

Lencinho na mão, caiu no chão.

Moça bonita do meu coração

Posso contar, pode sim, 1,2,3,...

Uma criança fica do lado de fora do círculo com o lenço e ao final da contagem,

escolhe um amigo e joga o lenço atrás dele. Se está atento, pega-o e sai correndo

para pegar o amigo. Um a um, vão passando com o lenço. Luis fica todo o tempo na

roda. Em um momento vejo-o sorrir para a colega que está a seu lado. Pega sua mão

e passa no rosto. Faz isso algumas vezes. Apesar de não ouvir, vejo que a sua amiga

sorri e conversa com ele. Luis, às vezes, acompanha com os olhos o lencinho. Em um

determinado momento, foi a vez da amiga que estava a seu lado estar com o lenço.

Ela rodou em volta do círculo enquanto o grupo cantava, e quando ia jogar, aproximou-

se de Luis. Muito timidamente, olhou para a professora e fez um sinal com o dedinho

indicando Luis, como a pedir autorização para jogar atrás dele. A professora, sem

parar de cantar, fez com a cabeça e com o dedo indicador que não. A menina,

constrangida, saiu a correr e escolheu outro amigo.

Um encontro espontâneo e gratuito entre as crianças, Luis e a menina ao lado.

Manifestação de alteridade, em que a responsabilidade, se é que assim posso chamar

a atitude da amiga de tão tenra idade, talvez seis anos, desponta sem juízos, sem

cobrança, mas é interceptada pela atitude do adulto, da professora. Penso que há um

duplo esvaziamento na compreensão do ser. Ruim para a humanidade própria do Luis

e ruim na desconsideração da inteireza humana da outra criança, a menina. O que

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quer que acontecesse teria um sentido. Mesmo que buscasse ajudar Luis, pegando-

o pela mão; mesmo que ele, assustado, saísse a correr, e não quisesse participar.

Tudo seria um dado a ser elaborado, pensado; um dado novo de proximidade do

próximo.

Decidi, naquele momento que na primeira oportunidade me aproximaria para

conversar com elas, com a estagiária, que estava ausente até o momento, sobre as

interações e as relações. A importância de tentar experimentar as brincadeiras

coletivas.

Nesse dia fiquei com Luis até a chegada da pessoa que o acompanhava,

porque a estagiária não viera. Conversamos e ela se apressava a dizer o quanto Luis

era afetivo...porque passara a mão da amiga no seu rosto?

Quando Luis foi almoçar, sentou-se à mesa, pegou o prato, experimentou um

pouquinho para saber da quentura e passou a comer junto a todas as crianças.

Um novo dia bastante ensolarado e há jogo de futebol com todas as crianças,

meninos e meninas. Elas vestem camisetas amarelas e azuis. Luis está fora. Gosta

de ficar no parque, no balanço e a estagiária um pouco mais distante. A professora

me diz que Luis “só gosta de parque e ninguém tira ele de lá”. No parque, gosto de

ficar com ele, conversando normalmente. Luis está no balanço do meio, entre dois

amigos. Para e olha os movimentos da colega que está debruçada no outro balanço.

Depois olha para o outro lado. A estagiária, continua longe. Nenhum estímulo ou

aproximação.

Na hora do almoço, Luis só come três colheradas e toma um pouco de suco.

Sai correndo e vai para o parque. Volta ao balanço; a estagiária vai atrás dele

preocupada com sua alimentação. Luis levanta várias vezes do balanço. Dá uma

corridinha. Volta. E a estagiária sempre pedindo para ele voltar perto dela. De repente

ele vem. Abaixa a calça e começa a fazer xixi ali mesmo. Corro e ajudo, pois percebo

que ia ser interceptado e digo, não faz mal. Acontece. Conversamos. Isso é um

anúncio, digo. Poderia iniciar uma boa rotina, a de ir ao banheiro antes de ir ao

refeitório para almoçar. Ela aderiu.

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Neste dia também penso e digo: quem sabe se um dia, não se poderia

estabelecer algumas regras simples para as crianças jogarem bola com as mãos,

como se fosse vôlei? E se Luis participasse? Fica a sugestão.

Hoje é dia de judô. No semestre passado Luis não podia vir à escola nesse dia.

Mesmo tendo uma estagiária só para ele, precisava ficar em casa. As crianças fazem

judô fora da escola e precisam se deslocar de perua. Agora, as crianças vão ao judô

e Luis permanece na escola com um outro grupo. Uma mudança positiva.

Enquanto as crianças do grupo se espalham em pequenos grupos pelo

gramado, parque e sombras das árvores, Luis anda, anda, anda. As meninas brincam

com panelinhas, de casinha, mamãe-filhinha. Os meninos empurram carrinhos pela

grama, andam de bicicletas de duas rodinhas. Luis anda, ao largo do muro, atravessa

o campo, retorna à sombra das árvores; de novo recomeça pelo campo, pelo muro, e

não para de andar. Olha para os pés, para as mãos. Sua estagiária não está com ele.

Às vezes ela aproxima-se de mim, conversa, enquanto olha Luis de longe. Comenta

que ele gosta de brincar com sua sombra. Fico atenta, e penso, seu outro? Luis

adentra-se nos pequenos grupos de crianças em suas brincadeiras e para alguns

instantes olhando para elas. Às vezes, segue os meninos que empurram carrinhos

pela grama e calçadinha do pátio. Às vezes, para e procura a estagiária até achá-la e

continua a andar. Faço comentários como: ele está procurando você. Você é

importante para ele. Agora ele já encontrou. Mas a estagiária continua ali. Logo após,

chama-o e ele vem imediatamente. Coloca uma cadeirinha para ele perto de nós e

pede que se sente para descansar um pouco. Ele obedece e fica o tempo que ela

aproveita para limpar-lhe o suor, nariz, rosto e pescoço. Ele olha para mim. Ensaia um

sorriso. Converso com ele, brinco de bater as mãos, e ele corresponde. Depois, volta

a andar, andar, andar.

Em determinado momento, volta para a estagiária e lhe mostra os pés; algo o

incomoda. Ela tira-lhe as sandálias e limpa a areia. Ele olha para ela como se quisesse

pedir algo. Mas não entendemos e fica por isso mesmo. Ela pede para ele me beijar

e ele o faz prontamente e sai. Diz que antes ele não gostava que ninguém o tocasse,

agora ele beija.

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Pergunto se ele pede água. Ela me diz que para água ele passa os dedos na

garganta e ela já sabe que é isso, (o dia está quente e seco, e minha pergunta tem a

ver sobre levá-lo, sem que peça). A conversa continua e falamos sobre as outras

tantas maneiras de buscar a interação para ele, principalmente pela ênfase ao lúdico

que a escola proporciona. Ela responde que sim, que acha que em primeiro lugar a

professora tem que gostar de trabalhar com crianças...

Proximidade do próximo. Não há ainda. A interação Eu-Tu é desprovida do

entendimento da reciprocidade, pois muitas vezes vejo Luis manifestar-se em seu ser

como sujeito: anui ao carinho da menina, como lá no “corre-cotia”; experimenta a

quentura da comida, busca com os olhos a presença da estagiária, segue os amigos

quando brincam de carrinho ou bola. Tem voz. Seus olhos pedem, riem, e, se houver

um pouco de proximidade, podem até “falar”; e é isso que nos permite pensar a

autonomia e melhor qualidade de vida.

Existe uma preocupação da estagiária de “olhá-lo”, “tomar conta”, o que é

diferente de interagir, de conectar-se com esse outro que é pessoa humana, o Tu que

é Eu. Nota-se uma tranquilidade, uma satisfação pessoal do educador com a atividade

mais serena, na verdade mais passiva da criança; com seu “habituar-se” ao meio. A

descoberta dos “saberes” da criança como o brincar com a sombra, não ultrapassa a

alegria da “descoberta” sem avanços no sentido de um trabalho com esse “saber” que

vem da própria criança, e que gera o entendimento real (talvez com aspas) de sua

voz. A cada vez que Luis manifesta-se enquanto o ser que é, enquanto sua

humanidade ainda passa despercebido, e o “habituar-se” sedimenta-se como um

dado pronto e determinado para ser colecionado entre todos que porventura vierem a

acontecer.

É uma quinta-feira e o grupo de Luis está no campo gramado rodeado de muros

altos e na lateral superior, muitas árvores A brincadeira é bola. Cada criança tem a

sua e a proposta da professora de Educação Física é que, a seu comando, todas

juntas devem chutá-la para o gol. Luis olha sua bola e as dos amigos mas não

participa. Anda sorrindo. A bola lhe traz alegria, bem estar. Não chuta. Fica de lado, e

ao comando da professora, quando todos chutam, mostra alegria, sorri, mas não

participa.

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Novamente enfileirados, cada criança com sua bola na mão, Luis sobe até o

muro, agacha-se e fica olhando. Ao comando da professora, as crianças devem jogar,

cada uma a sua bola, o mais alto e forte que conseguir. Quando todas as bolas (mais

de vinte) estão no alto, no céu azul e ensolarado, Luis pula, pula, balança os braços,

sorrindo, sorrindo, sorrindo. Que linda manifestação dele mesmo. Só o “estar junto”

pode proporcionar tal constatação. A estagiária, do outro lado, distrai-se com algo. Às

vezes, olha para ele, vê que está tudo bem, que Luis está comportado, e é só.

Sem proximidade, reponsabilidade, socialidade, que é para nós o encontro

ético, o adulto, o “eu” educador não consegue perceber o quanto Luis pode manifestar-

se. A dificuldade de Luis estar junto com o grupo, característica do espectro ainda

nesse momento, não pode ser tomada como dado, sem tentativa, sem “estar com”,

sem “sentir com”. A compreensão do outro, a compreensão do ser está apoiada num

dado de incompreensão: Luis está quieto, comportado.

Luis sabe a bola, logo, o que podemos fazer, criar, ressignificar, com este

saber?

A aula continua com atividades como andar sobre corda estendida na grama e

pular arcos, também dispostos no chão. Para esta atividade a estagiária vai buscar

Luis e de mãos dadas com ele cumpre a atividade; Luis anda sobre a corda, mas não

pula dentro dos arcos. De repente, solta das mãos, volta e faz o caminho da corda e

dos arcos. Ensaia pequeninos pulos. Ouso pensar que está tentando pular

Pular dentro dos arcos parece tarefa muito difícil para ele. Penso que

precisasse de ajuda, de demonstração “junto de”, “pular com”, pular junto”. Diferente

de acompanhar de mãos dadas. No encontro pode ascender o fator ético – do auxílio,

da ajuda. Ascender o discernimento: “olhar o rosto” x “mãos dadas”.

Sexta-feira. Não é dia de ir à escola. Passo à frente da casa de Luis pela

manhã. Ele está brincando na garagem e nos separa um portão de grades. Fico ali,

do lado da calçada e percebo que está com os chinelos trocados. Digo para ele: você

calçou os chinelos errados. Ele olha para os pés e vem até perto de mim. Não

consegui ajudá-lo, mas bastou saber do seu olhar aos pés, ainda que não tivesse feito

as trocas dos chinelos. Continuei por ali. Ele com a bola, jogando na parede, batendo

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com as mãos, e só com os indicadores, só com os polegares, na mesma velocidade

e ritmo todo o tempo, com muita agilidade. Do lado de fora começo a interagir,

estendendo os braços e dizendo muitas vezes para ele: Joga a bola para a Maria, e

depois eu jogo para você. Penso que há que suspender a informação de que alguns

autistas têm dificuldades em interagir com outras pessoas. Continuo pedindo e

estendendo as mãos. Ele olhava para mim e eu para ele, no rosto que invoca. Marquei

no relógio, e minutos mais tarde (seis minutos) ele veio até mim no portão e me

entregou a bola. Joguei para ele imediatamente. Olhar o rosto. É possível a

reciprocidade. Quando saí despedi-me e disse: vem me dar um beijo. Ele me olhou e

fez de longe com os lábios o movimento de “mandar um beijo”. Sua mãe riu.

Terça-feira. Dia que Luis chega um pouquinho mais tarde. Encontro-o numa

sala com a estagiária que está envolvida com alguns relatórios escritos. Luis está

sentado na ponta da mesinha. Passa a mão no braço da estagiária, nos papéis bem

de mansinho, olha para mim, sorri. Pergunto se ele está com calor, se quer tirar o

agasalho. Ele levanta imediatamente os braços. Tiramos o seu agasalho e ele volta a

sentar-se.

A estagiária me diz que a psicóloga da APAE recomendou que se ele chegasse

mais agitado, deveria se acalmar em ambiente fechado. Conta também que a

psicóloga esteve na escola para ensiná-la algumas técnicas de contenção como pegá-

lo pelos punhos, ao invés das mãos, ou quando ainda mais agitado, colocar os braços

dele para trás, para evitar que se solte ou que agrida a ela ou a outra pessoa. Recebe

orientação também de uma especialista da educação municipal, pois é contratada

pela prefeitura. Nesta orientação ouve a palavra “domar”, pois é como entendem a

contenção a possíveis momentos de maiores ataques nervosos e de agressividade

de Luis, e ela anui sobre isso.

Quando saímos para o pátio havia uma mesa de ping-pong armada e Luis se

encantou com ela. Passa ali muito tempo acompanhando a bolinha amarela com os

olhos, sentado em uma cadeirinha. Quando os jogadores erram ele sorri mas não

pega a bola. Às vezes, quando um adolescente sai do jogo, vem até ele, conversa,

brinca e ele sorri. Uma adolescente, também aluna da instituição pega a bolinha no

chão e pede para Luis entregá-la ao outro jogador. Ele entrega. Eu digo a ela que

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esse gesto foi muito bom para Luis. Foi o que bastou para ela entreter-se com ele.

Levou-o ao gramado, jogou bola com ele até trazê-lo de volta ao pátio. Luis estava

com a bola que trouxe do gramado. Como estou na outra ponta da mesa, peço que

role para mim. E, imediatamente começa; para mim e eu para ele. Ficamos assim um

tempo. A estagiária olha e vem buscá-lo somente na hora da higienização para o

almoço.

Quinta-feira chuvosa. Um pouco mais frio. Luis está no pátio. O grupo de Luis

foi para o judô e ele acompanha as crianças menores que estão ali reunidas, sentadas

nas mesinhas com lápis de cor e papel. A estagiária está ali, costurando “fuxicos” para

uma atividade de final de ano. Luis está sentado a seu lado e à sua frente, na mesa,

dispostos para ele, uma folha de papel e dois lápis da cor azul, que ignora. Eu me

acomodo à sua frente. Converso com ele. Pego o lápis de cor e vou rabiscando o

papel. Ele olha e ri. Fica olhando e, de vez em quando, toca rapidamente a ponta de

seu dedo médio no lápis que está na minha mão, enquanto vou pintando. Não paro.

Continuo. Mostro o lápis e vou assim por um tempo até o momento em que ele segura

na minha mão e junto comigo faz o movimento de pintar três vezes e solta. Comemoro

e continuo. Converso, mostro o lápis e o desenho que vai aparecendo. Digo: vamos,

vem pintar comigo. Novamente, ele segura na minha mão e junto faz o movimento de

pintar três vezes e solta. A estagiária observa. Ali ele fica muito tempo. Pergunto à

estagiária (que continua costurando), se poderia brincar um pouco de rolar bola com

ele. Ela diz que não. Devemos esperar a hora do brinquedo. Luis mexe nos retalhos

de tecido que estão sobre a mesa, apalpa-os, guarda-os em um saco plástico e assim

vai passando o tempo até a hora do brinquedo.

O salto qualitativo que vejo nesta narrativa foi o pegar junto no lápis. A

abordagem do outro no rosto me incumbe a responsabilidade do fazer. Há que

suspender o juízo, o pacote de memórias onde está determinado que a criança autista,

no caso particular, Luis, sem linguagem verbal, não sabe, não quer pegar no lápis,

não quer o lápis. Neste nosso diálogo de voz e olhos, que remete ao olhar no rosto do

outro que invoca, a humanidade de Luis ascende o meu fazer como outro, como

educadora, o fazer nascido desse encontro: pegar junto no lápis e movimentá-lo. Há

uma escuta que, mais que ouvir, sente. Sentir que o “diálogo”, seja de vozes, seja de

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olhares, precisa do cuidado de estar com este outro; precisa de uma educação da

sensibilidade. Parafraseando Severino Antônio, “circulação de vozes” que só poderão

ser ouvidas na não indiferença do outro.

Quando chega o momento do brinquedo, Luis começa suas peripécias com a

bola e como está junto ao seu grupo, as crianças ficaram fascinadas com sua agilidade

e também queriam experimentar. Fiquei por ali para administrar a brincadeira.

Aproveito para dizer a elas que Luis não sabe falar e não sabe brincar com outros

brinquedos. As crianças perguntam: por que ele não sabe falar? E eu respondo: não

sei. Mas nós podemos ajudá-lo a aprender a brincar. E assim vamos por um tempo.

Luis não se importa de deixar a bola aos amigos, um pouquinho. Até sorri e, às vezes,

quando a bola chega perto dele, ele a pega e age como se estivesse “brincando com”.

Por esses momentos, chega Pedro (aquele das brigas, mas que já era amigo),

e disse que queria uma bola também. Conversei com ele e disse que a bola era o

brinquedo que Luis sabia brincar. E disse: Pedro, Luis não sabe brincar com outras

coisas. Sabe que ele não sabe falar? Não? diz espantado. Não, digo. Ele é um pouco

diferente de nós, e é por isso que eu fico aqui. Você pode me ajudar a cuidar dele, e

às vezes brincar com ele, porque ele não sabe brincar com outras crianças.

A partir daí, Pedro sentou-se perto de Luis e começou a brincar com ele,

fazendo o que ele fazia. – rolar de um para outro e também girar e colocar o dedo para

aparar a bola – cada vez a vez de um. Ficou assim por muito tempo, e de vez em

quando olhava para mim, na outra ponta da mesa, como a dizer que já estava

ajudando. No final do período, quando o grupo deslocou-se eu agradeci e pedi para

Pedro ir com a sua professora. Ele foi e sentou-se com o grupo. Quando saí, dei-lhe,

de longe, um tchauzinho. Ele também; um tchauzinho bem pequenininho. Só nosso.

Novo momento de encontro entre crianças. Encontro ético, sem juízos, sem

cobranças. Responsabilidade que, conquanto ambos não saibam, faz o mundo melhor

e a cada um. Como diz o poeta-educador: “Desde cedo e para sempre, ensinar é

ensinar-se, aprender é aprender-se”.16

16 Epígrafe às fls. 32, autoria de Severino Antônio. (ANTÔNIO,S.,2014)

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É uma linda quarta-feira, apesar de fazer calor já logo cedo. Chego à escola e

Luis já está com a estagiária. Ela me diz que precisa fazer uma pesquisa na sala de

informática. Vamos até lá. Há computadores disponíveis, mas alguns alunos maiores

ocupam outros e a estagiária prefere não ficar ali com Luis, pois a professora pode

“ficar brava” caso forem atrapalhados. Vamos à brinquedoteca. Lá há duas salas

interligadas. A primeira contém muitos brinquedos e ao centro, uma mesa com

cadeirinhas com alguns trabalhos sobre ela. A segunda, contígua, contém estantes

com livros infantis, cabides com roupas e fantasias, um aparelho de televisão,

mesinhas e cadeirinhas. Há nela um grupo de crianças menores assistindo um

filminho, sentadas no chão e acompanhadas pelas professoras.

A estagiária sugere que Luis fique na primeira sala, pede para sentar-se à

mesinha e que eu fique com ele, enquanto ela se dirige à sala de informática. Assim

é feito.

Luis está com uma bolinha de tênis amarela nas mãos. Brinca com ela sobre a

mesa. Enquanto isso, vou conversando com ele: Joga aqui, ali, para mim... Sobre a

mesa há tarjetas com nomes de crianças, o que me sugere falar seu nome

perguntando: Cadê o Luis? Pego em sua mão, que segura a bolinha e levo-a a seu

peito dizendo: Luis está aqui. E a Maria? Cadê a Maria? Pego novamente em sua

mão, (que segura a bolinha) e bato em meu peito, dizendo: A Maria está aqui. Luis

sorri. E vamos brincando assim. Depois de um tempo, pergunto: Cadê o Luis? mas

não pego em sua mão. Ele, sozinho, bate sua mão com a bolinha no próprio peito!

Comemoro, fico feliz e ele também sorri. Pergunto outras vezes e em todas ele faz o

mesmo: bate a mão com a bolinha em seu próprio peito. Quando a estagiária chega,

mostro a ela. Luis faz novamente. Ela sorri, vagamente. Faço alguns comentários

sobre aproveitar do fato de Luis cumprir alguns pedidos, sem resistência como por

exemplo, venha aqui, cuidado com a janela, cuidado com o vidro, etc. mas o salto

qualitativo deste dia foi bater com a bolinha em si mesmo. Prenúncio do eu?

Não posso me furtar de parafrasear Leloup, para quem a abertura do pequeno

eu para o Eu Sou é que trará a luminosidade que abrir-se-á de dentro para fora! Eis o

sujeito. O “ser sujeito” permeia toda esta pesquisa e as relações de alteridade, que

em casos como de Luis, prenúncios valem tanto quanto a boa notícia.

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À guisa de finalização deste tempo de narrativas no quarto e último capítulo

deste trabalho, observamos a experiência do encontro, do outro, da proximidade do

próximo, o olhar no rosto que invoca e me convoca, os ditos e não ditos, os saberes

e não saberes, e também a falta de vontade de saber; também o saber estigmatizado,

o saber como verdade única; a responsabilidade do eu e o outro, criança autista.

Caminhamos em campo ainda em formação, em elaboração. O cuidado impregnado

nessa relação educacional, entremeada de fazeres e não fazeres, vai,

inexoravelmente, influenciar nossa colheita.

A proximidade, pela qual a alteridade poderá criar e recriar os vínculos

subjetivos entre o educador e a criança autista denota ainda lassidão. A proximidade

está impregnada pela falta de movimento no semear. E, se tolhidas algumas

possibilidades - como aquela de rabiscar com o lápis no papel e tão comemorada por

mim, - podem ser coibidas por todo o sempre. Ao contrário, se os cuidados como o

estar com e no grupo de crianças onde se encontra Luis revestirem-se da

preocupação dos educadores de encontros éticos com ele; se os cuidados de não

serem tolhidos e ou negligenciados os encontros das crianças entre si, na

espontaneidade do Eu-Tu nascido entre elas, - tão somente por serem crianças, e na

mais tenra idade - então poderíamos assim, neste campo de semeadura, colher a

qualidade, colher a vida. Ou simples e plenamente, melhor qualidade de vida por meio

da alteridade.

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Recriar o germinar: Considerações Finais

“Quem tem ouvidos, ouça...”

Parábola do Semeador

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Iniciamos pela esperança. Findamos com esperança.

Com Paulo Freire, na exímia experiência da consciência do outro, no encontro

dialógico de sujeitos, na esperança de que o educador atue no real encontro de

alteridade que permite mudanças a educandos e educadores; com Lévinas, que prima

pela Ética na compreensão do ser em que se confundem eu e o outro, no encontro

em que o conhecimento não precede a socialidade e brota a responsabilidade pelo

outro; com Leloup, no cuidado com o ser humano e respeito a todas a suas dimensões

– transpostas na relação educador-educando, aprendendo a olhar, escutar e silenciar,

iniciamos agora um passeio pela seara nesta última colheita.

Não por acaso essa pesquisa inicia com a preparação da terra – da Educação

– seara que delineia-se sob os auspícios da esperança, dos bons ventos que possam

protegê-la, aumentar a profundidade dos sulcos, promover a retirada dos espinhos.

No exercício fenomenológico a partir da ética, intentamos buscar, nos atos

essencialmente relacionais da prática educativa, aqueles que integram a

manifestação do ser em cada uma das partes envolvidas, semeando a alteridade.

Vimos, entretanto, a alteridade afetada pela dureza e determinação em

relações Eu-Outrem em que o “eu” educador quase sempre se furta em projetar suas

“considerações” no “eu” criança autista, outrem, ser que como qualquer eu não é ser

que permanece sempre o mesmo. Sua humanidade e inteireza, o respeito ao seu jeito

de ser como pessoa, como sujeito, torna-se refém das ausências de relações de

escuta, diálogo, cuidado. E o que se dá é a inevitável incompreensão do ser enquanto

manifestação que o deixa ser.

Vimos, na perspectiva dessa pesquisa, ao contrário de encontro, a pessoa da

estagiária, aqui nomeada “eu” educador, e da criança autista como dois entes que

ocupavam o mesmo espaço, em postura de quase posse, chamada por todos como

“estagiária do Luis”. Ausência de proximidade do próximo, que em relação à criança

autista a proximidade fica reduzida à adaptação, a habituar-se ao meio, ao convívio

como “ser comportado”. O mesmo se verifica em relação à criança típica, embora com

problemas de disciplina e apresentar atitudes excessivamente ativas como Pedro. Os

atos essencialmente relacionais na prática educacional, - agora esperados como

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aqueles que se dão enquanto encontros éticos que perscrutem o diálogo, a

reciprocidade, a responsabilidade onde se tece o vínculo do subjetivo, - não cuidam

de acontecer em muitos momentos do contexto desta pesquisa. Porém, a experiência

vivida por esta pesquisadora e pelas crianças que buscaram a interação, revela a

possibilidade e reforça a esperança. Relembrando Paulo Freire, romper com o estar

meramente no mundo para estar com o outro para criar e recriar numa prática de

intencionalidade, atuar na realidade do outro, no caso, na realidade da criança autista.

Quem cuida é cuidador. O educador é cuidador. Para isso é necessário

aprender a ver com clareza, ver o que é. No ambiente educativo, paradoxalmente, a

criança autista não é ou não pode ser vista como uma doença, pois antes disso é

criança, ser humano e é preciso saber escutá-la. E sua voz ainda está no rosto. Olhar

o rosto, que invoca e me convoca como clama Lévinas. Educador é cuidador. Ser

humano. Pode despertar o ser no outro que com ele interage. Movimento que requer

olhares e escutas atentas, pequenas coisas que fazem as grandes coisas.

Paulo Freire, Lévinas e Jean-Yves Leloup, neste contexto de pesquisa e

reflexões, confere-nos um entendimento que hoje evocamos, de como a educação é

muito mais do que vemos hodiernamente em sua prática, malgrado tantos olhares e

esforços para dar-lhe o sentido que buscamos.

Autismo e Alteridade em uma intencionalidade inclusiva pressupõem um estudo

das relações. Relações com o outro, do docente com a criança, especialmente a

autista ou com necessidades educacionais especiais, a imprimir significado e

sustentação em processo inclusivo.

A partir de Paulo Freire que nos incita ao educando como sujeito; sujeito criança

autista, bem como sujeito educador em cuja ação se revela nos atos educacionais de

ensinar e aprender, ressaltamos a importância da alteridade trazida por Lévinas que

procura no rosto do outro compreender o ser. Eu e Outrem, Eu e Tu, relação de

intersubjetividade que suscita o fator ético da responsabilidade. E, o cuidado que o

educador deve imprimir nesta ação que o faz ver com clareza o que é, ter olhar

esclarecedor como adverte Leloup.

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Porém, conforme vimos nesta semeadura, neste campo de relações

educacionais observado, o “eu” educador, conquanto o tenhamos e é para nós sujeito

educador, há que re-criar, re-ver, re-ler o mundo tão necessitado de re-humanização

para ansiar sua transformação, pois como na epígrafe citada, “as razões não hão de

ser enxertadas, hão de ser nascidas” (VIEIRA,1951) a partir de nós mesmos e nossa

experiência.

O respeito à inteireza da criança, à sua humanidade, na relação “eu” educador

e “eu” criança autista parece necessitar do “estar com”, do “sentir com” a que nos

remete Paulo Freire, formas que permitem possibilidades dialógicas. Sair de si e olhar

o outro e a realidade segundo sua própria história, impõe uma relação em que se

interceptam os saberes, a criação e recriação deles.

A alteridade enquanto compreensão do ser, neste campo de semeadura nos

devolve uma certeza que silencia na compreensão deficiente do outro: basta ser

comportado. Sob esse aspecto, o comportamento aparece fortalecido nas respostas

que a criança autista oferece sendo capaz de ouvir, na maioria das vezes, no ambiente

escolar, os pedidos que lhes são feitos pela estagiária (eu-educador) e os realizando.

Porém, revolvendo a terra observamos que o eu-criança autista sem linguagem

verbal desse nosso estudo, não consegue ainda ser visto e ouvido pelo seu outro, eu-

educador, por meio de suas outras linguagens que se nos apresentam no Rosto

quando no encontro com ela: olhares que falam, gestos que comunicam, sorrisos que

agradecem e se divertem. E também os olhares que sofrem e pedem socorro.

Em terras da educação, na escola, ou fora dela, na comunidade, portais das

relações, artérias que poderão transportar a alteridade na trama que comporta desde

os fios da seda mais grosseira à tessitura mais elaborada, semente lançada e

cultivada ainda, por vezes fenece. Não fora assim, poderia incitar atitudes e ações que

trariam à tona o melhor do social: a convivência familiar, comunitária, educacional

pacíficas, dedicadas, explícitas, manifestas.

Por isso, este estudo inicia e finaliza com a esperança. O fio ainda pode atar o

laço ao presente que se quer ofertar ao futuro. E, como sujeitos da educação, a travar

o bom combate, unindo o fim ao começo, queremos recriar o germinar: educadores e

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educadoras, homens e mulheres, pessoas humanas, não só semeemos. Seja

acrescentado o movimento de reflexividade e intencionalidade conscientes para que

saiamos para semear a alteridade em uma ação consciente e ética que, junto às

crianças autistas convergir-se-á nas possibilidades dialógicas que poderão trazer a

transformação na ação singular e plural de re-criar, re-conhecer, re-verdecer. Et fecit

fructum centuplum.

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Anexo A: Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com

Transtornos do Espectro do Autismo (TEA)

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Anexo B: Lei No 12.764, de 27 de Dezembro de 2012

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