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UNISINOS - CURSO DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL ROTEIRO - TRIMESTRE 2003/2 A ESCRITURA DO ROTEIRO Polígrafo de Giba Assis Brasil - versão junho/2003 Em primeiro lugar, é bom lembrar que a teoria a respeito de roteiro pode ser dividida em duas linhas, que poderiam ser chamadas, numa dualidade pouco eufônica, de estrutura e escritura. Ou seja: de um lado aquilo que diz respeito à concepção do roteiro, de outro aquilo que tem a ver com a maneira de escrevê-lo. Ou, de forma ainda mais simplificada, as velhas categorias de forma e conteúdo. Sem querer assumir inteiramente que eu esteja falando mesmo de forma e conteúdo, eu diria que a estrutura precede a escritura, que o melhor roteiro não é o que tenha a escritura mais correta, mas aquele cuja estrutura narrativa preveja a realização de um bom filme. Feita essa ressalva, adianto que aqui, neste texto, eu me proponho a falar de escritura e apenas de escritura. E começo definindo escritura do roteiro como a forma particular de dispor as palavras no papel para compor aquilo que a gente chama de roteiro cinematográfico. Não exatamente formatação (tipo de letra, tamanho de papel, margens, etc), não aquelas regrinhas que Hollywood desenvolveu para chegar ao conceito de "um minuto por página", mas os pressupostos disso: algo que tem a ver com "para que, afinal, serve um roteiro?" 1. O PRINCÍPIO BÁSICO: PARA QUE SERVE UM ROTEIRO? Cinema pode ser arte, diversão, entretenimento, linguagem, etc, mas antes e acima de tudo cinema é indústria. E cinema é indústria por três motivos: porque precisa da máquina, da acumulação de capital e da divisão especializada de trabalho. Claro que esta divisão de trabalho vai se tornando cada vez mais complexa no decorrer da ainda recente história do cinema. E justamente uma das primeiras divisões de trabalho que ocorrem é aquela que resulta no surgimento da figura do roteirista. Ela ocorre na virada do século 19 para o 20, quando os filmes começam a ficar mais caros. Ou seja, os produtores começam a ficar preocupados com a quantidade cada vez maior de dinheiro que estão investindo nos filmes, e precisam de alguma previsão do que vai ser o filme antes de aprovar a sua realização. Portanto, historicamente, o roteiro surge não como forma de expressão de um roteirista ou por desejo de um diretor, mas como necessidade de um produtor. Como toda indústria, antes de investir capital em cada novo produto,

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UNISINOS - CURSO DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUALROTEIRO - TRIMESTRE 2003/2A ESCRITURA DO ROTEIROPolígrafo de Giba Assis Brasil - versão junho/2003

Em primeiro lugar, é bom lembrar que a teoria a respeito de roteiro pode ser dividida em duas linhas, que poderiam ser chamadas, numa dualidade pouco eufônica, de estrutura e escritura. Ou seja: de um lado aquilo que diz respeito à concepção do roteiro, de outro aquilo que tem a ver com a maneira de escrevê-lo. Ou, de forma ainda mais simplificada, as velhas categorias de forma e conteúdo. Sem querer assumir inteiramente que eu esteja falando mesmo de forma e conteúdo, eu diria que a estrutura precede a escritura, que o melhor roteiro não é o que tenha a escritura mais correta, mas aquele cuja estrutura narrativa preveja a realização de um bom filme. Feita essa ressalva, adianto que aqui, neste texto, eu me proponho a falar de escritura e apenas de escritura.

E começo definindo escritura do roteiro como a forma particular de dispor as palavras no papel para compor aquilo que a gente chama de roteiro cinematográfico. Não exatamente formatação (tipo de letra, tamanho de papel, margens, etc), não aquelas regrinhas que Hollywood desenvolveu para chegar ao conceito de "um minuto por página", mas os pressupostos disso: algo que tem a ver com "para que, afinal, serve um roteiro?"

1. O PRINCÍPIO BÁSICO: PARA QUE SERVE UM ROTEIRO?

Cinema pode ser arte, diversão, entretenimento, linguagem, etc, mas antes e acima de tudo cinema é indústria. E cinema é indústria por três motivos: porque precisa da máquina, da acumulação de capital e da divisão especializada de trabalho.

Claro que esta divisão de trabalho vai se tornando cada vez mais complexa no decorrer da ainda recente história do cinema. E justamente uma das primeiras divisões de trabalho que ocorrem é aquela que resulta no surgimento da figura do roteirista. Ela ocorre na virada do século 19 para o 20, quando os filmes começam a ficar mais caros. Ou seja, os produtores começam a ficar preocupados com a quantidade cada vez maior de dinheiro que estão investindo nos filmes, e precisam de alguma previsão do que vai ser o filme antes de aprovar a sua realização. Portanto, historicamente, o roteiro surge não como forma de expressão de um roteirista ou por desejo de um diretor, mas como necessidade de um produtor.

Como toda indústria, antes de investir capital em cada novo produto,

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o cinema precisa de uma simulação do que poderá vir a ser este produto. Diferentemente do que acontece, por exemplo, na indústria de autopeças, em que uma mesma simulação serve para uma série enorme de produtos iguais entre si, mas também diferentemente da indústria editorial, em que a simulação é quase desnecessária já que a produção consiste apenas em reproduzir, embalar, distribuir e divulgar um produto artístico/intelectual já completamente acabado. Em função de sua situação intermediária, um dos conceitos que a indústria do cinema desenvolveu para a simulação de seus produtos foi o de roteiro.

Não há dúvida que o conceito de roteiro mudou bastante ao longo destes cento e poucos anos. Mas, de acordo com a maioria dos teóricos contemporâneoes, "roteiro é uma história contada em imagens, mas através de palavras". Um discurso verbal, escrito de forma a permitir a pré-visualização do filme por parte do diretor, dos atores, dos técnicos e dos possíveis financiadores. Um instrumento de trabalho e de convencimento que, conforme as necessidades da indústria a cada momento e em cada local, já foi mais técnico ou mais literário, mais detalhado ou mais aberto. Roteiro enfim é o elemento inicial fundamental para a elaboração do projeto de um filme.

Roteiro não é literatura. Ou seja: não é uma forma acabada de linguagem, não deve ser pensado como algo a ser apresentado ao público, mas como um momento intermediário de criação, e que portanto deve servir ao seu objetivo final: o filme. Sempre que tiver que optar entre uma frase agradável, esperta, "literária", e uma frase clara, o roteirista deve ser claro.

O objetivo de um roteiro, portanto, é tentar estabelecer com o seu leitor uma relação o mais parecida possível com a relação de um espectador vendo um filme. Um objetivo impossível de se atingir, é claro, uma vez que um filme são imagens em movimento numa tela acompanhadas de som, e um roteiro vai ser sempre palavras sobre papel.

Uma utopia criativa a serviço de um objetivo fundamentalmente econômico: uma boa definição não só de roteiro, mas da própria essência do cinema.

2. ELEMENTOS TEXTUAIS

Um bom critério para reconhecimento de um roteiro no papel poderia ser a presença dos seguintes elementos: (1) a DIVISÃO DE CENAS claramente indicada; (2) a NARRAÇÃO de toda a ação do filme, na ordem cinematográfica; (3) breve DESCRIÇÃO física dos personagens e dos cenários quando eles aparecem pela primeira vez; (4) as FALAS

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(diálogos e textos de narração) completos e destacados do restante do texto; e (5) RUBRICAS ou indicações para os atores durante as falas.

2.1. DIVISÃO DE CENAS

É indicada por uma linha, normalmente toda escrita em maiúsculas, separada do resto do texto por pelo menos uma linha em branco acima e outra abaixo, e contendo algumas informações essenciais para a visualização da cena. Exemplo:

CENA 31 - INT/DIA - AUDITÓRIO

Embora alguns prefiram mudar a ordem desses elementos:

CENA 19 - EXT. PRAÇA EM FRENTE À IGREJA - NOITE

(a) Número da cena: Os manuais norte-americanos em geral dizem que o roteirista NÃO DEVE numerar as suas cenas, porque a numeração é uma prerrogativa da produção. A única vantagem de o próprio roteirista numerar as cenas é poder fazer eventuais remissões: "Felipe usa a mesma arma da cena 22".

(b) Interior ou exterior: Em alguns casos, fica difícil identificar uma cena como interna ou externa. Por exemplo, em cenas de automóvel: costuma-se colocar INT nas cenas com diálogo dentro do carro, e EXT quando a câmara está fora do carro, mas é bastante comum intercalarem-se estes dois pontos de vista. Eventualmente há cenas que começam INT e terminam EXT ou vice-versa (planos-seqüência atravessando portas, por exemplo) e devem ser indicadas INT-EXT.

(c) Dia ou noite: É uma indicação de luz apenas, para ajudar o espectador a visualizar a cena. Em algumas cenas interiores, em espaços em que não há nenhuma janela aberta ou semi-aberta, a indicação é dispensável.

(d) Nome do local onde se passa a cena: é apenas um nome, não uma descrição, mas pode e deve ser descritivo, na medida do possível: QUARTO DE PEDRO; SALA DA CASA DE DOLORES; EM FRENTE AO PRÉDIO DA PREFEITURA. Quando boa parte do filme se passa num mesmo prédio (que pode ser uma locação real ou um espaço construído em cenários), pode ser necessário detalhar mais o local de cada cena. Por exemplo: EDIFÍCIO DEAUVILLE: PORTARIA; EDIFÍCIO DEAUVILLE: GARAGEM; etc.

Importante: a divisão de cenas é uma indicação visual para o leitor (como, aliás, quase tudo o que está em um roteiro). Não é uma divisão em capítulos, e portanto não deve procurar "resumir" a cena que será

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narrada a partir deste ponto. Contra-exemplo:

CENA 11 - INT/DIA - CARLOS SE ENCONTRA COM DÉBORA

Além disso, devem-se evitar excessos: às vezes, em um sucessão de cenas muito curtas ou intercaladas, a linha de divisão de cenas deixa de ser útil e passa a atrapalhar a visualização do filme. É o caso, por exemplo, de algumas conversas telefônicas, ou daquele tipo de colagem rápida de cenas às vezes chamado de "montage sequence". Nestes casos, como sempre, deve prevalecer o bom senso.

2.2. NARRAÇÃO

Tudo o que acontece no filme (e que o público deve ver ou ouvir) tem que estar no roteiro. Mas em que grau de detalhamento? "O Professor entra na sala" pode ser pouco. "O Professor abre a porta, dá um passo, olha em volta enquanto fecha a porta atrás de si, dá outro passo, troca a pasta da mão direita para a esquerda e dá mais três passos até chegar à sua mesa" parece demais. Mas tudo depende de como o roteirista está imaginando a cena (e, portanto, de como ele quer que o leitor imagine a cena).

Em geral, a intenção do personagem, sua reação ao que está acontecendo, também é visível para o espectador, portanto deve ser visualizável para o leitor do roteiro. Exemplo:

A porta se abre. O Professor entra, apressado, nervoso. Fecha a porta atrás de si e encara a turma. Na primeira fila, dois alunos disfarçam sorrisos com a mão. O Professor respira fundo e, mais calmo, caminha até sua mesa.

A fala de um personagem muitas vezes provoca reações nos outros personagens. Contra-exemplo:

BITUCAÉ um assalto, todo mundo pro chão, pro chão. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga logo esse som.

Ao ver o filme, o público QUER SABER como os personagens estão reagindo. A não ser que o objetivo do roteirista seja justamente FRUSTRAR este desejo do público, as reações devem ser indicadas no roteiro. Por exemplo:

BITUCAÉ um assalto, todo mundo pro chão, pro chão.

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Os convidados da festa, assustados, levantam os braços. Alguns se jogam rapidamente no chão.

BITUCASe vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga logo esse som.

Um garçom, ao lado da aparelhagem, desliga o som. Silêncio.

2.3. DESCRIÇÃO

Devem ser descritos todos os personagens e cenários que estão aparecendo pela primeira vez.

Quando o personagem está sendo apresentado no filme, o público memoriza dele alguns traços físicos essenciais, que vão servir, durante a história, para identificá-lo em relação à trama. Ora, o roteiro tem que fazer o mesmo: dar o nome do personagem (ou o nome pelo qual ele vai ser identificado) e associar a este nome algumas características (normalmente 3 ou 4, começando pela idade arredondada) que ajudem na sua visualização: "Mariana, 25 anos, loira, bonita, mancando da perna direita..." "O Capitão, 50 anos, grisalho, sério, barriga proeminente..." A partir daí, sempre que o leitor ler os nomes "Mariana" ou "Capitão", formará mentalmente a imagem sugerida na apresentação.

As descrições devem ser visuais. Características psicológicas ou referentes à biografia dos personagens devem ser trabalhadas no roteiro para se transformarem em ações, palavras, gestos. Evitar, portanto, descrições como: "Luiza é casada e tem duas filhas, o tipo de mulher que tem tudo para ser feliz." Ou ainda: "Samuel está ultimando sua tese de doutorado, que versa sobre as motivações e origens da doutrina tradicionalista da igreja católica."

O mesmo em relação aos cenários. Em princípio, a primeira cena que se passa num determinado cenário deve começar por uma breve descrição do mesmo: "O quarto de Cleide é amplo, arejado, com uma cama de solteiro e um toucador." "O auditório, com lugar para 100 pessoas, está lotado."

Mas às vezes o personagem é introduzido na história apenas pela sua voz, ou pelos seus passos, uma mão enluvada que abre uma porta, etc. Ou um cenário começa sendo mostrado em detalhes (por exemplo, duas poltronas em que os personagens estão sentados) para depois ser revelado em toda a sua extensão (digamos, uma grande sala vazia). É

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claro que, em qualquer caso, a descrição (para o leitor) deve corresponder ao que deveria estar sendo visto (pelo espectador) a cada momento. No roteiro, a descrição geral de um personagem (ou de um cenário) só deve aparecer no momento em que, no filme, ele deveria ser visto.

Por isso, aquela página de apresentação dos personagens colocada antes do início da narrativa, bastante comum em teatro, deve ser evitada num roteiro cinematográfico. Ou, se por algum motivo ela for incluída no projeto, não deve ser considerada como parte do roteiro.

Uma vez apresentados, personagem e cenário só precisam voltar a ser objeto de descrição quando ocorrer alguma mudança em seu aspecto físico: "o Capitão, em traje de banho..." "Mariana, agora com uma grande cicatriz na testa..." "o auditório agora está com apenas a metade das poltronas ocupadas..."

2.4. FALAS

Tudo que é falado no filme deve estar no roteiro. Não são admissíveis num roteiro frases como "Janice e Gonçalves discutem a respeito de seu casamento", "Alfredo pede para ir ao banheiro". (A não ser, é claro, num roteiro "em andamento", como indicação, de um dos roteiristas para seus colaboradores ou para si mesmo, de diálogos que ainda precisam ser desenvolvidos.)

Para facilitar a visualização, as falas devem estar muito claramente destacadas do resto do texto, a ponto de constituir, visualmente, na página, dois blocos: o "bloco das falas" e o "bloco da descrição/narração".

O nome do personagem que fala deve anteceder cada fala, com destaque (normalmente indicado por letras maiúsculas).

Devem ter indicação específica, entre parênteses ao lado do nome de quem fala, as falas em que o personagem está fora de quadro (FQ) ou com voz sobreposta (VS). Em inglês usam-se as expressões "off-screen" (OS) e "voice-over" (VO). No Brasil, sabe-se lá por quê, adotou-se o termo inglês OFF para ambos os casos.

2.5. RUBRICAS

Rubrica, apesar de ser um conceito que vem do teatro (no sentido de "tudo que não é fala num texto teatral"), tem em cinema um significado mais específico: é um trecho de frase, colocado entre

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parênteses dentro do bloco das falas, para indicar a intenção do personagem ao dizer a fala (rubrica de intenção) ou uma pequena ação realizada pelo personagem enquanto ele diz a fala (rubrica de ação simultânea).

A rubrica, como intenção ou como ação simultânea, refere-se sempre à frase que vem DEPOIS dela. Exemplos:

PAULINHOPode deixar. (irônico) Eu cuido dela como se fosse minha irmã.

CARLAAh, você está aí? (fechando a porta) Eu desisti de ir.

Deve-se evitar rubricas excessivas, tanto em tamanho quanto em possibilidade de interpretação. Contra-exemplo:

CARMEM(com ares de admiração e desconfiança na crença das reais possibilidades na execução do trabalho) Gabriel, você tem certeza que não vai precisar de ajuda?

3. REGRAS DE ESCRITURA

Atenção: as regras aqui descritas têm exceções, algumas já conhecidas e muitas ainda por descobrir, ou mesmo inventar. Às vezes acontece de as regras entrarem em conflito entre si: para cumprir a regra X, resulta necessário descumprir a Y. Em qualquer caso, deve prevalecer o bom senso.

As regras de escritura existem para fazer com que o roteiro seja visualizável. Sempre que a aplicação de uma das regras a um caso concreto estiver atrapalhando a visualização, a regra deve ser deixada de lado. Prevelece o princípio: "O objetivo de um roteiro é tentar estabelecer com o seu leitor uma relação o mais parecida possível com a relação de um espectador vendo um filme."

3.1. TERCEIRA PESSOA

Um filme é uma experiência externa, que acontece numa tela colocada à nossa frente, a uma certa distância, com outras pessoas ou personagens. Por isso, todo roteiro deve ser narrado em terceira pessoa.

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Como comparação: a maior parte da literatura é narrada também em terceira pessoa, mas existe toda uma tradição de ficção literária em primeira pessoa, e mesmo experiências isoladas de textos literários em segunda pessoa.

3.2. VERBOS NO PRESENTE

Assistir a um filme é uma experiência que acontece no tempo, como a música ou o teatro, e ao contrário da pintura, da escultura e da literatura, que acontecem no espaço. O tempo de visualização de um filme é sempre o presente. Mesmo no caso de um flash-back: entendemos, por uma série de convenções, que a cena se passa no passado em relação a outras cenas já mostradas, mas, quando ela está sendo mostrada ao público, ela é percebida como presente. Portanto, num roteiro, todos os verbos devem ser colocados no presente (ou, eventualmente, no gerúndio, que é um presente contínuo).

De novo como comparação: quase todo texto literário é escrito no passado, mas também é comum a ficção no tempo presente, e muito raros trechos de ficção literária são escritos no futuro.

3.3. ORDEM FÍLMICA

Tudo no roteiro deve estar na ordem em que vai aparecer no filme: não necessariamente na ordem cronológica, mas na ordem fílmica. Evidentemente que isso se aplica à ordem das cenas, que devem ser dispostas no roteiro conforme a ordem narrativa definida pelo roteirista, e que, em princípio, deve ser seguida na montagem final do filme.

Mas a regra da ordem fílmica tem outros níveis, mais ou menos sutis, de aplicação: a ordem dos acontecimentos narrados em cada cena; a ordem das falas em um trecho de diálogo; a sucessão de trechos de narração e descrição; a colocação das rubricas dentro do bloco das falas; a intercalação das falas com os blocos de narração/ descrição; e, levando-se a regra ao pé da letra, até mesmo as palavras dentro de cada frase narrativa ou descritiva.

Como contra-exemplo, veja o seguinte trecho narrativo:

A porta se abre Fernando entra. Vai até a cozinha. Volta sem a garrafa de leite e o jornal.

A visualização proposta está na ordem errada, pois o leitor "vê" o leite e o jornal exatamente quando não deveria mais estar vendo. No

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caso, seria melhor:

A porta se abre e Fernando entra, com a garrafa de leite e o jornal nas mãos. Vai até a porta da cozinha, entra. Depois de um instante volta, com as mãos vazias.

A rigor, até uma frase simples como "Mané tira um revólver do bolso" pode ser considerada como estando na ordem errada. Isso porque, ao ler esta frase no roteiro, "veríamos": (1) Mané; (2) o ato de tirar; (3) o revólver; (4) o bolso. No filme, provavelmente, a ordem de visualização seria: (1) Mané e sua mão; (2) o bolso; (3) o ato de tirar; (4) o revólver. Ainda que pareça um certo preciosismo, o roteiro seria mais visualizável com uma frase como "Mané tira do bolso um revólver" ou, melhor ainda, "Mané põe a mão no bolso e tira um revólver".

A regra da ordem fílmica se complica um pouco quando duas ou mais coisas acontecem simultaneamente: neste caso, o que deve ser narrado ou descrito em primeiro lugar? Uma possibilidade seria a utilização do formato de roteiro em duas colunas (ação à esquerda, texto à direita), que tem a sua história inclusive no cinema, mas que hoje em dia é considerado totalmente inadequado para ficção (embora seja indicado, por exemplo, para telejornalismo ou para documentários institucionais). De acordo com o bom senso, narra-se ou descreve-se primeiro aquilo que chamar mais atenção, e que provavelmente atrairá primeiramente o olhar (ou a compreensão) do espectador.

E no caso da simultaneidade dissociada entre som e imagem? Por exemplo, um personagem executa uma série de ações em cena enquanto uma voz sobreposta diz alguma outra coisa, mais ou menos relacionada com a imagem. Mais uma vez, o bom senso sugere: (a) dividir tanto a ação quanto a fala em blocos pequenos, digamos de 3 a 4 linhas cada; (b) intercalar os blocos de narração e fala para dar idéia de simultaneidade; (c) começar com a ação, já que, em princípio, o espectador primeiro vê e depois ouve.

Na sala quase escura, a porta se abre. Por ela entra um sujeito de chapéu e sobretudo, que fecha a porta atrás de si e entra devagar, sem fazer barulho.

FONSECA (VS)Aquela foi mais uma noite em que quase tudo deu errado. Enquanto eu me empanturrava de azeitonas, vinho doce e batom de quinta categoria...

O sujeito chega à escrivaninha, contorna-a. Abre com cuidado a gaveta de cima, que está cheia de papéis. Remexe-os, sempre sem

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fazer barulho. A segunda gaveta é aberta. A mão enluvada do sujeito levanta uns papéis. O sujeito sorri.

FONSECA (VS)... meu escritório foi visitado por um dos caras do Rafael. Não que ele tenha encontrado muita coisa, apenas os dólares que eu estava guardando para a minha viagem a Puerto Stroessner.

3.4. NADA INFILMÁVEL

Um roteiro não pode ter nada que não seja diretamente filmável. Esta é talvez a regra mais óbvia, e a menos observada. Até porque é possível defender a tese de que "tudo é filmável". No limite, qualquer texto literário (mesmo Kafka ou Joyce, por exemplo) pode ser filmado assim: close no rosto do ator com ar pensativo e uma voz sobreposta dizendo exatamente o texto original. É claro que, quase sempre, esta é uma péssima solução. Mas, em relação às regras de escritura de roteiros, o problema nem é de má qualidade, mas de escritura mesmo: seja qual for a solução encontrada, ela deve estar no roteiro como uma sucessão de imagens e sons, ou seja, como algo filmável - não em tese, mas FILMÁVEL CONFORME ESTÁ NO ROTEIRO.

Os casos mais freqüentes da presença de elementos não filmáveis em roteiros referem-se a pensamentos ou sentimentos dos personagens, relações pessoais e passagens de tempo.

Contra-exemplos de PENSAMENTOS NÃO FILMÁVEIS:"Everaldo abre um buraco na terra e enterra sua pistola, colocando uma estaca sobre ela, para indicar o lugar, caso algum dia ela seja necessária. Célio observa, de longe, sabendo que é uma revelação para daqui a muitos anos.""O Delegado pára e pensa até que ponto valeria a pena manter aquele tiroteio contra a quadrilha de Palito. Aquele era seu território e por mais homens que a polícia tivesse na operação a probabilidade de efetuar alguma prisão seria mínima.""Nélson está desconfiado: foi preso e solto no mesmo dia, isso cheira a armação."

Contra-exemplos de SENTIMENTOS NÃO FILMÁVEIS:"Marília se sente feia, mal vestida e desinteressante""Cíntia está com vontade de fazer xixi.""Era a primeira vez que Cunhatã vislumbrava um homem branco.""Eles não percebem, mas estão se envolvendo emocionalmente"

Contra-exemplos de RELAÇÕES PESSOAIS NÃO FILMÁVEIS:

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"Márcia está ao telefone falando com Joana, mulher de Ernesto.""O bar é administrado pelo irmão de Jair.""Cinara é uma ex-namorada que casou-se com Romeu, um grande amigo que Bernardo só voltaria a ver um ano depois desse encontro."

Contra-exemplos de PASSAGENS DE TEMPO NÃO FILMÁVEIS:"Dilmar aguarda ansioso por alguns minutos""Gilberto está na mesma situação há horas.""Duas semanas depois, Laura encontra Patrícia para desabafar sobre seu casamento."

Uma exceção importante a esta regra são os NOMES DOS PERSONAGENS.

Se um texto literário começa com a frase "Carlos caminha pela sala", já sabemos, imediatamente, que o personagem se chama Carlos. Mas se a mesma frase é o começo da primeira cena de um roteiro, o personagem permanece inominado - até que alguém o chame de Carlos, num diálogo ou através de uma voz sobreposta, ou até que o nome Carlos apareça escrito numa placa em sua mesa de trabalho, ou numa carta que ele recebe, ou num texto escrito sobreposto apresentando-o, etc. O roteirista precisa levar isso em conta: até ser nomeado (por voz ou escrita) no filme, o personagem NÃO TEM NOME. Portanto, se fosse aplicar a regra do "nada infilmável", o roteirista não poderia escrever o nome do personagem antes que alguém ou algo dentro do filme o enunciasse.

No exemplo acima, o roteiro deveria começar com "Um homem caminha pela sala". Se o personagem dissesse alguma coisa, sua fala seria antecedida pela identificação "HOMEM". Se outro homem entrasse na sala e ninguém dissesse o seu nome naquele momento, ele teria que ser identificado como "outro homem" e sua fala poderia ser antecedida por "HOMEM 2". Claro que, se um deles fosse magro e o outro fosse gordo, poderíamos ter um diálogo intercalando os identificadores "HOMEM MAGRO" e "HOMEM GORDO". Se um terceiro homem entrasse na sala, já seria o "HOMEM 3" ou o "HOMEM NÃO TÃO GORDO" ou ainda, digamos, "HOMEM VELHO" ou simplesmente "VELHO". Mas aí o Homem Gordo chama o Magro de "Otávio" e então, na sua próxima fala, ele não é mais "HOMEM MAGRO" e sim "OTÁVIO". E assim por diante.

A confusão do contra-exemplo acima indica que os nomes dos personagens constituem uma exceção à regra do "nada infilmável", e uma exceção tão evidente que chega a formar uma nova regra: O nome de um personagem deve ser indicado SEMPRE em sua primeira aparição.

O "sempre" da frase anterior também não significa exatamente "sempre". Há exceções, como sempre: (a) personagens que, por decisão do roteirista, não terão nome durante todo o filme - neste caso, o

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nome será substituído por uma indicação que seja suficientemente individualizada para não confundi-lo com outros dentro do filme: "Herói", "Mulher fatal", "Padre"; (b) personagens cuja verdadeira identidade só será revelada em outro momento do roteiro; etc.

3.5. EVITAR TERMOS TÉCNICOS

Um roteiro deve evitar ao máximo possível o uso de especificações técnicas, ou expressões que indiquem explicitamente a filmagem, tais como "close", "plano geral", "travelling", "corta para", "a câmara mostra", "vemos agora".

Por quê? Porque este tipo de indicação ajuda o leitor a imaginar a filmagem, mas não o filme. É como se, em vez de visualizar o filme (afinal o objetivo de todo roteiro), passássemos a ver o seu "making-of": percebemos a câmara aproximando-se para fazer um close, afastando-se para o plano geral, deslocando-se durante o travelling, ouvimos o diretor gritando "Corta!", imaginamos a equipe se preparando para o próximo plano. Este pode ser o objetivo do roteiro técnico (decupagem escrita), mas não do roteiro, no sentido moderno (pós-anos 50) do termo.

Por que a palavra "câmara" deve ser evitada em um roteiro? Porque, a princípio, a câmara não deve ser vista no filme. Por que não se deve usar a palavra "vemos"? Porque não precisa: em princípio, tudo o que está num roteiro deve ser visto.

Já a palavra "ouvimos" tem uma função importante, significando "ouvimos mas não vemos". Se colocássemos em um roteiro a frase "Uma ambulância passa ao longe", o leitor imaginaria um plano aberto mostrando a rua e a ambulância passando lá no fundo. Já a frase "Ouvimos a sirene de uma ambulância passando" deixa claro que a ambulância não deve ser vista, apenas ouvida.

A regra "evitar termos técnicos", é claro, tem exceções, como todas as outras. A exceção mais importante diz respeito a alguns termos técnicos que indicam eventos que devem ser vistos pelo espectador, e portanto devem estar no roteiro.

Por exemplo, fades e fusões (ao contrário dos cortes) são transições entre cenas cujo principal objetivo é marcar claramente uma passagem de tempo ou uma mudança de assunto. Portanto, devem estar referidas muito claramente no roteiro, ajudando a visualização.

O carro de Guida vai se afastando pela rua deserta. Marcelo, de pé na frente da casa, fica acompanhando, sério.

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FADE OUT

FADE IN

CENA 12 - INT/DIA - ESCRITÓRIO DE MARCELO

Marcelo está sentado em frente à sua mesa, assinando uns papéis e falando ao telefone.

3.6. TEMPO DE LEITURA

Uma das coisas mais difíceis, ao se tentar estabelecer com o leitor uma relação semelhante à relação de um espectador vendo um filme, é reproduzir (ou, no caso, pré-produzir) no roteiro o tempo do filme. E o aparente segredo disso é na verdade de uma simplicidade espantosa: cada narração, cada descrição, cada rubrica, deve ser redigida de forma a ter um tempo de leitura o mais próximo possível do tempo que se imagina que eles teriam no filme. A principal conseqüência disso é que, num roteiro, só devem ser usadas frases que tenham a duração aproximada daquilo que elas narram ou descrevem.

Uma descrição de cenário mínima (como as sugeridas em 2.3) tem a ver com uma cena em que "o filme não pára pra olhar o cenário", e no qual a ação inicia imediatamente. Já uma cena com ritmo mais lento, que demora a começar (por exemplo, em função do suspense), deve ter uma descrição adequadamente mais minuciosa:

A sala, um antigo auditório de pé direito alto e paredes escuras, está vazia. Uma única luminária pende do teto alto, bem no centro da sala. Dois grandes armários empoeirados ladeiam a porta, que se abre lentamente.

O mesmo em relação à descrição de personagens: momentos contemplativos, ou em que a tensão está concentrada no rosto do ator, pedem uma descrição detalhada, mesmo que o personagem já tenha sido apresentado. Repare que a profusão de detalhes corresponde à sensação do espectador, que, ao ser obrigado a ver uma imagem fixa por mais tempo do que o absolutamente necessário, vai percebendo cada vez mais detalhes.

Marcos respira fundo. Seu rosto está tenso. Por um momento ele fecha os olhos e esfrega a mão na testa, pensativo. Aos poucos, sua expressão vai se tornando mais calma, até que um tênue sorriso começa a lhe aparecer nos lábios.

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A mesma regra deve ser aplicada também, e com ainda mais razão, em relação às ações narradas. Imagine a cena:

Pinheiro aproveita a distração de Magda e empurra-a pelo vão da janela. O corpo de Magda projeta-se seis andares abaixo e cai na beira da piscina.

Compare com:

Magda, distraída ao lado da janela, não percebe a aproximação de Pinheiro. Este chega pelas costas dela e, com as duas mãos, empurra-a em direção ao vão da janela. Magda ainda tenta se agarrar, mas sua mão não alcança a esquadria. As pernas de Magda batem no parapeito e seu corpo gira, projetando-se no ar. Magda despenca janela afora e ainda gira duas vezes na queda, seis andares abaixo, até cair pesadamente na beira da piscina.

A primeira narração sugere uma filmagem normal, com o tempo provável em que a cena realmente aconteceria. A segunda narração dá a impressão de a mesma cena filmada em slow-motion. Tudo depende de como o roteirista a imagina.

Na narração literária, é comum que algumas ações sejam reduzidas a seus "atos" essenciais, em geral suprimindo-se o meio e mantendo-se apenas o início e o fim.

Mas, em roteiro, este tipo de redução resulta em FALTA DE CONTROLE DO TEMPO. Ou seja: a ação no roteiro parece mais rápida do que no filme, o leitor não consegue perceber o que deve e o que não deve ser mostrado. Contra-exemplos: "Sílvia preenche a inscrição para trabalhar como baby-sitter numa família adotiva." "Leandro levanta-se a vai vomitar no banheiro. Volta a seu lugar." "Rafael tira toda a roupa e deita de bruços no chão."

Uma narração completa e "no tempo" ficaria, por exemplo, assim:

Rafael abre os botões da camisa, um por um, enquanto encara os presos à sua volta. Tira a camisa e joga-a no chão. Desabotoa a calça, abaixa-a até o chão. Sempre encarando os outros, tira a cueca e deixa-a no chão. Deita-se de bruços.

Mas é claro que o roteirista pode não querer mostrar a ação completa. Neste caso, ele deveria indicar claramente quais partes da ação são essenciais. Por exemplo, cortando o início:

Rafael, já sem camisa, termina de baixar as calças, ficando totalmente nu. Deita-se de bruços no chão.

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Ou intercalando a ação com outro ponto de vista (ou mesmo com outra ação paralela) para suprimir o meio:

Rafael começa a desabotoar a camisa. Miltão observa com um sorriso malicioso. Rafael, já totalmente nu, deita-se de bruços no chão.

3.7. DECUPAGEM IMPLÍCITA

Já dissemos e insistimos que roteiro não é decupagem. Mas um bom roteiro deve se preocupar em SUGERIR uma decupagem. Até porque, de qualquer maneira, o leitor do roteiro vai visualizar o filme pela primeira vez orientado por uma espécie de "decupagem implícita" que está presente em qualquer texto narrativo. Essa decupagem implícita se manifesta no tamanho das frases, no uso do parágrafo, na pontuação e principalmente no conteúdo do texto.

Exemplos: "O Professor abre a porta e entra na sala" sugere que a câmara entra junto com ele. Ao contrário, "A porta se abre e o Professor entra, apressado" indica que a câmara já estava dentro da sala, mostrando a porta. "Na sala há vinte estudantes desatentos" é um plano aberto, geral. "Marcos sorri e faz um sinal para Marisa, a seu lado" já é um plano mais próximo, talvez com uma panorâmica curta. "Marisa disfarça e fica ajeitando os óculos sobre o nariz" exige um close.

As frases "Ricardo vira o rosto e olha para o banco de trás do carro. Mauro está deitado, inerte." indicam um par de planos determinante/ponto de vista, com o corte marcado pelo ponto. Já a opção com vírgula "Ricardo vira o rosto e olha para o banco de trás do carro, onde Mauro está deitado, inerte." sugere uma panorâmica indo de Ricardo até Mauro. Dependendo do caso, apenas com o uso adequado da vírgula, do ponto e do parágrafo podemos sugerir enquadramentos, cortes, ritmo.

Muitas vezes, frases lacônicas, sem verbo, ou com gerúndio mas sem auxiliar, podem facilitar a visualização: "Os pés de Ricardo, sobre o asfalto. O rosto de Mauro. A mão de Ricardo segurando a pá." sugere uma série de planos fechados, curtos. "Aproximando-se lentamente do carro." pode dar a impressão de um traveling de ponto de vista. E assim por diante.

********************

Ao aplicar estas regras, o roteirista não tem nenhuma garantia de que

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o diretor vai realizar o filme da maneira como ele (roteirista) o imaginou originalmente - até porque, do roteiro à filmagem, muita coisa pode acontecer. Mas, se o roteirista conseguiu tornar o seu roteiro "visual" (e é isso e apenas isso que um roteiro deve ser), pode estar certo de que a PRIMEIRA IMPRESSÃO que o diretor vai ter do filme (e também os atores, fotógrafos, cenógrafos, técnicos, produtores, membros de comissão, etc. - todos os leitores do roteiro) vai estar muito próxima da sua. E, no caso de um roteiro, a primeira impressão é a que conta.

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UNISINOS - CURSO DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUALROTEIRO - TRIMESTRE 2003/3

NOTAS SOBRE O CONCEITO DE AÇÃO DRAMÁTICARoberto Mallet

Muitos de nossos atores não compreendem adequadamente o que seja uma ação dramática. De fato, tenho constatado esse equívoco na maior parte dos espetáculos a que tenho assistido nos últimos anos, e até mesmo em escolas de arte dramática. E se na cena propriamente dita muitas vezes não encontramos sequer um vestígio de ação dramática, os debates realizados nos Festivais e Mostras indicam que o seu próprio conceito é freqüentemente confuso e indeterminado. É claro que se não temos nenhuma idéia do que seja ação, não há a menor possibilidade de encontrarmos sua realidade em cena.

Essa falta de clareza conceitual faz com que a palavra "ação" surja no discurso de muitos com uma certa atmosfera "mística", como se sua presença dependesse de outras realidades também mistificadas como "inspiração", "talento", "eleição", etc. É preciso descartar definitivamente a idéia romântica de que o artista é um favorito das musas, um escolhido dos deuses, tendo por tarefa e "missão" ofertar ao mundo os frutos de seu gênio. A obra de arte é resultado de muito esforço, trabalho e dedicação.

Esforço e trabalho, entretanto, por mais necessários e indispensáveis, não bastam. É preciso técnica, quer dizer, é preciso saber o quê e como fazer. No caso do ator: saber o que é ação e como agir em cena.

Diz Aristóteles que a tragédia (e podemos estender isto a todo gênero teatral) não é principalmente imitação de homens, mas de ações e de vida. "O mito (a trama dos acontecimentos e das diversas ações), continua o filósofo, é o princípio e como que a alma da tragédia." (1)

A ação portanto é a matéria básica do teatro e também do trabalho do ator. E podemos definir ação como todo e qualquer movimento (não necessariamente físico) que é fruto de uma vontade, e que visa um determinado objetivo (visualizado pela inteligência). Nem todo movimento realizado pelo homem é uma ação. Para que o seja, é necessário que esse movimento resulte de um querer alcançar um determinado objetivo conhecido pelo sujeito.

A ação humana tem uma raiz imaterial; origina-se naquilo que há de mais alto e nobre no homem, no que tradicionalmente denomina-se de

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"espírito": vontade e inteligência. A vontade quer alcançar um bem que é conhecido pela inteligência. Notemos que esse bem é percebido pelo sujeito como algo que lhe falta, algo que, se possuído, lhe trará certa felicidade.

Assim, a ação tem um caráter transcendente. Não é realizada por si mesma, mas como um meio que visa alcançar determinado fim. Se não considerarmos essa transcendência, o conceito de ação torna-se incompreensível.

Como disse Hegel, falando especificamente de dramaturgia, a ação dramática "é a vontade humana que persegue seus objetivos, consciente do resultado final". (2) Romeu, apaixonado por Julieta, quer unir-se a ela, fazer dela sua esposa; Macbeth quer ser o rei da Escócia; Hamlet quer vingar o assassinato de seu pai, restabelecer a justiça no reino da Dinamarca. Tudo o que essas personagens fazem em sua trajetória dramática relaciona-se com seus respectivos objetivos (e, secundariamente, com seu caráter). Romeu, por exemplo, invade o jardim do palácio dos Capuleto, declara-se a Julieta, tem uma entrevista com Frei Lourenço pedindo sua intercessão, pede a Julieta (através de sua ama) que vá "confessar-se" com Frei Lourenço, etc.; Hamlet finge estar louco, utiliza-se da trupe de atores para confirmar o assassinato de seu pai, agride Ofélia (para livrar-se do impedimento que seu próprio amor representa), mata o espião que se esconde atrás da cortina do quarto de sua mãe...

Creio que o exposto acima basta para que se tenha uma idéia clara sobre o conceito de ação em dramaturgia. (3) Não é suficiente, entretanto, para que compreendamos o papel da ação como matéria para o trabalho do ator. É provável que muitos dos espetáculos daquela Mostra nos quais nós, debatedores, apontamos uma ausência de ação, sejam obra de atores e diretores que já têm, com maior ou menor clareza, esse conceito de ação. Acontece que tal compreensão intelectual, por mais indispensável que seja, não é suficiente para abordarmos a construção de uma cena. É preciso que saibamos também como essa mesma dialética entre vontade e finalidade encarna-se no trabalho do ator.

Ao falarmos da ação do ator em cena, o discurso torna-se necessariamente mais denso e mesmo mais obscuro, pois trata-se agora de uma realidade concreta, que não pode ser esgotada pela análise pura e simples, e exige do leitor a experiência dessa mesma realidade, tanto no teatro como na vida. Em virtude do caráter episódico deste texto, posso apenas indicar alguns pontos que deverão ser pesquisados, desenvolvidos e completados pelo leitor.

Em primeiro lugar, tudo o que o ator faz em cena deve ser ação, ou

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seja, em tudo que ele faz estão envolvidas as faculdades vontade e inteligência. O homem, porém, não possui apenas essas faculdades; ele também tem memória, imaginação, sentidos. Cada uma dessas operações corresponde a uma ordem de ser: o homem é espírito (vontade e inteligência), alma (memória/imaginação) e corpo (sentidos). Essas ordens entretanto não são compartimentos estanques, isolados, mas integram-se todas em uma totalidade. Quando eu digo, portanto, que tudo o que o ator faz em cena deve ser ação, quero dizer que em tudo o que ele faz deve haver uma integração dessas várias faculdades, com a particularidade de que o foco para onde elas convergem é o corpo do ator.

Isto é naturalmente assim. O que acontece na alma de um homem tem ressonâncias em seu corpo, de maneira que, quando vejo alguém faço intuitivamente uma leitura das tensões e moções que inscrevem-se em seu corpo e, assim, tenho uma idéia mais ou menos clara do que se passa em sua alma. Todos nós temos essa experiência, especialmente quanto às pessoas que nos são mais próximas.

Agora, no caso do ator, essas tensões e moções físicas devem ser visíveis, e portanto é preciso que sejam como que aumentadas, amplificadas, resultando em um nível de energia e de esforço bem maior do que os utilizados no nosso dia a dia.

Todo pensamento, todo movimento feito em cena que não seja uma ação dramática interfere na escritura cênica e é lido pelo público, mesmo que este não tenha consciência clara dessa leitura. Todo pensamento e todo ato inscrevem-se no corpo do ator; se, ao lado da seqüência de ações dramáticas desenvolvida pelo ator, houver uma variedade de pensamentos e movimentos que nada têm a ver com a cena, o resultado disto assemelha-se a um desenho cheio de borrões e de linhas absurdas e inúteis, a ponto de o espectador ficar completamente confuso, sem saber o quê deve ser lido e muitas vezes sem ter nenhuma indicação de para onde deve dirigir sua atenção.

Esta é uma descrição paroxistica, porque de fato o que geralmente acontece é um desenho bastante incompleto, uma linha aqui, uma mancha acolá, sem unidade e integridade. Acontece uma ação agora, outra mais tarde, e entre elas alguns momentos de simples atividade, de movimentos gratuitos, de tentativas de "expressar sentimentos", ou mesmo de pura ausência.

Um outro ponto a assinalar é a crença extremamente difundida entre os nossos atores de que a interpretação teatral é construída sobre os sentimentos, como se fosse possível manipular diretamente as nossas emoções. Isto é um engano e leva a uma interpretação mentirosa e cheia de clichês. Os sentimentos e emoções são sempre resultado da

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ação do ator sobre seu próprio corpo, da manipulação da energia, da distribuição das tensões musculares, do movimento interno (muscular, nervoso) que resulta do foco da vontade sobre um determinado objetivo ficcional.

Essa idéia de que a matéria do ator são os seus sentimentos deve-se a uma leitura equivocada da obra de Stanislavski. Os capítulos 2 e 3 de A Preparação do Ator são uma obra-prima na descrição dos principais erros que os atores cometem em cena e na definição da ação física como matéria fundamental para o ator. Limito-me aqui a citar a passagem em que o mestre russo fala mais especificamente sobre a questão que vimos tratando (o sentimento).

"Em cena, diz o diretor Tórtsov depois de um mau sucedido teste de seus alunos, não corram por correr, nem sofram por sofrer. Não atuem de um modo geral, pela ação simplesmente, atuem sempre com um objetivo. "E logo depois da explanação, numa cabriola pedagógica, ordena aos atores: "E agora subam ao palco e façam!"

Os alunos vão para o palco e imediatamente incorrem nos dois erros básicos cometidos pelos atores: buscam ou "ser a personagem" ou "sentir as emoções da personagem". Terminado o exercício, Tórtsov chama três atores: "Sentem-se aqui mesmo nestas cadeiras, onde posso vê-los melhor, e comecem: você vai sentir ciúmes, você vai sofrer e você entristecer-se, apenas expondo esses estados de alma, simplesmente por eles mesmos. "E Kóstia, o aluno-narrador, conta: "Sentamo-nos e logo percebemos como era absurda a nossa situação. Enquanto eu andava de um lado para o outro, retorcendo-me como um selvagem, era possível acreditar que havia algum sentido naquilo que eu fazia, mas quando me sentaram numa cadeira, sem nenhum movimento exterior, patenteou-se o absurdo da minha interpretação."

"Bem, o que é que vocês acham? perguntou o Diretor. - É possível alguém sentar-se numa cadeira e, sem nenhum motivo, ter ciúmes? Ou ficar todo emocionado? Ou triste? Claro que é impossível. Fixem esta regra de uma vez por todas em suas memórias: em cena não pode haver, em circunstância alguma, qualquer ação cujo objetivo imediato seja o de despertar um sentimento qualquer por ele mesmo. (...) Quando escolherem algum tipo de ação, deixem em paz o sentimento e o conteúdo espiritual. Nunca procurem ficar ciumentos, amar ou sofrer, apenas por ter ciúme, amar ou sofrer." (4)

É bem verdade que algumas expressões usadas por Stanislavski podem dar lugar a equívocos. E isto não só em razão de uma formulação inadequada de seu pensamento, mas também porque o seu "sistema" estava em constante evolução, e afirmações que lemos em A Preparação do Ator surgem reformuladas, ampliadas e algumas até mesmo negadas em

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obras posteriores.

Em resumo, podemos aplicar uma regra fundamental da escritura dramatúrgica ao trabalho do ator: "a personagem não deve dizer quem e como ela é; isto é revelado através do que ela faz e das situações que ela vive em cena. "Se há uma ação concreta e adequada em cena, o público saberá decodificar e compreender o que se passa nas almas das personagens.

Muitas vezes, ao invés de agir, queremos "significar", fingimos que estamos sentindo ou fazendo alguma coisa, e para tanto usamos movimentos aleatórios, esgares, respirações, quando não chegamos aos clichês e às micagens mais óbvias; em outras palavras, em vez de fazer, mostramos que estamos fazendo. Nos dois capítulos acima citados vocês poderão encontrar vários exemplos desse erro.

Para finalizar, vejamos um exemplo de uma seqüência de ações em "Romeu e Julieta". Tomemos o início da cena II do segundo ato (a famosa cena do Balcão). Na mesma noite em que conheceu Julieta, Romeu dirige-se ao palácio dos Capuleto e penetra em seu jardim. Quer rever Julieta e, se possível, falar-lhe. Fiquemos apenas com esse momento, a entrada de Romeu e seu deslocamento até as proximidades do palácio, e imaginemos algumas formas de abordar essa cena.

1. Raciocinemos em termos realistas. Dissemos mais acima que Romeu quer unir-se a Julieta; poderíamos denominar este objetivo da personagem de "objetivo final". Ela entretanto precisará realizar outros objetivos mais específicos, que representam meios que conduzem ao objetivo final. Para abordar a cena que estudamos, portanto, não basta ter em vista apenas o objetivo final. Isto fatalmente falsearia a interpretação. Um ator que entrasse em cena querendo "unir-se a Julieta" simplesmente não saberia o que fazer, e provavelmente deslizaria para um objetivo falso (mostrar-nos os sentimentos da personagem, por exemplo). Ele pode então escolher o objetivo específico "rever Julieta" (alcançado este, o novo objetivo poderá ser "falar com ela", e assim por diante). Agora, ao entrar em cena, Romeu não sabe onde está sua amada; para revê-la, é preciso antes localizá-la. E mais, ele encontra-se em terreno inimigo. Há um objetivo anterior a encontrar Julieta, que é não ser visto. Romeu não pode fazer nenhum ruído. O ator então entraria em cena tendo em mente o objetivo principal de rever Julieta, deslocando-se com todo o cuidado a fim de não ser visto (e também porque é noite, e o terreno lhe é desconhecido). Mesmo que o palco esteja vazio, ele precisa saber se o terreno em que pisa é gramado, areia, pedra, etc., pois as sensações que se tem ao pisar esses vários tipos de terreno são diferentes, bem como a maneira com que o corpo desloca-se aos percorrê-los. Ele também pode definir o que a personagem ouve ao

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longo do trajeto (seus próprios passos, um pássaro, vozes no interior do palácio - de quem? -, um chafariz), que cheiros percebe... As possibilidades são inumeráveis. Note-se que todos esses detalhes imaginários servem para a construção da cena; não há nenhuma necessidade de que sejam percebidos e decodificados pelo público. O importante é que o ator esteja envolvido com uma seqüência definida de pequenas ações que o conduzirão até o momento em que verá Julieta sair ao balcão.

2. A seqüência poderá ser abordada de maneira não-realista; através de metáforas, por exemplo. Romeu está apaixonado; poderíamos dizer que ele "está nas nuvens". O ator poderá entrar imaginando que está andando sobre nuvens, e também aqui suas imagens terão que encarnar-se, ou seja, os pés têm que "sentir" a consistência e a temperatura da nuvem, a pele sentirá, digamos, o calor da luz do sol, ele ouvirá a certa altura o ruído distante de um trovão, etc.

3. O ator também poderá definir uma seqüência de tensões e micromovimentos musculares, como uma dança que é realizada no interior do corpo, sem deixar que o público perceba o desenho dessa dança.

Em todo caso, o fundamental é que o ator tenha uma seqüência de ações definida (e detalhada) que possa conduzi-lo; que ele saiba a cada momento o que a personagem quer e o que ela está fazendo para alcançar esse objetivo, de maneira que sua interpretação tenha uma unidade e flua ininterrupta do início ao fim do espetáculo.

Sugiro que estudem a segunda parte de A Criação de um Papel, de Stanislavski, onde o mestre russo estuda uma montagem da peça Otelo. Saliento que essa maneira de abordar a cena pode ser usada em qualquer linguagem, desde o naturalismo mais radical até o distanciamento brechtiano, ou uma cena clownesca (feitas as necessárias adaptações quanto à gramática da cena).

Veja também uma pequena bibliografia básica sobre o trabalho do ator. Em relação à temática da ação que, volto a insistir, é fundamental e arquitetônica para o trabalho do ator, aconselho particularmente a leitura de A Preparação do Ator, A Construção da Personagem e A Criação de um Papel, de C. Stanislavski, A Canoa de Papel, de E. Barba, Método ou loucura, de R. Lewis e Ator e Método, de E. Kusnet.

São Paulo, 22 de julho de 1998.

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UNISINOS - CURSO DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUALROTEIRO - TRIMESTRE 2003/3IDENTIFICAÇÃO DE PROBLEMAS NUM ROTEIRO

Uma vez que se tenha na mão o primeiro tratamento de um roteiro, começa o trabalho de reescritura, considerado por alguns roteiristas como o mais complicado de todos. Uma das formas mais eficientes de se analisar um roteiro para reescrevê-lo consiste em tentar identificar os seus problemas.

Mas, para evitar que o processo de identificação de problemas se transforme num massacre que perca a perspectiva do próprio roteiro, é preciso entender três coisas: (1) que não há roteiro sem problemas, ou melhor, que todo roteiro sempre pode ser melhorado; (2) que qualquer ANÁLISE deve partir do reconhecimento dos fatores individuais do material (ao contrário da CRÍTICA, que parte do geral para o particular); e (3) que, uma vez identificados alguns problemas, não se deve confundir sintoma e doença, como quem tenta curar o paciente febril com doses maciças de antitérmico: muitas vezes não é possível corrigir o roteiro simplesmente reescrevendo o ponto onde o problema é mais evidente.

Pra começar, vamos dividir os problemas em 4 grandes categorias, que chamaremos: problemas de escrita, problemas de escritura, problemas de argumento e problemas de roteiro. Nosso assunto principal, é claro, são os problemas de roteiro.

1. PROBLEMAS DE ESCRITA

Problemas de escrita dizem respeito ao ato de escrever, e independem de se estar escrevendo um roteiro ou qualquer outro tipo de texto. Evidentemente, não vamos nos aprofundar nesse aspecto, que nós brasileiros normalmente chamamos "erros de português". A única maneira de corrigi-los é lendo, escrevendo e pensando sobre o que se lê e escreve - de preferência, com um bom dicionário de um lado e uma boa gramática de outro.

1.1. ORTOGRAFIA - "Por incrívil que paressa, tem jente que nem presta atensão ao comteúdo de um rotero se ele tem problemas dece tipo. Puro preconseito!" É ruim, né?

1.2. ACENTUAÇÃO - Fora o inglês, todas as línguas do mundo possuem acentos, e a informática não os aboliu.

1.3. SINTAXE - Segundo o Aurélio, "parte da gramática que estuda a

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disposição das palavras na frase e das frases no discurso, bem como a relação lógica das frases entre si. Aí entram milhares de regrinhas de concordância, adequação, consecução, etc, cujo conhecimento pode ser trocado, com vantagens, por um bom "ouvido". O problema é que só lendo se adquire um bom ouvido pra essas coisas.

1.4. PONTUAÇÃO - É a maneira de usar sinais para encaixar as frases umas nas outras, facilitando a leitura.

1.5. DIGITAÇÃO (ou DATILOGRAFIA) - Muitas vezes, o que parece ser um grave problema dos tipos anteriores é apenas falta de atenção. Nada que uma boa revisão não resolva. E confiar no corretor ortográfico quase nunca dá certo.

2. PROBLEMAS DE ESCRITURA

Também não são o nosso objetivo principal, mas é muito mais fácil analisar um roteiro quanto aos seus problemas "de fato" quando se tem certeza de que não há nele o que estamos chamando aqui "problemas de escritura". Uma vez eliminado esse tipo de problema, temos certeza que o roteiro está DIZENDO tudo o que o filme deve MOSTRAR.

2.1. FALTA DE ELEMENTOS DO ROTEIRO - Ou seja:

(a) falta de divisão de cenas, ou divisão incorreta ou confusa, dificultando a visualização das mudanças de cenário.

(b) falta de narração, ou narração imprecisa, provocando furos na visualização das ações, ou não entendimento da motivação dos personagens;

(c) falta de descrição dos personagens e cenários que aparecem pela primeira vez, dificultando a visualização;

(d) falta de falas ou falas em discurso indireto, ou apenas referidas;

(e) falta de rubricas, quando for necessário indicar o tom da fala ou a ação desenvolvida pelo personagem durante a fala.

2.2. EXCESSO DE ELEMENTOS DO ROTEIRO - Evitar divisões de cena demais, narrações excessivas, descrições detalhadas demais ou rubricas muito longas.

2.3. CONFUSÃO VISUAL ENTRE OS ELEMENTOS DO ROTEIRO - Ações inteiras ou descrições colocadas como rubricas, falas incluídas na ação, etc.

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2.4. TEXTO EM 1a PESSOA

2.5. VERBOS NO PASSADO

2.6. TEXTO FORA DA ORDEM FÍLMICA - Ou falta de clareza na seqüência das ações: "Paulo senta e liga o computador após ter entrado na sala."

2.7. EXCESSO DE TERMOS TÉCNICOS - Utilização de elementos de decupagem: tipos de plano, movimentos de câmara, etc; ou referência explícita à forma de filmar, e não ao que deve ser visualizado: uso excessivo de palavras como "câmara", "corte", "vemos", etc.

2.8. AÇÕES, RELAÇÕES OU SENTIMENTOS NÃO FILMÁVEIS - Exemplo de sentimento: "Joaquim olha em direção ao cemitério e lembra de sua mãe que morreu há 14 anos." Exemplo de relação: "Paulo, irmão de Laura..." Na verdade, principalmente em relação às ações, tudo pode ser considerado filmável, e muitas vezes o erro se reduz a não explicar corretamente como é que uma determinada ação vai ser filmada. "Rodrigo percebe que foi enganado": como ficamos sabendo disso? Pela expressão do seu rosto? Por alguma interjeição? Ou por uma série de planos que, em conjunto, nos dêem essa idéia? O roteiro deve indicar COMO o público vai perceber isso.

2.9. TEMPO DE LEITURA MUITO DIFERENTE DO TEMPO FÍLMICO - Ações pouco importantes narradas com excesso de detalhes, ou então ações essenciais narradas de forma superficial. Esse tipo de erro dá uma sensação de desequilíbrio no roteiro.

2.10. NÃO UTILIZAÇÃO DA DECUPAGEM IMPLÍCITA - Ao deixar de usar essa poderosa arma do roteirista, o roteiro simplesmente se torna menos visual.

3. PROBLEMAS DE ARGUMENTO

Ao contrário dos problemas de roteiro, os de argumento raramente podem ser corrigidos em uma reescritura, por dizerem respeito mais à fábula que à narrativa.

Eugene Vale cita uma série de "erros" que ele considera "quanto ao conteúdo do relato": falta de um conteúdo reconhecível; uso de fórmulas esgotadas; falta de relação com os interesses do público num determinado momento (ou seja, projeto não comercial); desproporção entre custo e atração (ou seja, projeto inviável).

Eu diria que todos os problemas de argumento podem ser resumidos em

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dois: (1) assunto, tema ou estrutura muito parecidos com o que já vimos; (2) assunto, tema ou estrutura diferentes demais de tudo o que já vimos.

Uma boa maneira de se evitar problemas de argumento é perguntando a si próprio: pra quê contar essa história? A dificuldade é que essa motivação nem sempre é clara mesmo para veteranos contadores de histórias, e além disso corre-se o risco de cair num "mensageirismo" ou num "utilitarismo" que não têm a ver com o objetivo da arte narrativa.

4. PROBLEMAS DE ROTEIRO

A lista aqui apresentada não pretende ser exaustiva, e está dividida por aspectos conforme uma combinação das metodologias de Eugene Vale e Michel Chion. É importante salientar que Vale inicia sua lista advertindo: quem estiver livre de pecado (o que ele chama de "erros de roteiro") que atire a primeira pedra. O capítulo de Chion dedicado ao assunto chama-se "erros de roteiro (para melhor cometê-los)". E vale ainda o velho lema do Pasquim: "Se você não está em dúvida é porque foi mal-informado."

4.1. PROBLEMAS QUANTO À VEROSSIMILHANÇA:- premissas falsas;- excesso de coincidências ou coincidências muito favoráveis aos personagens;- furos ou quebras na lógica interna da história;- deus ex-machina (resolução da trama amparada em um elemento que até então não fazia parte do universo da história).

4.2. QUANTO À COMPREENSÃO:- informação insuficiente;- excesso de informação;- emprego de símbolos incompreensíveis;- falta de emoções universais.

4.3. QUANTO AO INTERESSE:- informação repetida (não é o mesmo que informação reiterada);- emprego de símbolos óbvios;- emprego de emoções banais.

4.4. QUANTO À IDENTIFICAÇÃO:- falta de relação entre os fatos do filme e a vida do espectador;- falta de personagens simpáticos ou inconsistências na simpatia dos personagens.

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4.5. QUANTO AOS PERSONAGENS:- excesso de personagens ou personagens sem função clara;- indefinição do protagonista;- personagens mal caracterizados;- personagens marionetes ou porta-vozes do roteirista;- idiotice ou onisciência dos personagens;- personagens incoerentes (não é o mesmo que personagens contraditórios);- atraso ou falta de clareza na denominação do personagem;- falta de transformação nos personagens;- transformação súbita ou inaceitável.

4.6. QUANTO AOS DIÁLOGOS:- excesso de diálogos;- falsa seqüência de cinema mudo (falta de diálogos em momentos em que os personagens deveriam falar);- diálogos explicativos ou forçados;- diálogos irrelevantes;- ação anterior recapitulada (e não induzida ou sugerida) nos diálogos;- inadequação entre personagem e fala;- narrativa de Terâmenes (ações completas reduzidas a diálogo sem motivo para isso);- uso apenas funcional do OFF;- referências a fatos que o público desconhece (antecipação) sem posterior desenlace;- referências a personagens ainda não denominados.

4.7. QUANTO À DRAMATIZAÇÃO DAS CENAS:- cenas evidentemente explicativas, por falta de conflito ou falta de identificação;- cenas arrastadas ou cenas sem função (furos dramáticos);- cenas curtas demais;- cena mentirosa (que não seja claramente narrada ou imaginada por um personagem);- excesso de cenas com início, meio e fim;- excesso de cenas terminando em fermata;- excesso de cenas sem ligação entre si;- ligação entre as cenas muito evidente;- repetição de recursos de ligação.

4.8. QUANTO AO CONFLITO:- indefinição quanto ao tipo de conflito: interno, relacional, grupal ou cósmico;- objetivo principal inexistente ou fraco;- dificuldade principal fraca ou obstáculo facilmente contornável;- sub-objetivo (ou MacGuffin) mal-entendido como objetivo principal;

Page 28: UNISINOS - CURSO DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL … · O objetivo de um roteiro, portanto, é tentar estabelecer com o seu leitor uma relação o mais parecida possível com a relação

- possibilidade desigual de sucesso;

4.9. QUANTO AO MOVIMENTO DA TRAMA:- início impressionante demais (prejudicando a gradação);- objetivo principal ou dificuldade principal expostos muito tarde;- pontos lentos por falta de sub-objetivos;- paradas porque os sub-objetivos não se sobrepõem;- falta de gradação ou gradação irregular;- descontinuidade de intenções;- excesso de truques de narrativa (para contar uma história pouco consistente);- falta de variação ou contraste entre as cenas;- implante falso (não é o mesmo que pista falsa);- flash-back apenas explicativo;- antecipação sem desenlace;- perda de oportunidade de suspense;- clímax muito cedo;- trama tão complicada que exige um desfecho imenso ou muito explicativo;- objetivo principal obtido antes do fim;- final súbito que não leva suas premissas às últimas conseqüências (final abortado);

Termino com uma longa citação de Michel Chion:

"O problema com os erros do roteiro é que isso acontece como num jogo de empurra. Quando se conserta um erro descoberto num determinado lugar, muitas vezes se produzem outros erros em outro lugar, de outra natureza. Quando se corrige, por exemplo, um erro de dramatização (cena arrastada) acentuando a reação de um dos personagens, muitas vezes há uma mudança na definição desse personagem, criando-se uma incoerência. Ou então, para estabelecer uma ligação verossímil entre certos fatos, criam-se extensões no desenrolar da história, isto é, para tapar furos lógicos criam-se furos dramáticos, e assim por diante.

"Em outra palavras, num roteiro tudo está relacionado, não no sentido de uma solidariedade entre seus diferentes componentes, mas antes no sentido de um 'tirar de Pedro para dar a Paulo'. No entanto, inúmeros roteiros conseguem combinar maravilhosamente bem as exigências, às vezes até contraditórias, a que uma boa história deve satisfazer,

"Para melhor cometê-los, diz o subtítulo provocador desse capítulo. Também não é fácil, todavia, cometer bem os erros, de uma maneira que tenha sentido e força, e isso muitas vezes requer tanta habilidade quanto não cometer erro nenhum."(Michel Chion, O ROTEIRO DE CINEMA, página 239)