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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA Pais omissos, filhos tiranos. A família e a formação de agressores. Por: Raquel de Azevedo Nunes Orientadora Prof. Simone Ferreira Niterói 2012

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO … · Resumo Vivemos um crescente ... (Chauí, Marilena – convite a filosofia, pg 437). Neste capítulo, ... 1.1- Filosofia Moral e

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

Pais omissos, filhos tiranos. A família e a formação de agressores.

Por: Raquel de Azevedo Nunes

Orientadora

Prof. Simone Ferreira

Niterói

2012

2

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

Pais omissos, filhos tiranos. A família e a formação de agressores.

Apresentação de monografia à AVM Faculdade Integrada como

requisito parcial para obtenção do grau de especialista em

psicopedagogia.

Por: Raquel de Azevedo Nunes

3

AGRADECIMENTOS

Ao meu marido, pela compreensão por minha

ausência, em função da dedicação aos estudos.

Aos meus pais, pois me deram muita força nas

horas que mais precisei.

Aos meus professores, pela orientação dada no

decorrer do curso que foi de grande importância

para a conclusão deste trabalho.

4

DEDICATÓRIA

Dedico à minha família pelo apoio prestado, pelo

aprendizado da humildade e pelo exemplo de amor

e de perseverança.

5

Resumo

Vivemos um crescente aumento de casos de violência produzidos por crianças e

jovens oriundos de famílias que demonstram dificuldade em demarcar limites e dar

noções de ética a seus filhos. A produção de crianças e jovens cada vez mais sem a

noção de cidadania e respeito ao próximo se reflete diretamente na educação escolar.

A intenção desta monografia foi demonstrar que, atualmente os pais estão sendo

movidos pelo sentimento de não suprimento das necessidades de seus filhos. Estão

sendo permeados pelo sentimento de culpa, seja por trabalharem demais, ou por terem

se divorciado, ou qualquer outro motivo que faça com que não possam estar sempre junto

a seus filhos. A altura de suas altas expectativas como pais, acabam fazendo concessões

muito além da conta, produzindo assim pequenos tiranos.

O que se pretendeu defender nesta monografia não é uma volta à educação rígida,

mas sim a busca de um ponto de equilíbrio entre uma educação com liberdade e

autoridade. Os limites ajudam a criança a tolerar frustrações e adiar sua satisfação. Ela

tem que aprender a esperar sua vez, a compreender que existem outros e que precisa

compartilhar. Colocar limites não significa ser autoritário, mas sim ter autoridade. Através

da colocação de limites os pais ensinam a criança a respeitar-se e a respeitar os outros.

6

Metodologia

O presente trabalho foi desenvolvido a partir de pesquisas bibliográficas,

recorrendo ao uso de livros, revistas, teses de mestrado e doutorado, artigos, além de

pesquisas em sites especializados, e destaco como principais referenciais teóricos os

autores, Jean Piaget, Yves de La Taille, Sigmund Freud, Jurandir Freire Costa, Paulo

Freire, dentre outros.

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I - Estudos da moralidade 10

CAPÍTULO II - Cultura Narcísica 20

CAPÍTULO III – Violência no ambiente escolar: o papel da família e da escola 27

CONCLUSÃO 36

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 40

WEBGRAFIA 43 ÍNDICE 44

8

INTRODUÇÃO

A família moderna tem se apresentado atualmente bem mais liberal que

outrora. É uma família, no seu aspecto positivo, que vive em busca de relações mais

abertas, francas e afetivas com seus filhos, contrapondo-se com seus pais, estes de uma

geração onde a relação familiar era bem mais distante e rígida.

Os problemas começam a se manifestar quando, na tentativa de se

estabelecer um laço mais fraterno, onde o diálogo seja a tônica da relação entre pais e

filhos, isto seja confundido com permissividade, onde a criança é poupada de toda e

qualquer intempérie, não podendo ser contrariada ou ser desapontada.

A grande questão é a linha tênue que separa a tirania da amizade. Observa-

se em algumas famílias, que no lugar de noções básicas de hierarquia e limites, as

crianças e os adolescentes possuem apoio incondicional dos pais em quaisquer

situações, mesmo naquelas onde se faz necessário um postura mais firme e

repreendedora, como nos casos de maus modos e atitudes agressivas dentro e fora do

seio familiar. Muitos pais, para evitar o confronto, acabam sendo coniventes com seus

filhos, reforçando assim, a ideia de impunidade.

Vivemos numa sociedade em crescente aumento de casos de violência

produzidos por crianças e jovens oriundos de famílias ditas liberais. A escola acaba sendo

um palco para a exibição de atos de mau comportamento e violência. Um reflexo da falta

de noção de cidadania e respeito ao próximo, que deveria ser dado desde o início, nas

primeiras relações da criança, que é no meio familiar. Noções de ética e demarcação de

limites são essenciais para um bom desenvolvimento em sociedade e é a família a

responsável pela transmissão de valores, onde o indivíduo aprende a respeitar o outro.

Hoje, a escola é o maior reflexo da falta de limites das crianças e adolescentes. É o lugar

onde podemos observar com maior clareza os efeitos de uma educação permissiva.

Esta pesquisa tem como objetivo analisar como vem se delineando a

construção da violência a partir da educação familiar. Apontar algumas manifestações

desta produção de violência a partir de investigações do fenômeno do Bullying, da

intolerância crescente as diferenças sociais e da produção de uma geração com baixa

tolerância a frustrações e como consequência o aumento do índice de doenças como

distúrbios de ansiedade e depressão em crianças e jovens.

9

Como hipóteses da produção de crianças e jovens tiranos, a presente

pesquisa pretende demonstrar como a omissão e ausência dos pais interferem

positivamente nesta produção. Os pais permeados pelo sentimento de culpa em relação a

seus filhos, movidos pelo sentimento de não suprimento das necessidades dos seus filhos

e de suas altas expectativas como pais, acabam fazendo concessões muito além da

conta, produzindo assim, pequenos tiranos.

No primeiro capítulo será abordado o estudo da moralidade pela filosofia,

com enfoque no estudo da ética de Immanuel Kant e na teoria cognitivista de Jean Piaget.

No segundo capítulo, a abordagem será o conceito de narcisismo na obra de

Freud e as relações de aproximação deste estudo com a contemporaneidade. As

dificuldades encontradas pelos pais narcisistas em dar limites a seus filhos.

O terceiro e último capítulo aborda a violência escolar, as relações de

agressividade dentro do ambiente escolar e da família. As dificuldades experienciadas no

convívio familiar se refletem na sociedade atual. As dificuldades de relacionamento,

violência, agressividade e conduta antissocial, também são percebidas como reflexo da

educação super protetora das famílias modernas.

10

CAPÍTULO I

ESTUDOS DA MORALIDADE.

Tanto na escola, quanto fora dela, observa-se um número grande de

atos violentos provocados por crianças e jovens, seja contra os indivíduos, e/ou

patrimônio no qual o agressor convive e está inserido. Muitos destes episódios revelam

ações desumanas e de grande crueldade, levantando assim vários questionamento

acerca da moral humana. Na verdade, a preocupação com a moralidade humana não se

restringe à época atual, este é um debate antigo, que permeia o pensamento de todos

que tentam compreender o ser humano.

A palavra costume se diz, em grego, ethos – donde, ética – e, em latim, mores – donde, moral. Em outras palavras, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. (Chauí, Marilena – convite a filosofia, pg 437).

Neste capítulo, dentre os autores que estudaram a questão da moral, se

destaca o filósofo Immanuel Kant cujo estudo da moral e da ética, influencia bastante

ainda hoje os que estudam este tema. Para Kant, o que interessa é a moralidade de um

ato, é o respeito à própria lei moral, e não os interesses, fins ou consequências do próprio

ato. Uma boa vontade, guiada pela razão age em função de dever moral. Kant procurou

demonstrar que era possível formular para a moral leis universais e estas tinham que ser

formuladas sem levarem em conta os atos efetivamente praticados, quer fossem bons ou

maus, pois o legislador supremo da moralidade é a razão humana.

Também em destaque o epistemólogo Jean Piaget com seu estudo “O Juízo

Moral na Criança”. Piaget demonstra através da prática de jogos, como as crianças lidam

com regras e questões morais, e constata que a construção do sentido de justiça tem

ligação com o desenvolvimento cognitivo. Para Piaget a moralidade não é um valor

natural do ser humano, mas sim, um sistema de regras adquirido e sua construção se dá

no âmbito social, por isso a importância de pais e mestres como figuras centrais no

11 desenvolvimento moral. A criança é submetida a regras disciplinares desde o seu

nascimento, mas não basta a obediência da regra por medo de ser punido, é importante

que a criança tenha como valor intrínseco, o respeito as regras impostas pela sociedade,

família, escola, etc.

1.1- Filosofia Moral e a ética Kantiana.

Ao longo da história, as sociedades construíram e modificaram seus

sistemas morais, ou seja, valores relativos ao bem e ao mal, ao certo e ao errado, ao

permitido e ao proibido. Na Antiguidade, os filósofos gregos já questionavam sobre a ética

e a moralidade humana e preocupavam-se com os significados dos valores morais. A

moral sempre foi, por excelência, um objeto de estudo da filosofia.

Para a Filosofia, o senso moral refere-se a maneira pela qual avaliamos

nossa situação e a de nossos semelhantes, nosso comportamento, a conduta e a ação de

outras pessoas segundo ideias como as de justiça e injustiça, certo e errado, de mérito e

grandeza de alma. São exemplos de senso moral a indignação que sentimos diante de

pessoas que passam fome, o sentimento de vergonha, remorso, culpa diante de coisas

que julgam-se ter sido um erro, a felicidade e emoção diante de uma pessoa cujas

palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça e altruísmo. Já a

consciência moral não se limita aos sentimentos morais, mas refere-se também a

avaliações de conduta que levam os indivíduos a tomar decisões por si próprio, a agir em

conformidade com elas e a responder por elas perante os outros.

Cada indivíduo tem um jeito de sentir próprio, tem sua subjetividade. Mas

existem fatos e coisas que tocam mais uns do que outros, e, existem coisas que geram

em todos reações muito semelhantes, nomeia-se isso de intersubjetividade. Como diz

Marilena Chauí, "Senso e consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos,

intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem

respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto nascem e existem como

parte de nossa vida intersubjetiva." (pg 431)

12 Marilena Chauí explica que juízos éticos são também conhecidos como

juízos éticos de valor. Um juízo de valor é diferente de um juízo de fato. Quando

constatamos algo que ocorreu ou um acontecimento qualquer estaremos formando um

juízo de fato. Por exemplo: 'o copo caiu'. Quando avaliamos um ato, sentimentos, estados

de espírito, decisões e intenções partimos para os juízos de valor. Por exemplo: 'ele

derrubou o copo de propósito'.

Ainda segundo Chauí, juízos éticos de valor também são normativos.

Normativo é algo que estabelece regras, estas dizem como deve ser a conduta dos

indivíduos e seu comportamento. Juízos de valor dizem quais são as normas éticas para

a ação do ser humano, daí são chamados de normativos. Com base nessas normas

éticas que as pessoas possuem em seu interior é que se pode julgar as ações dos outros.

Marilena Chauí alerta-nos que a consciência moral reconhece-se como

capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os

valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos.

Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis para a vida ética.

O pensador mais influente da filosofia contemporânea na questão da moral

humana foi Immanuel Kant (1724-1804). Ele afirma que a razão, é que deve determinar

as ações morais. A moral não poderia ter fundamento em observação dos costumes, ou

em qualquer fórmula empírica. A consciência moral é a consciência própria da pessoa,

Kant, considerava que a razão era fundamental para existência da ética, rejeitando a ideia

de que a moral nasce de alguma fonte externa, como por exemplo, um Deus ou um

Supremo Bem. Ações de qualquer tipo, ele acreditava, precisam partir de um sentido de

dever ditado pela razão, e nenhuma ação realizada por interesse ou somente por

obediência a lei ou costume pode ser considerada como moral. Dessa forma, Kant

recusou todas as éticas anteriores, fundamentadas em normas e valores de origens

diversas (as éticas heterônomas, as vindas de fora do sujeito, impostas por outras fontes

que não a razão). Chauí, no livro Filosofia, diz que a ética derivaria de um princípio

central, de um dever baseado na razão que Kant chamava de imperativo categórico, que

é o que ordena incondicionalmente o dever como uma lei moral interior válida para todas

as circunstâncias de todas ações morais. O imperativo categórico exprime-se numa

fórmula geral: Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se

torne uma lei universal. (pág. 172)

Esta fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais que exprimem a

incondicionalidade dos atos realizados por dever. As três máximas morais propostas por

13 Kant são: 1) Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em

lei universal da Natureza; 2) Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua

pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio; 3) Age

como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres

racionais. (CHAUÍ, pág. 171 e 172)

A primeira máxima quer dizer que todo o ser humano deve querer agir

respeitando o dever. Afirma a universalidade da conduta ética, isto é, aquilo que todo e

qualquer ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável, válida

para todos em todo tempo e lugar. A ação por dever é uma lei moral para o agente.

A segunda máxima diz que ninguém, nenhum ser humano deve ser usado

como meio ou instrumento de nossos interesses. Os seres humanos devem ser tratados

com dignidade, como pessoas livres e que merecem ser tratados como um fim ou

finalidade de nossas ações. Os homens não são meios para se conseguir o bem ou a

felicidade. Não é certo usar uma pessoa como meio de gerar o bem para outros. Temos o

dever de lutar para promover o bem-estar das pessoas, temos de respeitar os seus

direitos, evitar fazer-lhes mal.

A terceira máxima diz que se sua ação não pode ser universalizada, ou seja,

se ela não pode valer para todos, e se ainda, não pode ser realizada em todos os lugares

e em todos os momentos, esta ação não pode ser considerada moralmente correta.

Afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque

racionais e, portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma.

Kant afirma que devemos agir moralmente ou fazer o bem porque, somente

o bem pode ser universalizado. Ele usa a razão e a nossa consciência para analisar cada

conteúdo mediante este imperativo, este dever. Assim, cada ação ou conduta que não

pode ser tornada como universal não é moralmente correta. A ética kantiana é a ética do

dever, auto coerção da razão, que concilia dever e liberdade. O pensamento do dever

derruba a arrogância e o amor próprio, e é tido como princípio supremo de toda a

moralidade.

A Filosofia Moral distingue entre ética e moral. Ética tem a ver com o "bom",

são os valores que apontam qual é a vida boa na concepção de um indivíduo ou de uma

comunidade. Moral tem a ver com o "justo", é o conjunto de regras que fixam condições

iguais de convivência com respeito e liberdade. Éticas cada qual tem e vive de acordo

com a sua; moral é o que torna possível que as diversas éticas convivam entre si sem se

14 violarem ou se sobreporem umas às outras. Por isso, a moral prevalece sobre a ética.

Na ética estão as noções de felicidade, de caráter e de virtudes. As decisões

de qual propósito dá sentido à vida, que tipo de pessoa sou e quero vir a ser e qual a

melhor maneira de confrontar situações de medo, de escassez, de solidão, de

arrependimento etc. são todas decisões éticas.

Na moral estão as noções de justiça, ação, intenção, responsabilidade,

respeito, limites, dever e punição. A moral tem tudo a ver com a questão do exercício do

direito de um, até os limites que não violem os direitos do outro.

As duas são indispensáveis. Sem moral, a convivência é impossível. Sem

ética, é infeliz e lamentável. Há, ao lado dos fins éticos, que variam de pessoa para

pessoa, deveres morais, que se impõem a todos indistintamente.

Para La Taille em entrevista a Educacional.com, moral é o conjunto de

deveres derivados da necessidade de respeitar as pessoas, nos seus direitos e na sua

dignidade. Logo, a moral pertence à dimensão da obrigatoriedade, da restrição de

liberdade, e a pergunta que a resume é: “Como devo agir?”. Ética é a reflexão sobre a

felicidade e sua busca, a procura de viver uma vida significativa, uma “boa vida”. Assim

definida, a pergunta que a resume é: “Que vida quero viver?”. É importante atentar para o

fato de essa pergunta implicar outra: “Quem eu quero ser?”. Do ponto de vista psicológico,

moral e ética, assim definidas, são complementares.

De la Taille (1996) encerra sua exposição sobre a moralidade kantiana

trazendo o seguinte postulado do filósofo sobre a dignidade humana:

As crianças devem aprender a substituir o ódio pelo sentimento de horror pelo que é revoltante e absurdo, o medo dos juízos dos homens e dos castigos divinos, pelo medo de sua própria consciência, a opinião de outrem pela própria estima e dignidade interior. (p.148)

Pode-se concluir com isto que o idealismo Kantiano, no que se refere à moralidade,

deixa algumas dicas importantes para a educação ao propor uma ética universal para a

qual todos devem ser norteados pelos mesmos princípios. Se toda relação humana, não

importando a etnia, a crença, o gênero, a classe social, a cronologia, enfim a diversidade

fosse pautada pelo respeito aos direitos humanos, os pressupostos kantianos estariam

15 próximos de se concretizarem.

1.2 - Desenvolvimento da moralidade segundo Jean Piaget.

Piaget (1994) em sua obra O juízo moral na criança, destaca que a

moralidade não é um valor intrínseco ao ser humano, “as regras morais, que a criança

aprende a respeitar, lhe são transmitidas pela maioria dos adultos, isto é, ela as recebe já

elaboradas, e, quase sempre, nunca elaboradas na medida de suas necessidades e de

seu interesse, mas de uma vez só e pela sucessão ininterruptas das gerações adultas

anteriores” (pág. 23). Para comprovar esta afirmativa, Piaget, realizou pesquisas com

crianças e adolescentes acerca de suas concepções sobre três aspectos do

desenvolvimento moral: as regras morais, o julgamento moral e a noção de justiça.

De um modo geral, em todos os aspectos estudados, Piaget observou a

evolução de duas grandes estruturas que ontogeneticamente se sucedem na medida em

que a criança se torna mais velha e mostra-se menos egocêntrica: a da moral heterônoma

e a da moral autônoma.

A moral heterônoma, fruto das limitações intelectuais da criança do período

da primeira infância e da coação do adulto, caracteriza-se pela obediência e pelo respeito

unilateral. É imposta a partir do exterior como um sistema de regras obrigatórias,

baseando-se no princípio de autoridade. Encontra-se na maioria das relações e entre o

adulto e a criança, e esta, vai percebendo que existem regras, comportamentos

questionados ou valorizados.

A moral autônoma, resultado dos avanços cognitivos, das relações sociais

igualitárias e da argumentação racional, típica do início da adolescência, caracteriza-se

pela cooperação e pelo respeito recíproco. Surge do próprio indivíduo como um conjunto

de princípios de justiça. Tem caráter espontâneo e baseia-se no princípio da igualdade, no

respeito mútuo e nas relações de cooperação. Considera-se a intencionalidade dos atos e

a tendência é de que, com o passar do tempo, o sujeito internalize as regras e a partir

desta internalização não estará mais lidando com as possibilidades de punição, uma vez

que a pessoa se propõe, por ela mesma, respeitar tais regras.

16

No que se refere às regras, Piaget (1994), a partir da observação de como

as crianças jogam, especificamente foi utilizado o jogo de bolinhas de gude para os

meninos e a amarelinha para as meninas, focou seus resultados no intuito de explicar de

que forma as crianças se adaptam e praticam as regras e de que forma adquirem

consciência e domínio dessas regras.

Em relação à prática das regras, Piaget identificou quatro estágios: No

primeiro estágio (0-2 anos), identificado como estágio motor, as crianças não fazem uso

de regras e se detêm a uma manipulação motora e individual do objeto da brincadeira, “a

regra ainda não é coercitiva, seja porque é puramente motora, seja porque é suportada,

como que inconscientemente, a título de exemplo interessante e não de realidade

obrigatória” (pág. 34). No segundo estágio (2-5 anos), denominado de egocêntrico, as

crianças aceitam as regras apresentadas e jogam imitando o exemplo, porém ainda jogam

sozinhas, mesmo quando em grupo, e utilizam as regras individualmente. “A regra é

considerada como sagrada e intangível, de origem adulta e de essência eterna; toda

modificação proposta é considerada pela criança como uma transgressão” (pág. 34). No

terceiro estágio (7/8 anos), identificado como o estágio da cooperação nascente, as

crianças procuram vencer o outro, o que promove a necessidade de sistematização da

regra, mas, ainda prevalece uma diferenciação considerável no que se refere à

informação de qual é a regra geral do jogo, “a regra é considerada como uma lei imposta

pelo consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório, se deseja ser leal, permitindo-se,

todavia, transformá-la à vontade, desde que haja o consenso geral.” (pág. 34). No quarto

estágio (a partir dos 11/12 anos), compreendido como o estágio da “codificação das

regras”, as regras são definidas e entendidas de forma detalhada por todos os jogadores,

pois agora as regras fazem parte da sociedade. É marcado pela consciência coletiva das

regras e pela sua generalização. Os jogadores se preocupam com códigos, nasce o

interessa em formular regras.

Quanto à consciência das regras, Piaget identificou três: (1) No primeiro

estágio, a criança ao brincar não manifesta noção de regra ou consciência moral faz a

regra de acordo com seus hábitos motores e não é obrigatória. São baseadas nos gestos

de imitação. (2) No segundo estágio, a regra é considerada como sagrada, verdade

absoluta, imutável, não pode ser alterada. As crianças querem jogar de acordo com

regras exteriores, nesse sentido, toda modificação proposta é considerada pela criança

como uma transgressão. Há a noção de coação pelo maior, uma obediência cega, sem

questionamentos; (3) no terceiro estágio, a regra é considerada como uma lei imposta

pelo consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório, mas, nesse caso, existe uma

17 permissividade de mudança da regra, desde que haja consenso. Pode-se observar que,

utilizando a lógica das estruturas ontogenéticas de heteronomia e de autonomia, na

transição de um estágio para o outro, a criança faz um percurso que a conduz de uma

amoralidade, passando por uma heteronomia moral até chegar à desejada autonomia

moral.

Sobre o realismo moral, Piaget apresentou uma série de histórias hipotéticas

que descreviam ações em termos de intenções antagônicas (boas ou más), associados

às consequências menos graves para a intenção má. Ao analisar as respostas das

crianças, Piaget distinguiu dois tipos de julgamento: julgamento pelas consequências

(responsabilidade objetiva) e julgamento pelas intenções (responsabilidade subjetiva). O

primeiro avalia os atos pelas suas consequências, e não por sua intenção. Para as

crianças, quanto maior for o dano da ação, mas o fato da pessoa ter tido ou não intenção

de causar um mal. O julgamento do ato é feito pelo tamanho do dano que este causou e

não pela intenção de quem provocou.

No que se refere a noção de justiça, Piaget, por meio de questões morais

que problematizam o que é uma sanção justa, e do que é uma distribuição justa, destacou

três tipos: a justiça imanente, a justiça retributiva e a justiça distribuitiva. A primeira, a

justiça imanente, baseia-se no princípio de que as regras devem ser acatadas e

obedecidas simplesmente por serem regras e, além disso, desobedecê-las pode acarretar

acidentes físicos ou problemas desagradáveis, determinados por Deus ou por uma

autoridade. A segunda, a justiça retributiva, está relacionada à ideia de sanção, em que o

ato deve ser corrigido com uma punição. Na justiça retributiva, há dois tipos de sansões, a

expiatória, que está relacionada à coação adulta e a proporcionalidade entre o sofrimento

imposto e a gravidade da falta, e a por reciprocidade, que é mais desenvolvida e tem por

objetivo fazer com que o indivíduo compreenda o significado da falta. No que se refere à

justiça distributiva, os estudos de Piaget revelaram a existência de três períodos

evolutivos: no primeiro período, a criança fundamenta seu julgamento distributivo no

respeito unilateral e na obediência e, dessa forma, considera justa uma distribuição que

esteja de acordo com as determinações estabelecidas pelas figuras de autoridade; no

segundo período, a criança se guia pelo princípio do igualitarismo absoluto e considera

justa uma distribuição em que todos recebam exatamente o mesmo benefício ou punição;

no terceiro período, por sua vez, a criança baseia seu julgamento distributivo no princípio

de equidade, o que significa dizer que nesse período existe uma ponderação das

condições e características individuais das pessoas que se beneficiarão com a

distribuição.

18 Em síntese, Piaget aborda o desenvolvimento moral do ponto de vista da

mudança na cognição e se preocupa em descobrir de que forma as experiências sociais

propiciam a base para uma ampliação da perspectiva a respeito da autoridade e da justiça

social. O mais relevante é entender que para Piaget os valores morais não são absorvidos

do meio pelas crianças, mas sim uma construção interna que ocorre à medida que as

crianças se relacionam com outras crianças e com os adultos e que se confrontam com

situações que pedem uma atitude moral.

Segundo Donatelli, a formação moral é um estado de razão quando posta

em pauta pelos homens, no entanto, é uma questão de formação quando pensamos nos

jovens que tem na família o lugar para ouvir e se permitir escutar princípios que regem o

grupo do qual ele veio (pág. 80). Pode-se concluir que distinguir o certo do errado não

implica necessariamente em agir conforme seu juízo. Não basta saber discernir e

compreender as razões implicadas em determinada ética ou moral. Para ter ações

morais, é preciso que o indivíduo seja movido por uma vontade e um desejo morais que

guiem aquela conduta e pra isso é necessário um longo processo de construção da

moralidade, que começa na infância, se intensifica na adolescência e continua pela vida

toda.

A partir deste entendimento, os pais, como primeiros formadores e

transmissores da noção de moral, entram em destaque no segundo capítulo com a

questão do narcisismo dos pais e a cultura narcísica.

19

CAPÍTULO II

CULTURA NARCÍSICA

Para Joel Birman, “a sociedade pós-moderna pode ser considerada como

uma cultura do narcisismo”. Muitas teorias para explicar este fenômeno, culpam os pais,

professores e a mídia, que permitem ou até celebram atitudes permissivas, voltadas para

o individualismo. Os pais usam a desculpa de que estão criando filhos com a autoestima

elevada e mais preparados para competir no mercado de trabalho, mas o que vem

acontecendo, é indivíduos chegando à idade adulta exigindo tratamento especial, sendo

autoritários e tomando decisões inconsequentes e individualistas. Observa-se que, muitas

vezes, quem é valorizado pela sociedade é o indivíduo que consegue o que quer a

qualquer custo, sem medir as consequências.

A linha que separa uma boa autoestima do narcisismo exacerbado é tênue,

por isso cria tantas confusões na educação dada pelos pais. Todos querem ter filhos que

sejam confiantes de suas capacidades, mas não se dão conta que esta confiança pode

estar passando dos limites, que no exercício da autoestima, a criança pode não levar em

consideração o outro e apenas fazer uso das pessoas para se satisfazer.

O termo narcisismo tem para a psicanálise a mesma conotação do mito

grego, no qual Narciso se via refletido nas águas de um rio, se apaixonava por este

reflexo e acabava capturado pela própria imagem. Segundo Cavalcante, 2003, o mito de

Narciso adquire na pós-modernidade a sua maior importância, por se tratar de um mito

que traz na sua narrativa a difícil tarefa do relacionamento com o outro, e a sua

importância na constituição do ser, nos vários estágios do desenvolvimento, contribuindo

dessa forma, para a formação da personalidade desde as primeiras relações objetais até

o nível mais elevado dos relacionamentos. Falhas nessas relações objetais podem

constituir os distúrbios clássicos da personalidade.

Para falar da cultura do narcisismo é importante uma breve exposição da

teoria freudiana do conceito de narcisismo, e como este se articula com o

desenvolvimento da criança.

20

2.1 - Narcisismo por Freud.

Freud descreveu como narcisista uma fase do desenvolvimento da

personalidade correspondente aos primeiros anos de vida, quando a criança se relaciona

com o mundo como se ela estivesse no centro de tudo, pois basta chorar que logo chega

alguém para niná-la, aliviar-lhe a dor, matar sua fome. Para ela, não existe, então, o outro,

que é confundido com uma parte de si mesma - uma resposta “sua” às suas próprias

manifestações de desejo. A criança só ultrapassa essa fase quando começa a amar

alguém - no início, a figura paterna, no caso das meninas, ou a materna, no dos meninos.

Freud distingue dois tipos de narcisismo, o narcisismo primário, e narcisismo

secundário. No narcisismo primário, o primeiro modo de satisfação da libido seria o

autoerotismo conceituado como o prazer que o órgão retira de si mesmo; essas pulsões,

de forma independente, procuram cada qual por si, sua satisfação no próprio corpo.

Nesse período, ainda não existe uma unidade comparável ao eu, nem uma real

diferenciação do mundo.

As primeiras satisfações sexuais auto-eróticas são experimentadas

em relação com funções vitais que servem à finalidade de autopreservação.

Os instintos sexuais estão ligados à satisfação dos instintos do ego;

somente depois é que eles se tornam independentes destes, e mesmo

então encontramos uma indicação dessa veiculação original no fato de que

os primeiros objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se

preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no primeiro

caso, sua mãe ou quem quer que a substitua. (FREUD, 1990, p. 94)

Em seu texto sobre o Narcisismo, Freud destaca a posição dos pais na

constituição do narcisismo primário dos filhos. Freud fala que o amor dos pais aos filhos é

o narcisismo dos pais renascido e transformado em amor objetal. O Narcisismo primário

21 representaria de certa forma, uma espécie de onipotência que se cria no encontro entre o

narcisismo nascente do bebê e o narcisismo renascente dos pais.

Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos,

temos que reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu

próprio narcisismo, que há muito abandonaram. (...) Assim eles (os pais) se

acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho (...). Além

disso, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o

funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo

foi forçado a respeitar (...). A doença, a morte, a renúncia ao prazer,

restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da

sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente

o centro e o âmago da criação? "Sua majestade o bebê", como outrora nós

mesmos nos imaginávamos. (FREUD, 1990, p.97-98).

Deste estado do bebê que é chamado de narcisismo primário, tem-se

resquícios importantes, aquilo que no senso comum chama-se de vaidade ou autoestima.

No caso do narcisismo secundário há dois momentos: primeiro o

investimento nos objetos; e depois esse investimento reforma para o seu ego. Quando o

bebê já é capaz de diferenciar seu próprio corpo do mundo externo, ele identifica suas

necessidades e quem ou o que as satisfaz; o sujeito concentra em um objeto suas

pulsões sexuais parciais, há um investimento objetal, que em geral se dirige para a mãe e

o seio como objeto parcial.

Com o tempo, a criança vai percebendo que ela não é o único desejo da

mãe, que ela não é tudo para ela. É com o advento da castração que a criança vai perder

o posto de objeto que preenche a falta da mãe, uma vez que a criança já não é mais a

completude da mãe, não é mais a sua “majestade o bebê”.

É através do drama da castração que a criança vai reconhecer uma

incompletude e que vai despertar o desejo de recuperar a perfeição narcisista. “Sua

majestade, o bebê começa a ser destronado. Essa é a ferida infligida no narcisismo

primário da criança. A partir daí, o objetivo consistirá em fazer-se amar pelo outro, em

agradá-lo para reconquistar o seu amor; mas isso só pode ser feito através da satisfação

22 de certas exigências; a do ideal do seu eu.” (NASIO, 1988, p. 59)

2.2 - Pais narcisistas.

Em "Sua Majestade, o bebê!” (Freud, 1914), afirma que toda criança passará

necessariamente por uma fase narcísica. Esta fase egocêntrica é natural e até importante

para a criança. Ela não entende que o outro não faz parte dela e não está ali apenas para

satisfazê-la. O narcisismo é necessário para que a criança reconheça seus próprios

sentimentos e desenvolva sua personalidade.

Como foi assinalado no subitem 2.1, no narcisismo primário, o mundo para o

bebê, é feito dele e da extensão dele mesmo: seio, mãe, adultos, brinquedos, são

sentidos como parte do próprio eu. Na relação com os adultos o bebê passa a ser toda a

fonte de preocupação e investimento, além da projeção de ideais de perfeição dos pais. É

como se um bebê despertasse no indivíduo a esperança de que desta vez poderá ser,

através dele, perfeito.

É nesse sentido que Freud vai dizer que o filho reaviva nos pais o próprio

narcisismo primário perdido na infância. Este narcisismo é fundamental, já que o bebê

encontra-se em um nível de dependência tão absoluto que precisa deste tipo de

investimento, no qual é tudo para alguém, para que possa sobreviver e aos poucos, ir

tendo uma noção de existir no mundo. Nesta dinâmica, mãe e criança vivem a ilusão de

serem juntos, um par de perfeição e completude.

Temer vai afirmar que, essa ilusão de perfeição e completude,

gradativamente se rompe, pois acontecerão falhas do ambiente que colocam o bebê em

contato com a falta. Um seio ou uma mamadeira que demora a chegar, um desconforto

físico causado pelo mundo externo ou pelo próprio corpo são eventos que fazem com que

o bebê viva rupturas nas experiências de satisfação imediata de suas necessidades.

Essas rupturas são vivências em que o narcisismo do bebê é abalado. Ele vai sentir que

para as suas necessidades serem atendidas é preciso a presença/interferência de outro,

ou seja, será preciso investir também em algo fora de si mesmo para obter a completude

desejada. Em seguida também vai entender que o adulto espera algo dele, que será

amado mediante certas condições, como ser educado, bonzinho, etc.

É nessa presença inevitável do outro que o indivíduo é convocado a sair de

23 seu lugar narcísico e fazer parte de algo que é da ordem do coletivo, do universal e do

simbólico; de uma lei a qual todos estão submetidos. Faz-se necessário renunciar ao

desejo de satisfação imediata (princípio do prazer), para ser aceito na cultura.

No narcisismo patológico, as relações pais e filho evidenciam outro jeito de

funcionamento: os pais se colocam no lugar do ideal e tentam conformar o filho, segundo

suas aspirações narcisistas. Não veem o filho que têm, só o que desejam, e pretendem

que o filho complete-os naqueles aspectos ideais, que não puderam conseguir por eles

mesmos. Atribuem ao filho todas as perfeições e esquecem seus defeitos, projetando seu

ideal narcisista no filho. Há uma estruturação resultante da internalização no filho, dos

desejos narcisistas dos pais, que configura o denominado por Freud de ego ideal.

No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão

oprimida pela realidade é alcançada por meio do refúgio na criança. O

comovedor amor parental, no fundo tão infantil, não é outra coisa que o

narcisismo ressuscitado dos pais que, em sua transmutação ao amor de

objeto, revela sua primitiva natureza. (FREUD, 1990, pg. 88).

Nesse narcisismo patológico há uma forte dependência do outro. Espera

encontrar e acredita reconhecer o ideal no outro (idealização). Quando se questiona esta

estrutura narcísica há uma vivência de morte e o medo não é da morte mesmo, mas de

perder esse referencial que compensa as feridas narcísicas dos pais (ego ideal). A meta a

ser atingida é aguentar a morte do ‘filho ideal’ e, se desligar dos próprios desejos, para

que se deixe de agir a partir de um ego narcisista, ideal, inconsciente e se comece a

formar parte de um ego real, aceitando a incompletude e a finitude como atributos

naturais da vida, renunciando à ilusão de que o exterior é aquilo que se crê que seja e à

pretensão de achar que o mundo é algo unitário.

Uma boa dose de narcisismo é fundamental para todos os tipos de

investimento que o indivíduo precisa fazer em si mesmo. Mas esse resquício de

narcisismo que se carrega até hoje é muito diferente quando se fala em “era do

individualismo” ou “cultura do narcisismo”, condição na qual o sujeito estaria aprisionado

no narcisismo primário, reivindicando permanentemente o retorno do lugar de “sua

24 majestade o bebê”, capturado pela imagem de seres perfeitos, incondicionalmente

amados e negando a presença do outro.

Se esse outro é pensado como algo que se remete à ideia de que, não se

pode tudo, não se tem tudo e não se é tudo, pode-se observar como essas premissas são

postas em cheque a todo momento nos dias de hoje. Segundo Temer, a cultura atual

promete o prazer constante, como aquele vivido inicialmente pelo bebê, caracterizado

pela ausência de sofrimento, pela ilusão de perfeição e a negação da existência do outro.

Promete o paraíso e oferece o vazio, a ausência de sentido. Vazio, porque ao contrário do

que se imagina, o princípio do prazer nos aprisiona em uma condição frágil, na qual

qualquer frustração é insuportável e qualquer conquista perde o sentido. Para desejar e

usufruir a realização de um desejo é preciso poder sentir que existem faltas. Nascimento

(2007) considera que na pós-modernidade parece existir um cuidado excessivo pelo

sujeito com relação ao bem-estar, impedindo-o de conviver com suas angústias e

sofrimentos e, nota-se a exacerbação dos aspectos narcísicos nos padrões da

personalidade.

Vive-se hoje o ideal de perfeição narcísico, ou seja, os pais precisam ser

excelentes profissionais, bonitos, magros, cultos, engajados socialmente, e se possível

jovens eternamente. Freud dizia que uma criança nunca se contenta com menos do que

tudo. Nos dias de hoje, os pais, também não.

Uma das maiores dificuldades em se colocar limites às crianças é o fato dos

pais se sentirem a própria “majestade o bebê”. É comum pais falarem que são o melhor

amigo de seus filhos, não se dando conta que a maternidade/paternidade implica em

frustrar os filhos e renunciar por instantes a posição de pai legal e amado. Também se

pode observar a tendência, cada vez maior, de se propor uma educação focada

exclusivamente no afeto, onde o limite não é dado. Sennett (2010) enfatiza a ausência de

autoridade e de orientação firme dos pais na criação dos filhos, e que muitos deles

discutem a questão familiar até a exaustão, por receio de dizer não. Ninguém mais se

autoriza a dizer simplesmente “não”, simplesmente porque as coisas são assim, porque

todos os indivíduos estão submetidos a uma lei maior, uma tradição, porque há um código

social, etc. Qualquer noção de coletividade perdeu espaço para o prazer imediato e o

individualismo. Ainda segundo Sennet, o comportamento que traz sucesso ou apenas

sobrevivência no trabalho, não dá para oferecer como modelo paterno, e que em lugar

dos valores de camaleão da nova economia, a família deve enfatizar, as virtudes de longo

prazo como a obrigação formal, a confiança, o compromisso mútuo e o senso de objetivo.

Entretanto, gera um conflito, como se pode buscar objetivo de longo prazo em uma

25 sociedade de curto prazo, composta de episódios e fragmentos? Diz o autor, o capitalismo

de curto prazo corroí o caráter, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os

seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade

sustentável.

Segundo Nascimento, a relação entre as gerações é modulada por uma

cultura narcisista implícito, e mais ainda, que o sujeito produto desta cultura se caracteriza

por possuir uma superficialidade emocional, um medo da intimidade, hipocondria, uma

falsa percepção, promiscuidade sexual, medo da velhice e da morte e não acreditam na

possibilidade de transformação do futuro, desprezam o passado e vivem para o momento,

e ausência de valores. Na era contemporânea tudo parece ser mais rápido: o imediatismo

toma conta dos movimentos. A ética da sobrevivência constitui a marca do narcisismo.

Neste contexto, observa-se que para estabelecer limites para as crianças, é

preciso antes de mais nada, refletir como os indivíduos lidam com seus próprios limites.

Se o sujeito tiver um entendimento que não se pode ter o controle total da vida e do seu

destino, pode ser uma maneira de se criar crianças menos tirânicas e adultos menos

impotentes. Estar identificado com esse estado narcísico, viver nele, significa estar

alienado de si mesmo em toda dimensão da personalidade, sem conhecer as limitações.

Enquanto esta percepção de limite não estiver bem delineada nas famílias, a questão da

agressividade, intolerância com o outro vão continuar crescentes na sociedade atual.

O próximo capítulo aborda a questão dos comportamentos violentos na escola por

parte de crianças e jovens como consequência dessa cultura narcisista, em que o outro,

pouco ou nada importa.

26

CAPITULO III

VIOLÊNCIA NO AMBIENTE ESCOLAR: O PAPEL DA FAMÍLIA E

DA ESCOLA.

Atualmente são cada vez mais frequentes jovens transgredindo regras de

convivência, demonstrando assim seu descaso para com a autoridade e a lei social. A

mídia noticia casos de violência ocorridos no espaço escolar, e o professor se queixa de

que as novas gerações chegam à escola sem um mínimo de código de civilidade para

convivência social. O desrespeito à autoridade e a lei começam em casa, por meio de

pais negligentes e permissivos, as crianças acabam por autorizar a si próprias a atos

desse tipo. São muitas as contradições dos pais entre a teoria e a prática. São tempos

difíceis para os pais cumprirem o que as teorias sugerem. Embora bem informados, eles

não sabem como aplicar determinados conceitos na realidade prática. Jovens, em todos

os tempos e culturas, sempre tiveram impulsos transgressivos; sempre se comportaram

desafiando a autoridade e desprezando as regras de boa convivência. Os jovens são

intolerantes ou transgridem as regras, não necessariamente por maldade, mas sim para

testar seus limites.

Segundo a drª Fátima Vasconcellos em Transtornos Comportamentais na

Infância e Adolescência (Teixeira, 2006), a herança genética e o ambiente são a base

para a formação do indivíduo. Uma criança nascida em um ambiente com carinho,

proteção, estímulos afetivos, sensoriais e limites começa a fazer cada vez mais conexões

neuronais que a tornam confiante e saudável. O segundo grande elemento de formação

da criança é a escola, onde esta chega com um enorme potencial de aprendizagem

intelectual e convivência social. Problemas de autoridade e emocionais dos pais geram

vários desencontros no ambiente familiar e é na escola que vão se manifestar com mais

frequência essas alterações de comportamento.

Àries ressalta que na família burguesa e mesmo antes dela, os filhos, eram

sujeitos submetidos aos desejos, expectativas e pretensões paternas. Antes, nossa

civilização olhava para a infância com desdém. O mundo da infância, e mesmo o da

adolescência, no século XIX era cercado de proteções e regramentos rígidos que faziam

com que todos obedecessem as ordens impostas pelos pais. O amor, praticado com

27 devoção por pais e mães, é um fenômeno recente. Segundo De La Taille (1996), com o

declínio da autoridade dos pais abriu-se caminho para a suspensão da lei cultural e ainda

impediu dois sentimentos fundamentais para formar um sujeito ético: vergonha e culpa.

Vergonha diz respeito ao fracasso de cumprir as obrigações emanadas da lei paterna; e

culpa remete à transgressão de uma lei. Ambos os sentimentos são imprescindíveis para

a formação do sujeito moral. O sujeito “sem vergonha” é alguém que, por um lado, ignora

e despreza o juízo dos outros e, por outro, não considera condenável, aviltante, cometer

certos atos condenados pela moral vigente.

O desrespeito em relação aos pais se reproduz na rede simbólica de

sustentação das demais autoridades da sociedade: professor, diretor, reitor, prefeito,

governador, presidente. Qualquer autoridade é herdeira da função paterna original. Não é

que as crianças e os adolescentes estejam mais indisciplinados do que os de

antigamente, mas as contradições da sociedade, sim.

De La Taille (1996), afirma ainda que o atual discurso pedagógico a respeito

da ética tem se desenvolvido, basicamente, sobre a premissa da crise moral,

representada pela deturpação dos valores e pela ausência de limites nas relações entre

indivíduos.

Com base nisso, os subitens a seguir objetivam fazer uma reflexão sobre a

relação da família e da escola frente a crescente violência praticada por crianças e jovens.

3.1- Escola e violência.

A violência aumenta a cada dia em nossa sociedade, e é geradora de uma

série de consequências na vida das pessoas e seus familiares. Tal situação afeta

diretamente o seio familiar influenciando na questão educacional dos filhos. Muitas vezes,

a violência pode ser confundida com agressão e indisciplina, quando se manifesta na

esfera escolar.

Valores como tolerância, humildade, solidariedade, companheirismo,

respeito, são pouco motivados nas práticas de convivência, quer seja na escola, em locais

de lazer, no trabalho e na própria família. A inexistência dessas práticas gera o

individualismo, a lei do mais forte, e daí a intolerância e a brutalidade.

A violência é um ato de cultura, conforme relata Costa (1986), ela é diferente

28 da agressividade, que é um componente natural dos seres humanos e dos outros

animais. Ela não é natural, é um artifício, uma escolha moral. Para que exista violência é

necessário que um acordo seja quebrado. Quando alguém é submetido ao arbítrio de

outro alguém, sem que esta submissão signifique crescimento, então há violência.

Desta forma, a violência escolar deve ser entendida como todo ato que

impede, em sentido amplo, o desenvolvimento pleno das pessoas nela presentes. Deve

ser considerada como um ataque à cidadania, como a negação de direitos básicos. Existe

violência em toda ação voluntária ou consciente de um indivíduo, grupo ou classe, com o

propósito de impedir o indivíduo, grupo ou classe, a plena realização de um direito. Tal

ação pode ser indireta ou direta, velada ou explícita, e comporta sempre a negação do

outro. Inclui atos que provocam danos morais, psicológicos e físicos.

A violência que ocorre no dia-a-dia escolar é visível não só do ponto de vista

de grandes agressões, mas principalmente de pequenos fatos: durante os jogos, as

brincadeiras, os conflitos entre os alunos; ou ainda nas relações entre alunos e

professores e entre alunos e funcionários.

A educação é um processo de construção contínua, coletiva e permanente

de formação do indivíduo, a escola é, portanto, um ambiente privilegiado para essa

formação, porque trabalha com o conhecimento com atitudes, valores e a formação de

hábitos.

Para Candau (1995), é importante que a escola seja um espaço onde se

formam as crianças e os jovens para serem construtores ativos da sociedade na qual

vivem e exercem sua cidadania e esta proposta educativa deve ter como eixo central a

vida cotidiana, vivenciando "uma pedagogia da indignação e não da resignação. Não

queremos formar seres insensíveis e sim seres capazes de se indignar, de se

escandalizar diante de toda forma de violência, de humilhação. A atividade educativa deve

ser espaço onde expressamos e partilhamos esta indignação através de sentimentos de

rebeldia pelo que está acontecendo".

A violência escolar tem várias formas e algumas causas. Ela se manifesta

contra o patrimônio, os alunos e os professores. Esse tipo de fenômeno pode ser

justificado pela cultura da violência atual somado a insegurança dos pais. Seu efeito na

aprendizagem é extremamente danoso. O ato violento é antagônico ao ensino, pois

impede o educador de trabalhar.

Os problemas disciplinares na escola e os conflitos do dia-a-dia já

ultrapassaram, largamente, os corriqueiros atritos verbais e “briguinhas” de crianças. O

incremento nas ações violentas que ocorrem nas escolas, como as agressões verbais e

29 físicas contra professores e alunos, o porte de armas de diversos tipos, brigas de gangues

(muitas vezes possuindo alunos da própria escola), suscita inclusive a presença, cada vez

mais frequente e de forma sistemática, da força policial nesse espaço. A autoridade da

escola, bem como de seu principal representante, o professor, parece não ser mais

suficiente para resolver tais problemas e restaurar a “ordem” necessária ao

desenvolvimento do trabalho pedagógico.

A intolerância ao diferente é uma dos motivos do processo que origina a

violência. Os “diferentes”, isoladamente ou em grupo (no qual se identificam na diferença),

respondem com agressão àqueles que os discriminam. Os adolescentes precisam da

forma para poder se entender como pessoas. Como estão envolvidos no processo de

construção da identidade, a forma é muito importante e passa a ser essencial. A aparência

física pode definir uma série de coisas, como ser valorizado ou desvalorizado, aceito ou

rejeitado, amado ou desprezado, perseguido ou bajulado, ou seja, pode definir se

ocorrerá uma discriminação negativa ou positiva.

Vários podem ser os fatores que motivam a prática da violência escolar,

sendo estes, na maioria das vezes, fatores intrínsecos as famílias, aos alunos, aos

professores, a escola e ao sistema. Com relação a fatores familiares, pode-se ressaltar a

falta ou inversão de valores morais e éticos, desprestígio da educação, pais omissos,

ausentes dos problemas escolares, coniventes com os erros dos filhos, não impondo

limites aos filhos, jogando para a escola a responsabilidade da família. Segundo Moura

(1991), “a figura forte na família é aquela pessoa com a qual os membros se identificam,

imitam, respeitam. Logo, é aquela pessoa que possui autoridade, um grande poder de

orientar, de controlar. Por isso mesmo se infere a importância da presença familiar no

aprendizado da vida de relação”. Os pais, impotentes para lidarem com a violência dos

seus descendentes acusam os professores de não “domesticar” os seus filhos,

alimentando ainda mais a agressividade e, em casos extremos tornam-se eles mesmos

violentos, agredindo os professores e funcionários.

Fontoura (2004), afirma que se os sujeitos reproduzem as instituições nas

situações de encontro, o cotidiano é o campo onde esta reprodução se processa. Quando

a escola deixa de ser um campo seguro e de transmissão de saber, as rotinas que

garantem a existência dela também se comprometem. Por outro lado, as instituições de

ensino vêm perdendo o valor social e isso fragiliza a imagem delas e do trabalho por elas

realizado. A escola se enfraquece, diante do aluno e da sociedade, quando não cumpre

as expectativas que os sujeitos nutrem por ela, quando não garante acesso aos bens

simbólicos e materiais e segurança.

30 Baseado nessas colocações percebe-se que a violência escolar interfere

diretamente na qualidade do ensino e no projeto pedagógico da escola, pois gera

indisciplina, prejudicando o clima indispensável à realização do processo ensino-

aprendizagem; afasta alunos e professores dos projetos extraclasse; toma muito tempo

útil da direção e dos professores; danifica o material didático, prejudicando o

desenvolvimento das aulas e dos projetos; consome verbas que poderiam ter melhor

aplicação e que acabam sendo gastas em consertos do patrimônio escolar ou recompras

de material pedagógico; causa nos alunos uma ansiedade, insegurança, queda na

autoestima, desinteresse, desmotivação, reação de autodefesa, apatia, agressividade,

dificuldade de relacionamento; nos docentes gera um sentimento de estresse, medo,

ansiedade, angústia, insegurança, desmotivação, sentimento de impotência. Nos piores

casos pode levar alunos à evasão e à repetência, estimular a falta às aulas, gerar intrigas

e desrespeito, criar situações constrangedoras para os alunos, além de prejudicar o

relacionamento aluno/aluno, aluno/professor, aluno/direção e escola/comunidade.

Com base no que relata Abramovay & Rua (2002), mesmo que a violência

nas escolas não se expresse em grandes números e apesar de não ser no ambiente

escolar que acontecem os eventos mais violentos da sociedade, ainda assim, este é um

fenômeno preocupante tanto pelas sequelas que diretamente inflige aos atores da

violência e testemunhas, como pelo que contribui para rupturas com a ideia da escola

como lugar de conhecimento, de formação do ser e da educação, como veículo por

excelência do exercício e aprendizagem, da ética e da comunicação por diálogo e,

portanto, a antítese da violência.

Polato (2007) afirma que, atualmente vive-se num período de crise da

educação, onde o papel da escola não está tão claro. Seus objetivos já não são somente

ensinar conteúdos educativos tradicionais. No espaço escolar se vai, além disso,

tornando-se também um espaço de interação entre seus participantes. É também um

lugar onde as crianças e adolescentes aprendem a se relacionar, adquirem valores e

crenças, desenvolvem senso crítico, autoestima e a segurança. Segundo Minayo (1999)

uma escola ideal é exatamente a escola que favoreça um ambiente saudável e de

formação para a cidadania;

[...] é aquela que respeita e estimula os alunos a pensar. São escolas em

que, além de o aluno aprender as matérias, se permite que ele cresça como

31

pessoa e cidadão. Ou seja, ela é a instituição que realiza, ao mesmo tempo,

sua função de construir conhecimentos, convivências, experiências e crítica

social e, assim, cumpre importante papel socializador (MINAYO, 1999

pg.114)

Pode-se dizer então que, se a escola, como outras instituições sociais, muito

pode fazer para incentivar a compreensão por parte dos alunos dos valores realmente

humanos, livres de qualquer afetação moralista, capazes de fornecer razões para não

optar pelo uso da violência no intuito de viver uma sociabilidade humana, ela tem também

que repensar sua função numa sociedade em constante mudança.

A educação verdadeiramente libertadora é aquela que interfere no contexto

em busca de promover mudanças no indivíduo (Freire, 1987). Auxiliar os jovens a

transformar as situações adversas nas quais vivem é a melhor forma de educá-los. A

escola precisa se valorizar para fazer frente às ameaças dos vândalos e das gangues e à

violência interna.

É, portanto, de suma importância não esquecer a transmissão de conteúdos

da formação ética dos educandos. Considerando com precisão a diferença existente entre

autoridade e autoritarismo e entre liberdade e licenciosidade (Freire, 2000), é necessário

que o professor e a escola, de uma forma geral, não deixem das questões disciplinares de

seus membros e não abdiquem de promover a reflexão e o debate no que diz respeito à

violência ou violências que estão presentes no nosso cotidiano.

A violência surge em contextos e em situações bem conhecidos. Torna-se

imprescindível uma intervenção educativa, não só dirigida aos jovens, mas a todos os

cidadãos, pois toda a sociedade é responsável e deve ser chamada a intervir para

contribuir por um mundo mais justo e igualitário.

3.2- Família e violência.

O conceito de família nem sempre foi o mesmo, sofreu alterações de acordo

com o evoluir dos tempos. No Antigo Regime, não existia os termos criança ou

32 adolescente, a criança não tinha infância, era considerada um "adulto jovem".

Passava-se directamente de criança muito pequena a adulto jovem, sem

passar pelas várias etapas da juventude de que eram talvez conhecidas

antes da Idade Média e que se tornavam o aspecto essencial das

sociedades evoluídas dos dias de hoje". (PHILIPPE ARIÉS, 1988, pg.10-11)

A educação da criança não era assegurada pela família. Cedo as crianças

se envolviam com os adultos em atos sociais tradicionais, de ajuda aos pais, nos

trabalhos de casa no caso das meninas e nos meninos na conservação dos bens e

negócios familiares. Era deste modo que adquiriam conhecimentos e valores essenciais à

sua formação.

A família não demonstrava afetividade, a afetuosidade registrava-se nas

pessoas próximas às crianças tais como as amas, os serventes, os vizinhos, etc.

Na época do Estado Novo, a esposa era incumbida a responsabilidade pela

educação dos filhos, dependendo economicamente do marido. Com as alterações sociais,

a família sofreu grandes transformações, que já tinham sido iniciadas em outros países já

democratizados. Diminuiu o número de filhos por casal, o casamento tornou-se mais

instável com um número crescente de divórcios, aumentando às famílias monoparentais,

as mulheres passaram a ter uma atividade profissional, ao estudarem até mais tarde,

alcançaram sua independência econômica, relegando muitas vezes a maternidade para

segundo plano.

Hoje, nas famílias, abordam-se temas que eram impensáveis no passado.

Os pais já não são os senhores absolutos da lei e da ordem, nem os únicos cuidadores

dos bens da família. As mães não são unicamente as cuidadoras do lar e responsáveis

pela educação e formação dos filhos.

Embora haja uma certa continuidade na transmissão de valores de pais para

filhos, a verdade é que os jovens de hoje adquirem a sua identidade não só dentro, mas

também fora da família, através de discursos variados que a escola e a família poderão

ou não integrar. Todavia, a família não se pode demitir do seu papel e atribuir

responsabilidades aos outros agentes educativos na formação dos seus descendentes.

FANTE e PEDRA, 2008, diz que o grupo familiar exerce profunda e decisiva

importância na estrutura do psiquismo da criança, logo na formação da personalidade do

33 adulto.

A família é uma organização social complexa, um microcosmo da sociedade,

onde ao mesmo tempo se vivem as relações primárias e se constroem os

processos identificatórios. É também um espaço em que se definem papéis

sociais de gênero, cultura de classe e se reproduzem as bases de poder

(Minayo, 1999 pg. 83).

A vida psíquica de um indivíduo não é inteiramente um processo interno,

para Fante e Pedra (2008, p. 92), os modelos educativos familiares introjetados pela

criança na primeira infância, resultantes dos tipos de vivências e interações sócio

emocionais na família, gratificantes ou não, tornar-se-ão matrizes de construções

inconscientes de cadeias de pensamentos e emoções.

Se os pais permitem ou reforçam abertamente a agressão, é possível

que as crianças se comportem agressivamente em casa e, por

generalização, em outros lugares em que sintam ser a agressão permitida,

esperada ou encorajada. A presença de um adulto permissivo favorece a

expressão do comportamento agressivo. (FANTE e PEDRA, 2008, pg. 93)

Pode-se concluir que a consciência da violência cometida por crianças e

jovens no ambiente escolar, não é um problema fácil de ser resolvido, é importante que se

tenha cumplicidade entre a família e a escola. Também se observa que a violência está de

tal modo entranhada no dia-a-dia da sociedade, que acaba sendo vista como algo natural,

aceitável ou que não pode ser mudado, gerando conformismo diante da presença dela.

É importante que os pais, tenham mais participação na escola. Guareschi e

Silva (2008) relatam que uma das alternativas para o enfrentamento da violência é a

informação e a formação dos alunos para um despertar para a cidadania.

A família, como a sede da socialização, por ser a primeira instituição social

com a qual a criança tem contato, acaba sendo o espaço no qual os valores e as normas

sociais devem ser repassados às gerações mais novas. É na relação da criança com os

34 adultos mais significativos em sua vida que, primeiramente, se estabelece a noção de

limites, o respeito à autoridade e a capacidade de se colocar no lugar do outro. É

importante portanto que as crianças aprendam com os adultos, que existem outras formas

de se defender ou de se conseguir o que se deseja. Que não é preciso bater ou agredir os

colegas para conseguir o que quer. É preciso que aprendam a dividir, e isto deve ser

ensinado em casa pelos pais e na escola pelos professores para que as mesmas

aprendam algumas estratégias sociais que irão substituir tais condutas agressivas.

35

CONCLUSÃO

A agressividade é uma qualidade natural, humana ou animal, que tem a

função de defesa diante dos perigos enfrentados e dos ataques recebidos. Inerente a todo

ser humano, é um mecanismo importante para que a criança aprenda a se defender e a

se impor no meio em que vive e se desenvolve, para afirmar-se e ensaiar-se enquanto

pessoa. Nesta experiência que é o crescer, a criança não sabe controlar essa

agressividade, ou seja, não consegue usar de modo adequado este mecanismo, cabe

então aos pais, determinarem as regras e os limites para que a criança aprenda a lidar

com sua agressividade.

Vinha acredita que a questão das regras e dos limites assume um papel

educativo cada vez mais importante, visto que se verifica grande receio, por parte dos

pais, em reprimirem, censurarem ou limitarem os seus filhos, fazendo da permissividade

uma forma de lhes agradar e compensar possíveis ausências resultantes do ritmo de vida

atual, expresso na falta de tempo para estarem e acompanharem os filhos. Porém, isto

acarreta num enorme risco de gerar crianças que não conhecem os seus limites, e que

não sabem lidar com sentimentos de frustração.

A frustração causada pelo ‘não’ é necessária ao adequado desenvolvimento

psicológico. Frustração não é sinônimo de trauma, ao contrário, ela é imprescindível,

desde que dentro dos limites de tolerância já construídos pela criança. O que pode causar

prejuízo é quando se exagera no ‘sim’ ou no ‘não’.

Atualmente vivemos em uma sociedade com muitos problemas éticos e

morais e fala-se muito em colocar limites nas crianças para que essas saibam se

comportar dentro dos padrões de moralidade. Quando se pensa na questão dos limites,

inicialmente se fala no termo mais associado a regras e normas, permissões ou

proibições, apresentadas às crianças de maneira externa, como imposições. Com base

nas afirmações de Piaget, pode-se concluir que a questão dos limites deve ser entendida

como um processo de construção na criança, processo este que, nada mais é senão o

desenvolvimento moral da criança, e este depende das relações sociais que a criança

estabelece.

36

O ser humano tem um papel ativo na construção dos valores e de normas de

conduta. Sabe-se que a qualidade do relacionamento que se estabelece com a criança é

um dos determinantes da qualidade de relacionamento que esta irá desenvolver com os

amigos, pais, professores, enfim com as pessoas de seu meio social. Se o

relacionamento for pautado em respeito mútuo, a criança perceberá a necessidade de

respeitar as pessoas com as quais convive. Porém, respeitar a criança não passa por

deixá-la livre para fazer o que bem lhe convier.

O que tem acontecido é uma leitura equivocada da obra de Piaget, e um

certo extremismo nas interpretações. Onde Piaget escreveu sobre a importância do

respeito mútuo, entendeu-se que o adulto devia respeitar a criança deixando-a livre para

fazer o que bem entende. E o respeito continuou unilateral, só que agora é dirigido

apenas dos pais e professores para as crianças e a recíproca nem sempre é verdadeira.

O que se tem visto são os adultos obedecendo as ordens dadas pelas crianças.

Segundo Vinha, a formação dos sentimentos morais depende da ênfase

colocada pelo adulto ao relacionar-se com a criança. Uma educação que tende a

fundamentar-se principalmente no temor causa a obediência exterior e interessada, e na

ausência deste, a criança não mais obedece, pois, não sente aceitação interna pela

norma. O mesmo ocorre com uma relação embasada somente no amor, muitas vezes,

pode-se perceber que ao interagir nas situações em que havia a necessidade de limites, a

criança, vai verificando a necessidade destes. Porém, ao testá-los, na forma de

exigências, desobediências, ‘birras’, desafio às ‘ameaças’ feitas, e perceber que nada

acontece, ou seja, que o adulto não toma nenhuma atitude quando as regras não são

respeitadas, a criança vai percebendo que seus limites, espaços, vão se ampliando.

Diante da permissividade do adulto perante tais condutas da criança, as normas vão

sendo, aos poucos, desvalidadas. Ainda segundo Vinha, a criança vai, pouco a pouco,

perdendo o temor característico do sentimento de respeito. Dessa forma, vai-se

diminuindo significativamente o medo: da desaprovação do adulto, de ser repreendida, de

ser punida, ou da perda do amor, característicos do respeito unilateral; não havendo

também, o temor de decair perante os olhos do outro, decorrente do respeito mútuo. Sem

dúvida alguma, permaneceu a afeição, mas, com a diminuição do temor, reduziu-se

também o respeito. Possuir somente uma dessas duas tendências afetivas que formam o

respeito não é suficiente para causar o sentimento de aceitação interior às regras,

portanto, apenas o amor ou só o temor não bastam para fazer com que apareça o

sentimento de obrigação às recomendações dadas. (Vinha, pág. 44).

37

O que tem que se ter cuidado é com o excesso de autoritarismo (relação

embasada principalmente no medo) ou a permissividade (evidenciada na ausência de

qualquer limite), já que nenhuma dessas relações leva à autonomia. Quando Piaget

escreve sobre a autonomia, deixa claro que essa é desenvolvida aos poucos e que a

princípio a criança é, e precisa ser, heterônoma (governada por outros), para que através

das interações que estabelecem passem de um estado de heteronomia para a autonomia.

No entanto, o que se observa é que cada vez mais a criança está sendo colocada na

posição de decisão, ou seja, são as crianças que determinam o que os pais e professores

devem fazer, e esses precisam se adaptar. Com isso, está sendo produzido pequenos

adultos, os quais espera-se que participem ou que definam normas de convivência, que

exibam uma autonomia e uma responsabilidade acima das que seriam correspondentes à

sua idade ou nível de desenvolvimento.

A sociedade atual está retornando a mentalidade da Idade Média, onde a

criança era considerada um adulto em miniatura, porém, de forma diferente, pois nessa

época as crianças participavam do mundo adulto de outra forma, ou seja, executando os

mais diferentes trabalhos, o que chegava a ser desumano, no entanto agora, determinam

os prazeres, organizando as rotinas como melhor entendem.

É importante que se deixe a criança livre, mas com a condição de que não

se torne, ela mesma, obstáculo à liberdade dos outros, como por exemplo, quando ela

grita em uma situação ou lugar que incomode os outros. Deve-se mostrar que ela pode

chegar a seus objetivos, mas apenas se deixar os outros chegarem aos deles.

Segundo Zagury, os limites são essenciais para que a disciplina ocorra

tanto na escola como na família e na sociedade. Os limites precisam ser estabelecidos

desde o início da vida, pois assim o indivíduo saberá viver dignamente exercendo suas

funções de cidadão que exige seus direitos e não se esquecendo de cumprir os seus

deveres.

Em face da configuração social, em que as crianças ingressam cada vez

mais cedo na escola, é difícil pensar que família e escola não exerçam ambas, papeis

preponderantes na construção dos limites. A escola acaba tendo um papel fundamental

no processo de desenvolvimento moral nas crianças, pois é uma instituição, por si só,

socializadora.

A questão dos limites deve, permanentemente, ser discutida entre família e

escola. A participação da família é muito importante para o melhor entendimento das

38 crianças no espaço escolar. É necessário que haja um consenso entre família e escola,

adotando-se posturas semelhantes em relação a determinadas situações, como, por

exemplo, quando ocorrem transgressões de regras. Também devem preparar os alunos

para o convívio, para a adaptação ao espaço público e para o exercício da cidadania,

estando aí à verdadeira função da educação atual, formar cidadãos cientes de seus

direitos e deveres.

39

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42

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43

ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2

AGRADECIMENTO 3

DEDICATÓRIA 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I 10

Estudos da Moralidade.

1.1 - Filosofia moral e a ética Kantiana. 11

1.2 - Desenvolvimento da moralidade segundo Jean Piaget. 15

.

CAPÍTULO II 19

Cultura Narcísica.

2.1 - Narcisismo por Freud. 20

2.2 - Pais narcisistas. 22

CAPÍTULO III 26

Violência no ambiente escolar: o papel da família e da escola.

3.1 - Escola e violência. 27

3.2 - Família e violência. 31

CONCLUSÃO 35

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 39

44 WEBGRAFIA 42

ÍNDICE 43